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Mayara - 8967650
Como os textos e temas trabalhados ao longo da disciplina podem contribuir com o
meu doutorado?
Primeiramente, é necessário contextualizar sobre o meu projeto de
doutorado, cujo título é O TERRITÓRIO E AS POTENCIALIDADES PARA A
SEGURANÇA E SOBERANIA ALIMENTAR EM ALDEIAS XAVANTE. A “questão
guia” ou “problema de pesquisa” para a construção do projeto foi: como as práticas
alimentares associadas ao uso do território podem contribuir com a autonomia,
segurança e soberania alimentar dos Xavante?
Com as mudanças de uso da terra, provenientes tanto do avanço da fronteira
agrícola pelo agronegócio, quanto do processo de demarcação de terras e
sedentarização, os Xavante se deparam com outros modos de se relacionar com o
seu ambiente e, por conseguinte, ocorrem uma série de transformações, incluindo
nos hábitos alimentares. Para mais, o aumento do contato com os não indígenas e
do consumo de alimentos industrializados trazem consequências que não se limitam
à questão alimentar.
Logo, não é possível tratar do tema da alimentação sem tratar da questão do
território, pois as práticas alimentares Xavante estão diretamente relacionadas a
uma dinâmica própria de utilização do território.
Assim, o objetivo geral é caracterizar a atual dieta dos Xavante das aldeias
Etenhiritipá, Wederã e Wedezé (TI Pimentel Barbosa/MT), e da aldeia Namunkura
(TI São Marcos/MT), em termos de itens alimentares, assim como as perspectivas
em torno da alimentação e do território. A partir disso, compreender, material e
simbolicamente, o território da aldeia Etenhiritipá, e discutir, com base nas práticas
alimentares consideradas tradicionais, possibilidades para promover a autonomia,
segurança e soberania alimentar do grupo.
Para isto, serão utilizadas sete técnicas distintas e complementares: (I)
análise documental (pesquisa documental); (II) observação participante; (III)
questionário; (IV) recordatório de 24 horas (R24h); (V) entrevistas abertas; (VI)
grupos focais; e (VII) mapeamento participativo (cartografia social). Em uma
primeira etapa, para as quatro aldeias serão aplicadas as técnicas I, II, III e IV,
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Análise documental será feita na aldeia?
enquanto as técnicas V, VI e VII serão aplicadas somente na aldeia Etenhiritipá, em
uma segunda etapa.
Considerando o contexto acima, uma série de textos e temas trabalhados ao
longo da disciplina podem auxiliar na realização da pesquisa, seja contribuindo
previamente para a pesquisa documental, como posteriormente com a análise de
dados coletados em campo.
Primeiramente, é necessário esforço para romper com pressupostos e
dicotomias como cultura-natureza, indivíduo-sociedade, e natureza-sociedade, uma
vez que os povos indígenas possuem uma perspectiva do mundo bastante diferente
da que podemos considerar hegemônica.
A questão das dicotomias remete, sobretudo, ao texto de Norbert Elias
(1994), “A sociedade dos indivíduos”. Elias discorre que por mais que tentemos
separar o indivíduo da sociedade, percebemos que o desenvolvimento de um está
intimamente ligado ao do outro, ou seja, a dissociação é impossível. Porém, o que
percebemos é que qualquer ideia relacionada com o tema é tida como uma tomada
de posição para um dos lados, isto é, ou se fala que o indivíduo é mais importante
que a sociedade, ou que a sociedade é mais importante que o indivíduo. Quando na
verdade, existe um inter-relacionamento das estruturas sociais, históricas e
psíquicas, tornando-as indissociavelmente complementares e tratadas como o
objeto único da ciência humana.
Para os Xavante, por exemplo, os espaços dentro de seu território são
representados pela ideia dos espaços de Ró. Esses espaços são a representação
de seu mundo e lugar onde as interações com o ambiente ocorrem, caracterizando
um complexo concêntrico ao qual atribuem valor e onde são satisfeitas
necessidades alimentares, culturais, de descanso, reprodução, entre outras
(Lachnitt, 1987; Gomide, 2011; Welch et al., 2013). O interior é a aldeia com o
quintal, logo depois as roças, seguido pelos cerrados, com as plantas, animais e
com os espíritos. Em outras palavras, é impossível separar e isolar o sujeito do seu
meio e seus componentes.
Ainda sobre a necessidade de romper pressupostos e dicotomias, é
fundamental mencionarmos a ideia de “cultura”, compreendendo que ela não é uma
entidade homogênea, totalizante e auto-referida. A “cultura” não é determinante, é
uma espécie de direcionamento, e é dinâmica (Souza, 2003).
Retornando ao Elias (1994), o autor traz a ideia de que as sociedades são
sempre abertas, complexas e estão num fluxo contínuo de transformação e
mudança. Existe um “processo civilizador”, ou seja, uma mudança na conduta e
sentimentos humanos em uma direção bastante específica, obedecendo um
ordenamento, direcionamento, resultante da complexidade das relações e funções
sociais, que seria o entrelaçamento social. No caso dos Xavante, esse “processo
civilizador” difere do que acontece na nossa sociedade, mas existe uma
complexidade de funções e relações, e é preciso entender minimamente essa
“ordem” social para compreender outros aspectos, como a alimentação e relação
com o território.
Outro ponto é a necessidade do questionamento e crítica ao conceito de
“desenvolvimento”. Arturo Escobar se insere numa corrente do pensamento crítico
sobre a teoria do desenvolvimento, que argumenta que o conceito e a sua prática
resultam de uma visão de mundo eurocêntrica. É uma forma ideológica de
imposição da hegemonia europeia sobre o resto do mundo, sendo necessária a
reformulação do paradigma do desenvolvimento a partir de um discurso feito do seu
interior, construído com base nos saberes e experiências locais, trazendo a
fundamentalidade do “local”.
Segundo o autor, os modelos locais representam o conhecimento corporizado
e prático, constituindo um modelo de alguma maneira compreensivo do mundo
(Escobar, 2005). Essa forma de pensar contribui para desmontar a dicotomia
insustentável entre natureza e cultura, que é fundamental para o domínio do
conhecimento especializado em considerações epistemológicas e gerenciais.
Indo ao encontro das ideias do antropólogo Tim Ingold, para Escobar (2005),
a nossa experiência, a práxis de nosso viver, está acoplada a um mundo
circundante que aparece cheio de regularidades, que são em cada instante o
resultado de nossas histórias biológicas e sociais, reforçando a importância de se
olhar com cuidado para o território e para o “local”.
Associando à multifuncionalidade da agricultura, apesar dos Xavante serem
tradicionalmente caçadores-coletores, a agricultura possui muitos potenciais. Pode
ser um modo de inserção no mercado, resultando em uma maior independência
financeira e, portanto, uma maior independência de programas de transferência de
renda, assim como de ações assistencialistas. Para mais, pode ser um modo de
fortalecer o vínculo com o território, com o “local”, além de possibilitar mais
autonomia nas escolhas alimentares.
Aqui é importante trazer o exemplo da mandioca. A mandioca não é uma
planta tradicional Xavante, ela foi inserida, mas como é muito fácil de plantar e
manejar, ainda mais para um povo que não é tradicionalmente agricultor, acabou se
popularizando entre eles e se tornando significativa na alimentação. Tanto que a
aldeia Etenhiritipá estava para fechar com a prefeitura do município de
Canarana/MT para vender farinha de mandioca para as Escolas Municipais.
Claro, surge o seguinte questionamento: quais as consequências positivas e
negativas a médio e longo prazo? Não sabemos as respostas, mas num primeiro
momento parece uma iniciativa bastante interessante e que empolgou o pessoal da
aldeia.
Conforme Escobar (2005, p. 80), “é importante tornar visíveis as múltiplas
lógicas locais de produção de culturas e identidades, práticas ecológicas e
econômicas que emergem sem cessar das comunidades de todo o mundo. Em que
medida estaspráticas colocam obstáculos importantes e talvez originais ao
capitalismo e às modernidades eurocentradas? Uma vez visíveis, no entanto, quais
seriam as condições que permitiriam práticas baseadas-no-lugar para criar
estruturas alternativas que lhes oferecessem uma oportunidade de sobreviver, e de
crescer e florescer?”
Souza (2003) defende que pré-condições sociais independentes da cor
condicionam a situação de marginalidade, sobretudo o abandono e a inadaptação
de sujeitos. No entanto, a marginalização permanente de grupos sociais inteiros tem
a ver com a disseminação efetiva de concepções morais e políticas, que passam a
funcionar como “ideias-força” nas sociedades. Existe todo um pré-conceito em torno
dos chamados povos originários que acaba agravando as condições já
extremamente difíceis de existência e sobrevivência desses grupos, como lidar e
transformar isso? Como se sobrevive num contexto de tentativa constante de
usurparção de direitos e até mesmo genocídio?
O olhar de Escobar (2005) para o “local”, assim como as ideias que
constituem o chamado “pós-desenvolvimento” apontam a urgência de procurar
formas alternativas de intervenção, fora do pensamento hegemônico ocidental.
Pensar o local implica em dispersão do poder, e não concentração. Além disso, o
que chamamos de território implica a relação entre lugar, cultura e natureza. Todos
esses elementos são fatos políticos.
Movimentos sociais como dos povos originários são originados numa
vinculação cultural e ecológica a um território. Para eles, o direito a existir é uma
questão cultural, política e ecológica. Apesar de estarem obrigatoriamente abertos a
certas formas de bens, comércio, e às tecnociências, através de uma relação com
as estratégias de conservação da biodiversidade, estão ao mesmo tempo resistindo
à completa valorização capitalista e científica da natureza.
Podemos pensar no processo histórico homogeneizador, discutido por Souza
(2003), como mais uma pressão colaborando para a marginalização dos povos
indígenas. Existe a homogeneização do homem a partir da generalização de
economia emocional, domínio da razão sobre as emoções, cálculo prospectivo,
auto-responsabilidade etc. da classe burguesa às classes dominadas, o que
consequentemente afeta a visão de mundo.
Um exemplo seria o chamado “Marco Temporal”. Ele pode ser traduzido
como a necessidade do capital em incorporar todas as formas não capitalistas ainda
existentes, com foco, sobretudo, na questão da terra e exploração dos recursos
disponíveis.
Quando tratamos da relação entre povos originários e território estamos
tratando de dinâmicas ecoculturais complexas (Escobar, 2005). Elas raramente são
levadas em consideração nos programas do Estado, nos quais o território é dividido
de acordo com seus princípios, como a bacia de um rio, fragmentado a
espacialidade social e culturalmente construída de paisagens particulares,
precisamente porque não olham para a dinâmica sociocultural.
Aqui é possível fazer uma relação com a denominada “teoria das
justificações” (Boltanski, Chiapello, 2009). Essa teoria é um quadro analítico capaz
de identificar diferentes princípios de justiça com os quais os sujeitos embasam
seus discursos em situações de conflito. Os resultados do projeto, por exemplo,
poderiam apresentar argumentos convincentes para justificar práticas, tomando
como referência princípios e a realidade objetivada Xavante apreendida no
decorrer da vivência social.
Por fim, a segurança e soberania alimentar são também temas centrais para
o trabalho, e consideramos a integração dos conceitos aqui no Brasil. Isto é, o
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Essa postulação poderia ser melhor desenvolvida, inclusive sobre o papel das políticas públicas.
direito à alimentos saudáveis e culturalmente apropriados, além do direito em definir
seus próprios sistemas de alimentação e produção, adaptando quando necessário
suas práticas alimentares de forma a manter seus modos de vida e de subsistência.
Sabemos que os hábitos alimentares Xavante sofreram intensas
transformações desde os primeiros contatos com os não indígenas, sobretudo
durante a década de 1990, estimuladas pelos novos recursos econômicos
disponíveis e os laços políticos desenvolvidos. Os Xavante passaram a contar com
fontes de renda que não possuíam nas décadas anteriores, e grande parte deste
dinheiro passa a ser destinado à compra de alimentos industrializados (Santos et
al., 2014).
Além disso, é importante mencionar a merenda escolar. De acordo com Silva
(2008), os itens que compunham a merenda na aldeia Wederã durante os anos de
2006 e 2007 eram: açúcar; arroz; batata inglesa; bolacha doce; bolacha salgada;
carne de frango; carne moída; creme de milho; extrato de tomate; farinha de
mandioca; feijão; leite em pó; macarrão com ovos; óleo de soja; sal; e tempero
(alho/cebola), totalizando 15 itens que não variaram nos dois anos referidos.
Durante o meu trabalho de campo em 2018, foram observados os mesmos itens
alimentares compondo a merenda escolar, com a adição de achocolatado e leite.
A merenda escolar é uma importante fonte alimentar para as crianças. Ainda
conforme Silva (2008), os seus itens, apesar de não comporem a maior parte da
dieta, são ricos em carboidratos e estão substituindo os alimentos que eram obtidos
pelas práticas tradicionais. Dessa forma, a introdução de uma nova dieta começa
desde a infância, e é reforçada por meio da merenda escolar.
A análise dos fenómenos sociais é, portanto, uma relação complexa. Não
podemos olhar para a questão alimentar sem olhar para o território, e vice-versa. É
na alimentação que se materializa a estrutura de uma sociedade, sendo
fundamental preservar todos os aspectos da cultura alimentar que se mantém
organizados e presentes, como uma garantia de que a situação de transição e
readaptação ao novo contexto e realidade não se converta em uma situação de
dependência de instituições e auxílios governamentais, evitando um processo de
aculturação (Arnaiz, 2002).
Para isso, é necessário buscar por caminhos que respeitem as
particularidades do povo Xavante, compreendendo as suas perspectivas em torno
da alimentação e do território, mediante as transformações e limitações impostas
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pelo contato com os não indígenas, e os textos, temas e discussões ao longo da
disciplina serão extremamente pertinentes nesse processo.
Referências:
ARNAIZ, M. G (org). Somos lo que comemos: estudios de alimentación y cultura en
España. Barcelona: Ariel, 2002.
BOLTANSKI, L.CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos, São Paulo: Jorge Zahar, 1994.
ESCOBAR, A. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou
pós-desenvolvimento? In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires. CLACSO, p.69-86, 2005.
GOMIDE, M. L. C. Ró - Cerrados e Mundo A'uwe Xavante. GEOUSP - Espaço e
Tempo, São Paulo, n. 29, p. 117 - 130, 2011.
LACHNITT, G. Romnhitsi'ubumro: dicionário Xavante-Português. Campo Grande:
Missão Salesiana de Mato Grosso, 1987.
SANTOS, R. V., FLOWERS, N. M., C. E. A., COIMBRA JR., GUGELMIN, S. A.
Contextos e cenários das mudanças econômicas e ecológicas entre os Xavante de
Pimentel Barbosa, Mato Grosso. In: COIMBRA JR., C. E. A., WELCH J. R. (orgs.).
Antropologia e história Xavante em perspectiva. Rio de Janeiro: Museu do Índio –
FUNAI, p. 87-102, 2014.
SILVA, R. J. N. da. Seis décadas de contato: transformações na Subsistência
Xavante. Tese (Mestrado em Ecologia Aplicada) – Universidade de São Paulo.
Piracicaba: São Paulo, 2008.
SOUZA, J. (Não)Reconhecimento e subcidadania: ou o que é "ser gente"? Lua
Nova: Revista De Cultura E Política, p. 51–73, 2003.
WELCH J. R., SANTOS R. V., FLOWERS N. M., COIMBRA JR, C. E. A. Na primeira
margem do rio: território e ecologia do povo Xavante de Wedezé. Rio de Janeiro:
Museu do Índio – FUNAI, 2013.fabio
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Apresentação objetiva da pesquisa e boa relação com os textos e discussões abordados em aula, evidenciando temas e pontos de análise relevantes que poderão ser melhor desenvolvidos a partir dos conteúdos da disciplina. Sugestão de abordar com um pouco mais de análise a relação agricultura-alimentação-território com as políticas públicas, entre elas a de alimentação escolar PNAE. Neste sentido, os trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos da Amazônia - CATRAPOA - podem trazer contribuições pertinentes para a discussão do tema entre os Xavantes.

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