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Artigo - Uma educacao para a paz e possivel - Piaget

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Jean Piaget. Sobre a Pedagogia: Textos inéditos. Organizadoras: Silvia Porrat e 
Anastasia Tryphon. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, p. 131-136.
UMA EDUCAÇÃO PARA A PAZ É POSSÍVEL ? 1
Jean Piaget
1934
O próprio fato de ter de se fazer tal pergunta é por si só significativo. Após quinze anos de atividade da Liga das Nações, vemo-nos obrigados a constatar que os povos desconfiam suficientemente uns dos outros para 
que o “nacionalismo” do vizinho e suas tendências à autarquia econômica impeçam 
a todos de pensar em organizar no seu próprio país uma verdadeira educação para 
a paz. A insegurança é tamanha que toda convicção desaparece nesse terreno. 
Mesmo aqueles que continuam, por dever, a ensinar a colaboração internacional 
não conseguem fazê-lo sem alguma restrição mental. É melhor ter a franqueza de 
proclamar a falência de tal educação, pensamos nisso, do que colocar as novas 
gerações na presença de uma total contradição entre o ideal e as necessidades do 
real.
	 Mais grave ainda é o conflito que existe a este respeito entre os jovens e os 
homens que conheceram a guerra. Enquanto esses entendem pelo menos os 
problemas que estão sendo discutidos, os jovens parecem considerar a ideia de um 
ensinamento para a paz como o próprio tipo desses mitos efêmeros que opõem as 
gerações umas às outras e simbolizam o passado aos olhos daqueles que virão. 
Ora, nada é mais fatal para o sucesso de uma noção do que cercá-la de um halo 
simbólico cujo valor permanece necessariamente ligado à mística e às experiências 
de uma única geração.
 In: Bulletin de l’enseignement da la Societé des Nations, 1934, no. 1, p. 17-23. 1
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	 Temos, portanto, de questionar para ver o que perdemos e se o jogo está 
realmente perdido. Esse tipo de brutalidade que os oponentes de uma educação 
para a paz exibem apresenta, de fato, aquele lado simpático que muitas vezes 
emana de um desejo de clareza e de uma decisão firme de não se contentar com 
palavras. Portanto, vamos seguir este exemplo e colocar a franqueza acima das 
boas intenções.
	 A este respeito, uma observação parece-nos impor-se desde o início e, 
embora seja desanimadora à primeira vista, na realidade leva a um certo otimismo: 
é que, mesmo durante os anos em que o ensino da colaboração internacional foi 
aprovado em todos os lugares, ele permaneceu singularmente superficial e estranho 
aos verdadeiros motivos psicológicos da conduta. Procuramos muito mais cobrir a 
mente de todos com o mesmo verniz de mística internacional e fornecê-la com 
opiniões prontas sobre a Sociedade das Nações do que educar em profundidade as 
tendências intelectuais e morais que podem levar a uma verdadeira colaboração. 
Em outras palavras, simplificamos a tarefa a ponto de corrermos o risco de 
trabalhar para fins contrários e não queríamos ver a magnitude do problema 
pedagógico e psicológico que a educação para a paz levanta. A política de avestruz 
tem atordoado a pedagogia internacional como em outras áreas. Só agora que as 
dificuldades estão lá, torna-se permitido discuti-las objetivamente.
	 Mas, se é doloroso fazer essas observações, elas são, repitamos, salutares. 
São elas que nos fazem acreditar na possibilidade de uma educação para a paz: tal 
educação não falhou, pois não foi realizada a sério. Que comecemos a estudar as 
condições psicológicas reais que determinam uma pedagogia de colaboração 
internacional e perceberemos o imenso campo de ação que ainda precisa ser 
explorado.
	 Sem querer de forma alguma tomar uma posição do ponto de vista da 
estrutura política das diferentes nações, no entanto, é possível constatar que 
nenhuma das ideologias contemporâneas é, em princípio, contraditória com a ideia 
de paz. Por um lado, de fato, os regimes democráticos baseiam-se em princípios 
cuja extensão a nível internacional é fácil e compreensível para todos. Por outro 
lado, os regimes autoritários, por mais hostis que por vezes possam parecer à 
noção de colaboração pacífica, têm, no entanto, duas características comuns cuja 
importância não deve ser ignorada. Em primeiro lugar, eles precisam de paz para 
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sobreviver: o perigo é menos, para eles, o inimigo externo do que a revolução, e 
todos sabem que o maior risco da guerra é precisamente a revolução interna. Em 
segundo lugar, e consequentemente, existe uma certa solidariedade internacional 
dos regimes autoritários, baseada na lógica das coisas (enquanto que, de acordo 
com a lógica formal, os nacionalismos deveriam combater-se entre si).
	 Dito isso, podemos chegar a pensar que uma educação para a paz realmente 
eficaz deveria, em cada país e dependendo do ponto de vista de cada um, ser 
enxertada na própria educação nacional. Acabamos de ver que toda ideologia 
nacional contém um princípio de expansão: por mais diversas que sejam, e até 
contraditórias entre si, essas ideologias tendem a uma certa universalidade. Uma 
educação internacional que leve em conta esta situação não pode incluir outra 
introdução a não ser um estudo sério feito por cada um da universalidade que 
deseja alcançar, das suas condições de sucesso e das dificuldades que enfrenta. O 
principal problema da educação para a paz é, de fato, encontrar um interesse real 
que possa levar todos a compreender os outros, em particular a compreender o 
adversário. No entanto, a simples propaganda pacifista ou o simples ensino dos 
objetivos e resultados da Sociedade das Nações são ineficazes a este respeito: sem 
mencionar que tal pregação se depara com as crescentes dificuldades que todo 
homem dotado de sentido da realidade não pode deixar de sentir hoje, está muito 
longe de poder apresentar uma mística de força comparável ao vigor do sentimento 
nacional. Ao contrário, um estudo objetivo das chances de expansão dos princípios 
inerentes à ideologia nacional apela a um interesse poderoso que exige de cada um 
que, sem sair de seu próprio ponto de vista, compreenda, sem o subestimar, os do 
adversário, especialmente se estes constituem um obstáculo.
	 Foi dito e repetido que a verdadeira educação para a paz deve consistir, não 
em um simples ensino de idéias pacifistas, mas em uma adaptação de toda a 
mente às relações internacionais. No entanto, na medida em que conseguirmos 
fazer com que todos entendam que essa adaptação é uma necessidade vital, uma 
condição de expansão da ideologia particular da qual nos preocupamos, e não um 
luxo ou um sonho, poderemos edificar sobre os interesses legítimos do ponto de 
vista nacional toda uma moral e toda uma lógica da educação internacional. Na 
verdade, entender os diferentes pontos de vista do seu, penetrar na psicologia de 
outros povos, em suma, prever e explicar os motivos do exterior, é atualmente uma 
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obrigação, mesmo para o nacionalismo mais autêntico: sem essa adaptação, o 
isolamento é fatal e sabemos para onde o isolamento leva a um mundo onde tudo 
se mantém economicamente, politicamente e espiritualmente. Aqui está, portanto, o 
ponto de partida: o conhecimento dos outros como condição de sobrevivência e 
segurança nacional e como meio de expansão para a ideologia de que nos 
preocupamos. Agora, este ponto de partida, por mais interessado que seja - e isso 
é uma garantia de sucesso para o ensino de relações internacionais - envolve toda 
uma disciplina da mente, que leva precisamente à educação de que estamos 
falando aqui.
	 Na vida social do dia-a-dia, a situação é a mesma. Os motivos que nos levam 
a compreender os outros não são necessariamente desinteressados. Não é para os 
outros que fornecemos no fundo de nós mesmos esse esforço de adaptação; é do 
nosso interesse, para saber nos orientar, para agir sem os outros, para trazê-lo às 
nossas ideias e dobrá-lo aos nossos desejos, às vezes é até para nos proteger e 
nos defender. Mas, na medida em que nos curvamos às condições necessárias 
para compreender os outros - ou seja, na medida em que nos separamos dos 
nossos equívocos e preconceitos pessoais -, ao mesmo tempo chegamos a uma 
novaatitude de reciprocidade e libertamos-nos do nosso egocentrismo inicial.
	 Da mesma forma, a nível internacional, qualquer esforço real de adaptação 
psicológica, mesmo que surja de preocupações interessadas e puramente 
nacionais, leva a uma técnica de reciprocidade e troca, que em última análise 
beneficia a ideia internacional.
	 Não devemos, de fato, situar o ideal de colaboração pacífica em regiões 
excessivamente etéreas. O objetivo da educação internacional é algo muito simples, 
e é precisamente sua simplicidade que torna tão difícil de realizar: é muito mais fácil 
falar durante lições inteiras sobre um assunto teórico e artificial do que fazer 
penetrar na própria mente do ensino uma única ideia elementar, quando essa ideia 
se deve a uma atitude profunda e essencial da mente. No entanto, este é 
precisamente o caso da ideia internacional. Essa ideia não é nada utópica nem 
negativa. Não consiste em abolir as consciências nacionais e sociais particulares: o 
objetivo da educação internacional não é de forma alguma constituir uma espécie 
de consciência universal que reprimiria essas consciências particulares. Também 
não se trata de “colar”, por assim dizer, sobre estes últimos, uma mentalidade da 
mesma ordem que eles, mas que os dominaria a todos em sua generalidade. Tudo 
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isso é apenas um sonho, e se o ideal internacional fosse querer padronizar os 
pequenos franceses, os pequenos suíços, os pequenos alemães, os pequenos 
poloneses, para torná-los seres anônimos e comuns, ele perseguiria assim uma 
quimera funesta.
	 A ideia que defendemos é muito mais simples e muito mais concreta: trata-se 
apenas de criar em cada um um um método de compreensão e reciprocidade. Que 
cada um, sem sair de seu ponto de vista, e sem tentar suprimir suas crenças e 
sentimentos, que o tornam um homem de carne e osso, amarrado a uma porção 
bem delimitada e bem virada do universo, aprenda a estar entre todos os outros 
homens. Que cada um se atenha assim à sua própria perspectiva, como a única 
que conhece de dentro, mas compreenda a existência de outras perspectivas; que 
todos compreendam acima de tudo que a verdade, em todas as coisas, nunca se 
encontra pronta, mas se elabora dolorosamente graças à própria coordenação 
dessas perspectivas. É neste elogio absoluto, é neste esforço de ligação que 
consiste toda a ideia internacional. Ideia muito simples, como se pode ver, mas 
ideia difícil, precisamente por causa desta simplicidade. As tendências espontâneas 
de nossa mente nos empurram, pelo contrário, ou para erguer absolutamente nosso 
egocentrismo, ou para sonhar com uma humanidade abstrata e ideal. Essas duas 
atitudes voltam ao mesmo, pois o segundo absoluto é basicamente apenas o 
primeiro, jogado nos céus. O que precisamos, pelo contrário, é de uma nova atitude 
intelectual e moral, feita de compreensão e cooperação, que, sem sair do relativo, 
alcança a objetividade relacionando os próprios pontos de vista particulares.
	 No entanto, se esse é o objetivo da educação internacional, todo esforço 
“verdadeiro para entender os outros leva necessariamente a se aproximar dele. 
Qualquer ensino objetivo das relações internacionais prepara os indivíduos para se 
libertarem da ilusão egocêntrica, na qual permanecem trancados enquanto 
conhecerem apenas seu próprio ambiente, e a adquirir essa atitude de 
reciprocidade que é o princípio da colaboração pacífica.
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