Foucault Pirotécnico001

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© Éditions Odilf Jacob, Octohcr 2(104 
CIP Brasil. Catalogação na fontt-
Sindicato Nacional dos Editores dc Livros 
FH6ni 
Foucault, Michel, entrevistas 
Roger Pol-Droit; tradução de Vera Portocarrero 
e (íilda Gomes Carneiro; coordenação editorial 
de Roberto Maschado. - São Paulo: Graal, iDiX^. 
Reviosão técnica Andrea Viana Daher 
Tradução de: Michel Foucault, entretiens 
ISBN 85 7038 072 O 
I. Foucault, Michel. 1926-1984-Entrevi.stas. 2. 
Filosofia francesa 
I. Droit, Rogcr-Fol, 1949 - 11 Título 
06 0455 CD1> 194 
CDU 1 (44) 
013199 
Edições (Sraal Ltda. 
Rua do Trunfo 177 Santa Ifigênia 
São Paulo Sl> 01212 010 
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2006 Impresso no Brasil ] Printed in Brazil 
Terceira entrevista | « E U S O U U M P I R O T É C N I C O " 
Sobre o método e a trajetoria de Michel Foucault 
gravada em junho de 1975 
• Você, muitas vezes, disse que não gosta quando se pergunta quem você é. 
Vou tentar assim mesmo. Gostaria que o chamássemos de historiador? 
E u m e i n t e r e s s o m u i t o p e l o t r a b a l h o q u e o s h i s t o r i a d o r e s f a z e m , 
m a s q u e r o f a z e r o u t r o . 
• Devemos chamá-lo de filósofo? 
T a m b é m não . O q u e e u faço não é a b s o l u t a m e n t e u m a f d o s o f i a . 
E t a m b é m n ^ o é u m a ciência c u j a s j u s t i f i c a t i v a s o u demons t rações 
t e m o s o d i r e i t o d e - e x i ^ r - l h e . 
• Então, como você se definiria? 
E u s o u u m p i ro técn ico . F a b r i c o a l g u m a c o i s a q u e s e r v e , f i n a l ­
m e n t e , p a r a u m c e r c o , u m a g u e r r a , u m a destruição. N ã o s o u a 
f a v o r d a des t ru ição, m a s s o u a f a v o r d e q u e s e p o s s a p a s s a r , d e q u e 
s e p o s s a avarjçar, d e q u e s e p o s s a f a z e r ca í rem o s m u r o s . 
U m pi rotécnico é, i n i c i a l m e n t e , u m geólogo. E l e o l h a as c a m a d a s 
d q t e r r e n o , a s d o b r a s , as f a l h a s . O q u e é fácil c a v a r ? O q u e v a i r e s i s t i r ? 
O b s e r v a d e q u e m a n e i r a as f o r t a l e z a s estão i m p l a n t a d a s . P e r s c r u t a 
o s r e l e v o s q u e p o d e m s e r u t i l i z a d o s p a r a e s c o n d e r - s e o u lançar-se 
d e a s s a l t o . U m a v e z t u d o i s t o b e m d e l i m i t a d o , r e s t a o e x p e r i m e n t a l , 
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o t a t e a r . E n v i a m - s e i n f o r m e s d e r e c o n h e c i m e n t o , a l o c a m - s e v i g i a s , 
m a n d a m - s e f a z e r relatórios. D e f m e - s e , e m s e g u i d a , a tática q u e será 
e m p r e g a d a . S e r i a o a r d i l ? O c e r c o ? S e r i a a t o c a i a o u b e m o a t a q u e 
d i r e t o ? O método, finalmente, n a d a m a i s é q u e es ta estratégia. 
f 
• A sua primeira ofensiva, se posso dizê-lo, é em 1961, com História d a 
l o u c u r a n a I d a d e Clássica. Tudo é singular nesta obra: seu tema, seu mé­
todo, sua escrita, suas perspectivas. Como surgiu a ideia desta pesquisa? 
E m m e a d o s d e 1 9 5 0 , p u b l i q u e i a l g u n s t r a b a l h o s s o b r e a p s i c o ­
l o g i a e a doença m e n t a l . U m e d i t o r m e p e d i u p a r a e s c r e v e r u m a 
história d a p s i q u i a t r i a . E u p e n s e i e m e s c r e v e r u m a história q u e 
n u n c a a p a r e c e r i a , a d o s próprios l o u c o s . O q u e é ser l o u c o ? Q u e m 
o d e c i d e ? A p a r t i r d e q u a n d o ? E m n o m e d e quê? E s t a é u m a p r i ­
m e i r a r e s p o s t a possível. 
• Há outras? 
E u também h a v i a f e i t o e s t u d o s d e p s i c o p a t o l o g i a . E s t a p r e t e n s a 
d i s c i p l i n a não e n s i n a v a g r a n d e s c o i s a s . N a s c i a , então, a s e g u i n t e 
questão: c o m o tão p o u c o s a b e r p o d e g e r a r t a n t o p o d e r ? H a v i a 
m o t i v o s p a r a se ficar e s t u p e f a t o . Q u a n t o m a i s estágios n o s h o s ­
p i t a i s e u f a z i a , d o i s a n o s e m Saint-Anne, m a i s e s t u p e f a t o ficava. 
Não s e n d o médico, e u não t i n h a n e n h u m d i r e i t o , porém, s e n d o 
e s t u d a n t e e não d o e n t e , e u p o d i a passea r . A s s i m , s e m j a m a i s t e r d e 
e x e r c e r o p o d e r l i g a d o a o s a b e r psiquiátrico, e u p o d i a , e m t o d o 
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c a s o , observá-lo a c a d a i n s t a n t e . E u e s t a v a n a superfície d e c o n t a t o 
e n t r e os d o e n t e s - c o m o s q u a i s d i s c u t i a s o b p r e t e x t o d e a p l i c a r 
t e s t e s psicológicos - e o c o r p o médico, q u e pa s sava r e g u l a r m e n t e e 
t o m a v a decisões. T a l posição, q u e se d e v i a a o a c a s o , m e f e z v e r e s t a 
superfície d e c o n t a t o e n t r e o l o u c o e o p o d e r q u e se e x e r c e s o b r e 
e l e , e t e n t e i , e m s e g u i d a , traçar s u a formação histórica. 
• Havia, então, de sua parte, uma experiência pessoal do unii^erso psi­
quiátrico... 
E l a não se fimita a esses a n o s d e estágio. N a m i n h a v i d a p e s s o a l , 
e u m e s e n t i , d e s d e o d e s p e r t a r d a m i n h a s e x u a l i d a d e , excluído, 
não v e r d a d e i r a m e n t e r e j e i t a d o , m a s p e r t e n c e n d o à p a r t e s o m b r i a 
d a s o c i e d a d e . E«te é^ãe: q u a l q u e r m o d o , u m p r o b l e m a i m p r e s s i o ­
n a n t e q u a n d o d e s c o b e r t o p o r s i m e s m o . " M u i t o r a p i d a m e n t e , i s t o 
se t r a n s f o r m o u n u m a espécie d e ameaça psiquiátrica: se você não 
é c o m o t o d o m u n d o , é p o r q u e é a n o r m a l , se você é a n o r m a l , é 
p o r q u e é d o e n t e . E s t a s três c a t e g o r i a s : não se r c o m o t o d o m u n d o , 
não se r n o r m a l e s e r d o e n t e são, e n t r e t a n t o , m u i t o d i f e r e n t e s e 
a c h a v a m - s e a s s i m i l a d a s u m a s às o u t r a s . Porém, não d e s e j o f a z e r 
m i n h a a u t o b i o g r a f i a . I s t o não é i n t e r e s s a n t e . 
• Por quê? 
Não q u e r o a q u i l o q u e p o s s a d a r a impressão d e r e u n i r o q u e fiz 
n u m a espécie d e u n i d a d e q u e m e c a r a c t e r i z a s s e e m e j u s t i f i c a s s e , 
7 1 
d a n d o a c a d a u m d o s t e x t o s s e u l u g a r . J o g u e m o s , s e q u i s e r , o j o g o 
d o s e n u n c i a d o s : e l e s s u r g e m a s s i m , u n s serão r e j e i t a d o s , o u t r o s 
a c e i t o s . C r e i o q u e s e d e v e r i a l e v a n t a r u m a questão c o m o s e lança 
u m a b i l h a no flipper. e l a f a z tiit, o u não f a z tilt, e d e p o i s é n o v a ­
m e n t e lançada e , d e n o v o , vè-se. . . ' 
• Então a bilha ricocheteia. O que interessam ao senhor já eram as 
relações entre saber e poder? /*' 
E u a c h a v a , s o b r e t u d o , p a r a d o x a l c o l o c a r o p r o b l e m a d o f u n c i o ­
n a m e n t o pol í t ico d o s a b e r a p a r t i r d e ciências tão a l t a m e n t e e l a ­
b o r a d a s c o m o as matemát icas , a física e a b i o l o g i a . O p r o b l e m a d o 
f u n c i o n a m e n t o h is tór ico d o s a b e r só e r a c o l o c a d o a p a r t i r d e s t a s 
g r a n d e s ciências n o b r e s . O r a , e u t i n h a s o b o s o l h o s , c o m a p s i ­
q u i a t r i a , l e v e s películas d e s a b e r , a p e n a s f o r m a d a s , q u e e r a m a b s o ­
l u t a m e n t e l i g a d a s a f o r m a s d e p o d e r q u e p o d i a m s e r a n a l i s a d a s . 
N o f u n d o , e m v e z d e c o l o c a r o p r o b l e m a d a história d a s m a t e ­
máticas, c o m o o h a v i a f e i t o T r a n D u c T h a o o u c o m o f a z i a J e a n -
T o u s s a i n c D e s a n t i , e m v e z d e c o l o c a r o p r o b l e m a d a história d a fí­
s i c a o u d a b i o l o g i a , e u m e d i z i a q u e e r a necessário t o m a r a s ciências 
recém-formadas, con temporâneas , c o m u m r i c o m a t e r i a l , p r e c i s a ­
m e n t e p o r n o s s e r e m contemporâneas , e t e n t a r c o m p r e e n d e r q u a i s 
o s s e u s e f e i t o s d e p o d e r . F i n a l m e n t e , o q u e e u q u i s f a z e r e m fíi5-
tória da loucura f o i r e t o m a r u m p r o b l e m a q u e e r a o d o s m a r x i s t a s : a 
formação d e u m a ciência n o i n t e r i o r d e u m a s o c i e d a d e d a d a . 
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• Contudo, os marxistas não colocavam absolutamente, nesta época, o 
problema da loucura, nem o da instituição psiquiátrica... 
C h e g u e i a c o m p r e e n d e r , m a i s t a r d e , q u e e s t e s p r o b l e m a s e r a m 
c o n s i d e r a d o s p e r i g o s o s , p o r várias razões p o r p a r t e d o s m a r x i s t a s . 
T r a t a v a - s e , a n t e s d e m a i s n a d a , d e v i o l a r a g r a n d e l e i d a d i g n i d a d e 
d a s ciências, e s t a h i e r a r q u i a a i n d a p o s i t i v i s t a , h e r d a d a d e A u g u s t e 
C o m t e , q u e c o l o c a , e m p r i m e i r o l u g a r , a s matemát icas , d e p o i s , a 
a s t r o n o m i a , e t c . T r a t a r d e s s a s ciências m o l e s , u m p o u c o v i s c o s a s , 
q u e são a p s i q u i a t r i a o u a p s i c o l o g i a , não e r a b o m ! 
A o f a z e r a história d a p s i q u i a t r i a t e n t a n d o a n a l i s a r , s o b r e t u d o , 
s e u f u n c i o n a m e n t o h is tór ico n u m a s o c i e d a d e , e u c o l o c a v a o d e d o , 
s e m abs í^u tamente sabê-lo, n o f u n c i o n a m e n t o d a p s i q u i a t r i a n a 
U n i ã o Soviética. E ^ não t i n h a e m m e n t e a l igação d o s p a r t i d o s 
c o m u n i s t a s c o m t o d a s a s técnicas d e vigilância, d e c o n t r o l e s o c i a l , 
d e demarcação d a s a n o m a l i a s . 
Aliás, é p o r i s s o q u e o s p s i q u i a t r a s m a r x i s t a s , q u e f o r a m m u i t o s , 
a l g u n s a b e r t o s e i n t e H g e n t e s , não i n v e n t a r a m a a n t i p s i q u i a t r i a . 
F o r a m o s i n g l e s e s , u m p o u c o místicos, q u e f i z e r a m e s t e t r a b a l h o . 
O s p s i q u i a t r a s m a r x i s t a s f r a n c e s e s f a z i a m a máqu ina f u n c i o n a r . 
S e m dúvida, c o l o c a r a m e m questão u m c e r t o n ú m e r o d e c o i s a s , 
m a s , n a história d o m o v i m e n t o ant ipsiquiátr ico, s e u p a p e l é, a i n d a 
a s s i m , r e l a t i v a m e n t e l i m i t a d o . 
7 3 
• Voã quer dizer que isto se deve ao uínculo profundo que eles têm com 
uma certa manutenção da ordem? 
S i m . U m c o m u n i s t a , e m 1960, não p o d i a d i z e r q u e u m h o m o s ­
s e x u a l não é u m d o e n t e . T a m b é m não p o d i a d i z e r : a p s i q u i a t r i a 
está l i g a d a , e m t o d o s o s c a s o s , d e p o n t a a p o n t a . ^ a m e c a n i s m o s d e 
p o d e r q u e é p r e c i s o c r i t i c a r . 
• Então os marxistas acolheram m a l este íiuro ... 
D e f a t o , f o i u m silêncio t o t a l . N ã o h o u v e u m só m a r x i s t a q u e t i ­
v e s s e r e a g i d o a o l i v r o , n e m a f a v o r n e m c o n t r a . N o e n t a n t o , e l e s e 
d i r i g i a , p r i m e i r a m e n t e , àquelas p e s s o a s q u e c o l o c a v a m o p r o b l e ­
m a d o f u n c i o n a m e n t o d a ciência. P o d e - s e p e r g u n t a r , r e t r o s p e c ­
t i v a m e n t e , s e e s t e silêncio não e s t a v a l i g a d o a o f a t o d e q u e , c o m 
t o d a a inocência , p o r t a n t o , c o m t o d a a t o l i c e , e u t i n h a l e v a n t a d o 
u m a l e b r e q u e o s embaraçava. 
E x i s t i a , a i n d a , u m a razão m a i s e v i d e n t e e s i m p l e s p a r a o d e s i n ­
t e r e s s e d o s m a r x i s t a s ; é q u e e u não m e s e r v i a d e M a r x , e x p l i c i t a 
e mac içamen te , p a r a c o n d u z i r a análise. C o n t u d o , n a m i n h a o p i ­
n ião. História da loucura é, p e l o m e n o s , tão m a r x i s t a q u a n t o m u i t a s 
histórias d a s ciências e s c r i t a s p o r m a r x i s t a s . 
M a i s t a r d e , c m t o r n o d o s a n o s d e 1 9 6 5 - 1 9 6 8 , n o m o m e n t o e m 
q u e o " r e t o r n o a M a r x " p r o d u z i a o s e f e i t o s não s o m e n t e teóricos, 
m a s t a m b é m práticos q u e você b e m s a b e , e r a d u r o não s e r m a r x i s ­
t a , e r a d u r o t e r e s c r i t o t a n t a s páginas s e m q u e t i v e s s e , n u m ú n i co 
74 ' 
l u g a r , a p e q u e n a f r a s e e l o g i o s a s o b r e M a r x à q u a l f o s s e possível 
a g a r r a r - s e . . . I n f e l i z m e n t e , e u h a v i a e s c r i t o três p e q u e n a s f r a s e s s o ­
b r e M a r x q u e e r a m detestáveis! En tão , v e i o a solidão, e t a m b é m 
as injúrias... 
• Neste momento, você teve o sentimento de estar só? 
S e n t i b e m a n t e s , p a r t i c u l a r m e n t e d e p o i s d a publ icação d e His­
tória da loucura. E n t r e o m o m e n t o e m q u e c o m e c e i a c o l o c a r e s t e 
t i p o d e p r o b l e m a , e m relação à p s i q u i a t r i a e s e u s e f e i t o s d e p o d e r e 
o m o m e n t o e m q u e e s s a s questões c o m e ç a r a m a e n c o n t r a r u m e c o 
c o n c r e t o e r e a l n a s o c i e d a d e , p a s s a r a m - s e a n o s . E u t i n h a a i m p r e s ­
são à*^ t e r a c e n d i d o o e s t o p i m e , d e p o i s , não s e o u v i u n a d a . C o m o 
n u m cartcfmr, e v f . ' d e s a f i n a v a a o p i a n o , e s p e r a n d o a de tonação , e a 
de tonação não v i n h a l 
• Você imaginava, na verdade, seu livro como uma bomba? 
S e m dúvida! E u e n c a r a v a e s t e l i v r o c o m o u m a espécie d e v e n ­
t o v e r d a d e i r a m e n t e m a t e r i a l , e c o n t i n u o a s o n h a r c o m e l e a s s i m , 
u m a (jspécie d e v e n t o q u e . f a z e s t o u r a r a s p o r t a s e a s j a n e l a s . . . M e u 
s o n h o é q u e e l e f o s s e u m e x p l o s i v o e f i c a z c o m o u m a b o m b a , e 
b o n i t o c o m o f o g o s d e artifício. 
• E Histór ia d a loucura /o í mesmo percebida muito rapidamente como 
um fogo de artificio, mas antes de tudo como literário. Isto o desconcertou? 
75 
F i c a - s e u m p o u c o e x c i t a d o , d e l i r a n d o e , b r u s c a m e n t e , a q u e l a b e l a 
f r a s e , q u e s e e s p e r a v a , a p a r e c e . I s t o dá p r a z e r , i s t o dá u m élan p a r a 
i r m a i s l o n g e . I s t o a c o n t e c e , e v i d e n t e m e n t e . 
P o r é m , é t a m b é m necessário, s e s e q u e r q u e e l e s e t o r n e u m i n s ­
t r u m e n t o q u e o u t r o s p o s s a m u s a r , q u e o l i v r o propíorcione p r a z e r 
àqueles q u e o lêem. I s t o m e p a r e c e s e r o d e v e r e l e m e n t a r d e q u e m 
l i b e r a e s t e t i p o d e m e r c a d o r i a o u e s t e o b j e t o a r t e s a n a l : é necessá­
r i o q u e p o s s a a g r a d a r ! 
• Duplo prazer, então: do autor, do leitor... 
A b s o l u t a m e n t e . Q u e a c h a d o s o u astúcias d e e s t i l o p r o p o r c i o n e m 
p r a z e r àquele q u e e s c r e v e e àquele q u e lê, e u a c h o i s s o m u i t o b o m . 
N ã o há n e n h u m a razão p a r a q u e e u m e r e c u s e e s t e p r a z e r , d o m e s ­
m o m o d o c o m o não há n e n h u m a razão p a r a q u e e u i m p o n h a téd io 
às p e s s o a s q u e d e s e j o q u e l e i a m m e u l i v r o . T r a t a - s e d e c o n s e g u i r 
a l g o a b s o l u t a m e n t e t r a n s p a r e n t e n o q u e d i z r e s p e i t o àquilo q u e é 
d i t o , p o r é m , c o m u m a espécie d e superfície c a m b i a n t e , q u e p r o ­
p o r c i o n e p r a z e r a o a c a r i c i a r o t e x t o , a o ut i l izá- lo , a o p e n s a r n e l e 
n o v a m e n t e , a o re tomá- lo . E s t a é m i n h a m o r a l d o l i v r o. 
M a s i s t o não é, u m a v e z m a i s , " e s c r i t a " . E u não g o s t o d a e s c r i t a . 
S e r e s c r i t o r m e p a r e c e v e r d a d e i r a m e n t e i r r i sór io . S e e u t i v e s s e q u e 
m e d e f m i r , d a r d e m i m u m a definição p r e t e n s i o s a , s e e u t i v e s s e 
q u e d e s c r e v e r e s t a espécie d e i m a g e m q u e s e t e m a o l a d o d e s i 
q u e fica z o m b a n d o , m a s a o m e s m o t e m p o g u i a , a p e s a r d e t u d o . 
78 
en tão e u d i r i a q u e s o u u m artesão e t a m b é m , r e p i t o , u m a espécie 
d e p i ro técn ico . C o n s i d e r o m e u s l i v r o s c o m o m i n a s , p a c o t e s d e 
e x p l o s i v o s . . . E s p e r o q u e s e j a m ! ^ 
N a m i n h a op in ião , e s t e s l i v r o s t ê m d e p r o d u z i r u m c e r t o e f e i t o 
e , p a r a i s t o , é necessário i n v e s t i r p e s a d o , f a l a n d o v u l g a r m e n t e . 
M a s o l i v r o d e v e d e s a p a r e c e r p o r s e u e f e i t o p róp r io e n o s e u e f e i t o 
p rópr io . " A e s c r i t a " é a p e n a s u m m e i o , não o fim. " A o b r a " t a m ­
b é m não é o fim! D e m o d o q u e r e m a n e j a r u m d e m e u s l i v r o s p a r a 
in tegrá - lo à u n i d a d e d e u m a o b r a , p a r a q u e e l e s e pareça c o m i g o , 
o u p a r a q u e s e pareça c o m o s l i v r o s q u e v i rão e m s e g u i d a , não t e m 
p a r a m i m n e n h u m s e n t i d o . 
• Você se remsa c^ser um autor? 
A p a r t i r d o m o m e n t o e m q u e você e s c r e v e , m e s m o q u e s e j a 
c o m o s e u n o m e c i v i l , começa a f u n c i o n a r c o m o a lguém q u e é 
u m p o u c o o u t r o , u m " e s c r i t o r " . E s t a b e l e c e , p a r a s i m e s m o , c o n t i ­
n u i d a d e s e u m nível d e coerência q u e não são e x a t a m e n t e a q u e l e s 
d a s u a v i d a r e a l . U m l i v r o s e u r e m e t e a o u t r o l i v r o s e u , u m a d e ­
claração s u a r e m e t e a u m g e s t o públ ico s e u . . . T u d o i s t o a c a b a p o r 
c o n s t i t u i r u m a espécie d e n e o i d e n t i d a d e , q u e não é idêntica à s u a 
i d e n t i d a d e c i v i l , n e m m e s m o à s u a i d e n t i d a d e s o c i a l . Aliás, i s s o é 
b e m s a b i d o , u m a v e z q u e s e q u e r p r e s e r v a r a v i d a d i t a p r i v a d a . 
Você não a d m i t e q u e s u a v i d a d e e s c r i t o r o u s u a v i d a pública i n ­
t e r f i r a t o t a l m e n t e n a s u a v i d a p r i v a d a . Você e s t a b e l e c e e n t r e você, 
79 
E r a u m a espécie d e f o g o c r u z a d o : e u m e d i r i g i m a i s a o s políticos, 
po rém, n o p r i m e i r o i n s t a n t e , só f u i e s c u t a d o p o r p e s s o a s q u e e r a m 
c o n s i d e r a d a s c o m o l i t e r a t o s , e m p a r t i c u l a r B l a n c h o t e B a r t h e s . M a s 
é possível q u e e l e s t i v e s s e m , a p a r t i r d e s u a própria experiência l i ­
terária, u m a s e n s i b i l i d a d e a u m c e r t o n ú m e r o d e p r o b l e m a s q u e o s 
políticos, e s t e s , não t i n h a m . Q u e e l e s t e n h a m r e a g i d o , p a r e c e - m e 
finalmente, s e r o s i n a l d e q u e e r a m , n o i n t e r i o r m e s m o d e s u a prá­
t i c a e s s e n c i a l m e n t e literária, m a i s p r o f u n d a m e n t e políticos d o q u e 
a q u e l e s q u e t i n h a m o d i s c u r s o m a r x i s t a p a r a c o d i f i c a r s u a política. 
R e t o r n o às histórias biográficas! F e l i z m e n t e , e l a s são u m p o u c o 
m a i s t o c a n t e s d o q u e a m i n h a b i o g r a f i a . Q u a n d o v i p e s s o a s , q u e 
e u a d m i r a v a m u i t o , c o m o B l a n c h o t e B a r t h e s , i n t e r e s s a r e m - s e p o r 
m e u l i v r o , s e n t i , a o m e s m o t e m p o , u m d e s l u m b r a m e n t o e u m 
p o u c o d e v e r g o n h a , c o m o s e e u o s t i v e s s e e n g a n a d o , s e m q u e r e r . 
P o i s a q u i l o q u e e u f a z i a e r a , p a r a m i m , i n t e i r a m e n t e e s t r a n h o a o 
c a m p o d a l i t e r a t u r a . M e u t r a b a l h o e s t a v a d i r e t a m e n t e l i g a d o à 
f o r m a d a s p o r t a s n o s a s i l o s , à existência d a s f e c h a d u r a s , e t c . M e u 
d i s c u r s o e s t a v a l i g a d o a e s t a m a t e r i a l i d a d e , a e s t e s espaços f e c h a ­
d o s , e e u q u e r i a q u e a s p a l a v r a s q u e e u t i n h a e s c r i t o a t r a v e s s a s s e m 
m u r o s , fizessem s a l t a r f e c h a d u r a s , a b r i s s e m j a n e l a s ! 
• Você diz isto rindo... 
Aí, é m e s m o p r e c i s o pôr u m p o u c o d e i r o n i a . . . O q u e é c h a t o 
n a s e n t r e v i s t a s é q u e o r i s o não a p a r e c e ! 
76 
• Nada impede de indicá-lo! 
E v i d e n t e m e n t e , m a s c o l o c a - s e e n t r e parênteses " r i s o " , você s a b e 
m u i t o b e m q u e i s t o não t e m a s o n o r i d a d e d e u m a f r a s e q u e s e 
p e r d e e m r i s o . . . 
• Voltemos para a questão da escrita. Você diz que, aos seus olhos, 
His tór ia d a l o u c u r a não é uma obra literária. Entretanto, sua escrita e 
seu estilo foram imediatamente notados. Isto também é válido para seus 
outros livros. Você é lido pela novidade e pela acuidade das análises, mas 
também por prazer. Há um estilo Michel Foucault, efeitos de pena quase 
que em cada página. Isto não é, apesar de tudo, um acaso. Por que diz 
que nãâ^ um escritor? 
E m u i t o t í m p l ^ . C r e i o q u e é p r e c i s o t e r u m a consciência a r ­
t e s a n a l n e s t e âmbi to . D o m e s m o m o d o q u e é p r e c i s o f a z e r b e m 
u m t a m a n c o é p r e c i s o f a z e r b e m u m l i v r o . I s t o v a l e , aliás, p a r a 
q u a l q u e r p a c o t e d e f r a s e s i m p r e s s a s t a n t o n u m j o r n a l c o m o n u m a 
r e v i s t a . P a r a m i m , a e s c r i t a não é n a d a m a i s q u e i s t o . E l a d e v e 
s e r v i r a o l i v r o . N ã o é o l i v r o q u e s e r v e a e s t a g r a n d e e n t i d a d e , tão 
s a c r a l i z a d a h o j e , q u e s e r i a " a e s c r i t a " . 
Você m e d i z q u e e u e m p r e g o , f r e q u e n t e m e n t e , u m c e r t o n ú m e ­
r o d e contorções estilísticas q u e p a r e c e m p r o v a r q u e e u g o s t o d o 
e s t i l o b e l o . S i m . . . há s e m p r e u m a espécie d e p r a z e r b a i x a m e n t e 
e ró t ico , t a l v e z , e m e n c o n t r a r u m a f r a s e b o n i t a , q u a n d o se está 
e n t e d i a d o , n u m a m a n h ã , e s c r e v e n d o c o i s a s não m u i t o d i v e r t i d a s . 
77 
e s c r i t o r , e o s o u t r o s e s c r i t o r e s , a q u e l e s q u e o p r e c e d e r a m , a q u e l e s 
q u e o c e r c a m o u q u e o seguirão, laços d e a f i n i d a d e , d e p a r e n t e s c o , 
d e ascendência, d e descendência, q u e não são o s d e s u a família r e a l . 
N ã o é a s s i m q u e v e j o m e u t r a b a l h o . E u i m a g i n a r i a , a n t e s , m e u s 
l i v r o s c o m o b i l h a s q u e r o l a m . E l a s são c a p t a d a s , t o m a d a s , lançadas 
n o v a m e n t e . E se i s s o f u n c i o n a , t a n t o m e l h o r . M a s não m e p e r g u n ­
t e q u e m e u s o u a n t e s d e u t i l i z a r m i n h a s b i l h a s p a r a s a b e r s e e l a s 
não vão e s t a r e n v e n e n a d a s , o u s e e l a s n ã o são b e m esféricas, o u s e 
e l a s não r o l a m n o s e n t i d o c e r t o . E m t o d o c a s o , não é p e l o f a t o d e 
t e r m e p e r g u n t a d o a m i n h a i d e n t i d a d e , q u e você saberá s e o q u e 
faço é util izável. 
• Escrever não é para você, apesar de tudo, uma necessidade? 
N ã o , não é a b s o l u t a m e n t e n e n h u m a n e c e s s i d a d e . N u n c a c o n s i ­
d e r e i q u e f o ss e u m a h o n r a e s c r e v e r , u m privi légio o u o q u e q u e r 
q u e s e j a d e ex t raord inár io . E u d i g o f r e q u e n t e m e n t e : a h , q u a n d o 
chegará o d i a e m q u e não e s c r e v e r e i m a i s ! N ã o se t r a t a d o s o n h o d e 
i r p a r a o d e s e r t o , o u s i m p l e s m e n t e à p r a i a , m a s d e f a z e r u m a c o i s a 
d i f e r e n t e d e e s c r e v e r . D i g o t a m b é m , n u m s e n t i d o m a i s p r e c i s o , 
q u e é: q u a n d o é q u e começare i a e s c r e v e r s e m q u e e s c r e v e r s e j a 
" e s c r i t a " ? S e m e s t a espécie d e s o l e n i d a d e c o m c h e i r o d e óleo. 
A s c o i s a s q u e p u b l i c o são e s c r i t a s n o m a u s e n t i d o d o t e r m o : i s t o 
c h e i r a a " e s c r i t a " . E q u a n d o começo a t r a b a l h a r , é " e s c r i t a " , e i m ­
p l i c a t o d o u m r i t u a l , t o d a u m a d i f i c u l d a d e . E u m e e n f i o n u m t ú -
80 
n e l , não q u e r o v e r n i n g u é m , q u a n d o g o s t a r i a , a o cont rá r io , d e t e r 
u m a e s c r i t a fácil, d e u m a v e z . M a s não c o n s i g o d e m o d o a l g u m . 
E é p r e c i s o d izê-Io, p o i s não v a l e a p e n a f a z e r g r a n d e s d i s c u r s o s 
c o n t r a " a e s c r i t a " , s e não se s a b e q u e t e n h o t a n t a d i f i c u l d a d e p a r a 
não " e s c r e v e r " q u a n d o c o m e ç o a e s c r e v e r . G o s t a r i a d e e s c a p a r 
d e s t a a t i v i d a d e f e c h a d a , s o l e n e , r e d o b r a d a s o b r e s i m e s m a , q u e é, 
p a r a m i m , a a t i v i d a d e d e c o l o c a r p a l a v r a s n o p a p e l . 
• Mas você tem, com este trabalho de papel e tinta, um prazer real? 
O p r a z e r q u e t e n h o c o m i s t o é, d e t o d o m o d o , o p o s t o , c m u i t o , 
àquele q u e e u g o s t a r i a q u e f o s s e o d a a e s c r i t a . E u g o s t a r i a q u e e l a 
f o s s e u n i a l g o q u e p a s s a , q u e é j o g a d o a s s i m , q u e s e e s c r e v e n u m 
c a n t o d e nwísa, ( ^ u e s e dá, q u e c i r c u l a , q u e p o d e r i a t e r s i d o u m 
p a n f l e t o , u m c a r t a z , u m f r a g m e n t o d e filme, u m d i s c u r s o públ ico, 
q u a l q u e r c o i s a . . . U m a v e z m a i s , não c o n s i g o e s c r e v e r a s s i m . C e r ­
t a m e n t e , t e n h o p r a z e r e m e s c r e v e r , d e s c u b r o p e q u e n o s t r u q u e s , 
m a s não t e n h o p r a z e r d e t e r e s t e p r a z e r . 
S i n t o , a e s t e r e s p e i t o , u m m a l - e s t a r , p o r q u e d e s e j a r i a u m p r a z e r 
i n t e i r a m e n t e d i f e r e n t e d a q u e l e , b e m f a m i l i a r , d e t o d a s as p e s s o a s 
q u e e s c r e v e m . E l a s s e t r a n c a f i a m , o p a p e l está e m b r a n c o , não s e 
t e m n e n h u m a i d e i a , e d e p o i s , p o u c o a p o u c o , a o c a b o d e d u a s 
h o r a s , o u d e d o i s d i a s , o u d e d u a s s e m a n a s , n o própr io i n t e r i o r d a 
a t i v i d a d e d e e s c r e v e r , u m a porção d e c o i s a s t o r n a r a m - s e p r e s e n ­
t e s . O t e x t o e x i s t e , s a b e - s e s o b r e e l e m u i t o m a i s d o q u e a n t e s . A 
81 
cabeça e s t a v a v a z i a , a g o r a está c h e i a , p o r q u e a e s c r i t a não e s v a ­
z i a , e l a p r e e n c h e . D o s e u próprio v a z i o , f a z - s e u m a p l e t o r a . T o d o 
m u n d o sabe d i s t o . I s t o não m e d i v e r t e ! , ... ^ 
• Então, com o que você sonha? Com outra escrita? f 
U m a e s c r i t a descontínua, q u e não se p e r c e b e s s e c o m o s e n d o 
u m a e s c r i t a , q u e se s e r v i s s e d o p a p e l e m b r a n c o , o u d a máquina, 
o u d a c a n e t a t i n t e i r o , o u d o t e c l a d o , e n t r e t a n t a s o u t r a s c o i s a s , 
q u e p o d e r i a m ser o p i n c e l o u a câmera. T u d o i s t o p a s s a n d o m u i t o 
r a p i d a m e n t e d e u m a o u t r o , u m a espécie d e f e b r e e d e c a o s . 
• Você tem vontade de tentar? 
S i m , m a s m e f a l t a e s ta espécie d e não s e i o quê, d e f e b r e , o u d e 
t a l e n t o , o s d o i s , s e m dúvida. A f m a l d e c o n t a s , e u s e m p r e s o u r e ­
m e t i d o à e s c r i t a . Então, s o n h o c o m t e x t o s b r e v e s . M a s i s t o s e m p r e 
dá e m l i v r o s g r a n d e s ! A p e s a r d e t u d o , s o n h o s e m p r e e m e s c r e v e r 
u m género d e l i v r o t a l e m q u e a questão " d e o n d e i s t o v e m ? " 
não t e n h a s e n t i d o . S o n h o c o m u m p e n s a m e n t o v e r d a d e i r a m e n t e 
i n s t r u m e n t a l . P o u c o i m p o r t a d e o n d e v e n h a . C h e g a a s s i m . O e s ­
s e n c i a l é q u e se t e n h a n a s mãos u m i n s t r u m e n t o c o m o q u a l v a i se 
p o d e r a b o r d a r a p s i q u i a t r i a o u o p r o b l e m a das prisões. 
• Você não gosta que perguntemos por suas justificativas, pelas razões de 
sua legitimidade. Por quê? 
82 
Q u a n d o e u v o l t e i d a Tunísia, n o i n v e r n o d e 1 9 6 8 - 1 9 6 9 , p a r a a 
U n i v e r s i d a d e d e V i n c e n n e s , e r a difícil d i z e r o q u e q u e r q u e fosse 
s e m q u e alguém p e r g u n t a s s e : " D e o n d e você f a l a ? " E s t a questão 
m e c o l o c a v a s e m p r e n u m g r a n d e desânimo. P a r e c i a , n o f u n d o , 
u m a questão p o l i c i a l . S o b a aparência d e u m a questão teórica e p o ­
lítica ( " D e o n d e você f a l a ? " ) , m e e r a c o l o c a d a , d e f a t o , u m a q u e s ­
tão d e i d e n t i d a d e ( " N o f u n d o , q u e m é você?", " D i g a - n o s , então 
se você é m a r x i s t a o u não é m a r x i s t a " , " D i g a - n o s se é i d e a l i s t a o u 
m a t e r i a l i s t a " , " D i g a - n o s se é p r o f e s s o r o u m i l i t a n t e " , " M o s t r e s u a 
c a r t e i r a d e i d e n t i d a d e , d i g a e m n o m e d e q u e você v a i p o d e r c i r c u ­
l a r , d e m o d o q u e p o s s a m o s r e c o n h e c e r o n d e você está"). 
Issô^me p a r e c i a , f i n a l m e n t e , u m a questão d e d i s c i p l i n a . E não 
p o s s o d e i x a r d e ^ t e b a t e r es tas g r a v e s interrogações s o b r e a j u s t i f i ­
c a t i v a d o f u n d a m e n t o d a p e q u e n a questão vilã: " Q u e m é você, 
o n d e n a s c e u ? A q u e família p e r t e n c e ? " . O u a i n d a : " Q u a l é a s u a 
profissão? C o m o é q u e você p o d e s e r c l a s s i f i c a d o ? O n d e d e v e f a ­
z e r s e u serviço m i l i t a r ? " . 
E i s o q u e e u e s c u t o , a c a d a v e z q u e se p e r g u n t a : " D e q u e t e o ­
r i a você se u t i l i z a ? O q u e o a b r i g a ? O q u e o j u s t i f i c a ? " Ouço 
questões p o l i c i a i s e ameaçadoras: " A o s o l h o s d e q u e m você será 
i n o c e n t e m e s m o q u e d e v a ser c o n d e n a d o ? " O u : " d e v e h a v e r u m 
g r u p o d e pes soas , u m a s o c i e d a d e , u m a f o r m a d e p e n s a m e n t o q u e 
o absolverão, e d o s q u a i s você poderá o b t e r sua s o l t u r a . E , se esses 
o a b s o l v e m , é p o r q u e nós d e v e m o s condená-lo!" 
83 
• Nestas questões de identidade, de que lhe parece ter tanto que fugir? 
C r e i o q u e a i d e n t i d a d e é u m a d a s p r i m e i r a s produções d o p o d e r , 
d e s s e t i p o d e p o d e r q u e c o n h e c e m o s e m n o s s a s o c i e d a d e . E u a c r e d i t o 
m u i t o , c o m e f e i t o , n a importância c o n s t i t u t i v a d a s f o r m a s ju r íd ico-
p o h t i c o - p o h c i a i s d e n o s s a s o c i e d a d e . Será q u e o s u j e i t o , idêntico a 
s i m e s m o , c o m s u a h i s t o r i c i d a d e própria, s u a génese, s u a s c o n t i n u i ­
d a d e s , o s e f e i t o s de s u a infância p r o l o n g a d o s até o úl t imo d i a d e - s u a 
v i d a , e t c , não s e r i a o p r o d u t o d e u m c e r t o t i p o d e p o d e r q u e se e x e r c e 
s o b r e nós n a s f o r m a s jurídicas a n t i g a s e n a s f o r m a s p o l i c i a i s r e c e n t e s ? 
É necessário l e m b r a r q u e o p o d e r não é u m c o n j u n t o d e m e c a ­
n i s m o s d e negação, d e r e c u s a , d e exclusão. M a s , e f e t i v a m e n t e , e l e 
p r o d u z . P o s s i v e l m e n t e , p r o d u z até o s próprios indivíduos. A i n d i v i ­
d u a l i d a d e , a i d e n t i d a d e i n d i v i d u a l são p r o d u t o s d o p o d e r . E p o r i s t o 
q u e d e s c o n f i o d e l e , e q u e m e esforço p o r d e s f a z e r essas a r m a d i l h a s . 
A única v e r d a d e d e História da loucura o u d e Vigiar e punir é q u e há 
p e s s o a s q u e s e s e r v e m d e l a s e q u e l u t a m c o m e l a s . E a única v e r d a d e q u e 
b u s c o . A questão " d e o n d e v e m i s t o ? será m a r x i s t a ? " P a r e c e - m e , f i n a l ­
m e n t e , u m a questão d e i d e n t i d a d e , p o r t a n t o , u m a questão d e polícia. 
• Eu vou, então, ser policial, pois gostaria, apesar de tudo, de voltar um 
momento, compreender o ponto de partida do seu itinerário. Durante seus 
anos de E c o l e N o r m a l e Supér ieure , você era marxista? 
C o m o q u a s e t o d o s o s d a m i n h a geração, e u f i c a v a e n t r e o m a r ­
x i s m o e a f e n o m e n o l o g i a , m e n o s a q u e l a q u e S a r t r e o u M e r l e a u -
84 
P o n t y p u d e r a m c o n h e c e r e u t i l i z a r , d o q u e a f e n o m e n o l o g i a p r e ­
s e n t e n o t e x t o d e H u s s e r l , d e 1 9 3 8 , A crise das ciências europeias, 
a Krisis, c o m o nós d iz íamos . O q u e s e c o l o c a v a e m questão e r a 
t o d o o s i s t e m a d e s a b e r , d o q u a l a E u r o p a f o r a o f o c o , o pr incípio , 
o m o t o r , e através d o s q u a i s e l a h a v i a s i d o t a n t o l i b e r t a d a q u a n ­
t o a p r i s i o n a d a . P a r a nós, a l g u n s a n o s d e p o i s d a g u e r r a e d e t u d o 
a q u i l o q u e s e p a s s o u , e s t a in ter rogação r e a p a r e c i a e m t o d a a s u a 
v i v a c i d a d e . A Krisis e r a p a r a nós o t e x t o q u e a s s i n a l a v a a i r rupção 
d e u m a história i n t e i r a m e n t e con t emporânea , n u m a f i l o s o f i a m u i ­
t o a h i v a , m u i t o académica, m u i t o f e c h a d a s o b r e s i m e s m a , a p e s a r 
d e s e u p r o j e t o d e descrição u n i v e r s a l . A l g u m a c o i s a e s t a v a e m v i a s 
d e q u e b r a r , e m t o r n o d e H u s s e r l , e m t o r n o d e s s e d i s c u r s o q u e a 
Universidai ie-aleínã, há a n o s , s e esforçava p o r m a n t e r c o m braço 
f i r m e . E s t a q u e b r a e r a o u v i d a b r u s c a m e n t e n o d i s c u r s o d o filósofo. 
P e r g u n t a v a - s e , e n f i m , o q u e e r a m e s t e s a b e r e e s t a r a c i o n a l i d a d e , 
tão p r o f u n d a m e n t e l i g a d o s a o n o s s o d e s t i n o , tão p r o f u n d a m e n t e 
l i g a d o s a t a n t o s p o d e r e s , e tão i m p o t e n t e s d i a n t e d a His tór ia . 
E a s ciências h u m a n a s e r a m , e v i d e n t e m e n t e , o b j e t o s q u e s e e n ­
c o n t r a v a m então c o l o c a d o s . e m questão. M e u s p r i m e i r o s b a l b u c i o s 
e r a m então: o q u e são a s ciências h u m a n a s ? A p a r t i r d e q u e são 
possíveis? C o m o s e c h e g o u a c o n s t r u i r t a i s d i s c u r s o s e a s e e s t a b e ­
l e c e r t a i s o b j e t o s ? E u r e t o m a v a e s s a s in ter rogações , p o r é m t e n t a n ­
d o m e desembaraçar d o q u a d r o filosófico d e H u s s e r l . 
85 
A s s i s t i a - s e , a o m e s m o t e m p o , à l e n t a ascensão d o m a r x i s m o n o 
i n t e r i o r d e u m a prática d a f i l o s o f i a q u e s e p o d e c h a m a r d e t r a ­
d i c i o n a l e universi tár ia . P a r a as gerações d e a n t e s d a g u e r r a , o 
m a r x i s m o r e p r e s e n t a v a , q u a s e s e m p r e , u m a a l t e r n a t i v a a o t r a b a ­
l h o universi tár io. L u c i e n H e r r , g r a n d e f i g u r a áis tórica, e r a u m 
bibl iotecár io impáv ido n a École Normale Supérieure e , à n o i t e , a 
b i b l i o t e c a c u i d a d o s a m e n t e f e c h a d a , e l e d e s c i a p a r a a n i m a r as r e u ­
niões s o c i a l i s t a s s e m q u e , e m pr inc íp io , n i n g u é m s o u b e s s e . 
• Esta situação era diferente nos seus tempos de estudante? 
S i m , d e p o i s d a g u e r r a , o m a r x i s m o e n t r a v a n a U n i v e r s i d a d e . 
N u m d a d o m o m e n t o , f o i possível c i t a r M a r x n o s e x a m e s d o s c o n ­
c u r s o s p a r a p r o f e s s o r . I s t o c o r r e s p o n d i a à estratégia d o P a r t i d o 
e m relação a o s a p a r e l h o s d e E s t a d o . E u m e l e m b r o m u i t o b e m 
q u e A l t h u s s e r , g e n t i l m e n t e , h a v i a m e e n v i a d o p a r a d a r c u r s o s d e 
F i l o s o f i a e d e F i l o s o f i a Política p a r a o s c a n d i d a t o s à École Normale 
d'Administration d a Conféderation Générale du TravaiV. D e f a t o , e s t a 
e n t r a d a d o P a r t i d o C o m u n i s t a n o a p a r e l h o d e E s t a d o só f o i p l e n a ­
m e n t e b e m s u c e d i d a n a U n i v e r s i d a d e . 
T a l aceitação d o m a r x i s m o n a U n i v e r s i d a d e b e m c o m o a a c e i ­
tação d e práticas universi tár ias, n o r m a l m e n t e r e c o n h e c i d a s p e l o 
P a r t i d o C o m u n i s t a , c r i o u p a r a nós u m a situação d e g r a n d e f a ­
c i l i d a d e . T o r n a r - s e p r o f e s s o r c o n c u r s a d o d e f i l o s o f i a f a l a n d o d e 
M a r x , c o m o as c o i s a s e r a m s i m p l e s ! En tão , nós t ravávamos p s e u -
86 
d o l u t a s : p e l o d i r e i t o d e c i t a r E n g e l s t a n t o q u a n t o M a r x , p a r a q u e 
o p r e s i d e n t e d o j ú r i d o c o n c u r s o p a r a p r o f e s s o r a c e i t a s s e q u e s e 
f a l a s s e d e Lênin . E s t e s e r a m n o s s o s p e q u e n o s c o m b a t e s , a c r e d i t a -
v a - s e q u e e l e s e r a m m u i t o i m p o r t a n t e s . 
Só q u e , à m e d i d a q u e s e e n t r a v a n e s t a un ião d a U n i v e r s i d a d e e 
d o P a r t i d o C o m u n i s t a , d e s c o b r i a m - s e , c o m h o r r o r , s u a s s i m i l i t u ­
d e s : as m e s m a s h i e r a r q u i a s , o s m e s m o s c o n s t r a n g i m e n t o s , a s m e s ­
m a s o r t o d o x i a s . N a d a p o d i a e s t a r m a i s p r ó x i m o d a U n i v e r s i d a d e 
d o q u e a e s t r u t u r a d o P a r t i d o , p e l o m e n o s n a s s u a s e s f e r a s m a i s 
b a i x a s q u e d i z i a m r e s p e i t o a o s i n t e l e c t u a i s . R e d i g i r u m a d i s s e r t a ­
ção p a r a u m p r e s i d e n t e d e jú r i d e c o n c u r s o p a r a p r o f e s s o r , o u e s -
c r e v e r ^ c o m o m e a c o n t e c e u , a r t i g o s q u e u m d i r i g e n t e d o P a r t i d o 
a s s i n a v a , e r a - e x a s a m e n t e o m e s m o exercício! 
F o i aí q u e c o m e ç o u , p a r a m i m , u m a f o r m a d e s u f o c a m e n t o d e ­
v i d o à própr ia f a c i l i d a d e d e s s a s operações . A c r e d i t a v a - s e q u e s e r i a 
a l u t a , e q u e t u d o i a b e m . O q u e t i n h a - m e i n t e r e s s a d o e e s t i m u l a ­
d o e r a e s t a m i r a g e m d a l u t a q u e n o s f o i p r o m e t i d a . D e v í a m o s s e r 
o s s o l d a d o s avançados d a U n i v e r s i d a d e p a r a colocá-la à disposição 
d o p O Y O , o u d a v a n g u a r d a . d o p r o l e t a r i a d o ! E , e n t r e nós, n o s ma n -
t í n h a m o s s e m p r e o s m e . s m o s . Então, e u p a r t i p a r a a Suécia, d e p o i s 
p a r a a Polónia. 
• Foi na Polónia que você deixou de ser marxista? 
S i m , p o r q u e lá e u v i f u n c i o n a r u m P a r t i d o C o m u n i s t a n o p o -
87 
d e r , q u e c o n t r o l a v a u m a p a r e l h o d e E s t a d o , i d e n t i f i c a n d o - s e c o m 
e l e . O q u e e u t i n h a s e n t i d o , d e m o d o o b s c u r o , d u r a n t e o pe r íodo 
1 9 5 0 - 1 9 5 5 a p a r e c i a e m s u a v e r d a d e b r u t a l , histórica, p r o f u n d a . N a o 
e r a m m a i s imaginações d e e s t u d a n t e , b r i n c a d e i r a s n o i n t e r i o r d a • 
U n i v e r s i d a d e . E r a a s e r i e d a d e d e u m país s u j e i t a d o ^ u m p a r t i d o . 
A p a r t i r d e s t e m o m e n t o , p o s s o d i z e r q u e não s o u m a r x i s t a , n o 
s e n t i d o e m q u e não p o s s o a c e i t a r o f u n c i o n a m e n t o d o s P a r t i d o s 
C o m u n i s t a s t a l c o m o n o s são p r o p o s t o s n o L e s t e e u r o p e u e n o 
O e s t e d a E u r o p a . S e há, e m M a r x , c o i s a s v e r d a d e i r a s , e l a s p o d e m 
s e r u t i l i z a d a s c o m o i n s t r u m e n t o s , s e m h a v e r n e c e s s i d a d e d e ci tá-
l a s , q u e m q u i s e r , a s reconhecerá ! O u q u e m f o r c a p a z . . . 
• Houue outros niomi-iitos cm que o fato de viver iio estrangeiro tenha 
contribuído para a elaboração de seu pensamento? 
S i m , a Tunísia f o i , p a r a m i m , e n t r e 1 9 6 6 e 1 9 6 8 , o simétrico d a e x ­
periência p o l o n e s a . M i n h a s o c i e d a d e , e u só a c o n h e c i a s o b o ângu lo 
d e u m p r i v i l e g i a d o . E m m i n h a existência, n u n c a t i n h a t i d o m u i t o s 
p r o b l e m a s , n e m políticos n e m económicos . E e u não t i n h a p e r c e b i ­
d o o q u e p o d i a s e r u m a opressão, a não s e r n a Polónia, q u e r d i z e r , 
n u m E s t a d o s o c i a l i s t a . D a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a , e u só t i n h a c o n h e ­
c i d o , a f m a l d e c o n t a s , o l a d o a v e l u d a d o e fácil. N a Tunísia, d e s c o b r i 
o q u e p o d e r i a m s e r o s r e s t o s d e u m a colonização c a p i t a l i s t a e o 
n a s c i m e n t o d e u m d e s e n v o l v i m e n t o d e t i p o c a p i t a l i s t a , c o m t o d o s 
o s fenómenos d e exploração e d e opressão económica e política. 
88 
D o i s m e s e s a n t e s d e m a i o d e 1 9 6 8 , e u v i , n a Tunísia , u m a g r e v e 
d e e s t u d a n t e s q u e l i t e r a l m e n t e b a n h o u a U n i v e r s i d a d e e m s a n ­
g u e . O s e s t u d a n t e s e r a m l e v a d o s p a r a o s u b s o l o , o n d e h a v i a u m a 
c a n t i n a , e v o l t a v a m c o m o r o s t o s a n g r a n d o p o r q u e t i n h a m s i d o 
e s p a n c a d o s c o m m a t r a c a s . H o u v e c e n t e n a s d e prisões. Vários d o s 
m e u s a l u n o s f o r a m c o n d e n a d o s a d e z , d o z e , q u a t o r z e a n o s d e p r i ­
são. F o i , p a r a m i m , u m mês d e m a i o , s e m dúvida , m a i s sério d o 
q u e a q u e l e q u e e u t e r i a c o n h e c i d o n a França. 
A d u p l a exper iência Polônia-Tunísia e q u i l i b r a v a m i n h a e x p e ­
riência polít ica, e , p o r o u t r o l a d o , m e r e m e t i a a c o i s a s d a s q u a i s , 
n o f u n d o , não t i n h a s u f i c i e n t e m e n t e s u s p e i t a d o e m m i n h a s p u r a s 
especulações: a impor tânc ia d o exercício d o p o d e r , e s t a s l i n h a s d e 
c o n t a t o e n t r e V ) c c : : ^ o , a v i d a , o d i s c u r s o e o p o d e r pol í t ico. 
N o s silêncios e n o s g e s t o s c o t i d i a n o s d e u m polonês q u e s a b e 
q u e é v i g i a d o , q u e e s p e r a e s t a r n a r u a p a r a l h e d i z e r a l g u m a c o i s a , 
p o r q u e s a b e n u i i t o b e m q u e n o a p a r t a m e n t o d e u m e s t r a n g e i r o há 
m i c r o f o n e s p o r t o d a p a r t e , n a m a n e i r a p e l a q u a l a b a i x a - s e a v o z 
q u a n d o s e está n u m r e s t a u r a n t e , n a m a n e i r a p e l a q u a l s e q u e i m a 
u m a c a r i a , e n f i m , e m t o d o s e s s e s p e q u e n o s g e s t o s s u f o c a n t e s , t a n ­
t o q u a n t o n a violência c r u a e s e l v a g e m d a polícia t u n i s i a n a s e a b a ­
t e n d o s o b r e u m a f a c u l d a d e , a t r a v e s s e i u m a espécie d e exper iência 
física d o p o d e r , d a s relações e n t r e c o r p o e p o d e r . 
E m s e g u i d a , e s t e s m o m e n t o s m e o b c e c a r a m c o n s i d e r a v e l m e n t e , 
e m b o r a , só m u i t o t a r d i a m e n t e , e u t e n h a d e l e s t i r a d o a lição t e ó -
89 
r i c a . E u p e r c e b i q u e d e v e r i a t e r f a l a d o , há m u i t o t e m p o , d e s t e s 
p r o b l e m a s d a relação e n t r e o p o d e r e o c o r p o , a o s q u a i s c h e g u e i , 
finalmente, e m Vigiar epunir. -• • - ; 
• Contudo, para muitas pessoas, Maio de 68 constiluiu também uma 
experiência da violência física do poder e de sua relação com o corpo. Você 
não o percebeu, mesmo com algum atraso? 
E u v o l t e i p a r a a França e m n o v e m b r o d e 1 9 6 8 . T i v e a impressão 
d e q u e t o d a e s t a exper iência t i n h a s i d o , d e t o d o m o d o , p r o f u n ­
d a m e n t e e n g a j a d a e c o d i f i c a d a p o r u m d i s c u r s o m a r x i s t a d o q u a l 
m u i t o p o u c o s e s c a p a v a m . A o cont rár io , t a n t o n a Tunísia c o m o 
n a Polónia , e s t a experiência t i n h a - m e a p a r e c i d o i n d e p e n d e n t e d e 
q u a l q u e r codificação p e l o d i s c u r s o m a r x i s t a . S e , n a Polónia , h a v i a 
d i s c u r s o m a r x i s t a , e s t a v a d o l a d o d o p o d e r , d o l a d o d a violência. 
N o s a n o s q u e s e s e g u i r a m a M a i o , a q u e l e s q u e s e d i z i a m r e v o l u ­
c ionários, s e m se r e f e r i r e x p l i c i t a m e n t e a o m a r x i s m o , c o n s e r v a ­
v a m , a p e s a r d e t u d o , u m a adesão m u i t o f o r t e à m a i o r i a d a s anáfises 
m a r x i s t a s . E q u a n d o i n t e r v i n h a m , q u a n d o c o l o c a v a m questões, 
q u a n d o d i s c u t i a m c o m você, o s e f e i t o s d e p o d e r e r a m s e m p r e l i g a ­
d o s a o m a r x i s m o . E m Vincennes, d u r a n t e o i n v e r n o d e 1 9 6 8 - 1 9 6 9 , 
d i z e r e m a l t o e b o m t o m e d e m o d o inteligível: " E u não s o u m a r ­
x i s t a " e r a fisicamente m u i t o difícil... O q u e m e t o c o u e m Vincen­
nes, n a s A s s e m b l e i a s G e r a i s e o u t r a s d o género , q u e a s s i s t i , f o i a 
incrível p r o x i m i d a d e e n t r e a q u i l o q u e s e p a s s a v a e o q u e e u t i n h a 
90 
e s c u t a d o e v i s t o n o P C , e m s e u pe r íodo m a i s s t a l i n i s t a . C o m c e r ­
t e z a , t o d a s as f o r m a s t i n h a m m u d a d o , o s r i t u a i s e r a m d i f e r e n t e s . 
M a s o s e f e i t o s d e p o d e r , o s t e r r o r e s , o s prest ígios, a s h i e r a r q u i a s , as 
obediências , a s f r a q u e z a s , as p e q u e n a s ignomín ias , e t c , t u d o i s t o 
e r a a m e s m a c o i s a . E r a u m s t a l i n i s m o e x p l o s i v o , e m ebulição, m a s 
s e m p r e e l e . . . E e u m e d i z i a : c o m o e l e s m u d a r a m p o u c o ! 
• Retornemos ao seu percurso... 
C o m o você s a b e , e s t e p e r c u r s o f o i e m z i g u e - z a g u e . As palavras e 
as coisas é u m l i v r o , d e c e r t a f o r m a m a r g i n a l , q u e c o l o c a o s o u t r o s 
n u m a posição difícil. E l e é m a r g i n a l p o r q u e não e s t a v a a b s o l u t a -
mente"-ça l i n h a d i r e t a d o m e u p r o b l e m a . A o e s t u d ar A História da 
loucura, t i n h a ^ m e ^ c o l o c a d o , n a t u r a l m e n t e , o p r o b l e m a d o f u n c i o ­
n a m e n t o d o s a b e r méd ico , n o i n t e r i o r d o q u a l a c h a v a m - s e d e l i m i ­
t a d a s as relações d o l o u c o e d o não- louco , a p a r t i r d o século X I X . 
E , d e p o i s , o s a b e r médico c o n d u z i a a o p r o b l e m a d e s t a evolução 
m u i t o rápida, q u e o c o r r e u n o final d o século X V I I l , e q u e f e z a p a ­
r e c e r não s o m e n t e a p s i q u i a t r i a e a p s i c o p a t o l o g i a , m a s t a m b é m a 
b i o l o g i a e as ciências h u m a n a s . E r a a p a s s a g e m d e u m c e r t o t i p o d e 
e m p i r i c i d a d e a u m o u t r o . A b r a q u a l q u e r l i v r o a n t i g o d e m e d i c i n a 
d e 1 7 8 0 e q u a l q u e r l i v r o a n t i g o d e 1 8 2 0 , p a s s o u - s e d e u m m u n d o 
a o o u t r o . . . E m e s m o necessário t e r l i d o m u i t o p o u c o e s t e género d e 
o b r a , s e j a d e gramática, m e d i c i n a o u e c o n o m i a política, p a r a i m a ­
g i n a r q u e d e l i r o q u a n d o f a l o d e u m c o r t e n o final d o século XVI11! 
91 
I 
N o f u n d o , As palavras e as coisas só f a z c o n s t a t a r e s t e c o r t e , t e n t a 
traçar s e u balanço, n u m c e r t o n ú m e r o d e d i s c u r s o s , e s s e n c i a l m e n t e 
a q u e l e s q u e g i r a m e m t o r n o d o h o m e m , d o t r a b a l h o , d a v i d a e d a 
l i n g u a g e m . . . E s t e c o r t e é m e u p r o b l e m a , não m i n h a solução. S e 
i n s i s t o t a n t o n e s t e c o r t e , é p o r q u e s e t r a t a d e u m quebra-cabeça s a ­
g r a d o , e não , a b s o l u t a m e n t e , d e u m a m a n e i r a d e r e s o l v e r a s c o i s a s . 
• Como explicar este corte? A que ele corresponde? 
C o m e f e i t o , e u l e v e i s e t e a n o s p a r a p e r c e b e r q u e a solução não 
d e v i a s e r b u s c a d a o n d e e u a b u s c a v a , e m q u a l q u e r c o i s a d o géne ro 
i d e o l o g i a , p r o g r e s s o d a r a c i o n a l i d a d e o u m o d o d e p rodução . E r a , 
finalmente, n a s t e c n o l o g i a s d e p o d e r e e m s u a s t ransformações , 
d o século X V I I até a g o r a , q u e e r a necessário v e r a b a s e a p a r t i r d a 
q u a l a mudança s e r i a possível. As palavras e as coisas s i t u a v a - s e n o 
nível d a constatação d o c o r t e e d a n e c e s s i d a d e d e i r b u s c a r u m a 
expl icação. Vigiar e punir é a g e n e a l o g i a , a análise d a s condições 
históricas q u e t o r n a r a m possível e s t e c o r t e . 
C o m e c e i a c o m p r e e n d e r c o m o h a v i a s i d o cons t ru ído não s o ­
m e n t e o p e r s o n a g e m d o l o u c o , m a s o p e r s o n a g e m d o h o m e m 
n o r m a l através d e u m a c e r t a a n t r o p o l o g i a d a razão e d a desrazão. 
P a r e c e u - m e , através d e s t a s p e s q u i s a s , q u e a posição c e n t r a l d o h o ­
m e m e r a , a f i n a l d e c o n t a s , u m a figura própr ia d o d i s c u r s o científ i­
c o , o u d o d i s c u r s o d a s ciências h u m a n a s , o u d o d i s c u r s o filosófico 
d o século X I X . C e n t r a r t u d o n a figura d o h o m e m não é u m a i n -
92 
cl inação d o d i s c u r s o filosófico d e s d e a s u a o r i g e m , m a s u m a flexão 
r e c e n t e d a q u a l p o d e - s e p e r f e i t a m e n t e d e l i m i t a r a o r i g e m , e q u e 
se p o d e t a m b é m v e r d e q u e m o d o está e m v i a s d e d e s a p a r e c e r , 
p o s s i v e l m e n t e , d e s d e o final d o século X I X . 
• Você aceitaria dizer que a descoberta deste corte, a ênfase nos efeitos de 
poder dos diferentes saberes, é uma descoberta sua, sua contribuição pessoal? 
D e m o d o a l g u m ! Está n a l i n h a d i r e t a d e t o d o u m c o n j u n t o , d e 
A genealogia da moral d e N i e t z s c h e o u a Krisis d e H u s s e r l . A h i s ­
tória d o p o d e r d a v e r d a d e , n u m a s o c i e d a d e c o m o a n o s s a , é u m a 
questão q u e r o n d a a s cabeças, s e m p a r a r , há u m a c e n t e n a d e a n o s . 
A únics^coisa q u e fiz f o i abordá- la a m e u m o d o , e e n u n c i e i e m A 
arqueologia áo-sab€Ka\%\x\\\z% r e g r a s q u e e s t a b e l e c i p a r a m i m . E l a s 
não t ê m n a d a d e p e r t u r b a d o r n e m d e revoluc ionár io , p o r é m , a 
p a r t i r d o m o m e n t o e m q u e a s p e s s o a s p a r e c i a m não c o m p r e e n d e r 
b e m o q u e e u f a z i a , e s t a b e l e c i m i n h a s r e g r a s . 
E u não s o u d a q u e l e t i p o d e v i g i a q u e a f i r m a s e r s e m p r e o p r i m e i ­
r o a t e r v i s t o o d i a c l a r e a r . O q u e m e i n t e r e s s a é c o m p r e e n d e r c m 
q u e c o r ^ s i s t e e s t e l i m i a r d e m o d e r n i d a d e q u e p o d e s e r l o c a l i z a d o 
e n t r e o século X V I I e o século X I X . A p a r t i r d e s t e l i m i a r , o d i s c u r ­
s o e u r o p e u d e s e n v o l v e u p o d e r e s g i g a n t e s c o s d e universal ização. 
A t u a l m e n t e , e m s u a s noções f u n d a m e n t a i s e s u a s r e g r a s e s s e n c i a i s , 
e l e p o d e s e r p o r t a d o r d e q u a l q u e r t i p o d e v e r d a d e , m e s m o q u e e s t a 
v e r d a d e d e v a - s e v o l t a r c o n t r a a E u r o p a , c o n t r a o O c i d e n t e . 
93 
N o f u n d o , e u t e n h o a p e n a s u m o b j e t o d e e s t u d o his tór ico, é o 
U m i a r d a m o d e r n i d a d e . Q u e m s o m o s nós, q u e f a l a m o s e s t a l i n ­
g u a g e m d e t a l m o d o , q u e t e m p o d e r e s q u e são i m p o s t o s a nós 
m e s m o s e m n o s s a s o c i e d a d e , e a o u t r a s s o c i e d a d e s ? Q u a l é e s t a 
l i n g u a g e m q u e p o d e s e r v o l t a d a c o n t r a nós , e qiíe nós p o d e m o s 
v o l t a r c o n t r a nós m e s m o s ? Q u a l é e s t e formidável e n t u s i a s m o d a 
p a s s a g e m à u n i v e r s a l i d a d e d o d i s c u r s o o c i d e n t a l ? E i s m e u p r o b l e ­
m a his tór ico. 
• Uma manara diferente de conceber a relação entre saber e poder? 
O s a b e r , d u r a n t e séculos, d i g a m o s d e s d e Platão, a t r i b u i u - s e , 
c o m o e s t a t u t o , u m a essência f u n d a m e n t a l m e n t e d i f e r e n t e d a d o 
p o d e r . S e você s e t o r n a r r e i , ficará l o u c o , a p a i x o n a d o e c e g o . R e ­
n u n c i e a o p o d e r , r e n u n c i e à ambição , r e n u n c i e a v e n c e r , en tão , 
poderá c o n t e m p l a r a v e r d a d e . E x i s t i u u m f u n c i o n a m e n t o m u i t o 
a n t i g o d e t o d o o s i s t e m a d e s a b e r e m s u a oposição o u s u a i n d e ­
pendênc ia e m relação a o p o d e r . H o j e e m d i a , a o cont rár io , o q u e 
se q u e s t i o n a é a posição d o s i n t e l e c t u a i s e d o s sábios n a s o c i e d a d e , 
n o s s i s t e m a s d e p rodução , n o s s i s t e m a s polí t icos. O s a b e r a p a r e c e 
h g a d o , e m p r o f u n d i d a d e , a t o d a u m a série d e e f e i t o s d e p o d e r . A 
a r q u e o l o g i a é, e s s e n c i a l m e n t e , e s t a de tecção. 
O t i p o d e d i s c u r s o q u e f u n c i o n a n o O c i d e n t e , há a l g u n s sécu­
l o s , c o m o d i s c u r s o d e v e r d a d e , e q u e p a s s o u a g o r a p a r a a e s c a l a 
m u n d i a l , e s t e t i p o d e d i s c u r s o está H g a d o a t o d a u m a série d e 
94 
fenómenos d e p o d e r e d e relações d e p o d e r . A v e r d a d e t e m p o d e r . 
E l a p o s s u i e f e i t o s prát icos, e f e i t o s polí t icos. A exclusão d o l o u c o , 
p o r e x e m p l o , é u m d o s inumeráveis e f e i t o s d e p o d e r d o d i s c u r s o 
r a c i o n a l . C o m o o p e r am e s s e s e f e i t o s d e p o d e r ? C o m o e l e s s e t o r ­
n a m possíveis? E i s o q u e e u t e n t o c o m p r e e n d e r . ? . 
' Seria possível uma sociedade sem poder? Esta é uma questão que tem 
sentido ou não? 
E u c r e i o q u e não se d e v e c o l o c a r o p r o b l e m a e m t e r m o s : "é 
necessário o p o d e r o u n ã o ? " O p o d e r v a i tão l o n g e , p e n e t r a tão 
p r o f u n d a m e n t e , é v e i c u l a d o p o r u m a r e d e c a p i l a r tão c e r r a d a , q u e 
você V p e r g u n t a o n d e e l e não e x i s t i r i a . Po rém, s u a análise f o i 
m u i t o n e g l i g e n c i a d a p e l o s e s t u d o s his tór icos. A s e g u n d a m e t a d e 
d o século xrx d e s c o b r i u o s m e c a n i s m o s d e exploração, t a l v e z a 
t a r e f a d a s e g u n d a m e t a d e d o século X X s e j a d e s c o b r i r o s m e c a n i s ­
m o s d e p o d e r . P o i s , nós s o m o s t o d o s não s o m e n t e o a l v o d e u m 
p o d e r , m a s t a m b é m s e u t r a n s m i s s o r , o u o p o n t o d e o n d e e m a n a 
u m c e r t o p o d e r ! 
O q u e s e d e v e d e s c o b r i r e m nós não é o q u e está a l i e n a d o n e m 
o q u e está i n c o n s c i e n t e . São e s s a s p e q u e n a s válvulas, e s s e s p e q u e ­
n o s d i f u s o r e s , e s s a s minúscu las e n g r e n a g e n s , e s s a s microscópicas 
s i n a p s e s através d a s q u a i s o p o d e r p a s s a e s e a c h a r e c o n d u z i d o p o r 
e l e m e s m o . 
95 
• Nesta perspectiva, sobraria alguma coisa que escapasse ao poder? 
O q u e escapa a o p o d e r é o c o n t r a - p o d e r q u e , n o e n t a n t o , e n -
c o n t r a - s e , e l e também, p r e s o n o m e s m o j o g o . E i s p o r q u e é p r e ­
c i s o r e t o m a r o p r o b l e m a d a g u e r r a , d o a f r o n t a m e n t o . E p r e c i s o 
r e t o m a r as análises táticas e estratégicas n u m níiel e x t r a o r d i n a ­
r i a m e n t e b a i x o , ínfuTio, c o t i d i a n o . É p r e c i s o r e p e n s a r a b a t a l h a 
u n i v e r s a l , e s c a p a n d o das p e r s p e c t i v a s d o A p o c a l i p s e . C o m e f e i t o , 
v i v e u - s e , d e s d e o século X I X , u m a e c o n o m i a d e p e n s a m e n t o q u e 
e r a apocalíptica. H e g e l , M a r x o u N i e t z s c h e o u H e i d e g g e r , n u m 
o u t r o s e n t i d o , n o s p r o m e t e r a m o d i a s e g u i n t e , a a l v o r a d a , a a u r o ­
r a , o d i a q u e n a s c e , o e n t a r d e c e r , a n o i t e e t c . E s t a t e m p o r a l i d a d e , 
a o m e s m o t e m p o cíclica e binária, c o m a n d a v a n o s s o p e n s a m e n t o 
político e n o s d e i x a d e s a r m a d o s q u a n d o se t r a t a d e p e n s a r d e o u t r a 
m a n e i r a . 
É possível t e r u m p e n s a m e n t o político q u e não seja d a o r d e m 
d a descrição t r i s t e : é a s s i m , e você está v e n d o q u e não t e m graça! 
O p e s s i m i s m o d e d i r e i t a c o n s i s t e e m d i z e r : v e j a c o m o o s h o m e n s 
são f i l h o s - d a - p u t a . O p e s s i m i s m o d e e s q u e r d a d i z : v e j a c o m o o 
p o d e r é n o j e n t o ! P o d e m o s e s c a p a r d e s t e s p e s s i m i s m o s s e m c a i r n a 
p r o m e s s a revolucionária, n o anúncio d o e n t a r d e c e r o u d a manhã? 
E u c r e i o q u e é i s t o q u e está e m j o g o , a t u a l m e n t e . 
• Isto conduz à sua concepção de História. Sartre dizia: "Foucault não 
tem o sentido da História"... 
96 
E s t a é u m a f r a s e q u e m e e n c a n t a ! G o s t a r i a q u e e l a fosse c o l o c a d a 
c o m o epígrafe d e t u d o o q u e faço, p o i s a c r e d i t o q u e é p r o f u n ­
d a m e n t e v e r d a d e i r a . S e t e r o s e n t i d o d a História é l e r c o m u m a 
atenção r e s p e i t o s a as o b r a s d o s g r a n d e s h i s t o r i a d o r e s , duplicá-las 
n a a l a d i r e i t a c o m u m n a d a d e f e n o m e n o l o g i a e x i s t e n c i a l , e, n a 
e s q u e r d a , c o m u m a b a g a t e l a d e m a t e r i a l i s m o histórico, se t e r o 
s e n t i d o d a História é p e g a r a História p r o n t a , a c e i t a n a U n i v e r s i ­
d a d e , a c r e s c e n t a n d o a p e n a s q u e é u m a História b u r g u e s a , q u e não 
l e v a e m c o n t a a contribuição m a r x i s t a , n e s t e c a s o , é v e r d a d e q u e 
e u não t e n h o , a b s o l u t a m e n t e , o s e n t i d o d a História! S a r t r e t a l v e z 
t e n h a o s e n t i d o d a História, m a s e l e não a f a z . C o m o q u e e l e 
contíi[buiu p a r a a História? Z e r o ! 
A p e s a r ^ t u c f e , a c h o q u e e l e q u e r i a d i z e r o u t r a c o i s a . E l e q u e r i a 
d i z e r q u e e u não r e s p e i t o es ta significação d a História, a d m i t i ­
d a e m t o d a u m a f i l o s o f i a pós-hegeliana, n a q u a l estão i m p l i c a d o s 
p r o c e s s o s q u e d e v e m ser s e m p r e os m e s m o s , p o r e x e m p l o , a l u t a d e 
classes. . . Além d i s t o , t e r o s e n t i d o d a História, n e s t a f o r m a d e H i s ­
tória, é se r s e m p r e c a p a z d e o p e r a r u m a totalização, n o âmbito d e 
u m a s o c i e d a d e , o u d e u m a c u l t u r a , o u d e u m a consciência, p o u c o 
i m p o r t a . S o b t a l ótica, u m e s t u d o histórico é concluído q u a n d o 
e s t e p r o c e s s o v e m se i n s c r e v e r n u m a consciência q u e d e l e r e t i r a a 
significação q u e a d e t e r m i n a , n o m e s m o m o v i m e n t o . . . É v e r d a d e 
q u e , d e s t a História, não t e n h o , a b s o l u t a m e n t e , o s e n t i d o ! 
97 
• Como você definiria a História? • • , ' 
E u faço d e l a u m u s o r i g o r o s a m e n t e i n s t r u m e n t a l . E a p a r t i r d e 
u m a questão p r e c i s a q u e e n c o n t r o n a a t u a l i d a d e , q u e a p o s s i b i ­
l i d a d e d e u m a His tór ia s e d e s e n h a p a r a m i m . M a s , a ut i l ização 
académica d a His tór ia é, f u n d a m e n t a l m e n t e , c o n s e r v a d o r a ; r e e n ­
c o n t r a r o p a s s a d o d e a l g u m a c o i s a t e m , e s s e n c i a l m e n t e , a função 
d e p e r m i t i r s u a s o b r e v i d a . A história d o hospício, p o r e x e m p l o , 
t a l c o m o f o i f e i t a m u i t a s v e z e s - aliás, e u não s o u o p r i m e i r o - e r a 
e s s e n c i a l m e n t e d e s t i n a d a a m o s t r a r a l g o c o m o u m a n e c e s s i d a d e , 
u m a f a t a l i d a d e histórica. O q u e e u t e n t o f a z e r é, a o cont rá r io , 
m o s t r a r a i m p o s s i b i l i d a d e d a c o i s a , a formidável i m p o s s i b i l i d a d e 
s o b r e a q u a l r e p o u s a o f u n c i o n a m e n t o d o hospício, p o r e x e m p l o . 
A s histórias q u e e u faço não são e x p l i c a t i v a s , j a m a i s m o s t r a m a n e ­
c e s s i d a d e d e a l g u m a c o i s a , m a s , a n t e s , a série d e e n c a d e a m e n t o s , 
através d o s q u a i s o impossível f o i p r o d u z i d o e r e e n g e n d r a s e u p r ó ­
p r i o escândalo, s e u p rópr io p a r a d o x o , até a g o r a . T u d o a q u i l o q u e 
p o d e h a v e r d e i r r e g u l a r , d e c a s u a l , d e imprevisível , n u m p r o c e s s o 
h is tór ico m e i n t e r e s s a c o n s i d e r a v e l m e n t e . 
• Geralmente, os historiadores afastam aquilo que provem da exceção... 
P o r q u e u m a d a s t a r e f a s d a His tór ia , q u e t e m p o r função c o n s e r ­
v a r as c o i s a s , é j u s t a m e n t e a t e n u a r e s t a s espécies d e i r r e g u l a r i d a d e s 
o u d e a c a s o , e s s e s a c o n t e c i m e n t o s s a l i e n t e s c o m o o s d e n t e s d e u m 
s e r r o t e . A t e n u a - s e t u d o i s t o p a r a p e r m a n e c e r n u m a f o r m a d e n e -98 
c e s s i d a d e q u e , q u a n d o i n s c r i t a n u m vocabulá r io m a r x i s t a , p a s s a 
p o r p o l i t i c a m e n t e revolucionár ia , m a s q u e m e p a r e c e , a f i n a l d e 
c o n t a s , t e r e f e i t o s c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e s . . . . 
C o n s i d e r o q u e a m i n h a t a r e f a é d a r o m á x i m o d e o p o r t u n i d a d e s 
à m u l t i p l i c i d a d e , a o e n c o n t r o , a o impossível, a o imprevisível... E s t a 
m a n e i r a d e i n t e r r o g a r a História a p a r t i r d e s t e s j o g o s d e p o s s i b i l i ­
d a d e e d e i m p o s s i b i l i d a d e é, a m e u v e r , a m a i s f e c u n d a q u a n d o s e 
q u e r f a z e r u m a História política e u m a política histórica. N o l i m i t e , 
p o d e - s e p e n s a r q u e é o m a i s impossível, f i n a l m e n t e , q u e se t o r n o u 
o necessário. E p r e c i s o d a r o m á x i m o d e o p o r t u n i d a d e s a o impossí­
v e l e d i z e r - s e ; c o m o e s t a c o i s a impossível e f e t i v a m e n t e a c o n t e c e u ? 
• Mostrar -que o^ospício ou a prisão não têm nada de inelutável, é 
também combatê-los... 
E u a c r e d i t o , s e g u i n d o N i e t z s c h e , q u e a v e r d a d e d e v a s e r c o m ­
p r e e n d i d a e m t e r m o s d e g u e r r a . A v e r d a d e d a v e r d a d e é a g u e r r a . 
O c o n j u n t o d o s p r o c e s s o s através d o s q u a i s a v e r d a d e p r e v a l e c e são 
o s m e c a n i s m o s d e p o d e r q u e l h e a s s e g u r a m o p o d e r . 
• Trata-se de uma guerra permanente? 
C r e i o q u e s i m . 
• Nesta guerra, seus inimigos? 
N ã o são p e s s o a s , são c o m o l i n h a s q u e p o d e m s e r e n c o n t r a d a s 
9 9 
n o s d i s c u r s o s , e até, e v e n t u a l m e n t e , n o s m e u s , e d a s q u a i s e u q u e ­
r o m e a f a s t a r e m e d i f e r e n c i a r . E n t r e t a n t o , é m e s m o d e g u e r r a d e 
q u e s e t r a t a , p o i s m e u d i s c u r s o é i n s t r u m e n t a l , c o m o são i n s t r u ­
m e n t a i s u m exérci to o u , s i m p l e s m e n t e , u m a a r m a . O u , a i n d a , u m 
s a c o d e pólvora o u u m c o q u e t e l M o l o t o v . Estéa v ^ n d o : v o l t a m o s 
àquele história d e p i ro técnico. . . 
100