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M a r i a C l a u d i a A r v i g o ISBN 978-65-5821-197-6 9 786558 211976 Código Logístico I000828 C om unicação e linguagem no autism o M aria C laudia A rvigo Comunicação e linguagem no autismo Maria Claudia Arvigo IESDE BRASIL 2023 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2023 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa:Vladyslav Starozhylov/Shutterstock 3DDock/Shutterstock 23-82267 CDD: 618.9285882 CDU: 616.896-053.2 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A835c Arvigo, Maria Claudia Comunicação e linguagem no autismo / Maria Claudia Arvigo. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2023. ISBN 978-65-5821-197-6 1. Crianças autistas - Linguagem. 2. Pessoas com deficiência - Meios de comunicação. 3. Conscientização da linguagem em crianças autistas. I. Título. Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439 31/01/2023 02/02/2023 Maria Claudia Arvigo Pós-doutora em Distúrbios do desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Fonoaudiologia pela Universidade de São Paulo - Faculdade de Odontologia de Bauru (USP-FOB). Doutora e mestre em Linguística com ênfase em aquisição da linguagem pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em Linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia e em Neuropsicologia aplicada à neurologia infantil pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Fonoaudióloga pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pesquisadora na área de atrasos da linguagem e do desenvolvimento e dos transtornos que afetam o desenvolvimento infantil, atuando principalmente na intervenção precoce e no diagnóstico diferencial. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Desenvolvimento típico da linguagem 9 1.1 Fala, linguagem e comunicação 10 1.2 Pré-linguagem 14 1.3 Marcos da aquisição da linguagem 20 1.4 Atrasos e desvios do desenvolvimento 24 2 Comunicação no transtorno do espectro do autismo 29 2.1 As habilidades sociocomunicativas e o TEA 30 2.2 Características da comunicação em sujeitos com TEA 39 2.3 Comunicação alternativa e aumentativa 41 3 Linguagem no transtorno do espectro do autismo 47 3.1 Intervenção precoce e o desenvolvimento da linguagem 48 3.2 A linguagem no TEA 56 3.3 Habilidades pragmáticas 60 4 Transtorno do espectro do autismo na sala de aula 68 4.1 Os pré-requisitos para aprendizagem escolar 69 4.2 TEA e os diferentes níveis de suporte 74 4.3 O aluno com altas habilidades 78 4.4 Condições associadas ao TEA 83 4.5 Lidando com questões de comportamento 89 5 Reconhecendo dificuldades e potencialidades 96 5.1 A importância de avaliar bem para bem ensinar 97 5.2 Por que o plano de ensino deve ser individual? 105 5.3 Adaptação escolar e inclusão 110 Resolução das atividades 118 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! O desenvolvimento da linguagem no transtorno do espectro do autismo (TEA) é um tema que desperta o interesse não apenas de pesquisadores, mas também de clínicos, educadores, pais e cuidadores. Tendo isso em mente, esta obra apresenta os principais conceitos acerca do desenvolvimento e da aquisição da linguagem no TEA de modo a permitir a compreensão do processo de aprendizagem de habilidades desde idades iniciais, na primeira infância, ao período da inclusão escolar. Compreender o processo de aquisição da linguagem em transtornos que afetam o desenvolvimento infantil, incluindo o TEA, exige o conhecimento de desenvolvimento típico. Dessa forma, o Capítulo 1 apresentará os principais marcos da aquisição da linguagem esperados para o desenvolvimento típico. Além disso, intentará oferecer recursos para compreensão dos conceitos de comunicação, linguagem e fala, visto que nem todos os sujeitos com TEA desenvolvem fala, mas todos são capazes de se comunicar, e compreender a diferença entre esses três conceitos é primordial para favorecer crianças, adolescentes e adultos na conquista da independência e qualidade de vida. O advento das primeiras palavras, seja em crianças neurotípicas ou em crianças autistas, dá-se a partir do desenvolvimento de habilidades anteriores à fala, que funcionam como propulsoras da linguagem. O primeiro capítulo também se debruçará sobre o desenvolvimento dessas habilidades denominadas sociocomunicativas que ocorre ao longo do período chamado pré-linguagem. Os atrasos e desvios na aquisição completam esse capítulo inicial que oferecerá elementos importantes para a compreensão de todo o conteúdo previsto na obra. O Capítulo 2 será dedicado à comunicação no TEA e abordará habilidades linguísticas, sociais e cognitivas, por exemplo, atenção compartilhada, imitação e comunicação gestual, e sobre como essas habilidades podem aparecer APRESENTAÇÃOVídeo 8 Comunicação e linguagem no autismo deficitárias nos quadros de TEA. Neste capítulo também trataremos da comunicação alternativa e aumentativa (CAA), tratando dos conceitos básicos para sua implementação e uso, tanto na intenção de ampliar a comunicação, mirando no desenvolvimento da fala, quanto nos sujeitos mais velhos com intenção comunicativa, na ausência de fala funcional. A linguagem no TEA em toda a sua complexidade será discutida no Capítulo 3, abrangendo os processos iniciais no autismo, a partir dos sinais de risco e importância da intervenção precoce para o desenvolvimento amplo das habilidades linguísticas, culminando na aquisição da fala. As habilidades linguísticas referentes à pragmática, cujos déficits são comumente observados nos diferentes níveis de suporte do TEA, além da Teoria da Mente e de aspectos da cognição social, também farão parte do aporte teórico do terceiro capítulo. Sabe-se que os sinais e sintomas do TEA se apresentam com diferentes graus de severidade e intensidade entre os sujeitos com TEA, o que deriva na classificação ou identificação dos três níveis de suporte do TEA. Esses níveis serão expostos no Capítulo 4, o qual será dedicado às questões de aprendizagem e aos diferentes perfis de alunos autistas que chegam à escola, incluindo crianças com dupla excepcionalidade, ou seja, com TEA e altas habilidades. O Capítulo 5 se destinará a um tema importante e relevante na atualidade: a inclusão escolar. Uma inclusão bem-sucedida tem início no processo de avaliação, desde a avaliação clínica destinada ao diagnóstico diferencial e a organização do plano de intervenção terapêutico à avaliação escolar que leva à composição do Plano de Ensino Individualizado (PEI), tópicos que integrarão este último capítulo. Com isso, espera-se oferecer recursos ao estudante interessado em ampliar conhecimentos na área da aquisição e do desenvolvimento da comunicação e da linguagem no TEA em suas diferentes facetas, extravasando a aquisição da fala, chegando à aprendizagem da leitura, da escrita e de demais habilidadesescolares. Boa leitura e bons estudos! Desenvolvimento típico da linguagem 9 1 Desenvolvimento típico da linguagem Há muito tempo o desenvolvimento infantil instiga a curiosidade de pessoas leigas, pesquisadores e especialistas da área. Entender como os bebês adquirem habilidades extremamente complexas e como es- sas aquisições e aprendizagens se dão ao longo do tempo não é uma tarefa simples, uma vez que exige do pesquisador destreza para lidar com os pequenos aprendizes e para driblar as limitações impostas pela fragilidade desse corpo e cérebro em constante e rápida evolução. A aquisição da linguagem e da fala não escapam dessas limitações e ainda assim temos um campo repleto de informações, questionamen- tos e muito ainda a se conhecer e compreender. Há um conjunto de fa- tos surpreendentes envolvidos no processo de aquisição da linguagem que merecem destaque. Um deles é o fato de que todas as crianças adquirem algum tipo de linguagem e que a maioria delas adquire pelo menos uma língua natural bastante complexa, isso de maneira relati- vamente rápida e sem grandes problemas. Para se compreender o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem no transtorno do espectro do autismo (TEA), bem como as suas inabilidades linguísticas, é necessário, primeiramente, entender como se dá o desenvolvimento típico. Dessa forma, o presente capítulo apresenta os principais marcos do desenvolvimento linguístico percor- ridos pela criança neurotípica, ou seja, a criança com desenvolvimento cognitivo e neurológico dentro do esperado para sua faixa etária. Além disso, o capítulo aborda os desvios e transtornos que acome- tem o desenvolvimento linguístico, diferenciando os atrasos na aquisi- ção da linguagem e os transtornos do neurodesenvolvimento. 10 Comunicação e linguagem no autismo Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • compreender a diferença entre os conceitos-chave fala, linguagem e comunicação, importantes para entender o desenvolvimento da linguagem no TEA; • reconhecer as habilidades sociocomunicativas importantes na aquisição da linguagem; • conhecer as etapas da aquisição da linguagem; • reconhecer os fatores de risco e aprender a diferenciar os atrasos e os desvios no desenvolvimento da linguagem. Objetivos de aprendizagem 1.1 Fala, linguagem e comunicação Vídeo Diferentemente do uso comum, linguagem e fala não são sinôni- mos, assim como a comunicação se difere conceitualmente de ambos. Entender a diferença entre esses três conceitos é importante, pois fa- cilita a compreensão dos mecanismos envolvidos no desenvolvimento infantil, possibilitando que se entenda a abrangência da comunicação e as especificidades da linguagem e da fala. Muito além de uma divisão meramente didática, diferenciar esses conceitos permite não apenas compreender o processo de aquisição, como será visto ao longo deste capítulo, mas possibilita a interpreta- ção detalhada das possíveis dificuldades e inadequações que podem ocorrer, levando a um planejamento e escolha assertivos do método de estimulação das habilidades cognitivas, bem como a um melhor planejamento do ensino de pré-requisitos e de habilidades escolares, como memória e consciência fonológica. No contexto escolar, as crianças utilizam as habilidades verbais e não verbais e, assim como ocorre entre os pré-escolares, para se comu- nicar, utilizam gestos, sons, palavras, números e imagens no intuito de construir o conhecimento (MARTINS et al., 2017; INÁCIO, 2019). Segundo o DSM-5 (APA, 2014), o transtorno do espectro do autismo (a saber, TEA) refere-se a um conjunto de déficits persistentes ao lon- go da vida nas habilidades sociocomunicativas e na interação social, Desenvolvimento típico da linguagem 11 em múltiplos contextos, incluindo a comunicação verbal e não verbal. Essas alterações ocorrem simultaneamente com padrões de comporta- mentos e interesses restritos e repetitivos. No TEA, as habilidades comunicativas e linguísticas diferem significa- tivamente entre os seus sujeitos. Ainda assim, a própria patologia pre- diz alterações na comunicação, variando em intensidade e frequência. Alguns sujeitos apresentam apenas alterações na comunicação social, enquanto outros apresentam alterações mais abrangentes, atingindo diferentes áreas da linguagem oral (ARVIGO et al., 2018). Para melhor compreender essas diferentes alterações, é necessário entender a dis- tinção entre os conceitos. A comunicação representa o mais abrangente entre os três ter- mos-chave (comunicação, linguagem e fala) e se refere a toda forma de emissão e recepção de mensagens, não importando qual seja a via de acesso ou entrega – ou seja, linguagem oral (fala), sinais, escrita ou ges- tos. Sendo assim, a comunicação reflete a maneira como o indivíduo se relaciona e interage com o meio e com os indivíduos que o cercam (ARVIGO et al., 2018). Dessa forma, sempre que se pensa em comunicação deve-se ter em mente um processo complexo de troca de informações com o intuito de influenciar o comportamento do outro. Um bom exemplo de comu- nicação como troca de informação e manipulação do comportamento do outro é o choro da criança, acompanhado do gesto de estender os braços em direção à mãe; essa forma de comunicação ganha a atenção do adulto e o mobiliza em direção à criança, correspondendo à inten- ção do pequeno. Os elementos da comunicação são imprescindíveis em todos os contextos comunicativos, conforme sugerem diversos teóricos da área, como Rüdiger (2011). Com base na teoria da comunicação, a troca de mensagens durante a interação dialógica exige a presença de um emis- sor, responsável por emitir a mensagem, e de um receptor, que recebe a mensagem ou a informação e a compreende. A informação é transmitida por meio de um código, formado por um conjunto de sinais organizados de acordo com um sistema de re- gras. Esse sistema, como a língua falada ou a escrita, possui significado e é conhecido por todas as pessoas pertencentes a uma determina- da comunidade. Para que a mensagem chegue até o receptor, faz-se No ritmo do coração é uma comédia dramática que conquistou o público e a crítica, ganhando di- versos prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Filme, em 2022. O filme narra a história de uma menina ouvinte filha de pais surdos e é uma excelente oportunidade para obser- var diferentes mecanis- mos de linguagem, em especial a língua de sinais. Direção: Sian Heder. EUA; França; Canadá: Apple Original Films; Vendôme Pictures; Pathé Films; Picture Perfect Federation, 2021. Filme 12 Comunicação e linguagem no autismo necessária a presença de um canal, o qual deve ser eficaz para que a comunicação seja funcional e, então, gere uma consequência inten- cionada inicialmente pelo emissor, que é uma determinada reação em seu receptor. O canal pode ser item escrito de maneira clara e legível, o trato vocal e a voz, entre outros. Nesse enfoque, segundo Rüdiger (2011), a comunicação deve ser representada como um sistema de transmissão de informações, o que pode ser esquematizado da seguinte forma: IconLauk/Shutt ers to ck Emissor Código Canal Receptor Consequência sea mus s/S hu tte rs to ck Um pouco menos abrangente do que a comunicação, a linguagem não se restringe à oralidade e representa um importante mecanismo de expressão de valores culturais, sentimentos e pensamentos por meio de um sistema comunicacional compartilhado. Com a linguagem, o sujeito desenvolve competências linguísticas de recepção, transformação e transmissão de informações. Para que a informação seja transmitida de modo funcional, o receptor precisa compreender a linguagem utilizada pelo emissor, o qual deve enten- der a mesma informação que foi formulada e emitida. Dessa forma, a linguagem pode ser dividida em dois domínios lin- guísticos: expressivo (ou emissivo) e receptivo. O domínio da linguagem receptiva representa a compreensão da mensagem emitida pelo interlocutor, processo em que o receptorde- Desenvolvimento típico da linguagem 13 codifica as informações da mensagem, compreendendo o meio e o ou- tro por intermédio daquilo que vê, ouve ou lê, somando à mensagem significados em seus diferentes contextos. A linguagem receptiva é ca- racterizada como interna e possui a função de organizar o pensamento de formular as ideias (SCARPA, 2004). Já a linguagem expressiva é a capacidade de se expressar, transmitir a informação, seja verbalmente, como na fala ou linguagem oral, ou por meio de outros mecanismos como a escrita, a linguagem corporal, desenho ou gestos. Ambos os domínios se relacionam ao longo do desenvolvimento in- fantil, de modo que, para que a criança adquira linguagem emissiva, faz-se necessário o pleno desenvolvimento da linguagem receptiva. Além disso, segundo Grolla, Figueiredo Silva (2014), a linguagem di- ferencia-se em três componentes principais que comportam os níveis linguísticos: 1 Fonológico, morfológico e sintático: regras de como se geram os sons; a composição e estrutura interna das palavras; e a organização das palavras em um sintagma ou frase. 2 Semântico: conteúdo que abarca o significado das palavras. 3 Pragmático: uso da linguagem em diferentes contextos sociais. Em resumo, a linguagem diz respeito ao processo de interação en- tre as pessoas e faz uso de diversos mecanismos para transmitir ideias, sentimentos e emoções. Esses mecanismos linguísticos podem ser qualquer conjunto de sinais ou códigos linguísticos, como palavras, si- nais de trânsito, placas, gestos, escrita, entre tantos outros itens que possibilitam a comunicação entre inúmeros sujeitos de uma mesma comunidade e ou de comunidades diferentes. A fala representa uma das formas de manifestação da linguagem expressiva, sendo o ato motor que permite a transmissão de sons, compondo palavras e frases por meio dos articuladores (muscula- tura da face e lábios, língua e dentes) e os gestos articulatórios que culminam nos fonemas. 14 Comunicação e linguagem no autismo Somada à articulação, a fala também se caracteriza pela ressonân- cia, ou seja, pelo controle pneumorrespiratório e pelo equilíbrio do fluxo de ar entre boca e nariz. A voz é um componente importante na produção da fala e se define pela vibração das pregas vocais. Outro componente importante na produção da fala e nas habilidades discur- sivas, a prosódia refere-se à variação melódica e à entoação da cadeia de palavras no discurso. As marcas de acentuação e o ritmo de fala, ambos referentes à pro- sódia, são individuais e afetadas por questões culturais e regionais, ca- racterizando sotaques e vícios de linguagem. Diretamente relacionada à fala, a língua representa o código ver- bal, isto é, um conjunto de palavras com significado específico para uma dada comunidade. São exemplos desses códigos os diferentes idiomas e a língua de sinais. Ainda assim, para que a criança possa compreender os signos lin- guísticos, sejam eles manifestos de maneira oral, escrita ou manual, é preciso desenvolver alguns pré-requisitos, como localizar fonte sonora, além dos demais comportamentos sociocomunicativos, como atenção compartilhada. Essas mesmas habilidades também propulsionam a aquisição de habilidades da linguagem expressiva. 1.2 Pré-linguagem Vídeo O desenvolvimento da linguagem começa muito antes da conquista das primeiras palavras. A fala não surge do nada, visto que, logo nos primeiros meses de vida, a criança começa a apresentar habilidades consideradas pré-requisitos para o surgimento das palavras. Esses pré-requisitos dizem respeito às habilidades sociocomu- nicativas que se desenvolvem ao longo da fase pré-linguística, ou da pré-linguagem. De modo geral, a pré-linguagem se refere ao período do desenvolvimento que antecede a aquisição do sistema linguístico, abrangendo a comunicação não verbal, ou mesmo pré-verbal, e ocorren- do de modo intencional até a aquisição das primeiras palavras (WATT; WETHERBY; SHUMWAY, 2006; MÄÄTTÄ et al., 2016). A pré-linguagem se estende do nascimento até o surgimento das primeiras palavras, que ocorre entre os 12 e os 18 meses. Esse é um período intensamente rico, durante o qual, dia após dia, o bebê amplia sua habilidade comunicati- va, iniciando pelo contato visual, pela atenção dirigida e pela interação social e afetiva com seu interlocutor. O que acontece antes que a fala emerja é universal, pois todas as crianças passam pelos mesmos estágios, não importando qual seja a língua-alvo. Segundo diversos pesquisadores, entre eles Grolla e Figueiredo Silva (2014), as crianças de mesma faixa etária, inseridas em diferentes comunidades linguísticas, seguem um padrão idêntico, pro- gredindo entre os mesmos estágios do desenvolvimento linguístico. Mesmo crianças com deficiências como a perda auditiva profun- da ou severa passam pelos mesmos estágios iniciais do desenvolvi- mento da linguagem, atingindo o nível dos balbucios e vocalizações e cessando o processo de aquisição da linguagem oral no momento da emersão das primeiras palavras – o que acontece devido à ausência de entrada (input), ou seja, de estímulos sonoros específicos e necessários para aquisição da fala. Ainda assim, a aquisição das habilidades comu- nicativas não cessa, podendo progredir para a aquisição da linguagem gestual ou a língua de sinais se criança for exposta a ela, ou mesmo à oralidade, caso a criança receba um aparelho auditivo indicado para o tipo de perda ou um implante coclear, por exemplo. No entanto, a qualidade da progressão entre os processos e a velo- cidade com que o bebê neurotípico transita entre um estágio e outro pode variar. A variação que ocorre com poucos meses entre o que se espera para aquela faixa etária ainda confere um desenvolvimento tí- pico, indicando uma “janela do desenvolvimento”, principalmente se a criança em questão apresentar diferentes habilidades ocorrendo para- lelamente dentro da normalidade. Dessa forma, é possível observar uma criança com desenvolvi- mento típico apresentando habilidades esperadas para a sua faixa etária acontecendo simultaneamente com habilidades que podem ser observadas em crianças mais novas e outras, em crian- ças mais velhas. Uma criança de 18 meses que ainda não adquiriu as primeiras palavras – sendo a emer- são esperada por volta dos 12 meses – pode ter o desenvolvimento considerado típico caso ela apre- sente habilidades de comunicação não verbal com- plexas, como o uso de gestos e o contato visual como forma comunicativa. Dr ea m T ea m F ot og ra fia /S hu tte rs to ck Dr ea m T ea m F ot og ra fia /S hu tte rs to ck Desenvolvimento típico da linguagemDesenvolvimento típico da linguagem 1515 16 Comunicação e linguagem no autismo Por outro lado, variações mais amplas, tanto com relação à quali- dade quanto à temporalidade do surgimento das habilidades, muitas vezes ocorrendo junto com comportamentos não esperados ou obser- vados no desenvolvimento típico, podem caracterizar atrasos signifi- cativos e indicadores precoces de importantes desordens que afetam o desenvolvimento infantil, entre elas o transtorno do espectro do au- tismo (TAMANAHA; PERISSINOTO; ISOTAMI, 2012; ARVIGO et al., 2018). De modo geral, o desenvolvimento da linguagem e da comunicação é caracterizado por uma variação inter e intraindividual na aquisição de diferentes habilidades. Em outras palavras, ainda que as crianças este- jam inseridas em uma mesma comunidade com padrões linguísticos e culturais idênticos, o ritmo e a sequência de aquisições podem apre- sentar diferenças individuais sutis acontecendo junto com semelhan- ças intergrupos bastante pontuais. Dessa forma, à parte essa variação, tanto continuidade (como a consistência no nível de aquisições) quanto a estabilidade (como a consistência na estabilização das aquisições en- tre as crianças ao longo do tempo) são semelhantes e consideradas padrão quando se observa o desenvolvimento. Määtta e seus colaboradores (2016) argumentam que ashabilida- des sociocomunicativas impulsionam a aquisição de habilidades com- plexas, entre elas a fala, além de habilidades linguístico-cognitivas, como memória e atenção, e habilidades sociais, como a pragmática e a cognição social. As habilidades sociocomunicativas dividem-se em três grandes áreas: social, linguística e simbólica. As habilidades sociais agru- pam habilidades que envolvem a interação social, como atenção compartilhada e contato visual. A atenção compartilhada é uma das habilidades sociais mais es- tudadas quando se pensa nas habilidades preditoras da fala, sendo definida como a capacidade de coordenação e atenção entre pessoas e objetos com intenção comunicativa. Essa habilidade representa uma série de comportamentos referentes ao compartilhamento de experiências de um indivíduo e seu parceiro social (TOMASELLO, 2003; WATT; WHETHERBY; SHUMWAY, 2006; MÄÄTTA et al., 2016). Entre esses comportamentos de atenção compartilhada, durante a fase da pré-linguagem observam-se habilidades como seguir a direção do olhar do adulto ou para onde o adulto aponta (resposta de atenção M ic ha el P et tig re w/ Sh ut te rs to ck M ic ha el P et tig re w/ Sh ut te rs to ck compartilhada), ou quando a criança capta a atenção do adulto por meio do olhar ou aponta para um item ou algo do seu interesse, levan- do-o a olhar na mesma direção (iniciativa de atenção compartilhada). A faixa etária dos 6 aos 18 meses é o período de aquisição e es- tabilização das habilidades de atenção compartilhada. Já o contato visual e a habilidade de rastreamento visual se iniciam em idade mais precoce. Logo nas primeiras horas de vida, o bebê recém-nascido já é capaz de manter contato visual por longos períodos durante a ama- mentação (SIMPSON et al., 2020). Dentro das habilidades simbólicas estão as habilidades de imita- ção e o jogo simbólico. Embora exista uma discussão referente ao grau de importância da imitação na aquisição da fala, é de comum acordo entender que a imitação atua como um facilitador para a aquisição da linguagem oral, importância equivalente às das demais habilidades como o brincar simbólico e criativo. É por meio da imitação e do brincar funcional simbólico que a criança começa a compreender o mundo à sua volta, as pessoas e as relações interpessoais (FREITAS, 2010). Segundo Watt, Whetherby e Shumway (2006), o brincar fornece con- texto para a linguagem em aquisição, o que se reflete diretamente no desenvolvimento de habilidades cognitivas. Estudos como o das auto- ras demonstram que o inventário de brincadeiras em crianças com 14 meses, medido por meio da quantidade de sequências simbólicas ou sequências de ações, estava significativamente relacionado à evolução da linguagem receptiva, de modo que as mesmas crianças observadas aos 30 meses apresentavam bom desempenho em tarefas que exigiam que instruções complexas fossem seguidas. Habilidades como atenção compartilhada, imitação e brincadeira simbólica são fundamentais para a aquisição da linguagem e para o desenvolvimento global, uma vez que essas habilidades relacionam-se com a capacidade de elaboração e construção da linguagem, do pensamento e da interação social. As habilidades linguísticas presentes na pré-lingua- gem referem-se ao uso da comunicação gestual, como dar tchau e apontar, e às vocalizações e aos balbucios que antecedem as primeiras palavras e proporcionam à criança experiências dialógicas em que ela se perceba compreendida (WATT; WHETHERBY; SHUMWAY, 2006; MÄÄTTA et al., 2016). Desenvolvimento típico da linguagemDesenvolvimento típico da linguagem 1717 18 Comunicação e linguagem no autismo A primeira via comunicativa do bebê é o choro, que se apresenta com diferenças no padrão melódico, sendo possível distingui-los entre o choro de dor e o choro de fome, por exemplo. Pouco a pouco, o bebê adiciona gestos e outros significados não verbais à sua comunicação, como o uso de mímica facial e do sorri- so social. Por volta dos dois meses, a criança inicia as vocalizações, emissões de sons mais ou menos articuladas e, aparentemente, sem significado (GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014). Essa fase serve como base ou gatilho para a fala e para o desenvolvimento de outras habili- dades como a interação social, o reconhecimento do outro e as trocas entre o falante e o ouvinte que acontecem durante um diálogo, deno- minadas trocas dialógicas. Os bebês demonstram, desde o nascimento, interesse pela comu- nicação e pela interação com o outro, reagindo à modulação dos sons da fala, procurando pela fonte sonora, acompanhando o movimento de objetos e o olhar referencial dos pais ou do adulto (quando o adul- to desvia o olhar, indicando interesse em algum item ou situação que acontecesse em segundo plano, fazendo referência para que o seu in- terlocutor também olhe). Estudos indicam que os bebês sabem e compreendem mais do que são capazes de comunicar (WATT; WHETHERBY; SHUMWAY, 2006; GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014; MÄÄTTA et al., 2016; ARVIGO et al., 2018). Com quatro dias de vida, o bebê é capaz de discriminar uma grande variedade de sons da fala humana, sendo capaz de diferenciar o ritmo de fala de diferentes idiomas e de reconhecer a língua materna, aquela que é falada em seu ambiente social. Enquanto nos primeiros dois meses de vida o bebê assume um papel reativo ao ambiente, ou seja, apenas reage aos estímulos ofe- recidos pelos seus interlocutores, dos dois aos oito meses a criança adquire papel ativo, atuando de maneira mais efetiva nas relações interpessoais. Um dos principais marcos adquiridos nessa fase é a responsividade ao nome, reagindo ativamente, com sorrisos, olhares, até atingir o período das vocalizações. Entre os seis e os dez meses, as vocalizações e balbucios são os principais indicativos da intenção comunicativa e da intenção de fala A série documental Bebês em foco acompanha os passos de 15 bebês ao longo do primeiro ano de vida, com relato dos pais sobre suas experiências e comentários de pesqui- sadores e especialistas da área. São, ao todo, 12 episódios divididos em duas temporadas, com destaque para o episódio 4 da primeira temporada, intitulado “Primeiras pa- lavras” e para o primeiro episódio da segunda temporada, chamado “O que os bebês sabem”. Direção: Guilherme Quintella; Felipe Braga; Konrad Dantas. EUA: Netflix, 2020. Documentário Desenvolvimento típico da linguagem 19 do bebê. Nessa fase, as crianças produzem sequências de consoantes- -vogais semelhantes que vão se tornando cada vez mais complexas e variadas, tanto com relação à composição das sílabas quanto à varia- ção melódica (GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014; ARVIGO et al., 2018). Dos oito aos onze meses, a criança se utiliza de uma comunicação pré-intencional, caracterizada por onomatopeias e balbucios com- plexos que se aproximam da palavra-alvo. Nesse período, é possível observar o uso de “jargão”, ou seja, o uso de sequências de sons com- plexos e encadeados de modo a se assemelhar em ritmo e variação melódica à fala do adulto, como se a criança estivesse falando uma “língua própria” (GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014). Para recapitular o que foi visto até aqui, o esquema a seguir apre- senta um resumo das habilidades sociocomunicativas por faixa etária observadas nas crianças ao longo da pré-linguagem. Primeiras horas Mantém contato visual. 4 dias Discrimina sons e ritmo de fala. 2 meses Comportamento ativo ao meio; uso de vocalizações simples. 6 meses Habilidades iniciais de atenção compartilhada; uso de vocalizações e balbucios. 8 meses Comportamento pré-intencional; uso do jargão. Essa evolução não cessa até o surgimento completo da língua em aquisição. Associando sempre novos itens linguísticos e, principalmen- te, sociocomunicativos, o bebê vai se tornando cada vez mais autôno- mo e ativo em sua comunidade. 20 Comunicação e linguagem no autismo 1.3 Marcos da aquisição da linguagem Vídeo Como foi visto na seção anterior,em seu primeiro ano de vida, os bebês são capazes de seguir o olhar do adulto, compartilhar a atenção para obter um objeto, imitar brincadeiras e emitir sons a fim de provo- car o seu interlocutor. Esses são sinais não verbais considerados pre- cursores da linguagem oral e importantes indicadores da integridade das habilidades sociais e cognitivas. Esse jogo social evolui para comportamentos comunicativos mais ela- borados, começando por vocalizações, passando pelo balbucio até que, ao final do primeiro ano de vida, a criança conquista as primeiras palavras. Mesmo com a aquisição de novas habilidades, ao completar um ano de vida, algumas habilidades decaem, como a de discriminar sons dife- rentes, sons de fala e lidar com contrastes auditivos, aperfeiçoando-se a habilidade de perceber apenas os sons da língua falada em seu am- biente (GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014). A criança com um ano começa a utilizar as primeiras palavras as- sociando-as aos gestos que passam a ter função complementar à fala; além disso, a linguagem receptiva também se torna mais apurada e, nes- sa fase, a criança compreende ordens simples como “me dá um beijo”. Com o surgimento das primeiras palavras, a criança atinge a fase linguística, caracterizada não apenas pela ampliação do repertório lin- guístico, com onomatopeias e neologismos (criação de palavras não existentes na língua para nomear itens familiares, como “tchuca” para mamadeira), mas também pelo aumento no interesse por outras crian- ças e pelo aperfeiçoamento das habilidades comunicativas. Antes mesmo de começarem a combinar palavras no enunciado, as crianças conseguem detectar e usar a ordem de palavras para com- preender enunciados. Grolla e Figueiredo Silva (2014) relatam um estu- do realizado com crianças na faixa etária dos 17 meses adquirindo inglês americano no qual se observa o “paradigma do olhar preferencial”. No teste, a criança era colocada no colo da mãe e diante de duas TVs. Entre as TVs, havia um alto-falante que dava instruções à criança, como “o Mickey está lavando o Pluto”. As duas telas apresentavam os mesmos personagens, porém realizando ações diferentes. Os resulta- dos mostravam que as crianças preferiam olhar para a tela que corres- pondia às instruções ouvidas. Desenvolvimento típico da linguagem 21 A conclusão da pesquisa foi que as crianças se baseavam na ordem das palavras para identificar qual ação era desempenhada pelos per- sonagens, indicando que, mesmo antes de elas começarem a produzir enunciados com mais de uma palavra, já conhecem a ordem correta dos itens em um sintagma, ou em uma frase, compreendendo a sentença. O início da produção de frases, por volta dos 24 meses, ou dois anos, é caracterizado por construções ou frases simples, normal- mente compostas por dois itens na intenção de realizar pedidos, como “dá aua” para “dá água”, ou “pega nenê”. As duas palavras se encontram em uma relação semântica dentro do enunciado e em uma mesma ordem, por exemplo: agente + ação (“miau dorme”); ação + objeto (“come nenê”); agente + objeto (mamãe + nenê); ação + lugar (“senta aqui”). Segundo Grolla e Figueiredo Silva (2014), dos dois aos três anos, o repertório vocabular infantil é composto por cerca de 200 a 900 palavras. As mesmas autoras relatam que, nessa fase, a criança produz al- guns “erros” de generalização de regras, como dizer “eu grandi” em vez de dizer “eu cresci”, ou de conjugação verbal como, “eu trazi” ou “eu fazi”. Essas produções possivelmente ocorrem como indicativo de que as crianças percebem regularidades da língua em aquisição e passam a produzir formas baseando-se nessas regularidades, sem ainda com- preender que algumas estruturas ou verbos não são regulares. Aos dois anos, a criança ainda é autocentrada, e o que se observa é um brincar mediado pelo adulto. Nessa etapa, as crianças sentam-se lado a lado, mas tendem a brincar sozinhas, por vezes imitando a ação do adulto, como na realização de sequências de ação no brincar, como fazer o avião voar ou o carrinho subir a rampa. Menezes (2019) explica que, por volta dos dois anos e meio, a criança começa a compreender a relação de posse e o significado de “meu/ minha”, e a função ou o uso de objetos do cotidiano, como pente ou copo. Nessa faixa etária, a criança se mostra hábil em responder perguntas sobre si mesma, como qual o seu nome e quantos anos tem. O brincar compartilhado emerge em torno dos 36 meses, ou três anos, quando a criança se torna cooperativa. É nessa fase, também, que a criança inclui imitações de ações cotidianas na rotina de brinca- deiras, emulando situações como ir ao médico ou veterinário, limpar a casa e cuidar dos filhos (bonecos e animais de estimação) ou dar aula para os alunos imaginários (FREITAS, 2010). 22 Comunicação e linguagem no autismo As produções se tornam mais complexas, uma vez que a criança passa a construir frases com até três itens, incluindo flexões de núme- ro, bem como produz relatos de ações e compreende conceitos como pesado, grande ou vazio. Entre três anos e três anos e meio, ocorre um boom na aquisição de palavras, ultrapassando 1.200 palavras novas adquiridas (GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014). Na faixa etária dos quatro aos cinco anos, a fala da criança se aproxi- ma da fala do adulto, com construções complexas, narrando histórias e tecendo comentários, mantendo relação temporal entre os episódios. Contudo, o inventário fonológico ainda não está totalmente adquirido, e nessa fase a criança realiza trocas e distorções de sons. Somente por volta dos seis ou sete anos é que esse inventário estará completo. Grolla e Figueiredo Silva (2014) explicam que a aquisição da estrutura da língua está completa por volta dos seis ou sete anos, com a aquisição de itens de categorias fechadas ou estruturais da morfologia, sintaxe e mesmo da fonologia. Todavia, a aquisição de estruturas de categorias abertas – como substantivos e adjetivos, pertencentes ao léxico – nunca cessa; sempre é tempo para aquisição de um novo conhecimento. Na sequência, pode-se verificar as fases da aquisição desde a pré- -linguagem até a aquisição de frases simples e complexas (GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014). Primeiros meses Uso do choro como forma comunicativa; capacidade de distinguir línguas em grupos rítmicos diferentes. 6 meses Balbucios simples. 10 meses Balbucios complexos com base nos sons que ouvem; começam a emparelhar significado. 1 ano Decresce a capacidade de discriminar sons de línguas diferentes daquela que está adquirindo; produção das primeiras palavras. (Continua) Desenvolvimento típico da linguagem 23 1 ano e 6 meses Junção de duas palavras no enunciado; conhecem a ordem das palavras da língua materna. Entre 2 e 3 anos Vocabulário entre 200 e 900 palavras; produzem generalizações de regras. 3 anos ou mais Vocabulário com mais de 1.200 palavras; produzem estruturas complexas. O interessante na aquisição da fala é que, apesar de receberem estímulos ou um input composto por um número finito de sentenças, as crianças são capazes de realizar um número infinito de novas pro- duções. Segundo autores como Grolla e Figueiredo Silva (2014), isso acontece porque o que a criança está adquirindo não é um conjunto ou uma lista de sentenças, mas um conjunto de regras que permitem gerar novas sentenças. Assim como ocorre com a habilidade de discriminar sons, que decres- ce quando a criança atinge o marco da primeira palavra, a habilidade de adquirir uma língua ou uma nova língua também diminui ao longo da vida. Segundo Pinker (1994), a aquisição de uma língua é garantida até os seis anos, comprometida entre seis anos e até pouco tempo depois da puberdade, e rara daí por diante. O espaço de tempo dos seis anos é tido por alguns teóricos como período crítico, momento em que competências linguísticas começam a se tornar inacessíveis. Isso não quer dizer que depois dos seis anos não seja mais possível adquirir uma nova língua, ou que sujeitos quenão adquiriram fala até esse período não irão adquiri-la, mas sim que essa aquisição se torna mais penosa e, por vezes, incompleta. Isso explica a diferença na aprendizagem de um segundo idioma entre sujeitos adultos e crianças pequenas. Ao contrário dos adultos, que, ainda que se tornem bons falantes, apresentam prosódia mar- cada pelo primeiro idioma, além de erros de gramaticalidade por se basearem no primeiro inventário, as crianças se tornam eficien- tes na língua, com fluência igual ou próxima de um falante nativo (SCARPA, 2004). E agora, doutor? é um podcast quinzenal desenvolvido pela equipe da clínica multidisciplinar Dieckmann e condu- zido pelo médico Julio Marchini. Acesse o link a seguir para ouvir o Episó- dio 5, sobre o desenvolvi- mento da fala. Disponível em: https:// open.spotify.com/ episode/1VCAq4xLV8ldCUZjhqiS M8?si=1c4eb1f619ad4f11. Acesso em: 2 set. 2022. Podcast https://open.spotify.com/episode/1VCAq4xLV8ldCUZjhqiSM8?si=1c4eb1f619ad4f11 https://open.spotify.com/episode/1VCAq4xLV8ldCUZjhqiSM8?si=1c4eb1f619ad4f11 https://open.spotify.com/episode/1VCAq4xLV8ldCUZjhqiSM8?si=1c4eb1f619ad4f11 https://open.spotify.com/episode/1VCAq4xLV8ldCUZjhqiSM8?si=1c4eb1f619ad4f11 24 Comunicação e linguagem no autismo 1.4 Atrasos e desvios do desenvolvimento Vídeo Nem sempre os marcadores do desenvolvimento da fala seguem uma trajetória linear e o ritmo esperado. Algumas crianças adquirem linguagem com velocidade e extensão mais lentas, caracterizando um atraso ou desvio. A assincronia no desenvolvimento é medida com base em uma aná- lise do desenvolvimento da criança; em outras palavras, é o próprio desenvolvimento que possibilitará a distinção entre o típico e o atípico e auxiliará na identificação dos sinais de atraso ou mesmo de desvio. Para a identificação desses sinais, considera-se a idade cronoló- gica, a idade mental e o desempenho em tarefas específicas, visto que a linguagem deve ser observada em suas dimensões linguística, cognitiva e de performance. Entre as habilidades linguísticas, observa-se, a priori, os níveis fono- lógico, semântico, sintático e pragmático, além da extensão vocabular, ou seja, nível lexical. Já para as habilidades cognitivas, é importante considerar as habilidades de conceituação, simbolização, memória em seus diferentes aspectos e percepção. A avaliação da performance deve considerar situações comunicativas envolvendo os dois domínios linguísticos: linguagem receptiva ou compreensão e linguagem expres- siva ou emissão (TAMANAHA; PERISSINOTO; ISOTANI, 2012; ARVIGO et al., 2018). Segundo Tamanaha, Perissinoto e Isotani (2012), o atraso de lingua- gem retrata a cronologia do desenvolvimento. Como referência, mais especificamente, é determinado quando comportamentos comunicati- vos são similares àqueles apresentados pela maioria das crianças, mas emergem tardiamente ou ocorrem em ritmo mais lento e notadamente de maneira inferior à idade cronológica e mental da criança. Por outro lado, desvios, desordens ou transtornos de linguagem estão além da cronologia. Trata-se aqui de alterações específicas que ocorrem no surgimento e no encadeamento de determinados compor- tamentos comunicativos e podem envolver aspectos fonológicos, como o transtorno fonológico, ou morfossintáticos e lexicais, como o trans- torno do desenvolvimento da linguagem (TDL). Existem diferentes quadros que afetam o desenvolvimento da lin- guagem, cada um com uma particularidade. Todos são caracterizados Desenvolvimento típico da linguagem 25 pela aquisição de comportamentos incomuns à comunicação e não es- perados para nenhuma faixa etária. À exceção dos quadros de síndromes genéticas e de lesões neuro- lógicas, não é possível identificar um único fator desencadeador dos atrasos ou desvios de linguagem. Diversos estudos apontam para al- guns grupos de risco, como prematuridade extrema, baixa estimulação e desnutrição, porém esses fatores são tidos como potencializadores para uma predisposição inicial (ARVIGO; SCHWARTZMAN, 2020). As alterações de linguagem representam um ponto em comum entre os diferentes transtornos que afetam o neurodesenvolvimen- to. Arvigo e Schwartzman (2020) explicam que uma das inadequações mais comuns entre as crianças pequenas (entre 12 e 18 meses) é o atraso na aquisição da linguagem. No entanto, o atraso na fala também pode estar atrelado a outros quadros, como o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e a deficiência intelectual (DI). No TDL, as crianças frequentemente atrasam a aquisição da fala, que, como visto, emerge com significativos déficits em diferentes níveis linguísticos. Com isso, quando se pensa em diagnóstico diferencial no TEA, não se pode considerar apenas o atraso na aquisição da fala, ou mesmo as inadequações linguísticas apresentadas pelo sujeito. Mesmo as alterações de linguagem mais comumente relacionadas ao TEA, como dificuldades na compreensão de metáforas e figuras de linguagem, ou alterações discursivas, como dificuldade em manter o tópico conversacional, também podem ser observadas em sujeitos com TDL ou, ainda, em quadros de transtorno de comunicação social- -pragmático (ARVIGO et al., 2018; ARVIGO; SCHWARTZMAN, 2020). Segundo Arvigo e Schwarztman (2020), o desenvolvimento infantil é multifacetado – habilidades motoras, cognitivas, linguísticas, sociais e culturais emergem quase que simultaneamente e se aprimoram de maneira contínua e, algumas vezes, sobrepondo-se. Essas facetas es- tão em conexão e, assim como na aquisição, as habilidades se impul- sionam; nos déficits, as inabilidades barram evoluções. Com isso, é possível observar crianças com atraso de linguagem e que apresentam comportamentos semelhantes àqueles observados no TEA. Entretanto, esses comportamentos estão apenas vinculados às alterações linguísticas e, assim que a fala emerge, eles cessam, diferentemente do que ocorre no TEA, em que os comportamentos persistem ao longo da vida. Investigação precoce e o desenvolvimento da lingua- gem em crianças pequenas é um manual sobre aqui- sição da linguagem em crianças de 0 a 36 meses. De fácil aplicação e com- posto por protocolos que se propõem instrumen- talizar tanto profissionais da área da saúde quanto profissionais da educação e familiares, apresenta atividades práticas para utilização em casa e em creches, além de indica- ções que possibilitam an- tecipar atrasos e possíveis desvios na aquisição. BELLO, F. S.; MACHADO, A. C. Ribeirão Preto: Editora e Livraria Booktoy, 2015. Livro 26 Comunicação e linguagem no autismo Um bom exemplo desses comportamentos semelhantes ao TEA em crianças com atraso de linguagem é o uso do choro como resposta co- municativa e a dificuldade de autorregulação. Em crianças com atra- so de linguagem, tais comportamentos se devem à falta de repertório comunicativo e, assim que a fala começa a se desenvolver, eles são substituídos por comportamentos de linguagem mais adaptados so- cialmente, como fazer pedidos simples e verbalizar um desconforto. Já no TEA, as dificuldades e inabilidades tendem a se sobrepor, de modo que, muitas vezes, quando a criança adquire uma habilidade importan- te, substituindo uma inadequação específica, outra dificuldade pode ocorrer no lugar, ou mesmo os déficits diminuem em intensidade e fre- quência, mas não zeram por completo. Arvigo e Schwartzman (2022) apresentam resultados de uma pes- quisa longitudinal com crianças autistas que receberam diagnóstico bem cedo e iniciaram intervenção precoce. Foram observados a dimi- nuição dos sinais nucleares de TEA e o aumento da qualidade de vida, mas, ainda assim, algumas dificuldades permaneciam sutilmente, prin- cipalmente nas áreas de linguagem e comunicação social. Apesar disso, o que se sabe é que o reconhecimento das dificuldades e a intervenção precoces são importantes aliados para o bom desenvolvi- mento da linguagem e a minimização das alterações em quadros nos quais os déficits são inevitáveis,como no transtorno do espectro do autismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Aquisição e desenvolvimento da linguagem são processos contínuos que se iniciam muito antes de a criança emitir os primeiros sons e culminam na produção de frases complexas que possibilitam a expressão da criatividade, a contação de histórias e a manifestação pública do pensamento. Para que esse processo ocorra sem grandes dificuldades e percalços, a criança se mune de importantes habilidades sociocomunicativas, como aten- ção compartilhada, imitação e uso de gestos, que impulsionam essa aquisição. Como se viu neste capítulo, ao longo desse processo, a criança atinge importantes marcos. Por volta dos 12 meses, as primeiras palavras emer- gem, evoluindo para frases simples aos 24 meses e frases complexas aos 36 meses, até que, por fim, entre os quatro e cinco anos, chega-se a uma fala muito próxima daquela apresentada pelo adulto. Desenvolvimento típico da linguagem 27 ATIVIDADES Atividade 1 A existência de uma “janela do desenvolvimento” pode ser conside- rada uma evidência para a máxima popular: “cada criança tem seu tempo”? Por quê? Atividade 2 Como os termos-chave comunicação, linguagem e fala se relacio- nam e qual é a importância em compreender tal relação e saber distinguir esses termos entre si? Atividade 3 “A fala não surge do nada”. O que essa afirmação quer dizer? REFERÊNCIAS APA – American Psychiatric Association. DSM-5: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. ARVIGO, M. C. et al. Transtorno do espectro do autismo e comunicação. In: AMATO, C. A. L.; BRUNONI, D.; BOGGIO, P. S. (org.). Distúrbios do desenvolvimento: estudos interdisciplinares. São Paulo: Memnon, 2018. ARVIGO, M. C.; SCHWARTZMAN, J. S. Parece TEA, mas não é: desafios do diagnóstico diferencial nos transtornos do espectro do autismo. In: SERRA, T. (coord). Autismo: um olhar a 360°. São Paulo: Literare Books International, 2020. ARVIGO, M. C.; SCHWARTZMAN, J. S. Diminuição dos principais sinais de TEA em crianças com diagnóstico precoce. Revista Neurociências, v. 30, p. 1-30, 2022. FREITAS, M. L. L. U. A evolução do jogo simbólico na criança. Ciências & Cognição, v. 15, n. 3, p. 145-163, dez. 2010. GROLLA, E.; FIGUEIREDO SILVA, M. C. Para conhecer aquisição da linguagem. São Paulo: Contexto, 2014. INÁCIO, S. I. M. Comunicação, linguagem e fala: realidade e desafios de educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico em contexto educativo. Dissertação (Mestrado em Educação Especial – Domínios Cognitivo e Motor) – Universidade do Algave, Portugal, 2019. 28 Comunicação e linguagem no autismo MÄÄTTÄ, S. et al. Continuity form prelinguistic communication to later language ability: a follow-up study from infancy to early age. Journal of Speech, Language and Hearing Research, v. 59, n. 6, p. 1357-1372, 2016. MARTINS, G. et al. Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatório. Portugal: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/ bitstream/10216/111313/2/259064.pdf. Acesso em: 1 set. 2022. MENEZES, M. L. ADL-2: avaliação do desenvolvimento da linguagem. 2. ed. rev. Edição da autora, 2019. PINKER, S. The language instinct: how the mind creates. Boston: MIT Press, 1994. RÜDIGER, F. As teorias da comunicação. 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O TEA é uma condição muito abrangente, variando entre quadros le- ves, em que se observa apenas inadequações sociais, como dificuldade de socialização, associadas a alterações leves ou sutis de linguagem, e outros quadros com maior grau de severidade, muitas vezes, com defi- ciência intelectual associada, questões importantes de comportamento e, em alguns casos, ausência de fala funcional. Segundo Arvigo e Schwartzmann (2022), nas últimas décadas, houve crescimento no número de pesquisas e grandes avanços no desenvol- vimento de técnicas de avaliação e de terapias eficazes, favorecendo o diagnóstico mais cedo e levando a intervenções cada vez mais precoces. Quanto mais cedo o processo terapêutico se inicia, maiores são as chan- ces da diminuição de déficits e comportamentos que comprometem a fun- cionalidade e a adaptação do sujeito, propiciando maior qualidade de vida. Para tal, é de suma importância conhecer os processos que levam ao advento de uma comunicação eficaz e assim antever qual o caminho que aquela criança precisará tomar para se tornar independente e eficiente linguisticamente. O presente capítulo tenta oferecer recursos para a melhor compreensão de como se dá o desenvolvimento da comunicação em crianças com TEA, em todas as suas possibilidades, e quais barreiras podem compreender sua evolução linguística, de tal maneira que seja possível buscar estratégias que favoreçam a interação e a inclusão do sujeito com TEA em sua comunidade. 30 Comunicação e linguagem no autismo Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • compreender o desenvolvimento das habilidades sociocomunicativas e cognitivas no TEA; • entender sobre as diferentes formas de manifestação da comunica- ção nos diferentes níveis de funcionalidade do TEA, levando em conta a heterogeneidade do TEA. • entender sobre a importância da CAA e sua aplicabilidade nos quadros do TEA. Objetivos de aprendizagem 2.1 As habilidades sociocomunicativas e o TEA Vídeo Para que a aquisição da linguagem ocorra sem grandes percalços, a criança precisa desenvolver alguns pré-requisitos durante a fase da pré-linguagem. Esses pré-requisitos, as chamadas habilidades socioco- municativas, funcionam como gatilhos para o surgimento de habilida- des cognitivas complexas como a fala. O transtorno do espectro do autismo (TEA) representa uma altera- ção específica no processo de aquisição e desenvolvimento da lingua- gem e da comunicação, pois se observa um desvio nítido do processo de desenvolvimento infantil, com aquisições incomuns à comunicação e não esperadas para a faixa etária. Muitas das crianças diagnosticadas com TEA se enquadram em al- gum grupo de risco inicial, como prematuridade ou presença de atraso global no desenvolvimento. Há uma grande variabilidade na forma e na intensidade de expressão do autismo, tanto em relação às questões comportamentais quanto à aquisição e ao desenvolvimento da lingua- gem (ARAÚJO; SCHWARTZMAN, 2018). Com o avanço das pesquisas, o TEA passou a ser compreendido como uma condição de início precoce,afetando o desenvolvimento do indivíduo ao longo de toda a sua trajetória de vida. Trata-se de uma síndrome comportamental complexa com etiologias múltiplas, combi- nando fatores genéticos e ambientais. Segundo Ozonoff e Iosif (2019), os primeiros sinais que predizem o TEA podem estar presentes desde muito cedo, antes mesmo da faixa etária dos 12 meses, justamente no período da pré-linguagem quando habilidades essenciais para a aquisição da fala começam a emergir. Sendo assim, é esperado entre as crianças com TEA déficits ou atra- sos na aquisição das habilidades sociocomunicativas, como a atenção compartilhada, a imitação e até mesmo o uso de comunicação gestual. Tais déficits são considerados sinais de risco ou de alerta para o TEA, os chamados sinais ou bandeiras vermelhas (do inglês red flags). Os primeiros sinais de TEA variam de criança para criança, tanto em quantidade de sintomas quanto na intensidade das manifesta- ções. Sabe-se que quanto mais precoce a manifestação e quanto maior o número de sinais presentes no bebê risco para o espectro, maior a se- veridade do quadro. Além disso, quanto menor o déficit nas habilidades sociocomunicativas, ou quanto mais intactas estiverem tais habilidades, maior a probabilidade de essa criança desenvolver habilidades comuni- cativas, alcançando a fala funcional (SACREY et al., 2018). É importante entender que, mesmo nos casos mais severos de TEA, não há ausência de habilidades sociocomunicativas, ou seja, habili- dades como imitação ou atenção compartilhada estão presentes em todos os quadros, o que difere entre eles é a maneira como se mani- festam e a intensidade ou frequência com que ocorrem. Em outras pa- lavras, comportamentos como olhar para o seu interlocutor enquanto brinca com um item de grande interesse podem ocorrer de maneira mais restrita – por exemplo, apenas com a mãe ou com um brinquedo de grande interesse (chamado reforçador de alta magnitude). Entretan- to, eles ocorrem sem extrapolar a todos os ambientes ou interlocuto- res, como ocorre com a criança com desenvolvimento típico. Esses sinais de risco para o TEA em crianças pequenas, até os 30 meses, extrapolam os comportamentos atípicos para o desenvolvi- Bl ur ry M e/ Sh ut te rs to ck Comunicação no transtorno do espectro do autismoComunicação no transtorno do espectro do autismo 3131 32 Comunicação e linguagem no autismo mento e se manifestam, também, sob a forma de atrasos de marcos importantes do desenvolvimento típico, como imitação, sorriso social, balbucios e vocalizações, sendo que, na maioria das vezes, é necessária a intervenção precoce para que os marcos sejam atingidos e ultrapas- sados, ainda que tardiamente (CARVALHO et al., 2013). Aparentemente, a diferença entre o grupo de crianças típicas, crianças com outros transtornos do neurodesenvolvimento – como transtorno do desenvolvimento da linguagem (TDL) – e crianças com TEA está na intensi- dade e na persistência dos sinais e sintomas ao longo dos meses ou anos. A seguir, apresenta-se em maiores detalhes as habilidades socioco- municativas, que emergem ao longo da pré-linguagem, e que funcio- nam como gatilhos para a aquisição da fala e da linguagem. Visto que os sinais precoces de TEA podem ser observados na faixa etária dos 12 aos 24 meses, período crucial para o progresso da criança para a fase linguística, as habilidades sociocomunicativas serão apresen- tadas em subseções, divididas com base nas áreas de habilidades so- ciais, linguísticas e simbólicas, abordando tanto a aquisição típica quanto a maneira como essas habilidades se apresentam nos quadros de TEA. 2.1.1 Habilidades sociais As habilidades cognitivas – também chamadas de habilidades socio- comunicativas – que emergem no período da pré-linguagem, podem ser divididas em três áreas: sociais, linguísticas e simbólicas (MÄÄTTÄ et al., 2016). No desenvolvimento típico, tais habilidades emergem naturalmente diante das experiências do bebê com o meio e seus interlocutores, pro- movidas pela maturidade neurológica. Nos transtornos que afetam o desenvolvimento infantil, essas habilidades se encontram deficitárias, por vezes bloqueadas ou substituídas por comportamentos atípicos que atuam como barreiras para o seu desenvolvimento. Algumas habilidades cognitivas ou sociocomunicativas da pré-lin- guagem possuem grande influência no desenvolvimento das habi- lidades de interação interpessoais, em especial a cognição social e a pragmática (BOSA; SALLES, 2018). A dificuldade em manter o contato visual é considerada um dos principais sintomas dos quadros de TEA, visto que crianças e adultos Comunicação no transtorno do espectro do autismo 33 com autismo tendem a apresentar baixo contato visual e comporta- mento de esquiva durante a interação, mesmo naqueles com perfil sin- tomatológico mais leve. Pesquisas atuais em neurociências (SIMPSON et al., 2019) relatam a importância dos olhos no desenvolvimento da cognição social, seja por meio do rastreamento ocular, permitindo ao sujeito rastrear e man- ter atenção em pistas sociais presentes no ambiente, seja por meio do contato visual, abrindo portas para o desenvolvimento de outras habi- lidades cognitivas como a imitação e a linguagem. Diferentemente das crianças neurotípicas, o contato ocular atípico das crianças com TEA é caracterizado por redução no tempo de aten- ção ocular na região da face, na chamada zona T, que percorre a área dos olhos, nariz e boca, mantendo a atenção na periferia da face, na região das orelhas e na boca. Bebês com desenvolvimento típico, logo nas primeiras horas de vida, mantêm longos períodos de contato visual com a mãe durante a ama- mentação. Nos primeiros meses de vida o olhar mútuo desempenha im- portante papel no vínculo entre o bebê e o cuidador (SIMPSON et al., 2019). Diversas pesquisas (BELLINI; FERNANDES, 2007; OLIVEIRA, 2015) in- dicam que o bebê neurotípico, na faixa etária dos seis meses, é capaz de detectar faces de maneira eficiente, em diferentes contextos e na presença de itens competitivos, e o tempo de fixação em figuras huma- nas é mais longo em comparação a faces não humanas. Por outro lado, bebês com sinais de risco para TEA apresentam bai- xo contato visual durante a amamentação, segundo relato de pais de crianças que, mais tarde, receberam o diagnóstico. Muitas vezes, esses bebês não apresentam regulação do choro mesmo no colo das mães, esquivando ao contato físico e ocular. Uma das habilidades preditoras da linguagem mais estudada é a atenção compartilhada, sendo considerada em pesquisas recentes como o principal sinal preditor do TEA e de grande importância no diag- nóstico diferencial entre os demais transtornos que se manifestam na primeira infância (BOSA; SALLES, 2018). Segundo Tomasello (2003), a atenção compartilhada é definida como a habilidade em coordenar atenção entre pessoas e objetos com a finalidade social; trata-se de um conjunto de comportamentos vol- 34 Comunicação e linguagem no autismo tados para o compartilhamento de experiências de um indivíduo com seu parceiro social. Tais comportamentos são triádicos, ou seja, envol- vem a coordenação da atenção da criança e do adulto em relação a um determinado objeto ou evento. A habilidade de atenção compartilhada pode ser dividida em três comportamentos: resposta de atenção compartilhada (RAC), iniciativa de atenção compartilhada (IAC) e iniciação de compartilhamento de so- licitação (ICS). Dentre as três, as duas primeiras são iniciais e esperadas na primeira infância, enquanto a terceira emerge em decorrência do aperfeiçoamento das habilidades anteriores. RAC diz respeito à capacidade de seguir a direção do olhar e dos gestos de outras pessoas, ainda que a atenção esteja focada em outra atividade, como durante uma brincadeira, em que a atenção da criança é chamada pelo adulto que aponta para outro item do outro lado da sala; essa habilidade de rastrear o local a partir do gesto indicativo do seu interlocutoré caracterizada como RAC. Já o contrário, a capacidade de a criança direcionar a atenção do seu interlocutor utilizando um olhar associado a gestos e vocalizações, espontaneamente, caracteriza a IAC. Quando a criança se mostra capaz de ganhar a atenção do outro e direcioná-lo apenas com o olhar, essa habilidade é denominada ICS (TOMASELLO, 2003; ZANON; BACKES; BOSA, 2015; BOSA; SALLES, 2018). Nas crianças com TEA, mesmo nos quadros mais leves, as habili- dades de atenção compartilhada demoram para emergir e quando se estabelecem ocorrem com comportamentos atípicos como dificuldade em manter atenção ao estímulo, ou a comunicação não verbal intencio- nal, que caracteriza a atenção compartilhada, acontecendo apenas em situações em que o objeto representa um reforçador de alta magnitu- de ou um reforçador primário. Em contrapartida, em crianças com desenvolvimento típico as habi- lidades de atenção compartilhada emergem por volta dos seis meses e se tornam estáveis por completo até os 12 meses, quando se inicia fase linguística (ZANON; BACKES; BOSA, 2015). Contato visual e atenção compartilhada são pré-requisitos para a aqui- sição da fala funcional e da comunicação intencional, de maneira que os déficits nessas habilidades cognitivas sociais previstos nos quadros de TEA impactam diretamente no desenvolvimento linguístico e da comunicação. No livro autobiográfico Olhe nos meus olhos: mi- nha vida com a síndrome de Asperger, John Elder Robison narra as suas dificuldades nas relações interpessoais, dentre elas a obrigatorieda- de de olhar nos olhos das pessoas enquanto interage. O texto traz um relato impressionante da trajetória de um adulto até chegar ao diagnóstico de TEA, aos 40 anos, em uma época em que esse diagnóstico de quadros leves era quase impossível de ocorrer. ROBISON, J. E. São Paulo: Larousse, 2006. Livro Reforçadores são itens ou reações geradas no inter- locutor que estimulam a criança a manter uma ação, um elogio, por exemplo, representa um reforço positivo social. A magnitude de um reforçador é medida na quantidade de interesse que ele desperta; reforça- dores de alta magnitude geram constante interesse da criança em comparação a outros reforçadores. Além disso, os reforçadores podem ser divididos em primários e secundários: reforçadores primários são universais e atuam desde o nascimento possuindo função primordial ligada à sobrevivência, como a ama- mentação ou outros tipos de alimentos ( MOREIRA; MEDEIROS, 2019). Saiba mais Comunicação no transtorno do espectro do autismo 35 2.1.2 Habilidades linguísticas O desenvolvimento da linguagem começa muito antes do surgimen- to das primeiras palavras. Na fase da pré-linguagem, habilidades co- municativas não verbais, como gestos e vocalizações, possuem papel crucial no desenvolvimento da intencionalidade comunicativa que cul- minará na fluência verbal, ou seja, na fala funcional e fluente. O desenvolvimento atípico de habilidades comunicativas nos pri- meiros anos de vida representa um importante sinal de risco para o TEA, dentre essas alterações estão desde funções cognitivas que pro- pulsionam a aquisição da linguagem até habilidades linguísticas como balbucios e vocalizações (ARVIGO et al., 2018). Diversas pesquisas (CARVALHO et al., 2013; ARVIGO et al., 2018; SACREY et al., 2018; dentre tantos outros) sugerem que a comunicação da criança com TEA, na faixa etária de dois anos, seja mais restrita que aquela apresentada por seus pares típicos. O bebê com sinais de risco para autismo é caracterizado como mais silencioso, produzindo poucas vocalizações e balbucios. Apesar de o atraso na aquisição da linguagem oral ser o fator de maior preocupação dos pais, mobilizando-os na busca por ajuda profissional, as primeiras dificuldades acometem o desenvolvimen- to sociocomunicativo, mais especificamente as habilidades não ver- bais, como a comunicação gestual. Os gestos são considerados por diversos pesquisadores e estudio- sos (NOGUEIRA, 2009; LIMA; CRUZ-SOUZA, 2012; SILVA; CARVALHO; SOUZA, 2020) como a primeira ferramenta da comunicação simbólica, uma vez que, apesar de os bebês iniciarem as vocalizações e balbucios bem cedo, é por meio dos gestos que as crianças veiculam e estrutu- ram suas primeiras intenções comunicativas. Por volta dos 10 meses o bebê com desenvolvimento típico já apre- senta um conjunto vasto e rico de gestos, utilizando-os para exprimir suas emoções como bater palmas quando está alegre ou animado com uma brincadeira. Outro grupo de gestos também presente nessa faixa etária são os gestos instrumentais os quais são usados pela criança para controlar o comportamento do outro, estendendo os braços para conseguir colo ou pegando o adulto pela mão e o direcionando até algo de seu interesse (LIMA; CRUZ-SANTOS, 2012). 3636 Comunicação e linguagem no autismoComunicação e linguagem no autismo Enquanto o bebê neurotípico transita rapidamente dos gestos ins- trumentais para outras qualidades de gestos como os referenciais e dêiticos, a criança com TEA mantém os instrumentais como a base para sua comunicação, de maneira que, muitas vezes, outras formas mais funcionais e efetivas de comunicação acabam sendo substituídas ou mesmo deixadas em segundo plano dada a preferência pelo uso desse tipo de gesto (AMATO; FERNANDES, 2010). Os gestos referenciais são movimentos que indicam, fazem referên- cia a um desejo ou uma ação, como unir as palmas da mão trazendo-as junto ao rosto, indicando sono ou fazendo referência à ação de dormir. Os gestos dêiticos funcionam na primeira infância como importantes complementos à fala, ainda em processo de aquisição e, por isso, res- trita e pouco fluente. Tais gestos auxiliam as crianças nos pedidos, ao apontarem para o item desejado, ou favorecem a interação e compar- tilhamento de interesses, apontando para algo que tenha despertado o seu interesse, mostrando e compartilhando o momento com seu inter- locutor (LIMA; CRUZ-SANTOS, 2012). Inicialmente, a criança com desenvolvimento típico utiliza apenas gestos como forma comunicativa, passando, aos poucos, a associá-los a vocalizações intencionais e, até mesmo, a palavras. Ou seja, quando o bebê quer alcançar um brinquedo, no começo da aquisição, ele ape- nas aponta e olha para o adulto para ser atendido. Pouco a pouco esse apontar passa a ser acompanhado por vocalizações ou balbucios com- plexos que são gatilhos ou iniciais de palavras conhecidas até que, por fim, a criança passa a apontar associando o gesto a uma palavra como áua, na intenção de trazer a mensagem quero água. Segundo Lima e Cruz-Santos (2012), com a aquisição das primeiras pala- vras e conforme a criança neurotípica passa a dominar a linguagem expres- siva, a comunicação gestual recebe uma função complementar à fala, tornando-se um facilitador comunicativo, favorecen- do a comunicação e a compreensão da criança pelos adultos ao seu redor. A criança com TEA faz uso restrito da comuni- cação gestual, lançando mão de um repertório limitado, composto em sua maioria por gestos instrumentais (ZAQUEU et al., 2014). Mesmo os su ra ch et 19 69 /S hu tte rs to ck Comunicação no transtorno do espectro do autismo 37 sujeitos com TEA que desenvolvem fala funcional e apresentam poucos déficits comunicativos utilizam poucos gestos como recurso facilitador, centralizando a comunicação na linguagem oral. 2.1.3 Habilidades simbólicas Assim como as habilidades sociais e linguísticas presentes na pré- -linguagem são fundamentais para o desenvolvimento da linguagem e do desenvolvimento global, a maturidade simbólica também desempe- nha valioso papel nesse processo. Atividades que envolvem o simbólico, como a imitação, a brincadeira simbólica e a sequência do brincar simbólico, possuem relação próxima com o desenvolvimento da comunicação e da linguagem, e o seu desen- volvimento ocorre de modo associado a outras habilidades cognitivas em uma relação em que uma habilidade alavancaoutra, e vice-e-versa. Segundo a teoria piagetiana, a função simbólica consiste na capacida- de da criança de diferenciar significantes e significados, representando um objeto ou acontecimento (significado) por meio de um significante di- ferenciado e apropriado para essa representação (PIAGET, 1998). Dessa forma, o significante pode ser uma representação lúdica, o uso de gestos ou mesmo de palavras; a função simbólica não trata apenas do brincar simbólico, mas de todas as possibilidades de representação. As habilidades linguísticas mais complexas, como significação, or- ganização do léxico e estrutura linguístico-pragmática, dependem da capacidade de representação e, por esse motivo, diz-se que a maturi- dade simbólica e a linguagem têm seu desenvolvimento apoiado em habilidades semelhantes, já que ambas dependem da utilização de um elemento representativo de um referencial, seja um objeto, seja uma pessoa, ou mesmo um lugar ou ação. A entrada no mundo simbólico é fato preponderante para o desen- volvimento linguístico e para que a criança consiga atingir níveis eleva- dos de abstração e complexidade linguística. Segundo Uzum de Freitas (2010), ao longo do desenvolvimento, a criança típica passa por alguns estágios até atingir a maturidade sim- bólica. Inicialmente, o bebê apenas explora sensorialmente os objetos, utilizando as diferentes portas sensoriais (tato, visão, audição e gustati- va). Na fase pré-simbólica, entre os 10 e 12 meses, a criança reconhece O curta-metragem Fixing Luka é uma história autobiográfica que narra a visão de uma menina sobre o irmão com autis- mo. Interessante para se observar o comportamen- to restrito e repetitivo, em alguns momentos, manifestos no “brincar” de empilhar coisas. Enredo bastante sensível que retrata a busca da irmã, feita de pano e flexível, em consertar o irmão, feito de metal rígido e inflexível. Direção: Jessica Ashman. Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte: 2012. Filme 3838 Comunicação e linguagem no autismoComunicação e linguagem no autismo o uso do objeto, explorando-o de maneira funcional, ou seja, ela en- caixa os blocos, brinca com a bola jogando para cima ou empurrando, mas sem compartilhar, empurra o carrinho de um lado a outro, com- preendendo a função das rodinhas. Pouco depois, a criança inicia o estágio auto simbólico, dos 12 aos 22 meses, simulando ações que são parte do seu repertório e que estão di- retamente envolvidos com o próprio corpo, passando a simular ações de comer, dormir, dentre outras. Por volta dos dois anos se inicia o jogo simbólico, primeiramente com o estágio simbólico assimilatório, quando a criança simula ações invertendo papéis, incluindo outros itens nas ações, como dar comidinha para a boneca. Na sequência, inicia-se o estágio do jogo simbólico imitativo, quando a criança imita ações normalmente asso- ciadas ao adulto, como emular ser o médico que cuida das bonecas. Próximo aos 42 meses, a criança desenvolve o brincar criativo, no es- tágio simbólico com objeto substituto, substituindo itens como transfor- mar um pedaço de madeira em aviãozinho. Os estágios seguintes são do jogo simbólico combinatorial simples e múltiplo, quando a criança passa a combinar uma sequência de ações de diferentes agentes, como dar comida para vários “bichinhos” (combinatorial simples) ou dar diferentes significados para o mesmo item, como pegar os blocos de encaixe e colo- car na “panelinha” fingindo ser comida (combinatorial múltiplo). A criança com TEA apresenta dificuldade na simbolização, desde o uso da comunicação ao desenvolvimento do brincar. Nos quadros mais seve- ros, o brincar visa uma busca sensorial, em que o interesse está voltado Monkey Business Images/Shutterstock Comunicação no transtorno do espectro do autismo 39 para os sons que o objeto produz ou para a textura da sua superfície; a criança tende a bater ou esfregar os objetos no chão, explorando os ruídos que são produ- zidos, por exemplo (BOSA; SALLES, 2018). Uma das principais características do TEA é a in- flexibilidade mental e a dificuldade em lidar com questões abstratas. Tais características podem ser observadas no desenvolvimento simbólico, uma vez que as crianças com autismo, mesmo com os quadros mais leves, não conseguem desenvolver o brincar criativo, tendendo a atribuir apenas significados e funções concretas aos itens (ARVIGO et al., 2018). Além disso, as crianças no espectro variam pouco o repertório de brincadeiras e na escolha dos itens, indicando hi- perfoco em determinados temas e interesse restrito. 2.2 Características da comunicação em sujeitos com TEA Vídeo Os prejuízos na comunicação no TEA afetam tanto habilidades verbais como não verbais. Como vimos, é possível observar que logo na fase da pré-linguagem a criança com TEA apresenta um desenvolvimento atípico, desviando daquele observado em seus pares de mesma faixa etária. Os déficits na comunicação não verbal se mantêm com uso restrito de gestos comunicativos, pouca ou nenhuma mímica facial, sorriso so- cial difuso ou descontextualizado. Dentre os autistas verbais, isto é, que apresentam fala eficiente e fluente, a comunicação tende a ser focaliza- da na linguagem expressiva, sendo a fala o principal meio comunicativo, com escasso uso de estratégias complementares, como gestos comuni- cativos enfáticos, descritivos ou informativos (ARVIGO et al., 2018). Mesmo na comunicação escrita é possível observar alterações ou prejuízos específicos ao quadro. Uma das principais características do TEA é a variabilidade com que as manifestações se apresentam, e na aprendizagem das habilidades acadêmicas essa máxima não é diferente. As habilidades escolares variam entre os sujeitos com TEA, sendo pos- sível encontrar crianças com importantes atrasos e prejuízos no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, em contrapartida há aquelas que alphaspirit.it/Shutterstock 40 Comunicação e linguagem no autismo seguem o curso típico da aprendizagem e ainda um pequeno grupo com altas habilidades em áreas acadêmicas específicas (MICCAS et al., 2021). Se por um lado tem-se sujeitos que desenvolvem fala fluente, muitas vezes com poucas inadequações observáveis, com apenas alterações na comunicação social, tornando o sujeito apenas desajeitado social- mente, por outro lado, existem sujeitos que não desenvolvem lingua- gem oral funcional o suficiente para se fazerem compreendidos. Para suprir a necessidade comunicativa desses sujeitos, tem-se recursos que suplementam e ampliam as habilidades comunicativas deficitárias. A próxima subseção apresenta a teoria por trás da implementação da comunicação alternativa e aumentativa (CAA). Pensando nela, nota-se que estudar a aquisição e o desenvolvimen- to da comunicação e da linguagem no TEA é lidar com extremos que ultrapassam os limites comuns entre o sujeito que utiliza linguagem oral com maestria com apenas alguns deslizes pragmáticos e aquele que não adquire fala. Mesmo em cada um desses extremos é possível encontrar diferenças e comportamentos paradoxais. Entre os sujeitos autistas verbais encontra-se aqueles com dificul- dades importantes na linguagem expressiva com pensamento rígido e dificuldade em compreender expressões idiomáticas e metáforas, e outros que são poliglotas, com desenvoltura na linguagem metafórica e que até mesmo escrevem poesia (ARVIGO et al., 2018). O mesmo ocorre entre os quadros não verbais: não falar não impli- ca em não compreender e não saber se expressar. Nesse grupo tem-se sujeitos que adquirem um repertório de palavras bastante limitado, e aqueles que, apesar de não emitirem uma única palavra oralmente, são extremamente comunicativos e se expressam por meio de outros meca- nismos, como voz sintética ou mesmo a escrita ou a linguagem de sinais. Em 2004, a Associação Americana de Especialistas em Fala, Lin- guagem e Audição (American Speech-language and Hearing Association – ASHA) lançou um comunicado enfatizando a
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