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ESCRITA LITERÁRIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Ilustrar o conceito de autoria. > Reconhecer as marcas de subjetividade relacionadas à autoria. > Resumir os aspectos legais pertinentes ao trabalho de escrita autoral. Introdução Apesar de parecerem muito naturais e algo que sempre existiu, os conceitos de autor e autoria, bem como o direito autoral, são muito recentes. Se a escrita remonta a alguns milhares de anos, a literatura é ainda bem mais antiga, remontando a tempos imemoriais. Se pensamos, por exemplo, nas narrativas orais passadas de geração em geração, vemos que a literatura, entendida como fabulação, remonta ao surgimento do próprio ser humano. No entanto, a ideia de um autor, criador da obra literária, começou a surgir ao fim da Idade Média, mas ainda assim de forma muito incipiente. A noção de autoria como a entendemos surgiria apenas em fins do século XVIII e início do século XIX, quando começa-se a pensar em garantias legais de proteção do trabalho autoral. Neste capítulo, você conhecerá um pouco dessa história, bem como dos conceitos de autor e autoria. Também verá o que é um texto autoral e como reconhecer as marcas de subjetividade do autor. Por fim, estudará detalhes do direito do autor e da legislação implicada na defesa do trabalho de escrita autoral. A questão da autoria Karla Menezes Lopes Niels Autor e da autoria Quem escreveu a Ilíada? E a Odisseia? Homero? Quem escreveu As mil e uma noites? Quem são os autores dos contos recolhidos pelos irmãos Grimm e por Charles Perrault? Quem são os autores das trovas do Cancioneiro da ajuda? Durante muito tempo, o anonimato de um texto literário não constituía um problema. Não havia uma precípua preocupação em identificar o escritor de um tratado, de um poema épico ou de uma narrativa popular, como tampouco havia uma preocupação com a originalidade de um texto, pois bons textos eram aqueles que emulavam os sucessos anteriores. Muitos textos de natureza literária da Grécia Antiga, como a Ilíada e a Odisseia, são compilações ou reescrituras da cultura oral daquela sociedade, isto é, de narrativas que passaram de geração após geração oralmente até serem postas no papel (ou papiro, no caso) e copiadas e recopiadas, chegando a nós como um exemplar que podemos pegar numa livraria ou biblioteca, ou ainda baixar em site da internet, o que não é diferente dos contos de As mil e uma noites ou ainda as fábulas compiladas pelos irmãos Grimm e por Perrault. Mesmo no caso das canções trovadorescas que representavam um novo trabalho, compostas para serem declamadas ou cantadas com um objetivo de uso imediato e não de perpetuação pelo papel, quando foram recolhidas nem sempre se podia comprovar sua autoria, até porque em muitos dos manuscritos localizados não há referência ou assinatura do autor. Na Idade Média, esse apagamento do autor tornou-se ainda mais difundido, já que para o erudito medieval a autoria não era importante, pois somente de Deus viria a verdade. Assim, ao autor não era permitido criar, mas apenas expressar aquilo que desejasse a vontade divina. Ademais, a reprodução e a circulação de textos estavam sob domínio da Igreja, instituição para a qual o discurso que importava era o divino. Por isso, nas práticas de alguns dos copistas (vale lembrar que nessa época os textos eram conservados e reproduzidos à mão!) os originais não apenas eram copiados como, às vezes, alterados, inclusive omitindo-se a autoria de alguns textos (ZANINI, 2014). Para entender melhor como a Igreja detinha o poder sobre a re- produção e a circulação do conhecimento, leia o livro O nome da rosa, de Umberto Eco, posteriormente adaptado para o cinema, com direção de Jean-Jacques Annaud e estrelando Sean Connery. A questão da autoria2 Foucault (1997) comenta que os textos somente passaram a ter autores à medida que os discursos começaram a ser vistos como transgressões com origens passíveis de punição, especialmente no que diz respeito aos textos de natureza científica. Era preciso saber quem disse o quê, quando e onde. Com o tempo, essa necessidade de identificação do criador do texto se estendeu ao texto artístico, isto é, literário. Mas o que antes era uma necessidade de identificar o autor de um texto transgressor tornou-se, com o advento do Romantismo, em fins do século XVIII e durante o século XIX, uma expressão de genialidade. O autor passou a ser visto como o gênio criador, como aquele que detinha qualidades vocacionais voltadas para o exercício da escrita e que, inspirado pela musa, escrevia. Não necessitava de técnica, porque essa já era inerente à sua genialidade. Identificá-lo era, portanto, fundamental. No entanto, com o tempo esse prestígio e valoração conferida à figura do autor, ao menos como ser de carne e osso, começou a perder prestígio, embora não em sentido mercadológico, pois este foi o rumo que se tomou no curso da história sem retorno. Contudo, no que diz respeito aos estudos literários, no princípio do século XX assistimos à chamada “morte do autor”. Correntes teóricas como a estilística, o formalismo russo, o estruturalismo francês e o new criticism tornaram autônoma a obra de arte ao enfatizar a materialidade do texto, desvinculando-o da persona de seu criador, ou seja, do autor como sujeito histórico e socialmente construído. O estudo do texto literário por essas correntes mantinha um foco exclusivo na construção discursiva do texto, sem fazer conexões deterministas com o contexto social da época ou com a biografia ou psiquê do autor, como fora a praxe dos estudos literários oitocentistas. Desse modo, almejava-se valorizar a obra em si, em sua materialidade, sem contaminação de dados externos, fossem da pessoa do autor ou da sociedade de seu tempo. O autor, portanto, perdeu o protagonismo que tinha no século XIX como gênio criativo. Barthes (1977), no ensaio “A morte do autor”, enfatiza justamente a questão da não existência do autor fora ou anterior à linguagem, ao defender a ideia do autor não como um sujeito social e historicamente constituído, mas como um produto do ato de escrever, um constructo do texto: [...] supõe- se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com o seu filho. Exatamente ao contrário, o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora (BARTHES, 2004, documento on-line). A questão da autoria 3 Não haveria autor anterior ao texto, mas esse surgiria, no sentido de ser construído junto ao texto. Grosso modo, para cada texto um diferente autor que nele figura como um personagem para ele criado. O autor, nesse caso, deixa de ser um sujeito social e passa a figurar como uma função textual. Heidegger (1992), por outro lado, será menos radical, ao afirmar que nenhum dos dois se sustenta sozinho, referindo-se ao artista e à obra, e metonimi- camente, ao autor e à literatura. É evidente que o autor só existe após a obra. Porém, não é possível anulá- -lo completamente, no sentido de voltar a atenção última e exclusiva para as estruturas textuais, conforme queria Barthes (2004) e as correntes textua- listas, porque, como defende Heidegger (1992), a obra literária jamais viria à existência sem as ações do autor. Consequentemente, da mesma maneira que a interpretação de um texto literário depende do horizonte de expectativas de seus leitores (JAUSS, 1994), a gestação e o nascimento do texto estão sujeitos às vivências e leituras anteriores do seu autor, já que todo aquele que escreve é antes de tudo também um leitor. Em outras palavras, assim como a leitura depende do horizonte de expectativas do leitor, a produção autoral também dependedo horizonte do leitor. Mas o que faz de um autor um autor? Basta escrever um texto? Publicá-lo? Um escritor é um autor? Foucault (1997) pondera, em consonância com Heide- gger (1992), que o autor só existe quando há uma obra. Isso significa que não basta ser apenas um escritor. Assim, ser um redator de jornal ou um produtor de conteúdo para as redes sociais não faz daquele que escreve propriamente um autor, assim como um pintor de paredes pode não ser um artista plástico. É necessário, portanto, que haja a construção de uma obra, afinal, como já afirmara Walter Benjamin (1996), o autor é um produtor, não necessariamente do produto livro, mas de um discurso. Diferentemente do que apontara Barthes (1977), o nome do autor não é um elemento discursivo qualquer; ele exerce um papel em relação tanto ao discurso quanto à sociedade e à história. Ao falarmos em William Shakespeare, Machado de Assis ou Luigi Pirandello, referimo-nos a nomes que são representativos de uma literatura universal devido à obra que escreveram, cujos nomes manifestam um tipo de discurso característico. Como bem afirma Possenti (2002, p. 107), “é exatamente a figura do autor que confere unidade à uma obra”. São as escolhas feitas por ele, dentro do vasto campo de possibilidades que oferece a língua, que definirão seu estilo. A questão da autoria4 Para saber mais sobre os conceitos de autor e autoria, veja os ver- betes homólogos no E-Dicionário de Temos Literários de Carlos Ceia, disponível gratuitamente na internet. Marcas de autoria Eco (2007), em Seis passeios pelos bosques da ficção, propõe que, além do autor empírico — o sujeito de carne e osso com CPF e passaporte — existe um autor modelo — isto é, estratégias textuais que permitem entrever a figuração de um autor, de um sujeito autoral. É devido a essas marcas que pesquisadores conseguem localizar textos perdidos de autores do passado, textos publicados sob pseudônimos ou em anonimato. Assim, mesmo que haja um autor, sujeito social e historicamente constru- ído, ao produzir sua obra ele imprime marcas textuais que lhe são próprias e que, nada tendo a ver com sua biografia e gostos pessoais, implicam nas escolhas realizadas nos eixos paradigmáticos e sintagmáticos da língua a fim de construir seu discurso. Tendo em vista que a língua nos permite dizer a mesma coisa de diversas maneiras, cada sujeito se exprimirá de uma forma diferente e que é somente sua. Sendo assim, mesmo que o autor empírico não cesse de desaparecer em seu texto para dar lugar a uma função autor, como afirma Foucault (1997), nele inscreve-se, reescreve-se e reatualiza-se pela forma como constrói um discurso que é só seu, como postula Derrida (2002). Nesse aspecto, Possenti (2002, p. 108) comenta: Como condição mínima, diria que é impossível pensar nesta noção de autor [e autoria] sem considerar de alguma forma a noção de singularidade, que, por sua vez, não poderia escapar de uma aproximação — bem feita — com a questão do estilo, como já assinalei. Trata-se, pois, de tornar objetiva essa noção — quem sabe detectável em traços, em indícios, com os riscos de que isto seja entendido como uma proposta que se limite a enumerar traços necessários e suficientes. Portanto, a noção de autor e autoria tem íntima relação com as marcas textuais, indícios e traços que configuram o estilo do autor, grosso modo, seu jeito de escrever. No entanto, se para Foucault (1997) e Eco (2007) o autor empírico deve sair de cena para dar lugar a uma função textual de autor, para Derrida (2002) o sujeito social por trás dessa função nunca desaparece por completo, já que sempre haverá marcas de sua subjetividade, de seu hori- A questão da autoria 5 zonte de expectativas e de suas vivências, que se imprimem na função autor materializada pelo texto. Subjetividade A palavra “subjetividade” deriva da palavra “subjetivo” que, por sua vez, deriva do termo “sujeito”. Desse modo, seu significado envolve o ser, o sujeito em primeira pessoa. Segundo o dicionário on-line Aulete Digital, subjetividade é: 1. Qualidade ou domínio do que é subjetivo. 2. Fil. Condição psíquica e cognitiva do ser humano encontrável tanto no âmbito individual quanto no coletivo e que faz com que o conhecimento dos objetos externos ao sujeito se dê segundo os referenciais próprios deste (SUBJETIVIDADE, 2021, documento on-line). Fiquemos com a segunda acepção. Observe que a subjetividade envolve o psíquico e o cognitivo do ser. Sendo assim, está relacionada à sua capacidade de pensar, de sentir e, por conseguinte, de criar, sobretudo criar objetos in- telectuais. Mas também envolve o ser e o estar no mundo, ou seja, a relação do ser com o mundo que o cerceia. Sendo assim, por mais que as correntes textualistas da teoria da literatura ou ainda a concepção mais radical da análise do discurso queiram apagar as marcas de subjetividade do texto, isto é, do sujeito, ela se faz presente queiramos ou não. Isso vale, aliás, não apenas para o sujeito autor, mas também para os demais sujeitos autores que teriam sido lidos por ele. É o que pressupõe as noções bakhtinianas de dialogismo e de heteroglossia (BAKHTIN, 2011). No caso da primeira, todo discurso ou texto é dialógico, por ser um costurado de muitas outras vozes (ou textos) em diálogo, noção que definitivamente põe por terra a ideia de gênio criador do Romantismo. A máxima atribuída a Antoine Lavoisier “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” se confirma nesse caso, pois mesmo o que julgamos ser um texto original, singular, único, dialoga em alguma medida com outros discursos, com outros textos. No caso da segunda noção, a de heteroglossia, é pertinente considerar que “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (BAKHTIN, 2011, p. 282), e isso reverbera nos textos que produzimos. Assim, linguagem e vida se tornam indissociáveis, assim como discursos presentes e passados. Em suma, todo texto apresenta as subjetividades de seu autor e de vários outros sujeitos anteriores e contemporâneos a ele, que compõem o horizonte de expectativas desse autor, tal qual leitor e sujeito imerso em determinada sociedade e determinada época. Mas nos interessa aqui falar acerca das A questão da autoria6 subjetividades que apontam para a autoria do texto, como você verá no tópico a seguir. Para saber mais sobre as marcas de subjetividade em um texto autoral literário, leia o artigo “A repartição do eu como estratégia literária: as diversas (inter)subjetividades construídas no conto ‘Borges e Eu’ do escritor Jorge Luis Borges”, Walty e Oliveira (2021). Estilo Possenti (2002, p. 112–113), ao comentar sobre os indícios de autoria, afirma: “pode-se dizer provavelmente que alguém se torna autor quando assume (sabendo ou não) fundamentalmente duas atitudes: dar voz a outros enuncia- dores e manter distância em relação ao próprio texto”. É mais ou menos o que acontece aqui quando cito autores que são autoridades no assunto tratado: entre cada enunciado desses, me coloco como autora expressando a minha visão de mundo. No entanto, as vozes que permeiam o texto literário nem sempre são tão bem definidas e claras como o são nos textos não literários. Ainda assim, isso não significa dizer que seja difícil reconhecer as marcas da autoria de um texto literário. Domício de Proença Filho (2008, p. 26), em A linguagem literária, afirma que “cada um tem o seu ideal linguístico”. Sendo assim, frente às inúmeras possibilidades que a língua nos apresenta, temos um extenso cardápio à nossa disposição para criar os mais variados discursos. Quando se trata dos discursos orais, não temos muito tempo para pensar e formular nossas escolhas, o que ocorre intuitivamente, quase que de maneira mecanizada. Mas, como você já sabe, o discurso escrito requer uma preparação que permite fazer escolhas mais elaboradas do cardápio disponibilizadopela língua. E não apenas fazer escolhas, mas também revisá-las. Em vez do simples arroz com feijão, podemos fazer um arroz de carreteiro e até uma feijoada! Quando se trata de um texto literário, essas escolhas são ainda mais acuradas, já que essa elaboração representa um trabalho artístico. Conforme assinala Chklóvski (1976) em “A arte como procedimento”, a literatura singula- riza imagens incomuns às imagens criadas pela linguagem do cotidiano, o que, por conseguinte, provoca um estranhamento naquele que lê o texto literário. A questão da autoria 7 Mas além das imagens que implicam estranhamento, encontramos em cada autor marcas próprias do uso particular que faz da linguagem, como uma espécie de impressão digital que deixa em seu texto. É o caso do recurso ao vocativo “leitora” em Machado de Assis ou dos neologismos em João Gui- marães Rosa, ou ainda do intimismo de Clarice Lispector. Mesmo quando se trata de um pastiche ou uma paródia (como as produzidas no Modernismo), o autor imprime no texto sua marca pessoal. Por isso é tão fácil reconhecer se textos atribuídos a autores canônicos que circulam pelas redes sociais são de fato de sua respectiva autoria, pois seu estilo individual lhes é peculiar e singular, e mesmo que o texto aborde questões ideológicas e sociais, sempre carregará a marca de quem os escreveu, mediante a escolha vocabular, dos tempos e modos verbais, da voz ativa ou passiva, do uso de vocativos, das reiterações, etc. Já ouviu falar no site comoeuescrevo.com? É um recurso muito in- teressante, em que você encontra entrevistas de diversos autores contemporâneos falando sobre seus processos de escrita e seus estilos pessoais. Um boa dica é consultar nesse site a entrevista do escritor, roteirista, professor e pesquisador Flávio Carneiro. Direito autoral À medida que os textos passaram a ter autores passíveis de punição, con- forme nos aponta Foucault (1997), esses sujeitos passaram a ser preocupação também do direito, não apenas porque poderiam ser condenados pelas infor- mações escritas que veiculavam, mas também porque começou a surgir uma preocupação com os direitos autorais que produziam tais discursos escritos. Essa preocupação se tornou cada vez mais latente com o surgimento da imprensa e, sobretudo, com seu desenvolvimento, já que, ao contrário das reproduções manuscritas da Idade Média, a tipografia e a impressão possibilitavam a produção de um grande número de cópias e a ampliação da circulação de livros. A questão da autoria8 Do copyright à Convenção de Berna Com o advento da imprensa, a Europa assistiu a uma enxurrada de livros impressos. Isso criou um problema para os editores burgueses, pois qualquer um passou a dispor de meios para imprimir edições subsequentes de um livro já em circulação, e aquele que o imprimia originalmente, pela primeira vez, podia ter prejuízo em seu investimento inicial. Com isso, surgiram os privilégios de impressão (ZANINI, 2014), que garantiam ao impressor inicial o direito de exclusividade de exploração da obra durante determinado período. No entanto, enquanto o privilégio era válido em determinada cidade ou região, podia não ser válido em outra, levando vários editores a explorarem comercialmente uma mesma obra simultaneamente. A fim de resolver esse problema, no Reino Unido, durante o governo da rainha Ana, criou-se em 1710 o sistema de copyright, até hoje utilizado. O ato assinado pela rainha garantia o direito à exclusividade de reprodução. Você já reparou no símbolo © e/ou no termo copyright sempre estampados, seguido do ano de publicação, no topo da página de créditos de um livro? O ano diz respeito à primeira licença de impressão daquela edição (Figura 1). Figura 1. Exemplo de menção a copyright nas páginas iniciais de um livro. Fonte: Tavares (2019). A questão da autoria 9 Porém, mesmo que superior ao sistema de privilégios que o precedeu, o sistema de copyright era falho no que diz respeito à proteção dos direitos do autor ao tratá-lo de forma muito genérica, o que denotava uma preocu- pação maior com o editor do que com o autor e sua propriedade intelectual. Conforme comenta Zanini (2014, p. 176–177), as relações entre os membros da Stationers’ Company, empresa inglesa fundada em 1557 e composta por livrei- ros, impressores, vendedores e negociadores de livros, eram regulamentadas pelo chamado stationer’s copyright, “que não previa um verdadeiro Direito de Autor, compreendendo apenas o direito de copiar um manuscrito [...]. O objetivo precípuo do novo sistema não era a proteção dos autores, mas a regulação do comércio de livros na ausência de monopólio e censura”. Seria somente com a Convenção de Paris, assinada em 20 de março de 1883, e posteriormente com a Convenção de Berna, assinada em 9 de setembro de 1886, que se estabeleceria um direito autoral mais próximo daquele que conhecemos hoje, isto é, de fato preocupado com o autor. Revisados em 1971, quase um século depois, os termos da Convenção de Berna foram promul- gados no Brasil em 1975, por publicação do Decreto nº 75.699 (ZANINI, 2014). Da Constituição de 1937 à Lei nº 9.610/98 No Brasil, a lei que rege os direitos do autor, isto é, os direitos sobre sua propriedade intelectual, é a Lei nº 9.610/98, mas já tínhamos um vislum- bre de proteção ao autor na Constituição de 1937, passando pelo Decreto nº 75.699/75, que dizia respeito à Convenção de Berna e que viria a ser prati- camente reescrito pelo texto da lei ora vigente. A Lei do Direito Autoral (LDA), Lei nº 9.610/98, divide os direitos do autor em dois grupos: direitos morais e direitos patrimoniais. Os direitos morais são aqueles que estão vinculados à persona do autor, isto é, a seu nome, imagem, voz, dignidade e honra. Por isso, trata-se de um direito que é inalienável e irrenunciável, não podendo ser cedido, doado, vendido ou renunciado. Se por um lado o direito patrimonial — aquele que diz respeito à exploração e utilização da obra literária, sobretudo comercialmente — perdura por 70 anos a contar do 1º de janeiro do ano seguinte à morte do autor, por sua vez o direito moral é perpétuo. Isso significa que mesmo após a obra entrar em domínio público, isto é, decorridos os 70 anos da morte de seu autor, jamais poderá se editar um livro ou texto seu sem que os direitos morais, especialmente o expresso no incisivo II do artigo 24 da LDA, sejam atendidos, isto é, sem serem concedidos os créditos da autoria (BRASIL, 1998). A questão da autoria10 Domínio público é uma expressão usada para garantir que a obra já pode ser reeditada, reproduzida e distribuída livremente sem a necessidade de anuência de seu autor ou de seus herdeiros. Vejamos a seguir quais são os direitos morais do autor conforme o artigo 24 da LDA (BRASIL, 1998). � Direito de indicação de autoria: ■ reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra. ■ ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anun- ciado como sendo o do autor, na utilização de sua obra. � Direito de alteração da obra: ■ conservar a obra inédita; ■ assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modifica- ções ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá- -la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra. ■ modificar a obra antes ou depois de utilizada. � Direito de impedimento de circulação: ■ retirar de circulação a obra ou suspender qualquer forma de utili- zação já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem. � Direito de livre acesso: ■ ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado. Os direitos patrimoniais, por seu turno, estão relacionados não à personado autor, mas à obra enquanto patrimônio dele. Por isso, como qualquer bem patrimonial, pode ser cedido, doado, vendido e renunciado. E, como relacionado à exploração econômica da obra autoral, há tempo de vigência, conforme mencionado anteriormente. A questão da autoria 11 Vejamos a seguir os principais artigos da LDA que se ocupam com o direito patrimonial do autor (BRASIL, 1998). � Prévia autorização: ■ Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. ■ Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utili- zação da obra. � Exploração: ■ Art. 30. No exercício do direito de reprodução, o titular dos direitos autorais poderá colocar à disposição do público a obra, na forma, local e pelo tempo que desejar, a título oneroso ou gratuito. � Individualidade e independência da proteção: ■ Art. 31. As diversas modalidades de utilização de obras literárias, artísticas ou científicas ou de fonogramas são independentes entre si, e a autorização concedida pelo autor, ou pelo produtor, respec- tivamente, não se estende a quaisquer das demais. � Temporalidade: ■ Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por 70 anos con- tados de 1º de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. ■ Art. 42. Quando a obra literária, artística ou científica realizada em coautoria for indivisível, o prazo previsto no artigo anterior será contado da morte do último dos coautores sobreviventes. ■ Art. 43. Será de setenta anos o prazo de proteção aos direitos patri- moniais sobre as obras anônimas ou pseudônimas, contado de 1º de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação. A legislação vigente preocupa-se com a criação autoral, ou seja, com o produto que foi desenvolvido pela pessoa, denominada autor. Segundo o artigo 18 da LDA, a proteção conferida ao autor é autométrica, ou seja, ao criar uma obra intelectual, o autor torna-se detentor dos direitos sobre os quais reza a lei (BRASIL, 1998). Sendo assim, quando você divulga uma obra, mesmo que não a tenha registrado, você detém os direitos sobre sua autoria. No en- tanto, a não divulgação pode presumir que a criação autoral nunca existiu e, portanto, que se tratava apenas de uma ideia não concretizada, não estando, desse modo, protegida pela legislação vigente. Por isso, é importante que o autor divulgue ou registre (ou ambos) suas criações autorais, a fim de evitar ter sua propriedade intelectual roubada ou usada de maneira inapropriada. A questão da autoria12 Imagine um jovem autor que costuma postar poemas de sua autoria em suas redes sociais, incluindo Facebook e Instagram. Como suas postagens têm feito muito sucesso, ele decidiu copilar toda sua produção e enviar a algumas editoras. Acontece que uma delas devolveu o trabalho, rejeitando-o e acusando-o inclusive de plágio, isto é, da apropriação indébita de propriedade intelectual de outra pessoa. A suposta obra original fora publicada um ano antes por essa mesma editora. Ao ter acesso ao livro, o jovem poeta verifica que havia ali alguns dos poemas que ele próprio divulgara em suas redes sociais. Diante da situação, o rapaz resolve procurar um advogado para conhecer seus direitos e saber se pode abrir uma demanda judicial. O advogado explica-lhe que a demanda é justa, porque o registro da obra autoral é facultativo e o fato dos poemas terem sido vastamente divulgados em suas redes sociais constitui provas da autoria daqueles textos, mesmo que o registro seja feito em momento posterior por outrem. Livre acesso e Creative Commons Hoje a internet tem possibilitado novas formas de acesso ao livro, o que tornou bastante comum o surgimento do e-books nos mais diversos formatos, como Kindle, e-pub, .pdf, etc., alguns com acesso restrito, outros com acesso aberto. Mas o que é tecnicamente acesso aberto? E o que é a licença Creative Commons? Ela é aplicável à produção literária? Creative Commons é uma organização sem fins lucrativos que promove o copyright free, que permite a reprodução e o compartilhamento gratuito e livre de obras com direito autoral, não configurando, portanto, um ato infracionário, incluindo, por exemplo, o compartilhamento de um livro em .pdf em um grupo de WhatsApp, o que configuraria infração se fizéssemos isso com uma obra licenciada com copyright convencional. Apesar da possibilidade de distribuição gratuita, o licenciamento Creative Commons não fere os direitos morais do autor. Não apresentando regras rígidas, oferece quatro tipos diferentes de licenciamentos, cada qual com restrições e aberturas distintas. Trata-se de um licenciamento que tem se tornado comum em publicações acadêmicas e científicas, e nada impede que um autor dono de determinada propriedade intelectual decida licenciar e publicar tal obra com acesso livre. Como vimos, a ideia de autoria, bem como o conceito de autor, é muito recente, remontando a fins do século XVIII. Por sua vez, a legislação brasileira que protege o direito do autor é ainda mais recente, remontando a fins do século passado. Vimos também que um texto autoral, mesmo quando se trata de um pastiche ou de uma paródia de outrem, sempre apresenta as A questão da autoria 13 marcas de subjetividade de seu autor. Por isso, mesmo no caso de textos da Antiguidade Clássica ou da Idade Média, que circulam como anônimos, estudiosos tem se esforçado para buscar indícios que possam sustentar a indicação de uma possível autoria, como é o caso das cantigas medievais do Cancioneiro da ajuda. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. BARTHES, R. A morte do autor. In: BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4217539/mod_re- source/content/4/Barthes_%20a%20morte%20do%20autor.pdf. Acesso em: 13 set. 2021. BARTHES, R. The death of the author. In: BARTHES, R. Image, music, text. New York: Fontana Press, 1977. BENJAMIN, W. As obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasi- liense, 1996. BRASIL. Decreto nº 75.699, de 6 de maio de 1975. 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Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. A questão da autoria 15
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