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VEYNE_Foucault

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F o u c a u l t 
Seu pensamento, sua pessoa 
Paul Veyne 
civil.i/.uÃo 
K i t \ S 11 I I I ! \ 
Foucault: 
seu pensamento, 
sua pessoa 
Paul Veyne 
Foucault: 
seu pensamento, sua pessoa 
Tradução de 
Marcelo Jacques de Morais 
CIVILIZAÇÃO B R A S I L E I R A 
Rio de Janeiro 
2011 
COPYRIGHT © Éditions Albin Michel , 2008 
TÍTULO ORIGINAL FRANCÊS ; 
Foucault: sa pensée, sa personne j 
REVISÃO DE TRADUÇÃO j 
Guilherme Castelo Branco j 
j 
PROJETO GRÁFICO DE MIOLO 
Evelyn Grumach e João de Souza Leite 
CIP-BRASIL. C A T A L O G A Ç Ã O - N A - F O N T E 
SINDICATO N A C I O N A L DOS EDITORES DE LIVROS, RJ 
Veyne, Paul, 1930-
V662f Foucault : seu pensamento , sua pessoa / Paul Veyne; [ t radução 
Marce lo Jacques de Morais] . - Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 2011 . 
Tradução de: Foucault: sa pensée, sa personne 
Inclui bibliografia 
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 2 0 0 - 0 9 1 4 - 7 
1. Foucault , Michel , 1926-1984 . 2. Filosofia francesa. I. Tí tu lo . 
C D D : 194 
10-4992 CDU: 1(44) 
"Cet ouvrage, publié dans le cadre de l'Année de la France au Brésil et du Programme d'Aide à la Publication 
Carlos Drummond de Andrade, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères. 
« França.Br 2 0 0 9 » l 'Année de la France au Brésil (21 avril - 15 novembre), est organisée: 
En France: par le Commissar ia t général français, le Minis tère des Affaires Étrangères et 
Européennes , le Ministère de la Cul ture et de la Communica t ion et Cul turesfrance. 
Au Brésil: par le Commissariat général brésilien, le Minis tère de la Cul ture et le Minis tère des 
Relations Éxtér ieures ." 
"Este livro, publ icado n o âmbi to do Ano da França n o Brasil e do p rog rama de apoio à publicação 
Carlos D r u m m o n d de Andrade , contou com o apoio d o Minis tér io f rancês das Relações Exteriores. 
« França.Br 2 0 0 9 » Ano da França n o Brasil (21 de abril a 15 de novembro) é organizada: 
N o Brasil: pelo Comissar iado geral brasileiro, pelo Minis tér io da Cul tura e pelo Minis tér io 
das Relações Exteriores. 
Na França: pelo Comissar iado geral f rancês , pe lo Minis tér io das Relações Exter iores e Europeias, 
pelo Minis tér io da Cul tura e da Comunicação e po r Cul turesf rance ." 
Iih"'" • tgülile • ÍTulerniie 
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, 
através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. 
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 
Direitos desta edição adquiridos pela 
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA 
Um selo da 
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA. 
Rua Argentina J71 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - TeL: 2585-2000 
Seja um leitor preferencial Record. 
Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. 
Atendimento e venda direta ao leitor 
mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002 
Impresso no Brasil 
2011 
E D I T O R A A F I L I A D A 
mailto:mdireto@record.com.br
Em grata lembrança de nossos mestres, 
Hans-Georg Pflaum e Louis Robert. 
Sumário 
INTRODUÇÃO 9 
CAPÍTULO I 
Tudo é singular na história universal: o "discurso" 13 
CAPÍTULO II 
Só há a priori histórico 41 
CAPÍTULO III 
O ceticismo de Foucault 67 
CAPÍTULO IV 
A Arqueologia 95 
CAPÍTULO V 
Universalismo, universais, epigênese: os primórdios 
do cristianismo 105 
CAPÍTULO VI 
A despeito de Heidegger, o homem é um animal 
inteligente 117 
CAPÍTULO VII 
Ciências físicas e humanas: o programa de Foucault 137 
CAPÍTULO VIII 
Uma história sociológica das verdades: 
saber, poder, dispositivo 163 
CAPÍTULO IX 
Foucault corrompe a juventude? Desespera 
Billancourt? 193 
CAPÍTULO X 
Foucault e a política 217 
CAPÍTULO XI 
Retrato do samurai 237 
Introdução 
Não, Foucault não foi um pensador estruturalista, não, ele tam-
bém não está ligado a certo "pensamento de 1968"; tampouco 
era relativista, historicista, não via ideologia em tudo. Coisa 
rara nesse século, ele foi, segundo seu próprio testemunho, um 
pensador cético,1 que acreditava apenas na verdade dos fatos, 
dos inúmeros fatos históricos que preenchem todas as páginas 
de seus livros, e jamais na verdade das ideias gerais. Pois não 
admitia nenhuma transcendência fundadora. Não foi por isso 
um niilista: constatava a existência da liberdade humana (a 
palavra pode ser encontrada em seus textos) e não pensava que, 
mesmo erigida como doutrina "desencantada", a perda de todo 
fundamento metafísico ou religioso tivesse um dia desen-
corajado essa liberdade de ter convicções, esperanças, indig-
nações, revoltas (ele próprio foi um exemplo disso, militou à 
sua maneira, que era a de um intelectual de um novo tipo; em 
política, foi um reformador)-, mas achava falso e inútil ponde-
rar sobre suas lutas, dissertar sobre suas indignações, generali-
zar. "Não utilizem o pensamento para dar a uma prática 
política um valor de verdade", escreveu.2 
Ele não foi o inimigo do homem e do sujeito humano que 
se pensou; estimava simplesmente que esse sujeito não podia 
9 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
fazer descer do céu uma verdade absoluta, tampouco agir 
soberanamente no céu das verdades; que só podia reagir con-
tra as verdades e realidades de seu tempo ou inovar em rela-
ção a elas. Como Montaigne e nas antípodas de Heidegger,3 
estimava que "não temos nenhuma comunicação com o Ser".4 
Contudo, seu ceticismo não o faz exclamar: "Ah! Tudo é 
duvidoso!" Se preferirmos, esse pretenso partidário de 1968 
foi um empirista e um filósofo do entendimento, por oposi-
ção a uma ambiciosa Razão. Ele chegou, sem fazer alarde, a 
uma concepção geral da condição humana, de sua liberdade 
que reage e de sua finitude; o foucaultismo é, na verdade, 
uma antropologia empírica que tem sua coerência, e cuja 
originalidade está em ser fundada na crítica histórica. 
Agora, passemos aos detalhes, mas não sem antes ter-
mos enunciado, visando à clareza, quais serão nossos dois 
princípios. Primeiramente, o desafio último da história hu-
mana, para além até mesmo do poder, da economia etc., é a 
verdade: que regime econômico pensaria em confessar-se 
falso? Esse problema da verdade na história não tem nada, 
absolutamente nada, que ver com a questão de pôr em dú-
vida a inocência de Dreyfus ou a realidade das câmaras de 
gás. Em segundo lugar, o conhecimento histórico, de seu 
lado, se quiser levar até o fim suas análises de uma determi-
nada época, deve alcançar, para além da sociedade ou da 
mentalidade, as verdades gerais nas quais os espíritos dessa 
época estavam, à própria revelia, encerrados, como peixes 
num aquário. 
Quanto ao cético, trata-se de um ser duplo. Enquanto 
pensa, mantém-se fora do aquário e observa os peixes que ali 
1 0 
I N T R O D U Ç Ã O 
ficam girando. Mas como é preciso viver, ele se vê novamente 
no aquário, peixe ele também, para decidir que candidato 
terá sua voz nas próximas eleições (sem por isso dar valor de 
verdade à sua decisão). O cético é a um só tempo um obser-
vador, fora do aquário que ele põe em dúvida, e um dos pei-
xes-vermelhos. Duplicação que nada tem de trágico. 
No presente caso, o observador que é o herói deste pe-
queno livro tinha por nome Michel Foucault, aquele perso-
nagem magro, elegante e incisivo que nada nem ninguém fazia 
recuar e cuja esgrima intelectual manejava a pena como se 
fosse um sabre. É por isso que eu poderia ter intitulado o li-
vro que se vai ler O samurai e o peixe-vermelho. 
Notas 
1. John Rajchman, Michel Foucault: la liberté de savoir [Michel 
Foucault: a liberdade de saber], tradução de Sylvie Durastanti, Pa-
ris, PUF, 1987, p. 8: "Foucault é o grande cético de nosso tempo. 
Ele duvida de nossos dogmatismos e antropologias filosóficas, é o 
pensador da dispersão e da singularidade." 
2. Dits et Ecrits [Ditos e escritos], Daniel Defert e François Ewald 
(orgs.), Paris, Gallimard, 1994, 4 vols., III, p. 135 (daqui por dian-
te DE).[Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psica-
nálise,Coleção Ditos e Escritos, I, Manoel de Barros da Motta 
(org.), tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Fo-
rense Universitária, 1999; Arqueologia das ciências e história dos 
sistemas de pensamento, Coleção Ditos e Escritos, II, Manoel de 
Barros da Motta (org.), tradução de Elisa Monteiro, Rio de Janei-
ro, Forense Universitária, 2000; Estética, literatura e pintura, mú-
sica e cinema, Coleção Ditos e Escritos, III, Manoel de Barros da 
Motta (org.), tradução de Inês Autran Dourado Barbosa, Rio de 
11 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
Janeiro, Forense Universitária, 2001; Estratégia, poder-saber, Co-
leção Ditos e Escritos, IV Manoel de Barros da Motta (org.), tra-
dução: Vera Lucia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Forense 
Universitária, 2003; Ética, sexualidade, política, Coleção Ditos e 
Escritos, V, Manoel de Barros da Motta (org.), tradução de Elisa 
Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa, Rio de Janeiro, Forense 
Universitária, 2004.] (N.T.) 
3. Foucault disse o quanto Heidegger havia contado para ele e evo-
cou suas leituras do filósofo em DE, IV, p. 703; entretanto, em 
minha humilde opinião, ele praticamente só leu, de Heidegger, Vont 
Wesen der Wahrheit [Sobre a essência da verdade] e o grande livro 
sobre Nietzsche, que lhe serviu na medida em que teve por efeito 
paradoxal torná-lo nietzschiano e não heideggeriano. 
4. Michel de Montaigne, "Apologie de Raymond Sebond" [Apologia 
de Raymond Sebond], Essais [Ensaios], II, 12. 
12 
CAPÍTULO I Tudo é singular na história 
universal: o "discurso" 
Quando foi publicada a História da loucura, alguns historia-
dores franceses dos mais bem colocados (entre os quais o 
autor destas linhas) não viram inicialmente o alcance do li-
vro; Foucault mostrava simplesmente, pensava eu, que a con-
cepção que se tivera da loucura ao longo dos séculos havia 
variado bastante, o que não nos ensinava nada: já sabíamos 
disso, as realidades humanas revelam uma contingência ra-
dical (trata-se do conhecido "arbitrário cultural") ou ao me-
nos são diversas e variáveis; não há nem invariantes históricos, 
nem essências, nem objetos naturais. Nossos ancestrais for-
maram estranhas ideias sobre a loucura, a sexualidade, a 
punição ou o poder. Mas tudo se passava como se admitísse-
mos silenciosamente que aqueles tempos de erros haviam 
passado, que fazíamos melhor que nossos avós e conhecía-
mos a verdade em torno da qual eles haviam girado. "Este 
texto grego fala do amor de acordo com as concepções da 
época", dizíamos; mas nossa ideia moderna do amor era 
melhor do que a deles? Não ousaríamos pretendê-lo se essa 
questão ociosa e inatual nos fosse colocada; mas será que 
pensamos nela seriamente, filosoficamente? Foucault pensou 
nela seriamente. 
1 5 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
Eu não havia compreendido que Foucault tomava parti-
do, sem o dizer, num grande debate moderno: a verdade é 
ou não é adequação ao seu objeto, assemelha-se ou não ao 
que enuncia, como supõe o senso comum? Na realidade, vê-
se mal por que viés poderíamos saber se ela é semelhante, já 
que não temos outra fonte de informação que permita con-
firmá-la, mas passemos. Para Foucault, assim como para 
Nietzsche, William James, Austin, Wittgenstein, Ian Hacking 
e muitos outros, cada um com seus próprios pontos de vista, 
o conhecimento não pode ser o espelho fiel da realidade; da 
mesma maneira que Richard Rorty,1 Foucault também não 
crê nesse espelho, nessa concepção "especular" do saber; para 
ele, o objeto, em sua materialidade, não pode ser separado 
das molduras formais por meio das quais o conhecemos e que 
ele, com uma palavra mal escolhida, chama de "discurso". 
Tudo está aí. 
Mal compreendida, essa concepção da verdade como 
não correspondência ao real fez com que se acreditasse2 que, 
para Foucault, os loucos não eram loucos, e que falar de 
loucura era ideologia; nem mesmo um Raymond Aron com-
preendia de outra maneira a História da loucura, e me dizia 
isso sem rodeios; a loucura é demasiadamente real, basta 
ver um louco para sabê-lo, protestava ele, e tinha razão: o 
próprio Foucault professava que a loucura, pelo fato de não 
ser o que seu discurso disse, diz e dirá dela, não podia ser 
reduzida a nada.3 
O que é então que Foucault entende por discurso? Algo 
muito simples: é a descrição mais precisa, mais concisa de uma 
1 6 
_ 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
Eu não havia compreendido que Foucault tomava parti-
do, sem o dizer, num grande debate moderno: a verdade é 
ou não é adequação ao seu objeto, assemelha-se ou não ao 
que enuncia, como supõe o senso comum? Na realidade, vê-
se mal por que viés poderíamos saber se ela é semelhante, já 
que não temos outra fonte de informação que permita con-
firmá-la, mas passemos. Para Foucault, assim como para 
Nietzsche, William James, Austin, Wittgenstein, Ian Hacking 
e muitos outros, cada um com seus próprios pontos de vista, 
o conhecimento não pode ser o espelho fiel da realidade; da 
mesma maneira que Richard Rorty,1 Foucault também não 
crê nesse espelho, nessa concepção "especular" do saber; para 
ele, o objeto, em sua materialidade, não pode ser separado 
das molduras formais por meio das quais o conhecemos e que 
ele, com uma palavra mal escolhida, chama de "discurso". 
Tudo está aí. 
Mal compreendida, essa concepção da verdade como 
não correspondência ao real fez com que se acreditasse2 que, 
para Foucault, os loucos não eram loucos, e que falar de 
loucura era ideologia; nem mesmo um Raymond Aron com-
preendia de outra maneira a História da loucura, e me dizia 
isso sem rodeios; a loucura é demasiadamente real, basta 
ver um louco para sabê-lo, protestava ele, e tinha razão: o 
próprio Foucault professava que a loucura, pelo fato de não 
ser o que seu discurso disse, diz e dirá dela, não podia ser 
reduzida a nada.3 
O que é então que Foucault entende por discurso? Algo 
muito simples: é a descrição mais precisa, mais concisa de uma 
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T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
formação histórica em sua nudez, é a atualização de sua úl-
tima diferença individual." Ir assim até a differentia ultima 
de uma singularidade datada exige um esforço intelectual de 
apercepção: é preciso despojar o acontecimento dos drapea-
dos demasiado amplos que o banalizam e racionalizam. As 
consequências disso vão longe, como veremos. 
Em seu primeiro livro, o ponto de partida heurístico de 
Foucault foi o esclarecimento do que chamamos de loucura 
(a desrazão, dizia o discurso de antigamente); os livros se-
guintes exemplificaram, a partir de outros temas, a filosofia 
cética que ele havia extraído daquela experiência minuciosa; 
mas ele mesmo jamais expôs integralmente sua doutrina, 
deixou para seus comentadores essa temível tarefa.5 Vou ten-
tar aqui compreender o pensamento daquele que foi um gran-
de amigo e que me parece ser um grande espírito. Citarei 
abundantemente seus Ditos e escritos, pois neles Foucault 
evoca os fundamentos de sua doutrina com mais frequência 
do que o faz em suas principais obras. 
Antes de corrermos esse risco, partamos de um exemplo. 
Suponhamos que nos aventuremos a escrever uma história 
do amor ou da sexualidade através dos tempos. Ficaríamos 
satisfeitos com nosso trabalho quando o tivéssemos levado 
ao ponto em que o leitor pudesse ler nele as variações que os 
pagãos ou os cristãos, em suas ideias e práticas, haviam mo-
dulado sobre o tema bem conhecido do sexo. Mas suponha-
mos que, uma vez nesse ponto, algo que acreditávamos dever 
levar mais longe ainda nos inquiete; sentimos, por exemplo, 
que esta ou aquela maneira de expressar-se de determinado 
1 9 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
formação histórica em sua nudez, é a atualização de sua úl-
tima diferença individual.4 Ir assim até a differentia ultima 
de uma singularidade datada exige um esforço intelectual deapercepção: é preciso despojar o acontecimento dos drapea-
dos demasiado amplos que o banalizam e racionalizam. As 
consequências disso vão longe, como veremos. 
Em seu primeiro livro, o ponto de partida heurístico de 
Foucault foi o esclarecimento do que chamamos de loucura 
(a desrazão, dizia o discurso de antigamente); os livros se-
guintes exemplificaram, a partir de outros temas, a filosofia 
cética que ele havia extraído daquela experiência minuciosa; 
mas ele mesmo jamais expôs integralmente sua doutrina, 
deixou para seus comentadores essa temível tarefa.5 Vou ten-
tar aqui compreender o pensamento daquele que foi um gran-
de amigo e que me parece ser um grande espírito. Citarei 
abundantemente seus Ditos e escritos, pois neles Foucault 
evoca os fundamentos de sua doutrina com mais frequência 
do que o faz em suas principais obras. 
Antes de corrermos esse risco, partamos de um exemplo. 
Suponhamos que nos aventuremos a escrever uma história 
do amor ou da sexualidade através dos tempos. Ficaríamos 
satisfeitos com nosso trabalho quando o tivéssemos levado 
ao ponto em que o leitor pudesse ler nele as variações que os 
pagãos ou os cristãos, em suas ideias e práticas, haviam mo-
dulado sobre o tema bem conhecido do sexo. Mas suponha-
mos que, uma vez nesse ponto, algo que acreditávamos dever 
levar mais longe ainda nos inquiete; sentimos, por exemplo, 
que esta ou aquela maneira de expressar-se de determinado 
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
autor grego ou medieval, tais palavras, tal inflexão de uma 
frase deixavam ao fim de nossa análise um resíduo, uma 
nuança que implicava algo que não havíamos visto. E que, 
em vez de desprezar esse resíduo como sendo apenas uma 
expressão inadequada, uma aproximação, uma parte morta 
do texto, façamos um esforço suplementar para explicitar o 
que ele parecia implicar e que sejamos bem-sucedidos. 
Então o engano nos salta aos olhos: uma vez que a varia-
ção se explicita até o fim, o tema eterno se apaga e, em seu 
lugar, nada mais há senão variações, diferentes umas das 
outras, que se sucederam e que chamaremos de "prazeres" 
da Antiguidade, de "carne" medieval e de "sexualidade" dos 
modernos. Trata-se de três ideias gerais que os homens for-
maram sucessivamente sobre o núcleo incontestavelmente 
real, provavelmente trans-histórico mas inacessível, que se 
encontra por detrás delas. Inacessível ou antes impossível de 
ser extraído: faríamos dele fatalmente um discurso. 
Suponhamos que, graças ao "programa" de uma ciência, 
aprendamos algo de verdadeiro, de científico, a respeito da 
homossexualidade (para Foucault, as ciências não eram uma 
palavra inútil); por exemplo (suposição gratuita de minha 
parte), que os gostos homossexuais são de origem genética. 
Que seja, e depois? And then what? O que é a homossexuali-
dade? O que se fará com essa porção, pequena ou grande, de 
verdade? Foucault desejava que se fizesse o discurso de um 
detalhe insignificante que diria respeito apenas à anatomia e 
à fisiologia, mas não à identidade dos indivíduos; em suma, 
um detalhe do qual só se falaria na cama ou com o médico: 
18 
FOUCAULT: S E U P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
autor grego ou medieval, tais palavras, tal inflexão de uma 
frase deixavam ao fim de nossa análise um resíduo, uma 
nuança que implicava algo que não havíamos visto. E que, 
em vez de desprezar esse resíduo como sendo apenas uma 
expressão inadequada, uma aproximação, uma parte morta 
do texto, façamos um esforço suplementar para explicitar o 
que ele parecia implicar e que sejamos bem-sucedidos. 
Então o engano nos salta aos olhos: uma vez que a varia-
ção se explicita até o fim, o tema eterno se apaga e, em seu 
lugar, nada mais há senão variações, diferentes umas das 
outras, que se sucederam e que chamaremos de "prazeres" 
da Antiguidade, de "carne" medieval e de "sexualidade" dos 
modernos. Trata-se de três ideias gerais que os homens for-
maram sucessivamente sobre o núcleo incontestavelmente 
real, provavelmente trans-histórico mas inacessível, que se 
encontra por detrás delas. Inacessível ou antes impossível de 
ser extraído: faríamos dele fatalmente um discurso. 
Suponhamos que, graças ao "programa" de uma ciência, 
aprendamos algo de verdadeiro, de científico, a respeito da 
homossexualidade (para Foucault, as ciências não eram uma 
palavra inútil); por exemplo (suposição gratuita de minha 
parte), que os gostos homossexuais são de origem genética. 
Que seja, e depois? And then whatf O que é a homossexuali-
dade? O que se fará com essa porção, pequena ou grande, de 
verdade? Foucault desejava que se fizesse o discurso de um 
detalhe insignificante que diria respeito apenas à anatomia e 
à fisiologia, mas não à identidade dos indivíduos; em suma, 
um detalhe do qual só se falaria na cama ou com o médico: 
20 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
Será que precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? 
[É ele quem sublinha, ironicamente.] Com uma constância 
que beira a teimosia, as sociedades do Ocidente moderno 
responderam afirmativamente. Fizeram circular obstinada-
mente essa questão do "verdadeiro sexo" numa ordem de 
coisas em que se podia pensar que apenas a realidade dos 
corpos e a intensidade dos prazeres contam.6 
O amor antigo foi um discurso dos "prazeres" afro-
disíacos, que nada tinham de suspeito, e de seu controle éti-
co e cívico; com os gestos amorosos dessa época tão tímida 
quanto sem pecado, em que, à noite, apenas um libertino fazia 
amor, não no escuro, mas à luz de um lampião, em que uma 
moral cívica distinguia menos entre os sexos do que entre os 
papéis ativo e passivo, em que o ideal de controle de si teria 
feito com que um Don Juan fosse considerado afeminado, 
em que a reprovação obsessiva da cunilíngua (que nem por 
isso se deixava de praticar) era a inversão de uma hierarquia 
dos sexos, em que o pederasta fazia sorrir por levar o gosto 
dos prazeres a ponto de ter um coração inconstante etc. 
Tomemos outro exemplo menos amável do que o amor: 
o direito penal através dos tempos. Não basta dizer que, sob 
o Antigo Regime, os castigos eram atrozes, o que mostra como 
eram rudes os costumes. Nos espantosos suplícios da época, 
a soberania real "abate-se com toda a sua força" sobre o sú-
dito rebelde, para fazer medir aos olhos de todos a enormi-
dade do crime e a desproporção de forças entre esse rebelde 
e seu rei, que o suplício vinga cerimonialmente. Com a era 
das Luzes, a punição, infligida à parte por um aparelho ad-
1 9 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
Será que precisamos verdadeiramente de u m verdadeiro sexo? 
[É ele quem sublinha, i ronicamente . ] C o m u m a constância 
que beira a te imosia, as sociedades d o Oc iden te m o d e r n o 
r e s p o n d e r a m af i rmat ivamente . Fizeram circular obst inada-
m e n t e essa ques tão d o "verdade i ro s exo" n u m a o r d e m de 
coisas em que se pod ia pensar que apenas a real idade dos 
corpos e a in tens idade dos prazeres contam. 6 
O amor antigo foi um discurso dos "prazeres" afro-
disíacos, que nada tinham de suspeito, e de seu controle éti-
co e cívico; com os gestos amorosos dessa época tão tímida 
quanto sem pecado, em que, à noite, apenas um libertino fazia 
amor, não no escuro, mas à luz de um lampião, em que uma 
moral cívica distinguia menos entre os sexos do que entre os 
papéis ativo e passivo, em que o ideal de controle de si teria 
feito com que um Don Juan fosse considerado afeminado, 
em que a reprovação obsessiva da cunilíngua (que nem por 
isso se deixava de praticar) era a inversão de uma hierarquia 
dos sexos, em que o pederasta fazia sorrir por levar o gosto 
dos prazeres a ponto de ter um coração inconstante etc. 
Tomemos outro exemplo menos amável do que o amor: 
o direito penal através dos tempos. Não basta dizer que, sob 
o Antigo Regime, os castigos eram atrozes, o que mostra comoeram rudes os costumes. Nos espantosos suplícios da época, 
a soberania real "abate-se com toda a sua força" sobre o sú-
dito rebelde, para fazer medir aos olhos de todos a enormi-
dade do crime e a desproporção de forças entre esse rebelde 
e seu rei, que o suplício vinga cerimonialmente. Com a era 
das Luzes, a punição, infligida à parte por um aparelho ad-
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
ministrativo especializado, torna-se preventiva e corretiva; a 
prisão será uma técnica coercitiva de adestramento, para ins-
taurar novos hábitos no cidadão que não respeitou certa lei.7 
Trata-se de um progresso humanitário, seguramente, mas é 
preciso compreender que, além disso, temos aí também algo 
diferente de uma melhora: é uma mudança completa. 
Quinze séculos antes, nas arenas do Império Romano, a 
morte era preparada para o condenado numa encenação 
mitológica; faziam com que ele se vestisse novamente como 
Hércules suicidando-se no fogo e queimavam-no vivo; cris-
tãs eram fantasiadas de Danaides e assim previamente viola-
das, ou então de Dirce e assim amarradas aos chifres de um 
touro. Essas encenações eram um sarcasmo, um ludibrium; 
o corpo cívico, com o qual o culpado havia acreditado poder 
rivalizar, desafia-o com insolência, ri em sua cara para mos-
trar-lhe que ele não é o mais forte. Cada um desses discursos 
sucessivos se vê implicado nas leis penais, nos gestos, nas ins-
tituições, nos poderes, nos costumes e até mesmo nos edifí-
cios que o põem em funcionamento e formam o que Foucault 
chama de dispositivo. 
Como se vê, partimos, sem ideia preconcebida, do de-
talhe dos "fatos concretos";8 descobrimos então variações 
tão originais que cada uma delas é um tema por si só. Falei 
de temas e de variações, mas Foucault disse melhor as coi-
sas; em 1979, escreveu em seu caderno de notas: "Não se 
trata de passar os universais pelo ralador da história, mas 
de fazer com que a história passe pelo fio de um pensamen-
to que recusa os universais."9 Ontologicamente falando, 
23 
TUDO É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
existem apenas variações, o tema trans-histórico não passa 
de um nome vazio de sentido: Foucault é nominalista como 
Max "Weber e como todo bom historiador. Heuristicamente, 
é melhor partir do detalhe das práticas, do que se fazia e se 
dizia, e realizar o esforço intelectual de explicitar-lhe o dis-
curso; é mais fecundo (porém mais difícil para o historia-
dor e também para seus leitores)10 do que partir de uma ideia 
geral e bem conhecida, pois corre-se então o risco de limi-
tar-se a essa ideia, sem perceber as diferenças últimas e de-
cisivas que a reduziriam a pó. 
Esqueçamos os suplícios e voltemo-nos mais para os pra-
zeres. Pudemos facilmente distinguir os prazeres pagãos da 
"carne" cristã (aquele discurso da carne pecadora e da natu-
reza a ser seguida por ser uma criação divina). Sucederam-se 
ainda outros discursos, o do "sexo" dos modernos,11 para o 
qual contribuíram a fisiologia, a medicina e a psiquiatria; e 
talvez o gender pós-moderno, com o feminismo e a permissi-
vidade, ou antes o direito subjetivo de ser si mesmo e de dizê-
lo (a psicanálise não sobreviveria, diria aqui Didier Éribon). 
Além disso, adivinha-se que cada "discurso" põe em jogo, em 
torno do amor, uma multidão de elementos a cercá-lo: cos-
tumes, palavras, saberes, normas, leis, instituições; assim, seria 
melhor falar de práticas discursivas ou ainda, com uma pala-
vra carregada de sentido a que voltaremos, de dispositivos.12 
Retomemos: em vez da banalidade que é o amor, haviam 
assim aparecido vários pequenos objetos "de época", estra-
nhos, nunca antes vistos. Acabávamos, com efeito, de escla-
recer a parte imersa do amor na época considerada. A parte 
visível, a única que emergia aos nossos olhos, tinha uma apa-
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
rência ao fim das contas familiar; em compensação, quando 
se conseguiu explicitar a parte não visível, não consciente, 
apareceu um objeto "lacunar e retalhado"13 cujos contornos 
disformes não correspondem a nada de sensato e não preen-
chem mais o amplo e nobre drapeado de que eram revesti-
dos; eles fazem antes pensar nas fronteiras históricas das 
nações, tracejadas em zigue-zague pelos acasos da história, e 
não em fronteiras naturais. 
É verdade que a ideia que temos da sexualidade ou da 
loucura (ideia de que o "discurso" inconsciente, implícito, cap-
ta com mais exatidão, e cuja singularidade e estranheza que 
não vemos ele diz mais precisamente) certamente se repor-
ta, com seu discurso, a uma "coisa em si" (direi, abusando 
do vocabulário kantiano), a uma realidade que ela pretende 
representar. A sexualidade, a loucura, isso existe realmente, 
não são invenções ideológicas. Por mais que se especule ao 
infinito, o homem continua a ser um animal sexuado, a fisi-
ologia e o instinto sexual o provam. Tudo o que se pensou 
sobre o amor ou a loucura ao longo dos séculos assinala a 
existência e como que o sítio de coisas em si. Contudo, não 
temos verdade adequada dessas coisas, pois só atingimos uma 
coisa em si por meio da ideia que dela formamos a cada épo-
ca (ideia de que o discurso é a formulação última, a differentia 
ultima). Só a atingimos, portanto, como "fenômeno", pois 
não podemos separar a coisa em si do "discurso" por meio 
do qual ela está cingida em nós. "Encalhada", gostava de dizer 
Foucault. Nada poderíamos conhecer na ausência dessa es-
pécie de pressupostos: se não tivesse havido discursos, o ob-
jeto X no qual se acreditou ver sucessivamente uma possessão 
25 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
divina, a loucura, a desrazão, a demência etc. não deixaria 
de existir, mas, em nosso espírito, nada haveria em seu sítio. 
Ora, todos esses fenômenos são singulares, todo fato his-
tórico ou sociológico é uma singularidade; Foucault pensa que 
não existem verdades gerais, trans-históricas, pois os fatos 
humanos, os atos ou as palavras, não provêm de uma nature-
za, de uma razão que seria sua origem, nem tampouco refle-
tem fielmente o objeto a que remetem. Para além da enganosa 
generalidade desses fatos ou de sua suposta funcionalidade, 
essa singularidade é a de seu estranho discurso. Ela procede 
a cada vez dos acasos do devir, da complicada concatenação 
das causalidades que se encontram. Pois a história da huma-
nidade não é subentendida pelo real, o racional, o funcional 
ou alguma dialética. É preciso "situar a singularidade dos 
acontecimentos, para além de toda finalidade monótona",14 
de todo funcionalismo. A sugestão tácita feita por Foucault 
aos sociólogos e aos historiadores (paralelamente a ele, al-
guns a colocavam por si mesmos em prática)15 é levar o mais 
longe possível a análise das formações históricas ou sociais, 
até desnudar sua singular estranheza. 
A CADA ÉPOCA SEU AQUÁRIO 
Essas singularidades foram evocadas por Foucault — cujo 
pensamento só se precisou ao longo dos anos e cujo vocabu-
lário técnico foi por muito tempo flutuante — por meio não 
apenas da palavra "discurso", mas também das expressões 
"práticas discursivas", "pressupostos","episteme", "dispositi-
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
vo"... Em vez de insistir sobre esses termos, valeria mais a 
pena ater-se ao principal: pensamos as coisas humanas atra-
vés das ideias gerais que acreditamos adequadas, ao passo que 
nada de humano é adequado, racional ou universal. O que 
surpreende e inquieta nosso bom senso. 
Assim, uma ilusão tranquilizadora nos faz perceber os 
discursos por meio das ideias gerais, de maneira que desco-
nhecemos sua diversidade e a singularidade de cada um de-
les. Pensamos normalmente por clichês, por generalidades, e 
é por isso que os discursos permanecem "inconscientes" para 
nós, escapam ao nosso olhar. As crianças chamam todos os 
homens de papai e todas as mulheres de mamãe, diz a primeira 
frase da Metafísicade Aristóteles. É preciso um trabalho his-
tórico que Foucault chama de arqueologia ou genealogia (não 
entrarei em detalhes) para trazer à luz o discurso. Ora, essa 
arqueologia é um balanço desmistificador. 
Pois, a cada vez que se atinge esta differentia ultima do 
fenômeno, que é o discurso que o descreve, descobre-se neces-
sariamente que o fenômeno é estranho, arbitrário, gratuito 
(nós o comparávamos anteriormente ao traçado das fronteiras 
históricas). Balanço: quando se vai, assim, ao fundo de certo 
número de fenômenos, constata-se a singularidade de cada 
um deles e o arbitrário de todos, e chega-se, por indução, a 
uma crítica filosófica do conhecimento, à constatação de que 
as coisas humanas não têm fundamento e a um ceticismo 
sobre as ideias gerais (mas apenas sobre elas: não sobre sin-
gularidades tais como a inocência de Dreyfus ou a data exa-
ta da batalha de Teutoburgo). 
27 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
É claro que os livros de história e de física, que não fa-
lam por meio de ideias gerais, estão cheios de verdade. Res-
ta que o homem, o sujeito de que falam os filósofos, não é 
sujeito soberano: "Cada um só pode pensar como se pensa 
em seu tempo", escreve um colega de Foucault na École 
normale16 e na preparação para o concurso de filosofia, Jean 
d'Ormesson, que está, quanto a esse aspecto, de pleno acor-
do com nosso autor; "Aristóteles, Santo Agostinho e Bossuet 
não são capazes de elevar-se à condenação da escravidão; 
alguns séculos mais tarde, ela aparece como uma evidência". 
Para parafrasear Marx, a humanidade coloca problemas para 
si mesma no momento em que os resolve. Pois quando desa-
bam a escravidão e todo o dispositivo legal e mental que a 
sustentava, desaba também sua "verdade". 
A cada época, os contemporâneos estão, portanto, tão 
encerrados em discursos como em aquários falsamente trans-
parentes, e ignoram que aquários são esses e até mesmo o fato 
de que há um. As falsas generalidades e os discursos variam 
ao longo do tempo; mas a cada época eles passam por ver-
dadeiros. De modo que a verdade se reduz a um dizer verda-
deiro, a falar de maneira conforme ao que se admite ser 
verdadeiro e que fará sorrir um século mais tarde. 
A originalidade da busca foucaultiana está em trabalhar a 
verdade no tempo. Para começar, podemos ilustrar isso de 
maneira completamente ingênua: por trás da obra de Foucault 
— como por trás da de Heidegger — esconde-se um não dito 
truístico e esmagador: o passado antigo e recente da huma-
nidade não passa de um vasto cemitério de grandes verdades 
mortas. Isso se tornou uma evidência há mais de um século 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
ou mais de um milênio. Durante a mesma longa duração, a 
grande filosofia pensou, contudo, em muitas outras coisas que 
não nessa verdade primeira; cada pensador, Hegel, Comte, 
Husserl, esperava ter vindo encerrar pessoalmente a era das 
errâncias. Foucault, em compensação, atacou esse problema 
do cemitério e o fez sob um ângulo de busca pessoal e ines-
perado: a investigação profunda do "discurso", a explicitação 
das derradeiras diferenças entre formações históricas e, por 
esse viés, o fim das últimas ideias gerais. 
Para dizê-lo de outro modo, a maioria dos filósofos parte 
da relação do filósofo, ou dos homens, com o Ser, com o 
mundo, com Deus. Foucault, por sua vez, parte do que os 
diferentes homens fazem como se fosse evidente e dizem to-
mando-o por verdadeiro; ou antes, como a imensa maioria 
dos homens morreu, ele parte de tudo o que eles puderam 
fazer e dizer em diversas épocas. Em suma, ele parte da his-
tória, da qual colhe amostras (a loucura, a punição, o sexo...) 
para explicitar-lhes o discurso, inferindo uma antropologia 
empírica. 
Explicitar um discurso, uma prática discursiva, consisti-
rá em interpretar o que as pessoas faziam ou diziam, em com-
preender o que supõem seus gestos, suas palavras, suas 
instituições, coisa que fazíamos a cada minuto: nós nos com-
preendemos entre nós. O instrumento de Foucault será, por-
tanto, uma prática cotidiana, a hermenêutica, a elucidação 
do sentido;17 essa prática cotidiana escapa ao ceticismo, em 
cuja alçada acabam caindo as ideias gerais. Sua hermenêutica, 
que compreende o sentido dos atos e das palavras de outrem, 
29 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
capta esse sentido com a maior precisão possível, longe de 
reencontrar o eterno Eros no amor antigo ou de contaminar 
esse Eros com psicanálise ou uma antropologia filosófica. 
Compreender o que diz ou faz outrem é um ofício de ator 
que "se põe na pele" de seu personagem para compreendê-
lo; se esse ator é um historiador, ele precisa, além disso, fa-
zer-se escritor de teatro para compor o texto de seu papel e 
encontrar palavras (conceitos) para dizê-lo. 
Acrescentemos rapidamente que essa hermenêutica, que 
só faz cercar a positividade de dados empíricos, estava nas 
antípodas da virada linguística (linguistic turn) dos anos 1960, 
à qual ocorria fazer com que se desvanecessem em interpre-
tações ao infinito ("o sentido de um texto muda com o tem-
po e com o intérprete") as sólidas positividades que eram caras 
a Foucault.18 Li não sei onde uma vituperação contra certa 
"corrente pós-moderna, amplamente proveniente dos discí-
pulos de Foucault, que acaba por relativizar tudo, por afir-
mar que tudo é questão de interpretação". No que diz respeito 
aos discípulos, não sei, mas no que se refere ao próprio 
Foucault, nada é mais falso: persuadido de que um texto não 
é sua própria interpretação, Foucault tem por método fun-
damental compreender da maneira mais precisa possível o 
que o autor quis dizer em seu tempo. 
Encontra-se em sua obra, com efeito, uma espécie de posi-
tivismo hermenêutico: nada podemos compreender de seguro 
sobre o eu, o mundo e o Bem, mas nos compreendemos entre 
nós, vivos ou mortos. Se nos compreendemos bem ou mal é 
outra questão (uma boa compreensão supõe que estejamos 
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
inscritos numa tradição ou que estejamos impregnados de uma 
tradição estrangeira; não podemos nos improvisar helenistas), 
mas, enfim, podemos terminar nos compreendendo. 
Trata-se de uma hermenêutica, em razão do "princípio de 
irredutibilidade do pensamento" (não nos esqueçamos aqui 
de que a consciência não está na raiz do pensamento); "não 
há experiência que não seja uma maneira de pensar". Se os 
fatos históricos "podem muito bem não ser independentes 
das determinações concretas da história social", o homem, 
no entanto, só pode experimentar estas últimas "através do 
pensamento". O interesse de classe ou ainda as relações de 
produção econômicas podem ser "estruturas universais"; as 
forças de produção, a máquina a vapor podem ser "determi-
nações concretas da existência social":19 mas não deixam por 
isso de passar pelo pensamento para serem vividas, para fa-
zer acontecimento. O que justifica um pouco o termo discur-
so, uma vez que o pensamento acaba sendo mais próximo da 
palavra do que de uma locomotiva. 
O método dessa hermenêutica é o seguinte: em vez de 
partir dos universais como grade de inteligibilidade das "prá-
ticas concretas", que são pensadas e compreendidas, mesmo 
que praticadas em silêncio, parte-se dessas práticas e do dis-
curso singular e estranho que elas supõem "para passar de 
algum modo os universais pela grade dessas condutas"; des-
cobre-se então a verdade verdadeira do passado e a "inexis-
tência dos universais".20 Para citar as próprias palavras de 
Foucault: "parto da decisão, ao mesmo tempo teórica e 
metodológica, que consiste em dizer: suponhamos que os 
31 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
universais não existem"; por exemplo, suponhamos que a 
loucura não existe, ou, antes, que ela não passa de um falso 
conceito (mesmo que uma realidade lhe corresponda)."A 
partir disso, qual é, então, a história que se pode fazer com 
esses diferentes acontecimentos, com essas diferentes práti-
cas que, aparentemente, se ordenam a este algo suposto que 
é a loucura?"21 E que fazem com que ela acabe existindo como 
loucura verdadeira aos nossos olhos, em vez de permanecer 
uma coisa perfeitamente real, mas desconhecida, desperce-
bida, indeterminada e sem nome. Ou desconhecida ou in-
compreendida: a loucura e todas as coisas humanas não têm 
outra escolha, a não ser a de serem singularidades. 
Singularidade, dizíamos: os discursos dos fenômenos são 
singulares nos dois sentidos da palavra; eles são estranhos e 
não cabem numa generalidade, cada um deles é o único de 
sua espécie. Portanto, para esclarecê-los, vamos partir dos 
detalhes e regredir22 a partir das práticas concretas do poder, 
de seus procedimentos, de seus instrumentos etc. Pode-se 
então explicitar um discurso — um conjunto de práticas 
reais — que toma sua forma acabada no século XVIII, que 
Foucault descreve sob o nome de governamentalidade e que 
difere do discurso medieval do Estado de justiça assim como 
do Estado administrativo do Renascimento. Temos outra re-
gressão quando, em Vigiar e punir, ele farejava menos uma 
continuidade penal que uma diferença tácita entre os casti-
gos do Antigo Regime, em que o soberano "se abatia com toda 
a sua força" sobre o supliciado, e nosso sistema carcerário. 
Usando ou abusando de uma analogia freudiana, Foucault 
diz ter "tentado extrair um domínio autônomo que seria o 
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
do inconsciente do saber", "encontrar na história da ciência, 
dos conhecimentos e do saber humano algo que seria como 
seu inconsciente".23 "A consciência nunca está presente numa 
tal descrição"24 dos discursos; os discursos "permaneceram 
invisíveis", eles são "o inconsciente não do sujeito falante, mas 
da coisa dita" (sou eu quem grifo), "um inconsciente positivo 
do saber, um nível que escapava à consciência" dos agentes, 
que eles utilizavam "sem que tivessem consciência".25 
A palavra inconsciente não passa, evidentemente, de uma 
metonímia: o inconsciente, freudiano ou outro, só existe em 
nossas mentes; em vez de "inconsciente", leia-se "implícito". 
Para dar o exemplo mais raso, Luís XIV era glorificado por 
ser um grande conquistador. O que supõe, o que implica que, 
em sua época, o prestígio e a potência de um soberano con-
tavam e eram medidos conforme a extensão de suas posses, 
e que fazia, portanto, parte da realeza que estas fossem es-
tendidas por meio de guerras. Após a queda de Napoleão, 
Benjamin Constant mostrará que esse "espírito de conquis-
ta" é coisa ultrapassada. 
O discurso, bastante mal nomeado, essa espécie de incons-
ciente, é justamente o que não é dito e permanece implícito. 
Acrescentemos com Roger-Pol Droit que os limites entre o 
consciente e o inconsciente "não preexistem à partição que 
os define",26 uma vez que não são mais do que o traçado de 
uma fronteira histórica: eles datam desta última, são contem-
porâneos do acontecimento singular que estão apenas cer-
cando, eles não saem do inconsciente por serem estrutura 
permanente da psique. 
33 
TUDO É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
O discurso é essa parte invisível, esse pensamento impen-
sado em que se singulariza cada acontecimento da história. 
Algumas linhas farão sentir em que consiste o esforço de 
apercepção dos discursos: 
M e s m o que n ã o esteja ocul to , o enunc iado n ã o fica visível; 
ele n ã o se oferece à pe rcepção c o m o o p o r t a d o r mani fes to 
de seus limites e de suas características. E preciso u m a certa 
conversão d o olhar e da a t i tude para p o d e r reconhecê- lo e 
considerá- lo em si mesmo . Talvez ele seja este demasiada-
men te conhec ido que incessantemente se fur ta , talvez ele seja 
[uma] t ransparênc ia demas iadamente familiar.2 7 
Sim, é preciso um olhar mais penetrante para perceber 
isso, e é por essa razão que o progresso metodológico em que 
consiste a escrita histórica de Foucault é igualmente um avan-
ço da arte que é também a história; um progresso em acui-
dade, em precisão, que faz pensar no progresso do disegno 
na arte florentina do Renascimento. 
Uma arte de captar a individualidade apagando os clichês. 
Os caminhos da aventura humana nos parecem balizados por 
grandes palavras que são grandes clichês: universalismo, in-
dividualismo,28 identidade,29 desencantamento do mundo,30 
racionalização, monoteísmo... Sob cada uma dessas palavras, 
podem-se colocar coisas, pois não existe racionalização em 
geral;31 a Política tirada da Escritura santa de Bossuet é à sua 
maneira tão racional quanto o Contrato social de Rousseau; 
o racismo hitleriano formou-se com base na racionalidade do 
darwinismo social. No trabalho histórico, é preciso exercer 
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
"um ceticismo sistemático em relação a todos os universais 
antropológicos" e admitir a existência de um invariante ape-
nas como último recurso, após ter tentado tudo para resolvê-
lo; "não se deve admitir nada dessa ordem que não seja 
rigorosamente indispensável".32 
Diga-se de passagem, os discursos, estas diferenças últi-
mas de cada formação histórica, de cada disciplina, de cada 
prática, os discursos, eu dizia, nada têm a ver com um estilo 
de pensamento comum a toda uma época, com um Zeitgeist; 
Foucault, que desdenhava da "história totalizadora" e do 
"espírito de um século",33 nada tem a ver com Spengler. 
"Talvez, dirão, mas o ceticismo foucaultiano não passa de 
uma ideologia idealista que apaga as realidades. Os interes-
ses de classe e sua ferocidade existem de fato!" Peço-lhes 
perdão! Mas não se esqueçam que esses interesses eram em 
cada época uma singularidade; os da classe governante ro-
mana, ou classe senatorial, eram mais políticos do que eco-
nômicos e não eram os da classe dominante do capitalismo 
moderno. Os interesses de classe têm, como todas as coisas, 
sua historicidade; seu "discurso". 
Esses interesses "materiais" passam irredutivelmente pelo 
pensamento, como vimos, e pela liberdade, como veremos, 
de modo que há jogo, flutuação: uma classe capitalista de-
fende seus interesses de maneira mais ou menos feroz ou 
suave, e encontra-se com frequência dividida em relação à 
política a ser seguida de acordo com seus próprios interes-
ses;34 pois ela é composta de homens de carne e osso, e não 
de marionetes a serviço de um esquema dogmático. O que 
não quer dizer que esses interesses sejam "desprovidos de toda 
35 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
forma universal", como a própria noção de interesses de clas-
se, "mas que a colocação em jogo dessas formas universais é 
ela própria histórica [...]. Isso é o que poderíamos chamar de 
princípio de singularidade",35 que faz com que a história seja 
uma sucessão de rupturas. 
A tarefa de um historiador foucaultiano é perceber essas 
rupturas sob as continuidades enganosas; se ele estuda a his-
tória da democracia, presumirá, como fez Jean-Pierre Vernant, 
que a democracia ateniense só tem o nome em comum com 
a democracia moderna. A hermenêutica dos discursos leva, 
assim, ao termo um dos caminhos tomados pela pesquisa 
histórica há dois bons séculos: não apagar a cor local, ou 
melhor, temporal (seria preciso remontar a Chateaubriand e 
à surpresa que causaram os Relatos dos tempos merovíngios, 
de Augustin Thierry, nos quais Clóvis voltava a ser Chlo-
dovig). Foucault dá sequência ao que foi desde o romantismo36 
o grande esforço dos historiadores: explicitar a originalidade 
de uma formação histórica, sem buscar nela o natural e o 
sensato, de acordo com nossa demasiado humana inclinação 
para a banalização ao preço do anacronismo. 
Mais ainda, o filósofo Foucault não faz outra coisa senão 
praticar o método de todo historiador, que consiste em abor-
dar cada questãohistórica em si mesma, e jamais como um 
caso particular de um problema geral e muito menos de uma 
questão filosófica. De maneira que os livros de Foucault cons-
tituem uma crítica que visa menos ao método dos historia-
dores que à própria filosofia, cujos grandes problemas se 
dissolvem segundo ele em questões de história, pois "todos 
os conceitos devieram".37 
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
Notas 
1. Richard Rorty, Philosophy and tbe Mirror of Nature [Filosofia e o 
espelho da natureza], Princeton, 1979; L'Homme spéculaire [O ho-
mem especular], tradução de Thierry Marchaisse, Paris, Seuil, 1990. 
2. DE, IV, p. 726: "Fizeram-me dizer que a loucura não existia, ao 
passo que o problema era absolutamente inverso." Ver também 
Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France 1978-
1979 [Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France 1978-
1979], François Ewald, Alessandro Fontana, Michel Senellart 
(orgs.), Coll. Hautes Études, Paris, Seuil, 2004, p. 5. 
3. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France 1977-
1978 [Segurança, território, população. Curso no Collège de France 
1977-1978], François Ewald, Alessandro Fontana, Michel Senellart 
(orgs.), Coll. Hautes Études, Paris, Seuil, 2004, p. 122: "Pode-se 
certamente dizer que a loucura não existe, mas isso não quer dizer 
que ela não seja nada." 
4. Eis aqui, de imediato, um exemplo. Em Homero, como ao longo 
de toda a Antiguidade, escreveu o sr. I. Finley, "as mulheres eram 
consideradas naturalmente inferiores e seu papel se limitava 
consequentemente à procriação e à execução das tarefas domésti-
cas" (Le Monde d'Ulysse [O mundo de Ulisses], tradução de Claude 
Vernant-Blanc e Monique Alexandre, Paris, Maspero, 1983, p. 159). 
Hélène Monsacré, recortando as coisas de maneira mais fina, es-
creveu: "É na impossibilidade de integrar verdadeiramente uma 
porção masculina que reside a alteridade profunda da mulher" (Les 
Larmes d'Achille: le héros, la femme et la souffrance dans la poésie 
d'Homère [As lágrimas de Aquiles: o herói, a mulher e o sofrimento 
na poesia de Homero], Paris, Albin Michel, 1984, p. 200). 
5. Como constata Daniel Defert, Foucault raramente explicitou os 
grandes temas de sua filosofia. Cf. "La violence entre pouvoirs et 
interprétations chez Foucault" ["A violência entre poderes e inter-
pretações em Foucault"], em De la violence, Séminaire de François 
Héritier [Da violência, seminário de François Héritier], Paris, Odile 
Jacob, 2005, vol. I, p. 105. 
6. DE, IV, p. 116. 
7. Simplifico a análise mais rebuscada feita por Foucault em Surveiller 
et punir: naissance de la prison, Paris, Gallimard, pp. 133-134 [Vigiar 
37 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
e punir: nascimento da prisão, tradução de Lígia Vassalo. Petrópolis, 
Vozes, 1987]. 
8. DE, IV, p. 635: "Dirigir-se como domínio de análise às práticas, 
abordar o estudo pelo viés do que se fazia.'" 
9. DE, I, p. 56. 
10. Os livros de Foucault, que são incontestavelmente difíceis, descon-
certaram historiadores de formação mais tradicional, que, no en-
tan to , se arr iscaram a crit icá-los (penso, por exemplo, em 
gargalhadas dirigidas bastante equivocadamente contra sua inter-
pretação da Chave dos sonhos de Artemidoro de Daldis). 
11. Cf. DE, III, pp. 311-312; Arnold I. Davidson, The Emergence of 
Sexuality [A emergência da sexualidade], Harvard, 2001; Émergence 
de la sexualité: épistémologie historique et formation des concepts 
[A emergência da sexualidade: epistemologia histórica e formação 
dos conceitos], tradução de Pierre-Emmanuel Dauzat, Paris, Albin 
Michel, 2005, pp. 79-80. 
12. A palavra "dispositivo" permite que Foucault não empregue "es-
trutura", evitando qualquer confusão com essa ideia então na moda 
e bastante confusa. 
13. L'Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 157 [A arqueo-
logia do saber, tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janei-
ro, Forense Universitária, 1987]. 
14. DE, II, p. 136. 
15. E, por exemplo, o caso, a meu ver, de L. Boltanski e L. Thévenot, 
em De la justification [Da justificação] (Paris, Gallimard, 1991), 
ou de E Rosanvallon. Este, para caracterizar seu método, notava 
em 2001 que apreendia as "ideias" cuja história escrevia como "re-
presentações ativas que limitam o campo dos possíveis pelo do 
pensável", a fim de "superar a cisão comumente admitida entre a 
ordem dos fatos e a das representações"; ele acrescentava que a 
história do político "não pode se restringir à análise e ao comentá-
rio das grandes obras": encontraremos a mesma convicção em 
Foucault. Em Généalogie des Barbares [Genealogia dos bárbaros] 
(Paris, Odile Jacob, 2007), Roger-Pol Droit mostra os deslocamen-
tos constantes da "fronteira histórica" constituída pelo discurso 
que separa os bárbaros dos que não o são. E claro que não preten-
do que esses autores se valham todos de Foucault, mas a precisão 
sutil de suas análises, que não recorre a universais e age profunda-
mente sobre a realidade, faz pensar na maneira de Foucault. 
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
16. École normale supérieure: estabelecimento de ensino superior fran-
cês em que se formam professores para o ensino secundário e supe-
rior e pesquisadores. (N.T.) 
17. A relação de um espírito humano com outro, vivo ou morto, 
feita de iniciativa e de recepção (quer esse espírito se traduza 
por meio de palavras ou de atos ou mesmo de um "espírito ob-
jetivo", costume, instituição, doutrina, prática com a "significa-
ção" dessas práticas), essa relação de compreensão, correta ou 
errônea, é um fato primeiro da condição humana, irredutível a 
algo anterior. E esse fato que torna possível o conhecimento 
histórico. Em compensação, só se "compreendem" os fenôme-
nos naturais (ou se crê compreendê-los, bem entendido), sobre-
tudo quando são extraordinários, se se acredita que são a obra 
de Espíritos ou que são Espíritos. 
18. Sim, cada um pode interpretar um texto de acordo com seu capri-
cho pessoal, mas resta o próprio texto, que não é sua própria inter-
pretação. Contra o linguistic turn e Gadamer, ver R. Chartier, Au 
bord de la falaise, l'histoire entre certitude et inquiétude [Na borda 
da falésia, a história entre certeza e inquietude], Paris, Albin Michel, 
1998, pp. 87-125; E. Koselleck, Zeitschichten, StudienzurHistorik. 
Frankfurt, Suhrkamp, 2000, pp. 99-118; E. Flaig. "Kinderkran-
kheiten der neuen Kulturgeschichte", Rechthistorisches Journal, 18, 
1999, pp. 458-476. 
19. DE, IV, p. 580. Cf. I, p. 571: "Marx não interpreta a história das 
relações de produção, ele interpreta uma relação que já se dá como 
uma interpretação, uma vez que se apresenta como natureza." 
20. Naissance de la biopolitique, op. cit., p. 105. 
21. Ibidem, p. 5, com a nota 4, p. 26. Aqui também Foucault retifica 
provavelmente o que fiz com que ele dissesse em 1978. Cf. tam-
bém DE, IV, p. 634: "recusar o universal da loucura, da delinquência 
ou da sexualidade não quer dizer que aquilo a que se referem essas 
noções não seja nada" ou que sejam apenas ideologias interessadas 
e enganosas. 
22. Naissance de la biopolitique, op. cit., pp. 4-5. 
23. DE, I, p. 665. 
24. Ibidem, pp. 707-708. 
25. DE, II, pp. 9-10. 
39 
TUDO É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
26. R.-P. Droit. Michel Foucault, entretiens [Michel Foucault, conver-
sas], Paris, Odile Jacob, 2004, p. 44. 
27. L'Archéologie du savoir, op. cit., p. 145. 
28. Histoire de la sexualité III: le souci de soi, Paris, Gallimard, 1984, 
p. 56, [História da sexualidade III: o cuidado de si, tradução de 
Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon 
Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1985]. Além disso, individua-
lismo quer dizer tudo: uma atenção dada por um indivíduo à sua 
própria pessoa, como se exemplificasse a condição humana? Uma 
prioridade ontológica ou ainda um primado ético do indivíduo 
sobre a coletividadeou sobre o Estado? Um não conformismo, 
um desprezo pelas normas comuns? Realizar suas virtualidades 
pessoais a título de obra-prima entre os humanos, ainda que ao 
preço do amoralismo? A vontade de se realizar mais do que de 
permanecer em seu lugar? Sentir-se diferente dos outros e des-
prezar os modelos sociais? Querer dispor de uma zona de liber-
dades privadas contra os poderes (como no século XVIII, de acordo 
com Charles Taylor)? Afirmar publicamente a escolha que faz de 
si mesmo? Ter uma relação pessoal, não mediada pelos poderes 
ou por um grupo, com o absoluto religioso (como no tempo da 
Reforma, diz também Charles Taylor) ou ético? Enriquecer a per-
sonalidade por meio da multiplicação das experiências e de sua 
transformação em consciência? 
29. A vaga palavra identidade recobre realidades múltiplas. Ser muçul-
mano é pertencer a uma comunidade de crentes, a uma causa san-
ta, que é multiétnica e politicamente dividida, frequentemente 
conflituosa; entretanto, contra os Infiéis, os Crentes de toda nacio-
nalidade formam ou deveriam formar um grupo solidário cujos 
membros devem ou deveriam prestar-se mutuamente auxílio. O 
sentimento de identidade é múltiplo; um indivíduo pode declarar-
se muçulmano a título pessoal, ou membro da comunidade dos 
Crentes, ou árabe (ou então mouro, iraniano etc.), de nacionalida-
de marroquina, ou ainda fiel súdito do sultão do Marrocos. O sen-
t imento de identidade se expressa, por tanto , em termos ora 
religiosos ora nacionais. O que leva ao risco de fazer crer que o islã 
serve como "cobertura ideológica" para a política, e não se deixará 
de acusar as religiões de estarem com demasiada frequência na ori-
gem de fanatismos guerreiros. Na realidade, quando um conflito 
39 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
se encarna numa facção religiosa ou herética, a religião não é nem 
sua origem nem sua cobertura ideológica, mas sua expressão sole-
ne; assim como no Ocidente ele se expressará por meio de uma 
teoria político-social. Cf. Bernard Lewis, Les Arabes dans l'histoire 
[Os arabes na história], tradução de Denis-Armand Canal, Paris, 
Flammarion, 1996, pp. 108, 125-126, 212. Há uma era das reli-
giões e uma era das doutrinas; Nietzsche dizia que as guerras por 
vir seriam filosóficas. 
30. O Entzauberung de Max Weber não é o "desencantamento" de um 
mundo sem Deus nem deuses, mas a "desmagificação" da esfera 
técnica. A magia busca evitar (quiméricos) perigos ou legitimar uma 
decisão (os ordálios, o Julgamento de Deus); ela se opõe à 
racionalidade técnica que busca resultados práticos, e também a 
uma certa racionalidade jurídica. Weber fala disso a propósito da 
China, onde a importância considerável da magia, da geomancia, 
da astrologia etc. se opôs ao pensamento tecnológico. Não se trata 
de modo algum de religiosidade, de saber se um mundo sem deuses 
é triste e desencantado e se o século XXI será religioso. 
31. Contra a ideia demasiado geral de racionalização, ver DE, IV, p. 
26: "Não creio que se possa falar de racionalização em si, sem, de 
um lado, supor um valor razão absoluta e sem se expor, de outro 
lado, a pôr qualquer coisa na rubrica das racionalizações." 
32. DE, IV, p. 634. 
33. L'Archéologie du savoir, pp. 193-194, 207, 261; DE, I, p. 676. 
34. Jovens comunistas, e tendo ainda muito a descobrir, ficamos sur-
presos, em 1954, ao saber que o grande patronato estava dividido 
quanto ao projeto de uma Comunidade Europeia de Defesa (a CED). 
35. DE, IV, p. 580. 
36. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines, 
Paris, Gallimard, 1966, pp. 381-382 [As palavras e as coisas. 
Uma arqueologia das ciências humanas, tradução de Salma Tannus 
Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 1985]: o que singulariza a 
história tal como escrita pelo século XIX não é o fato de buscar 
as leis do devir, mas, ao contrár io, a "preocupação de tudo 
historicizar". 
37. Friedrich Nietzsche, Œuvres philosophiques complètes [Obras filo-
sóficas completas], vol. XI, Fragments posthumes [Fragmentos pós-
tumos], vol. 2, tradução de Michel Haar e Marc Buhot de Launay, 
41 
T U D O É S I N G U L A R NA H I S T Ó R I A U N I V E R S A L : O " D I S C U R S O " 
Paris, Gallimard, 1982, pp. 345-346, n. 38 [14] = Mp 16, 1 a: 
"Não acreditamos mais em conceitos eternos, em formas eternas, e 
a filosofia é para nós apenas a extensão mais ampla da noção de 
história." A etimologia e a história da linguagem nos ensinaram a 
considerar todos os conceitos como devindos... Só com extrema 
lentidão foi que se reconheceu a multiplicidade das qualidades dis-
tintas num mesmo objeto (retomemos nosso exemplo: a distinção 
entre os prazeres, a carne, o sexo e o gender). 
39 
CAPÍTULO H Só há a priori histórico 
Assim, Foucault esperava ver a escola histórica francesa abrir-
se às suas ideias; depositava todas as esperanças nela; não era 
uma elite de espírito aberto cuja reputação era internacional? 
Não estavam preparados para admitir que tudo era históri-
co, até mesmo a verdade? Que não existiam invariantes trans-ij 
históricos? Infelizmente, para ele, esses historiadores estavam!' 
então ocupados com seu próprio projeto, o de explicar a his-
tória relacionando-a com a sociedade; e não encontravam, 
nos livros de Foucault, as realidades que eles tinham por re-
gra buscar numa sociedade, encontravam problemas que não 
eram os deles, o do discurso, o de uma história da verdade. 
Esses historiadores já tinham seu próprio método e não 
estavam muito dispostos a abrir-se a outro questionamento, 
que era o de um filósofo, em obras que compreendiam mal e 
que eram, de fato, ainda mais difíceis para eles do que para 
outros leitores, pois só podiam lê-las relativamente à sua pró-
pria grade metodológica. O que Foucault escrevia era, aos 
olhos deles, um tecido de abstrações estranhas à prática his-
tórica. As noções que eles encontravam nos livros do filóso-
fo não eram aquelas a que estavam habituados e que viam 
como a única boa moeda do historiador. Foucault lhes pare-
4 3 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
cia pagá-las com papel-moeda filosófico; eles acreditavam que 
falavam de realidades. Nem todos haviam compreendido que 
a própria prosa deles fazia conceitualizações sem o saber e 
que, no fundo, suas noções eram tão abstratas quanto as de 
Foucault. Como falar de uma realidade, contar uma intriga e 
descrever personagens sem recorrer a noções? Escrever a his-
tória é conceitualizar. Se pensarmos na tomada da Bastilha 
(revolta? revolução?), já estamos conceitualizando. 
Seja como for, a decepção de Foucault suscitou uma rea-
ção violenta de sua própria parte. Eis os termos insolentes 
com que resumiu a evolução da histórica escola dos Anais nos 
três quartos de século anteriores: 
Os historiadores, há anos, ficaram muito orgulhosos por 
descobrirem que podiam fazer não apenas a história das ba-
talhas, dos reis e das instituições, mas também a da econo-
mia. Ei-los completamente deslumbrados porque os mais 
astuciosos dentre eles lhes ensinaram que se podia fazer ainda 
a história dos sentimentos, dos comportamentos, dos cor-
pos. Eles logo compreenderão que a história do Ocidente 
não é dissociável da maneira como a verdade é produzida e 
inscreve seus efeitos. O espírito acaba chegando nas moças.1 
Decididamente, havia começado mal... 
Um colóquio entre alguns historiadores e Foucault re-
sultou, em 1978, numa ruptura;2 devo renunciar aqui, infe-
lizmente, a narrar em detalhes um conflito tão capital e 
apaixonante para o público dos leitores. Foucault, decepcio-
nado, amargo, relatou-me suas razões: a explicação causal, 
44 
SÓ HÁ A PRIORI H I S T Ó R I C O 
de que, segundo ele, "os historiadores tinham a superstição", 
não era a única forma de inteligibilidade, o nec plus ultra da 
análise histórica.3 "É preciso desfazer-se do preconceito se-
gundo o qual uma história sem causalidade não seria mais 
uma história";4 pode-se racionalizar toda uma faixa de pas-
sado sem estabelecerrelações de causalidade.5 
Pensando, talvez, num célebre estudo de Heidegger, ele 
acrescentou: "Eles só têm a Sociedade em mente, ela é para 
eles o que era a Physis para os gregos";6 de acordo com ele, 
os historiadores franceses faziam da sociedade o "horizonte 
geral de sua análise".7 A teoria deles derivava, suponho, de 
Durkheim e de Marx. Fazer uma história da literatura, por 
exemplo, ou da arte, que fosse científica consistia em relacio-
nar arte e sociedade, ensinava-se por volta de 1950 em cer-
tos seminários de pesquisa; Foucault havia aprendido, ao 
contrário, junto ao compositor Jean Barraqué, que as formas 
eram não transitivas com relação a uma sociedade ou a uma 
totalidade (o espírito do tempo, por exemplo).8 Se nem tudo 
provinha da sociedade, em todo caso desembocava nela; a 
sociedade era ao mesmo tempo uma matriz e o receptáculo 
final de todas as coisas. Para um foucaultiano, ao contrário, 
a sociedade, longe de ser o princípio ou o termo de toda ex-
plicação, precisa ela própria ser explicada; longe de ser últi-
ma, ela é o que dela fazem a cada época todos os discursos e 
dispositivos de que ela é o receptáculo. 
De fato, Foucault não era tão marginalizado quanto que-
ria crer, e sua maneira de escrever era simpática para aqueles 
que reivindicavam o que se chamava de história das mentali-
dades; ele estava mais próximo do historiador Philippe Ariès 
45 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
que dos Anais-,9 Michelle Perrot, Arlette Farge,10 Georges 
Duby apreciavam seus livros. Entretanto, o ressentimento de 
Foucault para com a corporação dos historiadores permane-
ceu intocado. 
Concluamos que essa tempestade num copo d'água nas-
ceu da ambição intelectual de Foucault e da reação de defesa 
de historiadores que queriam continuar sendo eles mesmos. 
Posso acrescentar minha pitada de sal a esse molho picante? 
Seria bom, creio eu, para um historiador, explicitar primei-
ramente, se for possível, a identidade singular (o discurso) 
dos personagens e das formações históricas cuja história ele 
vai narrar,11 antes de "pôr em intriga" todos esses heróis (pois 
tudo são intrigas neste nosso mundo sublunar, onde não há 
um primeiro motor soberano, econômico ou outro) e de ex-
plicar a razão da tragédia deles, de desemaranhar o que fo-
ram essas intrigas. Mas como não é quem dá conselhos que 
paga por eles, tentei uma vez fazer isso, sem, contudo, obter 
grande sucesso, pois o método foucaultiano ultrapassa mi-
nha capacidade de abstração. 
Pode-se, no entanto, sonhar, pode-se imaginar um jovem 
historiador que fosse tomado pelo fogo sagrado ao ler um 
livro de Foucault. Vigiar e punir, por exemplo, ou o curso 
sobre a governabilidade, sobre as formas e os objetos dos po-
deres na época moderna. Só o amor pela história me faz fa-
lar assim. Quando éramos estudantes, no início da década de 
1950, líamos apaixonadamente Mare Bloch, Lucien Febvre 
e Mareei Mauss, e ouvíamos o que dizia Jacques Le Goff, que 
era apenas alguns anos mais velho do que nós. Sonhávamos 
em escrever um dia a história como eles a escreviam. Sonho 
46 
SÓ HÁ A PRIORI H I S T Ó R I C O 
hoje com jovens historiadores que sonhariam em escrevê-la 
como Foucault. Seria não a negação de nossos predecessores 
mas a continuação da escavação deles, desse progresso inces-
sante dos métodos históricos já há quase dois séculos. 
A esse propósito, pediram-me algumas vezes que dissesse 
como haviam sido os momentos de colaboração que tive com 
Foucault quando ele trabalhava em torno da questão do amor 
antigo. "Paul Veyne ajudou-me constantemente ao longo des-
tes anos", escreveu ele.12 Qual havia sido minha contribuição? 
Pequena, digo-o com toda a simplicidade,13 pois por que eu 
fingiria modéstia? As ideias eram dele (como o arco de Ulisses, 
a análise abstrata era uma arma que apenas ele tinha a força de 
esticar). Quanto aos fatos e às fontes, Foucault tinha o dom de 
informar-se sozinho sobre uma cultura ou uma disciplina em 
alguns meses, à maneira desses poliglotas que nos espantam 
ao aprender em algumas semanas uma língua a mais (sob o risco 
de esquecê-la em seguida para aprender outra). 
De tal maneira que meu papel se reduziu a duas coisas: a 
confirmar, às vezes, sua informação e a trazer-lhe algum con-
forto. Ele me contava à noite o que havia elaborado durante 
o dia, para ver se eu protestava em nome da erudição. E, 
sobretudo, sendo eu mesmo um historiador entre outros, eu 
o confortava por minha atitude simpatizante e não negativa 
em relação a seu método. Pois ele havia sofrido mais do que 
pensava com a recusa categórica que lhe fora dirigida por 
alguns de meus colegas, nos quais ele havia depositado mais 
esperança do que em seus colegas filósofos. 
Esqueçamos a crônica vencida das más relações de Fou-
cault com os historiadores de seu tempo, demasiado ocupa-
47 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
dos em escrever a história à própria maneira para estarem 
disponíveis a outra maneira. O método que permaneceu, 
enfim, sendo unicamente o de Foucault consiste em levar o 
mais longe possível a busca das diferenças entre acontecimen-
tos que parecem pertencer a uma mesma espécie. 
Ali onde estaríamos tentados a nos referirmos a uma cons-
tante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou ain-
da a uma evidência que se impõe da mesma maneira a todos, 
trata-se de fazer surgir uma singularidade. Mostrar que não 
era tão evidente assim. [...] 
Não era tão evidente que os loucos fossem reconheci-
dos como doentes mentais; não era tão evidente que a única 
coisa que se podia fazer com um delinquente era trancafiá-
lo. Não era tão evidente que as causas da doença devessem 
ser buscadas no exame individual do corpo.14 
Por volta de 1880, lê-se em O nascimento da clínica, por 
meio de uma inversão da observação médica e de uma mu-
dança do discurso da anatomia patológica, deixou-se de "ler" 
nos corpos dissecados apenas certos "signos", tidos como os 
únicos pertinentes e considerados os significantes do signifi-
cado "doença"; Laennec pôde então levar em conta o que, 
antes dele, passava por detalhes inúteis, e foi o primeiro ho-
mem que viu a consistência particularíssima de um fígado 
cirroso,15 que, até então, via-se sem ver. 
Um sujeito soberano, um ser menos finito do que o ho-
mem, menos prisioneiro dos discursos de seu tempo, o teria 
visto desde sempre, ou ao menos teria podido vê-lo em qual-
48 
SÓ HÁ A PRIORI H I S T Ó R I C O 
quer época; infelizmente, "não se pode pensar qualquer coi-
sa em qualquer tempo".16 A observação microscópica, nasci-
da no século XVIII, só no século XIX deixou de ser uma 
curiosidade anedótica, propícia a desviar o observador da rea-
lidade séria (Bichat e o próprio Laennec atinham-se ao visí-
vel e recusavam o microscópio).17 O discurso do visível 
permaneceu por tanto tempo "incontornável", no verdadei-
ro sentido desse adjetivo,18 tão insuperável e opaco que o 
ácaro foi por muito tempo o menor dos animais; ninguém 
pensava na possibilidade de animais ainda menores, tão pe-
quenos que seriam invisíveis; na direção do outro infinito, 
também não se pensava que pudessem existir planetas pouco 
iluminados demais para nossos olhos. 
Há uma sensibilidade metafísica tácita na pintura de his-
tória foucaultiana. Como não podemos pensar qualquer coi-
sa em qualquer momento, pensamos apenas nas fronteiras do 
discurso do momento. Tudo o que acreditamos saber se limi-
ta a despeito de nós, não vemos os limites e até mesmo igno-
ramos que eles existem. Num automóvel, quando dirige à 
noite, o homo viator não pode ver nada além do alcance dos 
faróis e, mais do que isso, com frequência, não distingue até 
onde vai esse alcance e não vê que não vê. Para mudar de 
metáfora, sempre somos prisioneiros de um aquário do qual 
nem sequer percebemos as paredes; como os discursos são 
incontornáveis, não se pode, por uma graça especial, avistar 
a verdade verdadeira, nem mesmo uma futura verdade ou algo 
que se pretendacomo tal. 
É claro que um discurso com seu dispositivo institucional 
e social é um status quo que só se impõe enquanto a conjun-
4 9 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , S U A P E S S O A 
tura histórica e a liberdade humana não o substituem por 
outro; saímos de nosso aquário provisório sob a pressão de 
novos acontecimentos do momento ou ainda porque um 
homem inventou um novo discurso e obteve sucesso.19 Mas 
se mudamos, então, de aquário, é para nos vermos em um 
novo aquário. Esse aquário ou discurso é, em suma, "o que 
poderíamos chamar de a priori histórico".20 É claro que esse 
a priori, longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o 
pensamento humano,21 é passível de mudança, e nós mesmos 
terminamos por mudá-lo. Mas ele é inconsciente: os contem-
porâneos sempre ignoraram onde estavam seus próprios li-
mites e nós mesmos não podemos avistar os nossos. 
TRÊS ERROS QUE NÃO DEVEM SER COMETIDOS 
No ponto em que estamos, é preciso nos precaver contra duas 
ou três confusões. O discurso não é uma infraestrutura e tam-
bém não é outro nome para a ideologia, seria antes o contrá-
rio, a despeito do que lemos e ouvimos todos os dias. Podia-se 
ler recentemente que o conhecido livro de Edward Said sobre 
o orientalismo denunciaria essa ciência como sendo apenas um 
"discurso" que legitimava o imperialismo ocidental.22 Ora, não 
se trata absolutamente disso: a palavra discurso é aqui impró-
pria, e o orientalismo não é uma ideologia. Os discursos são as 
lentes através das quais, a cada época, os homens perceberam 
todas as coisas, pensaram e agiram; elas se impõem tanto aos 
dominantes quanto aos dominados, não são mentiras inventa-
50 
SÓ HÁ A PRIORI H I S T Ó R I C O 
das pelos primeiros para dominar os últimos e justificar sua 
dominação. "O regime de verdade não é simplesmente ideo-
lógico ou superestrutural; ele foi uma condição de formação e 
de desenvolvimento do capitalismo."23 
O próprio Foucault pensava provavelmente no livro de 
Said, que causou grande rumor, quando escreveu: "Todos 
sabem que a etnologia nasceu da colonização, o que não quer 
dizer que ela seja uma ciência imperialista."24 Explicitar as 
diferenças singulares não é denunciar a escravidão dos in-
telectos, escravidão que seria a função exercida pelas ideo-
logias;25 se é que essa "função" realmente funciona e que o 
homem é um ser suficientemente cartesiano, suficientemente 
intelectual para que sua inteligência lhe dite o comporta-
mento e para que ele só obedeça aos seus senhores se lhe 
fornecerem razões, boas ou ruins, para fazê-lo.26 Longe de 
serem ideologias mentirosas, os discursos cartografam o que 
as pessoas realmente fazem e pensam, e sem o saber. Foucault 
nunca estabeleceu relação de causa e efeito, num sentido ou 
no outro, entre os discursos e o resto da realidade;27 o dis-
positivo e as intrigas que aí se desenvolvem estão num mes-
mo plano. 
Segunda confusão: tomar o discurso por uma infraestru-
tura no sentido marxista da palavra. Como vimos anterior-
mente, o discurso, que inicialmente desempenhou um papel 
heurístico, é uma noção, por assim dizer, negativa: ela parte 
de uma constatação segundo a qual, na maioria das vezes, não 
se leva longe o bastante a descrição de um acontecimento ou 
de um processo, não se atinge sua singularidade e sua estra-
51 
FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
nheza. Como as crianças, chamamos todos os homens de 
papai; a palavra discurso é um convite a descer mais baixo 
para descobrir a singularidade do acontecimento, ela delimi-
ta essa singularidade, em última análise. Entretanto, quando 
apareceu As palavras e as coisas, alguns leitores tomaram a 
entidade que Foucault designava como discurso por uma ins-
tância material, uma infraestrutura comparável às forças e 
relações de produção que, em Marx, determinam as supe-
restruturas políticas e culturais. 
Certo crítico escreveu, inquieto, que submeter assim o devir 
histórico a estruturas ou a discursos era subtraí-lo à ação hu-
mana. Ele ignorava que o discurso não é de modo algum uma 
instância distinta que determinaria a evolução histórica; trata-
se simplesmente do fato de que cada fato histórico se revela 
como uma singularidade aos olhos do historiador penetrante, 
ele é singular, nos dois sentidos da palavra, porque tem uma 
forma estranha, a de um território cujas "fronteiras históricas" 
nada têm de natural, de universal. O discurso é a forma que 
tem essa singularidade, ele faz, portanto, parte desse objeto 
singular, é imanente a ele, não é outra coisa senão o traçado 
das "fronteiras históricas" de um acontecimento. E assim como 
a palavra paisagem designa tanto uma realidade da natureza 
quanto o quadro em que um pintor retraça essa realidade, a 
palavra discurso pode designar comodamente a página em que 
um historiador retraça esse acontecimento em sua singulari-
dade. Nos dois casos, a palavra discurso designa não uma 
instância, mas uma abstração, a saber, o fato de que o acon-
tecimento é singular; da mesma maneira que o funcionamen-
SÓ HÁ A PRIORI H I S T Ó R I C O 
to de um motor não é uma das peças desse motor, mas a ideia 
abstrata de que o motor funciona. 
Outra crítica, mais tocante, foi feita ao nosso autor; num 
mesmo impulso, ela censurava a teoria do discurso por ser 
errônea e por desencorajar a humanidade ao fazer da histó-
ria um processo anônimo, irresponsável e desesperador. 
Gosta-se de acreditar, com efeito, que apenas o que é enco-
rajador pode ser verdadeiro, "como se a fome provasse que 
um alimento nos espera".28 Condena-se às vezes uma filoso-
fia porque ela apenas descreve o mundo como ele está, sem 
ser útil, sem nos insuflar um ideal e valores. Como diz Jean-
Marie Schaeffer, esse amor pelos valores é motivado "pela 
preocupação de tranquilizar os homens quanto à plenitude 
do ser, plenitude que, acreditam eles, lhes é devida".29 
Compreende-se, então, que alguns leitores tenham expe-
rimentado uma verdadeira repulsa pelo ceticismo foucaultia-
no, que é decidido a ponto de parecer agressivo e ter aparência 
esquerdista. Sem razão, pois, na prática, a mais desmoralizante 
das teorias jamais desmoralizou ninguém, nem mesmo seu 
autor: é preciso viver bem, Schopenhauer viveu até a velhi-
ce, e Foucault, como bom nietzschiano, amava a vida e fala 
da irreprimível liberdade humana. Não chegarei ao extremo 
de fazer de seu ceticismo uma filosofia com happy end edi-
ficante (ele próprio havia optado por usá-la como uma críti-
ca), mas enfim veremos que a filosofia desse lutador acaba 
de maneira roborativa. 
Deixemos, porém, a arte do sermão e voltemos às coisas 
positivas. Eis que, ao falar da loucura, Foucault escreve que 
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FOUCAULT: SEU P E N S A M E N T O , SUA P E S S O A 
o discurso da desrazão no século XVII punha em jogo todo 
um dispositivo, isto é, escreve ele, 
um conjunto decididamente heterogêneo, que comporta dis-
cursos, instituições, criações arquitetônicas, decisões re-
gulamentárias, leis, medidas administrativas, enunciados 
científicos, propostas filosóficas, morais, filantrópicas, em 
suma: coisas ditas assim como não ditas.30 
Esse "dispositivo" se resume, portanto, a leis, atos, falas 
ou práticas que constituem uma formação histórica, seja a 
ciência, seja o hospital, seja o amor sexual, seja o exército. 
O próprio discurso é imanente ao dispositivo que se modela 
a partir dele (só se faz o amor ou a guerra de seu tempo, a 
não ser que se seja inventivo) e que o encarna na sociedade; 
o discurso faz a singularidade, a estranheza da época, a cor 
local do dispositivo. 
Nos dispositivos, um historiador logo reconhece essas 
formações, nas quais está habituado a procurar a rede de 
causalidades entrecruzadas que fazem com que haja devir. A 
mudança perpétua, a diversidade, a variabilidade se devem à 
concatenatio causarum, ao entrelaçamento de inovações, de 
revoltas (a despeito do mimetismo e do gregarismo), de rela-
ções mútuas com o ambiente, de descobertas, de rivalidades 
dos rebanhos humanos entre

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