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Os fins da Universidade herança e imaginação

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ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 166-180 | set-dez. 2020166
https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/2020223166180
A
RTIG
O
166
OS FINS DA UNIVERSIDADE: 
HERANÇA E IMAGINAÇÃO
THE END OF THE UNIVERSITY: 
INHERITANCE AND IMAGINATION
Mariana Ruggieri 
ORCID 0000-0001-7867-6404
Universidade Estadual de Campinas, 
Campinas, SP, Brasil
Resumo
Tendo como alicerce teórico o texto “As pupilas da universidade”, de Jacques Derrida, 
o presente ensaio busca discutir a universidade a partir do ensaio Three Guineas, de 
Virginia Woolf, e da novela Amuleto, de Roberto Bolaño, de modo a investigar as 
possibilidades para um modo criativo de se herdar uma ideia.
Palavras-chave: Bolaño, Derrida, Woolf, Universidade.
Abstract 
Taking Jacques Derrida’s “The Principle 
of Reason: The University in the Eyes of 
Its Pupils” as a theoretical starting point, 
this paper aims to debate the notion of 
university based on Virginia Woolf ’s Three 
Guineas and Roberto Bolaño’s Amulet, 
in order to investigate possibilities for 
creatively inheriting an idea. 
Keywords: Bolaño, Derrida, Woolf, 
University.
Resumen
El presente ensayo busca discutir la 
universidad a partir del ensayo Three 
Guineas, de Virginia Woolf, y de la 
novela Amuleto, de Roberto Bolaño, con 
base teórica en el texto “As pupilas da 
universidade”, de Jacques Derrida, para 
investigar las posibilidades de un modo 
creativo de heredar una idea. 
Palabras claves: Bolaño, Derrida, 
Woolf, Universidad.
MARIANA RUGGIERI | Os fins da universidade: herança...
http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
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Querida, no es el Paraíso. 
En las calles hay batallas campales 
[después de las diez de la noche. 
Aunque la comida que preparo aún 
[no es del todo mala. 
¿Cómo se llama esto?, pregunté. 
Océano. 
Una larga y lenta Universidad.
Roberto Bolaño
Como falar do fim se estamos mal começando? E como começar sem 
ter em vista algum fim? Em um texto também escrito para ser lido diante 
de uma plateia1 chamado “As pupilas da universidade”, Jacques Derrida vai 
fazer uma provocante advertência: 
Cuidado com o que abre a Universidade para o exterior e para o sem-fundo, 
mas cuidado também com o que, fechando-a em si mesma, não criaria 
senão um fantasma de cercado, a colocaria à mercê de qualquer interesse ou 
a tornaria perfeitamente inútil. Cuidado com os fins, mas o que seria uma 
Universidade sem fins? (DERRIDA, 1999, p.155)2.
O interesse do filósofo franco-argelino é investigar o princípio da razão 
sobre a qual se funda a universidade e avançar a hipótese de que defender este 
princípio, isto é, defender a universidade, seria questionar os seus próprios 
fundamentos. Até onde ele sabe, diz, nunca se fundou uma universidade 
contra a razão, o que permite a suposição razoável de que a razão de ser da 
universidade sempre foi a razão, ou alguma relação essencial entre razão e 
ser. Mas se responder ao apelo do princípio de razão é dar a razão, explicar 
racionalmente os efeitos pelas causas, responder pelo princípio de razão, por 
outro lado, e, portanto, pela universidade, responder por esse apelo, interrogar-
se a respeito da origem ou do fundamento desse princípio do fundamento, 
não é simplesmente obedecer a ele ou responder perante ele: 
1 Esse texto foi escrito para ser apresentado no evento Pesquisa e Catástrofe: I Seminário de Pesquisadores
de Pós-Doutorado em Teoria e História Literária, no IEL-Unicamp, entre os dias 11 e 12 de novembro 
de 2019.
2 Realizei pequenas modificações nas traduções onde julguei necessário.
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ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 166-180 | set-dez. 2020168 MARIANA RUGGIERI | Os fins da universidade: herança...
Estamos obedecendo o princípio da razão quando perguntamos o que 
fundamenta esse princípio que é em si mesmo um princípio de fundamento? 
Não estamos – o que não quer dizer, por outro lado, que o estejamos 
desobedecendo. Estamos lidando aqui com um círculo ou com um abismo? 
(DERRIDA, 1999, p.134).
Não posso deixar de evidenciar o elemento central do título de sua 
palestra: as pupilas da universidade, ou, para ficar mais perto do título em 
inglês, a universidade nos olhos de suas pupilas. Resgatando a imagem da luz 
como veículo da razão universitária, o motivo um tanto desacreditado da 
iluminação civilizacional contra o mundo traiçoeiro das sombras, o que se 
focaliza são as pupilas, isto é, aquelas que variam seus contornos para controlar 
a passagem de luz. Um outro modo para dizer alunas, as pupilas modulam o 
apelo à razão, de modo que a instituição – a emissária da luz – importa somente 
na medida em que pode vir a ser filtrada com um simples piscar de olhos. 
Falando na Universidade de Cornell, em Ithaca, nos Estados Unidos, 
uma universidade famosa pelos seus desfiladeiros, pelas suas gargantas, Derrida 
está interessado em uma questão que passa pela arquitetura e pela topografia, 
a questão da relação entre a razão e o abismo. Em um breve passeio pela 
história da construção do campus, ele menciona as discussões em torno da 
implementação de cercados ao redor dos desfiladeiros como medidas de 
segurança contra ideações suicidas. O seu fundador, Ezra Cornell, é citado 
como tendo associado a vista dos desfiladeiros à morte, relação que é explorada 
por Derrida para desestabilizar a noção de que a razão sempre estaria do lado 
da vida, mas também para avançar uma teoria da universidade que a obriga 
a conviver com o próprio abismo. “Qual é a vista, quais são as vistas da 
Universidade?”, ele pergunta, “o que se vê desde a Universidade?” (DERRIDA, 
1999, p.124). Pensar a respeito da universidade significa pensar acerca da 
topopolítica de um ponto de vista, o ponto de vista da universidade, o ponto 
de vista desde a universidade: “O que pode ser o diafragma da Universidade? 
Será a Universidade mestre de seu próprio diafragma? O que pode o corpo 
da Universidade ver ou não de sua própria destinação, daquilo em cuja vista 
delimita o seu chão?” (DERRIDA, 1999, p.127-128).
O que me mobiliza aqui hoje é a possibilidade de falar desde a 
universidade com alguma vitalidade, que, se não é exatamente uma alegria, 
seguramente não se trata de recostar-se contra o muro das lamentações e 
nutrir-se de cinismo, ressentimento e rancor. Talvez, de modo a sintetizar o 
que me preocupa hoje na universidade, a pergunta que fica é: como defender 
a universidade hoje de um fim catastrófico sem mobilizar os ideais modernos 
da ilustração excludente nem o fim utilitário do desenvolvimento nacional, 
também excludente? Ainda, se qualquer defesa da universidade mobilizará, 
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inevitavelmente, alguma versão de um destino emancipatório, não seria possível 
vislumbrar algum fim, como se a dizer: um outro fim de mundo é possível?
*
Virginia Woolf, no seu longo ensaio Three Guineas, coloca uma outra 
variação desse conjunto de perguntas. O livro, publicado em 1938, quando 
a Alemanha nazista engolia a Tchecoslováquia, é uma longa resposta a uma 
carta fictícia, na verdade a três cartas, mas disparada pela pergunta contida na 
primeira: “como a guerra pode ser evitada?” (p.9). O remetente sugeria que 
ela assinasse um manifesto para “proteger a cultura e a liberdade intelectual” 
(p.95). Woolf vai se recusar a assinar o manifesto, não porque ela fosse a 
favor da guerra, evidentemente, ou pensasse que a guerra fosse inevitável, mas 
porque não estava tão claro o que estavaimplícito por “cultura” e “liberdade”, 
sugerindo, então, que, antes de propor um manifesto, ele investigasse a 
sua relação com a manutenção de um sistema educacional patriarcal e, 
portanto, bélico. De modo provocativo, a resposta às cartas ousava propor a 
outras mulheres que elas não se aliassem a seus pais e irmãos, esses “homens 
instruídos” que urgiam às mulheres o empenho na proteção de um mundo 
construído para e por eles: 
É imprescindível que pensemos (...) Não paremos nunca de pensar – em 
que consiste esta “civilização” em que nos encontramos? Em que consistem 
essas cerimônias e por que devemos participar delas? Em que consiste esta 
“civilização” em que nos encontramos? Em que consistem essas cerimônias 
e por que devemos participar delas? Em que consistem essas profissões e por 
que devemos ganhar dinheiro exercendo-as? Para onde, em suma, ela está 
nos levando, essa procissão dos filhos dos homens instruídos? (WOOLF, 
2019, p.73).
O centro da discussão nessa parte do ensaio é a formação universitária 
em um momento em que as mulheres das “classes instruídas” iam pouco a 
pouco ganhando acesso a ela. A discussão gira em torno da exclusão fundante 
da universidade, um espaço exclusivamente masculino, e os modos de inclusão 
das mulheres nessa procissão que já está em andamento, a despeito delas. É o 
modo de inclusão, precisamente, que faz emergir o comando: “É imprescindível 
que pensemos [Think we must]”. “Queremos nos juntar àquela procissão ou não 
queremos? Em que termos devemos nos juntar àquela procissão? Sobretudo, 
para onde ela está nos levando, a procissão dos homens instruídos?” (WOOLF, 
2019, p.71). Em sua resposta, Woolf é assertiva com o seu remetente, um 
homem da mesma classe social, com o mesmo sotaque, a mesma etiqueta 
nos longos jantares que frequentam, mas com uma diferença notável – um 
precipício, ela diz – em relação às possibilidades de acessar a educação e o 
mundo. As mulheres das classes abastadas ficam em casa onde recebem aulas 
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ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 166-180 | set-dez. 2020170 MARIANA RUGGIERI | Os fins da universidade: herança...
particulares de alemão e piano, enquanto os seus irmãos vão à universidade e 
viajam o mundo com os fundos constituído pelas ricas famílias inglesas desde o 
século XIII, disparidade que também havia subsidiado todo o desenvolvimento 
argumentativo em Um teto todo seu, publicado em 1929. Tecendo relações 
convincentes entre a guerra, a tradição, a universidade e o patriarcado, Woolf 
busca delinear um modo de pensar uma instituição universitária fundamentada 
sobre outros pressupostos. Em um momento posterior do texto, dirigindo-se 
à tesoureira de uma organização que pede uma doação para a reconstrução 
de uma faculdade para mulheres, ela escreve:
Ora, uma vez que a história e a biografia – a única evidência disponível para 
quem é uma outsider – parecem provar que a antiga educação das faculdades 
não produz nem respeito especial pela liberdade nem aversão particular à 
guerra, fica claro que vocês devem reconstruir a sua faculdade de maneira 
diferente. Ela é jovem e pobre; deixem, portanto, que ela tire vantagem dessas 
características e seja alicerçada na pobreza e na juventude. Obviamente, ela 
deve ser, portanto, uma faculdade experimental, uma faculdade ousada. Que 
seja construída de acordo com diretrizes próprias. (...) Deve ensinar as artes 
das relações humanas; a arte de compreender a vida e a mente dos outros 
povos, e as pequenas artes da conversação, do vestir-se, da culinária que a 
elas estão associadas. O objetivo da nova faculdade, a faculdade barata, não 
deve ser segregar e especializar, mas combinar. (WOOLF, 2019, p. 42-43).
Woolf, sabe, no entanto, das dificuldades de implementar uma 
universidade fundamentada sobre esses princípios, entende a necessidade 
de formar mulheres aptas a obter o próprio sustento, pondera que, naquele 
momento, somente uma universidade orientada ao mercado de trabalho pode 
retirar as mulheres da obrigatoriedade do casamento, de modo que ela aceita 
realizar a doação de um guinéu, alertando, porém, para a inevitabilidade de 
um futuro reincidente: 
E uma vez que essa realidade significava que ela deveria reconstruir sua 
faculdade na mesma linha que as outras, concluía-se que a faculdade destinada 
às filhas dos homens instruídos também deveria fazer com que a pesquisa 
produzisse resultados práticos que atraíssem legados e doações por parte dos 
homens ricos; deveria estimular a competição; deveria aceitar a concessão de 
graus acadêmicos e o uso de capelos coloridos; deveria acumular uma grande 
riqueza; deveria excluir outras pessoas da partilha de sua riqueza; e, portanto, 
em quinhentos anos, mais ou menos, essa faculdade também deveria fazer a 
mesma pergunta que o senhor está fazendo agora: “Como, em sua opinião, 
conseguiremos evitar a guerra?” (WOOLF, 2019, p. 44).
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171MARIANA RUGGIERI | Os fins da universidade: herança... 
O ensaio de Woolf, claro, não pode ser tomado como um programa 
político e tampouco sustenta toda sua argumentação em torno da relação 
entre guerra e patriarcado. A força de seu texto, porém, vem muito menos de 
uma precisão teórica em torno do que hoje chamamos de teoria de gênero do 
que de sua habilidade de questionar, a partir da desigualdade entre gêneros, 
os fundamentos da pergunta que lhe é feita. A partir dessa recusa a uma 
mobilização amnésica, Isabelle Stengers e Vinciane Despret publicaram em 
2011 um livro coletivo, Les faiseuses d’histoires: que font les femmes à la pensée?, 
onde nove professoras-pesquisadoras são convidadas a responderem a uma 
pergunta que tem como eixo de partida o “think we must!”, de Woolf. Seria 
possível dizer, segundo as filósofas, que esse imperativo de Virginia Woolf 
é uma proposição elitista, dirigida, como foi, somente às filhas e irmãs de 
homens ricos e bem-formados, “mas nós a vivenciamos em outra chave: de 
modo que ela se torne inseparável da criação de uma memória que pode 
ser uma fonte de resistência”. (DESPRET & STENGERS, 2011, p. 32)3. 
A ideia é propor uma reflexão sobre o substrato universitário; não apenas o 
substrato sobre o qual se pensa, mas principalmente o substrato por meio 
do qual se pensa. Se a universidade não é um lugar qualquer, elas parecem 
dizer, é preciso induzir uma transformação a partir da constituição criativa e 
fabulativa de uma memória coletiva, sem nenhuma inocência: 
Nós não sabemos se é possível salvar essa universidade deplorável cuja 
passividade nós entendemos melhor, graças a Woolf. As “fronteiras místicas”, as 
ideias abstratas podem gerar alguns resmungos, até mesmo algumas resistências 
individuais, mas não a habilidade coletiva de agir de outro modo. (DESPRET; 
STENGERS, 2011, p.55).
Se há hoje, na universidade, alguma dimensão de tristeza – uma 
sensação de derrota individual e coletiva, cortes e mais cortes de verbas –, 
é preciso politizá-la em nome da possibilidade de alguma movimentação 
teórica conjunta. Não de modo narcísico, visando o gozo imediato diante 
da própria brilhanteza, mas ativamente orientando-se em grupo dentro de 
um modo fabulatório que possibilite trazer à tona os recursos imaginativos 
– e modos de demandar os recursos financeiros – que não desembocarão na 
sensação onipresente de impotência. O que não quer dizer que o desejo não 
seja uma parte fundamental do processo de inventar e de proliferar essas 
fabulações: é a ausência de prazer e de invenção que também ratifica o caráter 
inabitável do nosso mundo. Para Stengers e Despret, responder ao chamado 
do “Think we must!” trata-se, sobretudo, em primeiro lugar, de redeterminar 
3 Todas as traduções de Despret & Stengers são minhas.
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coletivamente os termos da pergunta, mais do que juntar-se à procissão de 
respostas especialistas que agem sob a prerrogativa de conterem soluções.
O subtítulo da tradução do livro de Stengers e Despret ao inglês, 
Women who make a fuss, de 2014, é: “the unfaithful daughters of Virginia 
Woolf ”. Há aqui um duplo sentido que se complementa: as filhas infiéis 
de Virginia Woolf, isto é, infiéis, juntas, às instituições, mas também – por 
outro lado e ao mesmo tempo – as filhas infiéis de Virginia Woolf, isto é, 
infiéis a ela, a mãe. Desse modo, a questão passa a ser sobre a herança e os 
seus modos, sobre o modo de herdar ideias e instituições, porque em grande 
medida não se trata de começar do zero, mas de começar de novo. A premissa 
colocada por elas é de que herdamos um problema chamado universidade e 
o que precisa ser feito, então, é buscar a reconfiguração do problema. Como 
método de demonstração, escolhem uma fábula beduína sobre um velho sábio 
e seus camelos: um homem, ao morrer, deixou de herança aos três filhos onze 
camelos, que deveriam ser divididos em uma conta impossível – metade dos 
bens para o mais velho, um quarto para o do meio e um sexto para o caçula. 
Na iminência de haver guerra entre eles, consultam um sábio, que diz que 
não pode fazer nada por eles, exceto lhes dar o seu único camelo, velho e 
magro. Agora com doze camelos, os filhos conseguem efetuar a divisão: seis 
para o mais velho, três para o do meio e dois para o caçula. Devolvem, então, 
ao sábio o camelo velho. O que parece ser relevante para Stengers e Despret 
nessa história é a possibilidade de construir uma versão da herança a partir 
de uma intervenção inesperada, um dispositivo que vai e volta; o camelo do 
sábio é uma tecnologia da partilha. Trata-se menos de propor uma tábula 
rasa, e mais de rearranjar os termos da equação. As autoras, então, especulam 
sobre aquilo que teria a força desse camelo suplementar na reconfiguração 
dos nossos dias, concluindo que:
Não cabe aos filósofos oferecerem o camelo suplementar da sua época, como 
o homem sábio da fábula – filósofos não são pessoas sábias e, além disso, 
ninguém vem consultá-los. No lugar disso, pensamos que o camelo pertence à 
própria época, no modo daquilo que é capaz de vir a ser. Não somos heroínas 
do pensamento, enfrentando sentimentos estabelecidos, mas especuladoras 
do possível, dependendo das possibilidades de pensamento que pertencem 
ao presente. (DESPRET; STENGERS, 2011, p. 76).
Não aparece, entretanto, na fórmula do camelo a possibilidade de se 
questionar os termos da divisão, fato que também parece não importar muito a 
Stengers e Despret, talvez porque uma divisão igualitária impedisse a devolução 
do camelo suplementar, reconfigurando a própria noção de herança – e da 
lei. A matemática da herança dos camelos, então, talvez não sirva tanto para 
pensar a universidade, ou soe excessivamente estranha em um país onde a 
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173MARIANA RUGGIERI | Os fins da universidade: herança... 
universidade é, ainda hoje, em muitos sentidos, uma questão hereditária de 
concentração de renda – e às vezes de filiação teórica. Ou talvez o problema 
não seja a herança – o ato de herdar –, mas os camelos, pois há sempre a 
possibilidade de herdar a universidade e as diversas linhas de pensamento 
como se herda uma língua, em que a própria herança já a torna mais viva, 
mais variada, mais barulhenta. A herança em forma de memória, mais do que 
em forma inventariável, produz a possibilidade de posicionar-se diante dos 
termos colocados. Nessa nova versão da fábula, nenhum elemento suplementar 
seria necessário, pois estaria já contido na própria coisa herdada, como uma 
espécie de fissura constitutiva, demandando a reconfiguração do problema.
*
A obra de Roberto Bolaño é assombrada pelo espectro da Universidade 
Desconhecida. Essa imagem aparece dispersamente em diversos poemas, 
além de aparecer em 2666 brevemente mencionada na anotação do diário 
de um dos personagens, em uma espécie de exercício de associação livre 
diante de um quadro de Courbet. O quadro, Les Demoiselles des bords de la 
Seine (eté), exposto no Salão de Paris em 1857, causou um grande escândalo 
à aristocracia francês, acusado de vulgaridade. Proudhon, por outro lado, 
amigo de Courbet, considerava que era uma denúncia à moral do regime: a 
mulher dormindo estaria se entregando a fantasias eróticas, ao passo que a 
outra estaria obsessionando em torno de suas finanças. No livro de Bolaño, 
o quadro é descrito simplesmente como o breve descanso dos espiões ou 
dos náufragos. Nesse fluxo imagético e político, indaga-se à universidade 
desconhecida sobre o ensino da resistência, ou sobre a própria possibilidade 
de se ensinar algo como a resistência: “disposición a resistir, y también: 
dónde se aprende a resistir?, en qué clase de escuela o de universidad?, y 
también: fábricas, calles desoladas, burdeles, cárceles, y también: la Universidad 
Desconocida” (BOLAÑO, 2004, p. 913). De modo geral, a Universidade 
Desconhecida surge na obra do chileno como um lugar que não se materializa 
espacialmente, mas por meio da qual se obtém uma formação literária extra-
canônica, formação ligada sobretudo, para Bolaño, às noções de coragem e 
valentia. Em dois poemas onde isso fica mais claro, reunidos em uma extensa 
antologia intitulada La Universidad Desconocida, a Universidade Desconhecida 
emerge com a força de um respiro, um contraponto: “Esta esperanza yo no 
la he buscado. Este pabellón silencioso de la Universidad Desconocida” ou 
“Querido Alfred Bester4, ¡por lo menos / he encontrado uno de los pabellones 
4 Alfred Bester é autor do conto de ficção científica “The Men who Murdered Mohammed”, no qual o 
personagem principal é professor da Universidade Desconhecida. No conto, a universidade também se 
mantém envolta em mistério; diz-se que ninguém sabe onde ela fica ou o que se ensina nela.
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ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 166-180 | set-dez. 2020174 MARIANA RUGGIERI | Os fins da universidade: herança...
/ de la Universidad Desconocida!”. (BOLAÑO, 2007) Em outro poema, 
chamado Atole, uma bebida matinal de notívagos e trabalhadores braçais, 
a monumentalização de seus amigos, os poetas Mario Santiago e Orlando 
Guillén provocam a memória de seus sorrisos vivos e livres quando ainda 
podiam, segundo diz, aparecer e desaparecer como a poesia verdadeira. Ele os 
vê expostos: “En los murales de una nueva universidad / llamada infierno o 
algo que podía ser / una especie de infierno pedagógico” (BOLAÑO, 2007). 
Aqui, a universidade é nova, o que não é de qualquer maneira a mesma coisa 
que ser desconhecida. A novidade estaria marcada por um gesto fundacional, 
sem nenhuma relação, ainda que transgressora, com algo como a tradição, 
dentro da qual a pedagogia infernal surge como um regime de significado 
já dado de antemão. Em El espíritu de la ciencia-ficción, novela experimental 
de 1984 publicada postumamente em 2016, a Universidade Desconhecida 
aparece como uma espécie de pano de fundo, embora isso não esclareça 
muito sobre o seu funcionamento. Quando um personagem é indagado por 
outro acerca da definição de tal universidade, responde pela via tautológica: 
“Una universidad que nadie conoce, por supuesto”. (BOLAÑO, 2016, p. 
101). O mesmo personagem, que atua na novela como um duplo de Roberto 
Bolaño e tem como hábito escrever a seus escritores preferidos, vivos, de ficção 
científca, conta que escreveu a Ursula Le Guin, escreve sobre “los sueños y la 
Revolución”. O amigo lhe pergunta se escreve também sobre a universidade 
desconhecida, e também: “¿Por quéno le preguntas si sabe dónde se encuentra?” 
(BOLAÑO, 2016, p. 103). A Universidade Desconhecida aponta para um 
lugar ou uma ideia partilhada pelos especuladores do futuro, os ficcionistas 
da ciência, os viajantes do tempo.
É interessante, portanto, que em meio a uma obra assombrada pelo 
horizonte utópico de uma universidade inalcançável surja uma novela como 
Amuleto, onde a universidade aparece materializada em uma instituição 
existente, mais precisamente na UNAM – uma das maiores universidade 
do mundo – no ano de 1968. Aqui, a injunção temporal das alucinações ou 
sonhos da personagem principal, Auxilio Lacoutoure, promove certa viagem 
no tempo, ainda que não de modo linear. A novela começa com um aviso 
dado por ela: “Esta será una historia de terror. Será una historia policíaca, un 
relato de serie negra y de terror. Pero no lo parecerá. No lo parecerá porque 
soy yo la que lo cuenta. Soy yo la que habla y por eso no lo parecerá. Pero en 
el fondo es la historia de un crimen atroz”. (BOLAÑO, 2013, p. 11). Auxilio 
Lacouture fica mais de 15 dias presa no banheiro da UNAM quando esta 
é invadida pelo exército em setembro de 1968, algumas semanas antes do 
massacre de Tlatelolco. Durante esses dias, ela sofre uma série de alucinações, 
que a tese de Geruza Zelnys (2014) afirma serem frutos de um relato dado 
sob tortura. As primeiras frases do livro corroboram essa possibilidade, assim 
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como o momento, durante uma das alucinações, em que Auxilio é levada 
por médicos para assistir ao parto da História. Em um cenário hospitalar, 
ela é anestesiada. Segundo seu relato: “Fijaba mi vista en el techo y sólo oía 
el traqueteo de goma de la camilla y los gritos en sordina de otros enfermos, 
de otras víctimas del pentotal sódico (eso pensaba), y hasta sentía un ligero 
calorcillo confortable que subía lentamente por mis largos huesos helados” 
(BOLAÑO, 2013, p. 129). O pentotal sódico é um dos muitos compostos 
químicos que baixam a guarda da consciência, tornando-o matéria prima 
para aquilo que se conhece como “soro da verdade”.
Mas Amuleto não trará nenhuma confissão e sua história tampouco 
se configurará como uma narrativa de testemunho, no sentido clássico de 
evidenciar a catástrofe. A confusão temporal do relato, em que passado, presente 
e futuro não estão ordenados de modo cronológico, antes comparecendo juntos 
ao banheiro da universidade em que Auxilio está presa – refém indireta da 
invasão militar –, oferecerá alguns fragmentos de futuro a partir dos abismos 
do passado. A hipótese da crítica Susana Draper (2012) é de que a memória 
política de Auxilio Lacouture tem como particularidade a imaginação obsessiva 
com “encuentros que nunca sucedieron”. A possibilidade de imaginar o não-
sido, isto é, o que poderia ter sido, é o que permite pensar também naquilo 
que pode vir a ser. Por isso ela poderá sobreviver à tomada militar do Campus 
Universitário. Em 1968, os estudantes estavam mobilizados desde o início do 
ano em defesa da autonomia universitária, contra a invasão de uma das escolas 
preparatórias. (Não esquecer que simultaneamente transcorria, na França, 
uma luta contra a universidade napoleônica.) Ano também das Olimpíadas, 
o governo federal de um México supostamente democrático, ainda que 
seguisse há décadas com o mesmo partido no poder, agiu com violência 
para reprimir as manifestações iniciais que foram, portanto, aumentando. O 
campus da UNAM é tomado pelo exército por mais de 10 mil soldados, e as 
mobilizações são por fim esmagadas em 2 de Outubro, na praça de Tlatelolco, 
com o assassinato de 400 pessoas, em sua grande maioria estudantes, tragédia 
que foi transformada por Elena Poniatowska em um livro do testemunho 
das muitas vozes sobreviventes. 
Em Amuleto não há muito o que ser visto ou testemunhado em sentido 
estrito; presa em um banheiro em um campus vazio, Auxilio desvia seu 
foco de observação para o tempo em sua longa duração, suas visões são 
atravessadas por prospecções acerca do futuro (de onde surgirá o ano de 
2666, que dará título à mais extensa obra de Bolaño) e reimaginações do 
passado. Desviando o foco do 68 mexicano para longe do local do massacre, 
o livro opera nos interstícios menores da história, articulando todo o horror 
que neles existe com as possibilidades de centelhas de uma história distinta. 
O desvio testemunhal é operado mais uma vez ao escolher como a última 
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trincheira da universidade o banheiro, o refugo tornado refúgio, um lugar 
inespecífico à universidade, em vez de um lugar que a caracterizaria em sua 
particularidade e institucionalidade, como uma sala de aula, os salões nobres 
ou as salas dos professores. Não é menos significativo que quem tenha ficado 
ali como única civil não fosse estudante nem professora, mas alguém que 
frequentasse a universidade pelas beiradas, fazendo bicos, assistindo aulas, sem 
estar matriculada, sem também ser mexicana, porque era imigrante uruguaia 
sem papéis. Nos intervalos de suas viagens temporais, sempre que o banheiro 
sitiado se materializa como realidade incontornável, Auxilio expressa a sua 
permanência ali como um gesto de defesa da autonomia universitária. De fato, 
do modo como Auxilio conta a história, a autonomia universitária existia, 
naquele momento, apenas ali com ela: “me disponía moral y físicamente, 
llegado el caso, a no abrir, a defender el último reducto de autonomía de la 
UNAM, yo, una pobre poetisa uruguaya”. (BOLAÑO, 2013, p. 33). Em 
outro momento, em um sonho com Remedios Varo, a pintora espanhola que 
viveu exilada do franquismo no México, ela escuta: “no te preocupes, Auxilio, 
no te vas a morir, no te vas a volver loca, tú estás manteniendo el estandarte 
de la autonomía universitaria, tú estás salvando el honor de las universidades 
de nuestra América, (...) lo peor que te puede pasar es que tengas visiones 
(...)”. (BOLAÑO, 2013, p. 97).
Essas visões vão possibilitando uma série de encontros, como se Auxilio 
presa no banheiro do 4º andar da Faculdade de Filosofia e Letras pudesse 
configurar a autonomia universitária, dar a ela certo contorno dentro do 
campus militarizado, por se transmutar em uma espécie de antena. Captando 
sinais de outros tempos, pregressos e futuros, e retransmitindo-os, suas visões 
vão aos poucos gerando uma aglomeração de pessoas: poetas mortos e poetas 
jovens, poetas exilados, poetas pobres: “como se com a ajuda de um novo 
dispositivo óptico fosse possível finalmente ver a vista, não apenas a paisagem 
natural, a cidade, a ponte e o abismo, mas fosse possível ver a visão.”, para voltar 
a Derrida, ainda falando lá em Cornell sobre as pupilas. “Como se por meio 
de um dispositivo acústico fosse possível ouvir a audição, em outras palavras, 
capturar o inaudível em uma espécie de telefonia poética”. (DERRIDA, 
1999, p. 156). Ver o ato de ver, a condição da reflexão para Derrida, o “think 
we must!”, de Virginia Woolf, mas também das visões de Auxilio, que, não 
compondo oficialmente nenhum dos corpos da universidade – nem corpo 
docente, nem corpo discente –, se viu ali defendendo a autonomia universitária, 
e o fez olhando de novo pra fora, como se o seu corpo ali servisse para atar 
o elo entre os polos dentro e fora da universidade em uma América Latina 
atravessada por lutas. Auxilio relata: “Yo me dispuse a resistir. A resistir el 
hambre y la soledad. (…) Yo tuve sueños, no pesadillas, sueños musicales, 
sueños de preguntas transparentes, sueños de aviones esbeltos y seguros que 
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cruzaban Latinoamérica de punta a punta por un brillante y frío cielo azul”. 
(BOLAÑO, 2013, p. 144-145).
Um encontro impossível, por exemplo, entre Darío e Huidobro coloca 
a questão da possibilidade de imaginar uma outra vanguarda. A história da 
poesia latino-americana teria sido outra, diz Auxilio,
Porque, digo yo, Darío le habría enseñado mucho a Huidobro, pero Huidobro 
también le habría enseñado cosas a Darío. La relación entre el maestro y el 
discípulo es así: aprende el discípulo y también aprende el maestro. Y puestos a 
suponer, yo creo, y Pacheco también lo creía (...) que Darío hubiera aprendido 
más, y hubiera sido capaz de poner fin al modernismo e iniciar algo nuevo 
que no hubiera sido la vanguardia pero sí una cosa cercana a la vanguardia, 
digamos una isla entre el modernismo y la vanguardia, una isla que ahora 
llamamos la isla inexistente, palabras que jamás fueron, y que sólo pudieron ser 
(y ya es mucho suponer) tras el encuentro imaginario entre Darío y Huidobro, 
y el propio Huidobro tras su fructífero encuentro con Darío hubiera sido 
capaz de fundar una vanguardia más vigorosa aún, una vanguardia que ahora 
llamamos la vanguardia inexistente y que de haber existido nos hubiera hecho 
distintos, nos hubiera cambiado la vida. (BOLAÑO, 2013, p. 57).
Mas não seria outra apenas a história da poesia; na história da vanguarda 
latino-americana, nessa possibilidade de imaginar vínculos que não existiram, 
está a própria vida. Contida nessa ideia de um embaralhamento temporal 
que pode nos contar coisas que não sabemos sobre o nosso passado e sobre a 
possibilidade de futuro, está também colocada a possibilidade de redefinir a 
natureza das relações pedagógicas. No último fragmento do Rua de mão única, 
de Walter Benjamin, chamado “Ao Planetário”, o tema é o enfraquecimento 
da experiência com o advento dos Luna Parks e a dominação da natureza 
pela técnica. Dentro dessa reflexão, Benjamin acena brevemente para a 
relação entre mestre e aluno, que seria indício da real relação entre natureza 
e técnica: “Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação 
da relação entre as gerações, e, portanto, se se quer falar de dominação, a 
dominação das relações entre gerações, e não das crianças?”. (BENJAMIN, 
1987, p. 69). Auxilio parece defender a autonomia universitária na medida 
em que configura esse espaço de trânsito intergeracional, mas buscando um 
ordenamento distinto, ligeiramente deslocado.
Talvez por isso para Susana Draper o encontro entre Auxilio e a pintora 
surrealista Remedios Varos, exilada do franquismo no México, seja ainda mais 
interessante. Com ele passamos do encontro impossível entre dois poetas que 
nomeiam o modernismo e a vanguarda, o télos da historicização literária, o 
lugar universitário por excelência, a um encontro também impossível (Varos 
havia falecido em 1963) entre duas mulheres que colocam questões à noção 
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de “fraternidade, liberdade, igualdade”, de modo a aprofundar a possibilidade 
de uma universidade desconhecida.
(...) alguien abre la puerta y es Remedios Varo (. . .) dice que ya no fuma, que 
sus pulmones ahora son débiles, aunque no tiene cara de tener los pulmones 
malos, ni siquiera tiene cara de haber visto algo malo, aunque yo sé que ella 
ha visto muchas cosas malas, la ascensión del diablo, el inacabable cortejo de 
termitas por el Árbol de la vida, la contienda entre la Ilustración y la Sombra 
o el Imperio o el Reino del Orden, que de todas esas maneras puede y debe 
ser llamada la mancha irracional que pretende convertirnos en bestias o en 
robots y que lucha contra la Ilustración desde el principio de los tiempos 
(conjeturación mía que ningún ilustrado daría por buena), yo sé que ella ha 
visto cosas que muy pocas mujeres saben que han visto (...) Es hora de irme. 
No sé si darle la mano o darle un beso en cada mejilla. Las latinoamericanas, 
hasta donde sé, sólo damos un beso. Un beso en una mejilla. Las españolas dan 
dos. Las francesas dan tres. Cuando yo era jovencita pensaba que los tres besos 
que daban las francesas querían decir: libertad, igualdad, fraternidad. Ahora 
sé que no, pero me sigue gustando pensarlo. Así que le doy tres besos y ella 
me mira como si también, en algún momento de su vida, hubiera creído lo 
mismo que yo. Un beso en la mejilla izquierda, otro en la derecha, un último 
beso en la mejilla izquierda. Y Remedios Varo me mira y su mirada dice: 
no te preocupes, Auxilio, no te vas a morir, no te vas a volver loca, tú estás 
manteniendo el estandarte de la autonomía universitaria, tu estás salvando el 
honor de la universidad de nuestra América (...). (BOLAÑO, 2013, p. 92-97).
Nessa longa passagem surgem, quase que sintetizadas, os problemas 
que o livro elabora desde esse olhar não-simétrico, operando as tensões 
entre o projeto ilustrado, a razão, o legado emancipatório da Revolução 
Francesa, seu mote e a defesa da autonomia universitária. A despedida, 
os três beijos, se coloca com uma espécie de dívida em relação à promessa 
emancipatória “liberdade, igualdade e fraternidade”, mas exposta agora desde 
uma fraternidade impossível (entre irmãs que sabem o que viram) que habita 
os limiares indefinidos entre a razão ilustrada e a mancha de uma ordem 
irracional. Esse encontro descentraliza a fraternidade histórica e abre caminho 
para uma forma outra de fraternidade, cujo conceito retoma a memória do 
desejo e a importância dos vínculos afetivos e políticos, fazendo pensar nas 
possibilidades vivas das palavras já gastas pela história: fraternidade, igualdade, 
liberdade, vanguarda, universidade. Vivendo e olhando desde as bordas, a sua 
possibilidade de resistir e defender – isto é, a possibilidade de reler e, portanto, 
de reescrever – passa por não viver o mito fundador da inteireza original5, um 
5 Aqui estou retomando a formulação de Gloria Anzaldúa a respeito de Malinche, a intérprete de Hernán 
Cortés, eternizada historicamente como a figura da traidora, e que na leitura de Anzaldúa é a grande 
sobrevivente da colonização, tendo caminhado entre línguas para sobreviver.
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fundamento, portanto, que está, como a universidade de Derrida, “suspenso 
sobre um vazio muito particular”.
O final do livro, em que Auxilio vê uma procissão de fantasmas 
caminhando rumo ao abismo, postula um modo de conviver com ele, com 
essa ferida aberta, não como destinação, nem como derrota. As ruínas são 
interessantes não pelas ruínas, mas pelos caminhos que se abrem.
Supe también que pese a caminar juntos no constituían lo que comúnmente 
se llama una masa: sus destinos no estaban imbricados en una idea común. 
Los unía sólo su generosidad y su valentía (...) Caminaban hacia el abismo 
(...) Y los oí cantar, los oigo cantar todavía, ahora que ya no estoy en el valle, 
muy bajito, apenas un murmullo casi inaudible, a los niños más lindos de 
Latinoamérica, a los ninõs mal alimentados y a los bien alimentados, a los que 
lo tuvieron todo y a los que no tuvieron nada (...) Lo único que pude hacer 
fue ponerme de pie, temblorosa, y escuchar hasta el último suspiro su canto, 
escuchar siempre su canto, porque aunque a ellos se los tragó el abismo el 
canto siguió en el aire del valle, en la neblina del valle que al atardecer subía 
hacia los faldeos y hacia los riscos. (BOLAÑO, 2013, p. 152-153).
Esse canto, o livro nos vai dizer em sua última linha, é o nosso amuleto. 
A força da imagem do amuleto está na proteção que ele oferece, o queé 
bastante diferente da possibilidade de uma solução mágica. Sozinho ele não 
pode nada. Não se pode segurar um amuleto entre as mãos enquanto se 
tenta não afogar: o amuleto fica preso ao corpo, deixando as mãos livres para 
trabalhar. Pensar a universidade, o campus, as alturas e as barreiras contra o 
abismo, mas sempre que necessário, diria Derrida, mobilizar o pensamento 
mais diretamente subterrâneo sobre o abismo debaixo da universidade.
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Referências
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única - Obras escolhidas, Volume II. São Paulo: 
Editora Brasiliense, 1987.
BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004.
BOLAÑO, Roberto. Amuleto. Barcelona: Anagrama, 2013.
BOLAÑO, Roberto. El espíritu de la ciencia-ficción. Barcelona: Anagrama, 2016.
BOLAÑO, Roberto. La Universidad Desconocida. Barcelona: Anagrama, 2007.
DERRIDA, Jacques. As pupilas da Universidade. In: O olho da Universidade. São 
Paulo: Estação Liberdade, 1999.
DRAPER, Susana. Fragmentos de futuro en los abismos del pasado: Amuleto, 
1968-1998. In: RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl (org). Fuera de quicio: Bolaño en 
el tiempo de sus espectros. Santiago: Ripio Ediciones, 2012.
DESPRET, Vinciane & STENGERS, Isabelle. Les faiseuses d’histoires: que font les 
femmes à la pensée? Paris: La Découverte, 2011.
WOOLF, Virginia. Três Guinéus. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
Mariana Ruggieri. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela 
Universidade de São Paulo. Atualmente realiza seu pós-doutorado na Unicamp, 
com financiamento da FAPESP.
E-mail: ruggieri.mari@gmail.com
Recebido em: 14/05/2020
Aceito em: 31/072020

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