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Bioética: Clonagem, Célula-Tronco Marcela Santos Procópio Bioética: Clonagem, Célula-Tronco 2 Introdução Este conteúdo traz uma abordagem elucidativa sobre clonagem germinativa e terapêutica e células-tronco, destacando aspectos relevantes no âmbito desses dois temas. A primeira parte deste conteúdo versa sobre os conceitos e técnicas empregadas para a realização da clonagem, tanto com objetivo reprodutivo quanto terapêutico. Também abordaremos os aspectos bioéticos inerentes ao processo de clonagem em animais e em humanos, salientando os riscos e benefícios potenciais das técnicas para a saúde, bem como as questões morais e éticas que devem ser avaliadas. Para complementar, veremos as principais normas jurídicas nacionais e internacionais que regulamentam os diferentes tipos de clonagem. Na segunda parte deste conteúdo, veremos os principais tipos de células-tronco – embrionárias e adultas, assim como suas potenciais aplicações em terapias e medicina. Abordaremos os diversos dilemas bioéticos e polêmicas envolvendo as pesquisas com células-tronco embrionárias, como o conceito de vida e o status jurídico do embrião. Diante dos conflitos éticos, ainda veremos as principais legislações mundiais e nacionais acerca das permissões e regulação do uso de embriões em pesquisa. Objetivos da Aprendizagem Ao final deste conteúdo, esperamos que possa: • Elucidar os aspectos éticos e jurídicos que envolvem as pesquisas e a aplica- ção terapêutica da clonagem. • Compreender os aspectos éticos e jurídicos da realização de pesquisas envol- vendo a utilização dos diferentes tipos de células-tronco. 3 Clonagem germinativa e terapêutica Os avanços tecnológicos em biotecnologia propiciaram o surgimento de técnicas inovadoras como a clonagem, que é um mecanismo para produzir indivíduos geneticamente idênticos ao progenitor. Esta técnica pode ser utilizada com a finalidade reprodutiva, para gerar uma prole idêntica ao doador, como é o caso da ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado do mundo ou, ainda, a técnica pode ter finalidade terapêutica, em que as células-tronco do “embrião” gerado por clonagem podem ser utilizadas para a geração de tecidos e órgãos em laboratório. Em todos os casos, surgem dilemas éticos inerentes ao processo de clonagem, como: o que fazer com os clones que apresentarem defeitos? Quem são os pais do indivíduo clonado? Como selecionar quem será clonado? Estas e outras questões pertinentes levantam debates. Por isso, diversas normas foram criadas, tanto em âmbito internacional quanto nacionalmente, para regulamentar o tema. Figura 1 – Ovelha Dolly empalhada no Royal Museum of Scotland, em Edimburgo, Escócia. Fonte: Wikipedia (2021). #PraCegoVer: Na imagem, há uma ovelha branca empalhada em uma redoma de vidro. O que é Clonagem? Clonagem é um mecanismo por meio do qual são produzidos seres geneticamente idênticos a seus progenitores, sendo um processo comum de propagação de espécie em plantas e bactérias (reprodução assexuada). Portanto, um clone é um indivíduo que se origina de um organismo, idêntico a ele. Em humanos, o único caso de clones naturais são os gêmeos idênticos (univitelinos), que se originam do mesmo zigoto e, por isso, têm o mesmo genótipo (ZATZ, 2004). 4 No século XX, com o advento de tecnologias inovadoras em biomedicina, tornou- se possível, em laboratório, clonar um mamífero, a ovelha Dolly, a partir de células somáticas diferenciadas, o que abriu um caminho para a possibilidade de clonagem em humanos, já que a técnica permitiu a reprogramação de uma célula já diferenciada. A clonagem em laboratório pode ser feita, basicamente, de duas formas: separando- se as células de um embrião em seu estágio inicial de multiplicação celular ou pela substituição do núcleo de um óvulo por outro proveniente de uma célula de um indivíduo já existente. O primeiro processo é semelhante àquele que ocorre naturalmente em gêmeos univitelinos, que têm origem em um mesmo zigoto (SCHLINK, 2014). Com exceção das células sexuais (oócito e espermatozoide), que apresentam 23 cromossomos, a espécie humana compreende 23 pares de cromossomos (46 no total) em cada uma de suas células. Estas células, com 46 cromossomos, são chamadas células somáticas. Saiba mais A segunda forma de clonagem é denominada clonagem reprodutiva e, nesta técnica, é feita a transferência do núcleo de uma célula somática de um indivíduo para um óvulo enucleado (seu núcleo é previamente retirado). Em seguida, esta célula começa a se comportar como um óvulo recém-fecundado por um espermatozoide, sendo transferido para um útero para se desenvolver. Temos, então, um indivíduo com o mesmo genótipo e as mesmas características físicas do doador da célula somática. É como um gêmeo idêntico nascido posteriormente. Esta é a técnica que foi utilizada para clonar a ovelha Dolly, em 1996 (SCHLINK, 2014; ZATZ, 2004). No entanto, esta técnica é extremamente complexa e apresenta baixas taxas de sucesso. A Dolly só nasceu depois de 276 tentativas que fracassaram. Posteriormente, outras tentativas de clonagem usando diferentes mamíferos, como camundongos, porcos e bezerros também demonstraram baixas taxas de sucesso. Além disso, observou-se que os poucos animais clonados apresentavam diversos tipos de anormalidades e defeitos de saúde, como problemas cardíacos e imunológicos (ZATZ, 2004). O primeiro clone brasileiro gerado a partir de células de um animal adulto foi a Penta, uma bezerra produzida por pesquisadores da Unesp, em 2002. Penta morreu com pouco mais de um mês de idade. Curiosidade 5 Por outro lado, uma importante aplicação da clonagem em medicina é a chamada clonagem terapêutica. Nesta técnica, o óvulo enucleado recebe o núcleo de uma célula somática de um indivíduo e é estimulado em laboratório para formar um “embrião”. Neste caso, o embrião não é implantado em um útero com objetivo reprodutivo, mas cultivado em laboratório para dar origem a células-tronco embrionárias que poderão ser usadas em terapias. Estas células indiferenciadas podem fabricar diferentes tecidos e órgãos, que podem ser usados em transplantes e terapias, com a vantagem de evitar rejeição, já que o doador do núcleo da célula é a própria pessoa. Um exemplo seria substituir o tecido cardíaco de uma pessoa que sofreu infarto, com o tecido produzido em laboratório a partir de células somáticas da própria pessoa (ZATZ, 2004). Figura 2 – Diagrama demonstrando o procedimento de clonagem reprodutiva e terapêutica. Fonte: Wikimedia Commons (2021). #PraCegoVer: Na imagem, há um diagrama com setas mostrando o processo de clonagem. À esquerda, são observadas duas células: a doadora e o óvulo. Setas para a direita indicam a remoção do núcleo das duas células. A seta seguinte indica uma célula, demonstrando que o núcleo da célula doadora foi introduzido no óvulo. Outra seta para a direita aponta para um aglomerado de células, com a inscrição clone. Abaixo deste diagrama, observa-se a indicação dos dois tipos de clonagem: a reprodutiva, com uma seta para a direita saindo do aglomerado de células e indicando o termo barriga de aluguel; e terapêutica, com uma seta para a direita saindo do aglomerado de células e indicando um conjunto destas células separadas umas das outras. A seta seguinte indica o termo cultura celular. 6 Dilemas éticos que envolvem os diferentes tipos de clonagem A clonagem é uma técnica inovadora em biotecnologia que, inerentemente, traz diversos dilemas éticos e morais que devem ser analisados. Conforme apresentado anteriormente, a clonagem pode ter diferentes objetivos: reprodutivo ou terapêutico e cada um deles deve ser discutido separadamente à luz da bioética (SILVA, 2010). Quanto à clonagem reprodutiva, é possível observar que, além de ser pouco eficiente, com baixas taxas de sucesso, também traz inúmeras anomalias e defeitos aos animais clonados. Por outro lado, experiências com clonagem têm ensinado muito acerca do funcionamentocelular, sendo de grande benefício para a geração de conhecimento científico (ZATZ, 2004). Diversos animais foram clonados no mundo e a maior parte deles desenvolveu anomalias e defeitos de saúde. A ovelha Dolly sofria de uma doença pulmonar progressiva e foi abatida em fevereiro de 2003, aos 6 anos e meio. Além disso, foram observados defeitos cardíacos em porcos clonados, placentas anormais em ovelhas e gado, além de problemas imunológicos em carneiros. Saiba mais Já a clonagem terapêutica, mostra-se com importante potencial para o tratamento de doenças e transplantes de órgãos ou tecidos defeituosos. Esta clonagem pode ser equiparada a uma cultura de células, sem fins reprodutivos. Neste caso, o embrião não é implantado no útero e não há geração de um novo indivíduo, apenas de células. Além disso, o potencial de utilização dos tecidos para tratar inúmeras doenças e melhorar a qualidade de vida das pessoas torna a discussão ética mais favorável à técnica (ZATZ, 2004). Entretanto, mesmo a utilização da clonagem terapêutica traz questionamentos éticos. Discute-se a validade da geração de um novo ser para salvar outros, diante da utilização da clonagem para gerar um embrião que doará o tecido para o tratamento de pessoas já nascidas. Seria válido sacrificar uma vida para salvar outra? Neste caso, parece haver um reconhecimento de que existe uma dignidade crescente com o desenvolvimento da pessoa, sendo que um ser humano adulto tem sua dignidade plena em relação a um embrião clonado em laboratório que nem mesmo será implantado para nascer (SCHLINK, 2014). 7 Ademais, a simples possibilidade de clonar humanos suscita discussões éticas envolvendo aspectos morais, religiosos e sociais. Questiona-se diversos fatores advindos da técnica, como: quem será o pai ou a mãe do clone? Quem deve ser clonado? Quais os critérios? O que fazer com os clones que nascerem defeituosos? (ZATZ, 2004) Em 2018, na China, foram clonados os primeiros primatas do mundo pela técnica de substituição do núcleo de um óvulo por outro proveniente de uma célula de um indivíduo já existente. Os macacos clonados, Zhong Zhong e Hua Hua, tornam a possibilidade da clonagem de humanos mais próxima da realidade. Saiba mais, clicando aqui. Curiosidade Segundo Cohen e Oliveira (2020, p. 342 - 343), Percebemos que a Bioética surgiu da necessidade de compreender e repensar os “sintomas” da sociedade moderna. A reflexão bioética surgiu por meio da percepção das mudanças das relações psicossociais ocasionadas pelos grandes avanços científicos e tecnológicos, fazendo renascer o conflito entre ciências biológicas e as ciências humanas. Isso pode ser observado, atualmente, quando se relaciona a Bioética à reflexão sobre temas como eutanásia, aborto, reprodução assistida, clonagem e terapias gênicas. Tais temas provocam conflitos em valores preestabelecidos socialmente, com mudanças bruscas, como nas definições de vida, saúde e morte. Tais valores, por serem novos, necessitam da criação de parâmetros para serem incorporados à vida social e em uma elaboração individual. Portanto, a clonagem é uma técnica que traz diversos riscos e polêmicas, especialmente conflituosos, além de importantes definições sociais, como os conceitos de vida e morte. Por isso, é necessária uma ampla avaliação com diferentes setores da sociedade e comunidade científica para a definição dos parâmetros ética e moralmente aceitáveis em clonagem, tanto reprodutiva quanto terapêutica. 8 1 Ovelha Dolly (1996), Escócia. 2 Camundongo Cumulina (1997), Estados Unidos. 3 Gado Noto e Kaga (1998), Japão. 4 Cabra Mira (1998), Estados Unidos. 5 Gato Copy cat (2001), Estados Unidos. 6 Cavalo Prometea (2003), Itália. Aspectos jurídicos nacionais e internacionais em relação aos diferentes tipos de clonagem Ainda de acordo com Cohen e Oliveira (2020, p. 83), O Direito, como a ciência que deve regulamentar a vida em sociedade por meio de normas, é chamado a buscar soluções para novos desafios apresentados pelo avanço da tecnologia aplicada à vida humana e a todos os seres da natureza. Tornaram-se bastante conhecidos temas como células-tronco embrionárias, técnicas de reprodução assistida, clonagem reprodutiva ou terapêutica, aconselhamento genético, bancos de material biológico humano, de DNA e cordão umbilical, genoma 9 humano, terminalidade da vida e melhoramento da pessoa, para citar os mais comuns. Entretanto, o Direito não conseguirá apresentar respostas satisfatórias se não recorrer à interdisciplinaridade, em que a Bioética tem um papel fundamental. Somente um diálogo entre os vários profissionais facilitará a busca por parâmetros. Em face dos dilemas éticos envolvendo a clonagem, as regras e normas jurídicas são importantes para regulamentar as técnicas permitidas e o controle de riscos. Para tanto, a bioética é fundamental como ciência de reflexão, a fim de analisar todos os aspectos técnicos, morais e sociais advindos da clonagem. Com o surgimento de biotecnologias inovadoras e a clonagem bem-sucedida da ovelha Dolly, a comunidade científica internacional voltou-se para a análise dos riscos e polêmicas envolvendo a possibilidade da clonagem humana à luz da bioética. Neste momento, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) adotou a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, em 1997. É um texto abrangente, que trata de questões polêmicas, tanto de Bioética quanto para uma abordagem de Direitos Humanos, tais como: manipulação do genoma humano, clonagem humana e transgênicos, assim como aponta princípios e valores intangíveis. Outro importante regramento é a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, da Unesco, de 2004. Esta norma visa garantir o respeito da dignidade humana e a proteção dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais em matéria de recolha, tratamento, utilização e conservação de dados genéticos humanos, em conformidade com os imperativos de igualdade, justiça e solidariedade (COHEN, OLIVEIRA, 2020). Genoma é toda a informação genética hereditária de um ser vivo, codificada em DNA ou RNA. Em seres humanos, corresponde aos 22 pares de cromossomos autossomos e aos 02 cromossomos sexuais (X e Y), presentes no núcleo de todas nossas células somáticas. Saiba mais No Brasil, a Lei de Biossegurança, lei nº 11.105/2005, normatiza alguns aspectos envolvidos no procedimento de clonagem e, em seu artigo 6°, proíbe a clonagem e manipulação genética em célula germinativa, zigoto ou embrião humano. Esta lei ainda tipifica o crime de realizar clonagem humana, com a pena de reclusão de dois a cinco anos e multa (SCHLINK, 2014). 10 Há ainda a instrução normativa nº 08/97 do CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), que dispõe sobre a manipulação genética e clonagem em seres humanos. A norma também veda taxativamente a manipulação genética de células germinativas ou células totipotentes, bem como experimentos envolvendo qualquer técnica de clonagem em humanos (BRASIL, 1997). Células-Tronco Células-tronco são células indiferenciadas que têm o potencial de especializar- se em diversas células de diferentes tecidos. Podem ser embrionárias, aquelas presentes no embrião ao longo do desenvolvimento, ou adultas, aquelas que existem nos tecidos para garantir sua renovação celular. Em razão de sua indiferenciação, estas células apresentam um enorme potencial em medicina para ser utilizadas em terapias de regeneração tecidual de órgãos danificados ou transplantes. Entretanto, diversos dilemas éticos são enfrentados na utilização de células-tronco em pesquisa, especialmente as embrionárias. Estes dilemas envolvem questões éticas, filosóficas, científicas e religiosas de alta complexidade, como o momento de surgimento da vida e a dignidade e proteção do embrião. Para regular estes aspectos éticos e morais, diversospaíses criaram normas acerca do tema. No Brasil, a Lei de Biossegurança permite a pesquisa com células- tronco embrionárias, desde que sejam obtidas de embriões inviáveis ou descartados, sempre com o consentimento dos genitores. Figura 3 –Células-tronco embrionárias de camundongo Fonte: Wikimedia Commons (2021). #PraCegoVer: A imagem é uma micrografia de células-tronco embrionárias de camundongo. As células-tronco são arredondadas e estão marcadas em verde, com fundo cinza. 11 Entenda o que são as células-tronco e as suas aplicações As células-tronco são células indiferenciadas que ainda não possuem uma especialização e têm o potencial de diferenciar-se em diversas outras células do organismo. Existem três tipos principais de células-tronco: totipotentes, pluripotentes e multipotentes. • As totipotentes são as células presentes no embrião logo após a fecundação até a fase de oito células. Nesta fase, cada uma dessas células é capaz de se desenvolver em um ser humano completo; • As células pluripotentes também são embrionárias, mas em uma etapa pos- terior do desenvolvimento, consistindo das células que compõem a massa celular interna do blastocisto. Por serem diferenciadas das totipotentes, as pluripotentes são menos versáteis, apresentando menor potencial de diferen- ciação; • Já as células multipotentes, são aquelas presentes no indivíduo adulto, sen- do responsáveis pela renovação celular dos tecidos e encontradas em todos os tecidos, principalmente naqueles com maior renovação, como a medula óssea. Estas células podem se dividir para autorrenovar e manter as nossas células ao longo da vida, como podem se diferenciar e formar células especí- ficas daquele tecido. As células multipotentes apresentam menor capacidade de diferenciação que as demais. 12 Figura 4 – Esquema básico das primeiras etapas da maturação do ovócito humano, a fertilização e a nidação. Fonte: Wikipedia (2021). #PraCegoVer: Na imagem, há um desenho de parte do sistema reprodutor feminino: um ovário, tuba uterina e útero. O esquema mostra as etapas iniciais da fertilização e implantação do embrião. Saindo do ovário, há um ovócito e, abaixo dele está escrito ovulação. Na tuba uterina, há desenhos de esperma- tozóides e um deles se encontra dentro do ovócito. Mais à direita, fora da tuba uterina está escrito 1° dia e na tuba uterina está escrito primeira clivagem. Em seguida, à direita, está escrito 2°, 3° e 4° dias e indicados os estágios de 2, 4 e 8 células, com o desenho do respectivo embrião. Já no útero, está escrito 4° dia, com o desenho do zigoto com inúmeros células dentro, onde está escrito mórula. Mais abaixo, no útero, há o escrito 5° dia e o desenho do embrião em blastocisto. Abaixo, há as indicações de 6° a 9° dias e a implantação do zigoto na parede do útero. O zigoto é uma esfera que faz contato com o útero. Devido a sua capacidade diferenciativa, os diferentes tipos de células-tronco apresentam enorme potencial para uso em terapias e tratamento de doenças. O advento de tecnologias em ciências biomédicas permitiu o entendimento do processo de diferenciação celular e a possibilidade de manipulação de células-tronco em laboratório para estimular a sua diferenciação em células específicas de interesse. As pesquisas com células-tronco visam encontrar maneiras de tratar ou reverter algumas doenças e desenvolver terapias que retardem processos degenerativos. As células-tronco de indivíduos adultos podem ser utilizadas em técnicas de autotransplante, em que as células indiferenciadas retiradas do próprio indivíduo podem ser utilizadas para reconstituir seus órgãos danificados e assim evitar rejeições. 13 Pesquisas recentes mostraram que células-tronco retiradas da medula de indivíduos com problemas cardíacos foram capazes de reconstituir o músculo do seu coração, o que abre perspectivas de tratamento para pessoas com problemas cardíacos. Há ainda a possibilidade do uso de células-tronco do cordão umbilical e da placenta, que são ricos neste tipo celular. Pesquisas recentes demonstraram que o sangue do cordão umbilical é o melhor material para substituir a medula em casos de leucemia (ZATZ, 2004). Já as células-tronco embrionárias, por apresentarem maior indiferenciação, têm inúmeros potenciais terapêuticos. As células totipotentes e multipotentes podem ser estimuladas em laboratório a diferenciarem-se em tecidos e órgãos para transplante. Além disso, estas células têm um importante potencial de utilização na regeneração de tecidos e órgãos danificados. Por outro lado, alguns riscos na terapêutica com células-tronco ainda devem ser estudados e avaliados. Um deles, é a possibilidade de geração de tumores, já que estas células têm um grande potencial de autorrenovação, sendo alvos susceptíveis de carcinogênese. Outro risco advindo do uso de células-tronco são as alterações cromossômicas, tanto em células-tronco adultas quanto nas embrionárias (BARBOSA et al., 2003). Figura 5 –Embrião de 8 células. Fonte: Wikipedia (2021). #PraCegoVer: Na imagem, há uma micrografia de um embrião com oito células. O embrião é uma esfera com várias esferas menores dentro. O embrião apare- ce em imagem negativa, sem coloração e o fundo da imagem é cinza. 14 Os dilemas éticos que envolvem a utilização das células-tronco Apesar das inúmeras aplicações potenciais e benefícios advindos da utilização de células-tronco, tanto adultas quanto embrionárias, diversos dilemas éticos envolvem a técnica. Neste sentido, não apenas aspectos técnicos e científicos são questionados, mas também valores e crenças, o que potencializa o grau de divergências, não apenas no âmbito acadêmico, mas na sociedade como um todo. Quando se questiona o uso de células-tronco embrionárias, o principal dilema ético envolve o conceito de vida humana. Para a bioética, o respeito à vida humana é fundamental. Mas o que é vida humana? Em que momento ela se inicia? Este conceito é variável conforme aspectos científicos, religiosos, sociais e culturais. É possível considerar que a vida se inicia no momento da fecundação, sendo o primeiro estágio do desenvolvimento humano. Neste caso, o embrião, mesmo o de oito células, já seria considerado vida humana, com todos os seus direitos e garantias de dignidade e proteção. Por outro lado, diferentes religiões consideram que a vida só se inicia posteriormente no desenvolvimento embrionário, quando, por exemplo, o embrião adquire formato humano. Neste segundo caso, a utilização de embriões ainda no estágio inicial do desenvolvimento embrionário seria menos condenável do ponto de vista moral. Figura 6 –Embrião humano masculino, de sete semanas de idade ou nove semanas de idade gestacional. Fonte: Wikipedia (2021). #PraCegoVer: Na imagem, há um embrião humano de sete semanas de idade. Ele tem coloração amarelada e está de lado, com o cordão umbilical à mostra e apresenta os quatro membros: dois braços, duas pernas e, na cabeça, é possí- vel ver um olho, uma orelha, o nariz e a boca. Ao lado da imagem há uma régua, indicando que o embrião tem cerca de 1,5cm. 15 Um argumento relevante na avaliação bioética da aceitação das pesquisas com células-tronco embrionárias diz respeito ao valor dado a uma vida em potencial, em detrimento de utilizá-la para salvar diversas vidas já existentes. Neste aspecto, segundo Zatz (2004, p. 9): Sabemos que 90% dos embriões gerados em clínicas de fertilização e que são inseridos em um útero, nas melhores condições, não geram vida. Além disso, um trabalho recente (Mitalipova et al., 2003) mostrou que células obtidas de embriões de má qualidade, que não teriam potencial para gerar uma vida, mantêm a capacidade de gerar linhagens de células-tronco embrionárias e, portanto, de gerar tecidos. Em resumo, é justo deixar morrer uma criança ou um jovem afetado por uma doença neuromuscular letal para preservar um embrião cujo destino é o lixo? Um embrião que, mesmo que fosse implantado em um útero,teria um potencial baixíssimo de gerar um indivíduo? Ao usar células-tronco embrionárias para regenerar tecidos em uma pessoa condenada por uma doença letal, não estamos, na realidade, criando vida? Isso não é comparável ao que se faz hoje em transplante quando se retiram os órgãos de uma pessoa com morte cerebral (mas que poderia permanecer em vida vegetativa). Portanto, há que se ponderar os enormes potenciais terapêuticos advindos do uso de células-tronco embrionárias frente aos aspectos éticos envolvidos no descarte de embriões humanos. Para isso, faz-se necessária uma reavaliação ética na sociedade, a fim de garantir que pessoas com problemas de saúde não sejam privadas de potenciais tratamentos, ao mesmo tempo em que as técnicas de manipulação de embriões sejam altamente reguladas, levando em consideração aspectos éticos e morais. No Brasil, existe a Rede Nacional de Terapia Celular (RNTC), formada por oito Centros de Tecnologia Celular, em 52 laboratórios. A RNTC tem como objetivo aumentar a integração entre os pesquisadores do Brasil que trabalham com células-tronco, propiciando a troca de informações e tecnologias. Saiba mais, clicando aqui. Curiosidade Quando se trata de usar células-tronco de indivíduo adulto, os aspectos éticos e morais parecem menos questionáveis, já que constituem células de um organismo 16 e não um embrião com potencial de gerar uma nova vida. Por outro lado, a técnica envolve riscos inerentes para o organismo, como o desenvolvimento de tumores, que também devem ser analisados quando da aceitação e da definição de limites para seu uso em humanos (FRANÇA et al., 2017). Aspectos jurídicos nacionais e internacionais que regulam as atividades com células-tronco Apesar das inúmeras aplicações potenciais das células-tronco em terapias e dos dilemas éticos envolvendo sua utilização, ainda não existem normas internacionais que regulem, a nível mundial, a realização de pesquisas com células-tronco. Por isso, muitos países têm criado normas próprias para regulamentar o tema (BARBOSA et al., 2013). O Reino Unido foi o primeiro país a autorizar, em lei, a pesquisa com células-tronco embrionárias, em 2001, após extenso debate bioético envolvendo toda a sociedade. Outros países, além de permitir a pesquisa com os embriões excedentes de clínicas de reprodução assistida, também autorizam a própria produção de embriões em laboratório para fins exclusivos de investigação científica, como é o caso de Austrália, Japão, África do Sul, Cingapura, China e Suécia. Nos Estados Unidos, a situação normativa é mais complexa. Lá, a pesquisa com células-tronco embrionárias é autorizada nacionalmente, desde que não seja subvencionada com recursos federais. Por isso, alguns Estados como Califórnia, Illinois e Maryland editaram leis locais que autorizam o financiamento estadual para estas pesquisas. Outro país com regulamentação singular é a Alemanha, que possui uma lei, de 2002, que proíbe o uso de embriões alemães em pesquisas, permitindo apenas o uso de linhagens de células-tronco embrionárias já importadas, produzidas em outros países. Logo, a Alemanha proíbe o uso de embriões de origem alemã, mas permite o uso de linhagens celulares já importadas de outros países. O contexto do nazismo e as possibilidades de pesquisas envolvendo seres humanos dificultam o debate democrático no país, por isso a proibição do uso de material biológico alemão em laboratório (DINIZ; AVELINO, 2009). 17 Figura 7 – Terapia de células-tronco para esclerose múltipla. Fonte: Plataforma Deduca (2021). #PraCegoVer: Na imagem, há um profissional da saúde aplicando uma injeção no braço de um paciente. No Brasil, a reprodução humana assistida é regulamentada pela Resolução nº 2.168/2017, do CFM, que estabelece que os embriões não implantados no útero devem ser criopreservados. A norma ainda prevê que os embriões criopreservados, há três anos ou mais, poderão ser descartados se esta for a vontade expressa dos pacientes, assim como os embriões abandonados por três anos ou mais poderão ser descartados, sendo considerado, neste caso, embrião abandonado aquele que os responsáveis descumpriram o contrato pré-estabelecido e não foram localizados pela clínica (COHEN, OLIVEIRA, 2020). Outro importante regramento nacional é a Lei Federal nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), que permite a utilização de células-tronco embrionárias descartadas para fins de pesquisa e terapia (COHEN, OLIVEIRA, 2020). Segundo o artigo 5° da Lei de Biossegurança: Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células- tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. (BRASIL, 2005) 18 Apesar da expressa permissão em lei da utilização de células-tronco embrionárias em pesquisa, a questão suscita polêmicas. Tal controvérsia levou a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) das pesquisas com células-tronco no Supremo Tribunal Federal (STF). A ADIN justificava-se com base no direito à vida do embrião, já que, mesmo após três anos de congelamento, o embrião ainda poderia ser implantado e dar origem a uma vida. A votação no STF ocorreu em 2008 e concluiu, por seis votos a cinco, sobre a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco, permitindo que os estudos continuassem. Ainda assim, as normas brasileiras sobre o tema são escassas e, portanto, ainda são necessárias regulamentações mais específicas acerca das técnicas e metodologias utilizadas em pesquisa e terapias com células- tronco (BARBOSA et al., 2013). O Supremo Tribunal Federal (STF) é o órgão superior do Poder Judiciário e tem a importante função de guarda da Constituição Federal, ao julgar questões de constitucionalidade. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) é proposta ao STF para questionar a inconstitucionalidade de lei, ato normativo federal ou estadual. Curiosidade 19 Conclusão A bioética é um estudo interdisciplinar que envolve ciências biológicas, saúde, filosofia e direito na investigação das condições para uma administração responsável da vida humana, animal e do meio ambiente. Neste contexto, o surgimento de tecnologias inovadoras em biomedicina trouxe dilemas éticos e morais concernentes aos possíveis impactos, tanto na saúde humana quanto nos dogmas sociais e religiosos. Este conteúdo apresentou uma reflexão sobre os aspectos bioéticos que envolvem a clonagem e o uso de células-tronco. Observamos que a clonagem pode ter finalidade reprodutiva ou terapêutica e que, em todos os casos, surgem dilemas éticos envolvendo a manipulação genética em laboratório e os riscos inerentes ao procedimento. Também abordamos os conceitos e aplicações terapêuticas do uso de células-tronco em medicina e as questões morais e éticas relativas ao descarte e utilização de embriões humanos em pesquisa. Por fim, ainda analisamos as principais normas internacionais e nacionais que regulamentam tanto a clonagem quanto as pesquisas com células-tronco e destacamos que os dilemas bioéticos em clonagem e pesquisas com células-tronco ainda estão sob intenso debate social, em função das implicações éticas, filosóficas, científicas e religiosas de alta complexidade. 20 Referências BARBOSA, A. S.; et al. Implicações bioéticas na pesquisa com células-tronco embrionárias. Acta Bioethica, 19:1, p. 87 – 95. Disponível em: https://scielo.conicyt. cl/pdf/abioeth/v19n1/art09.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020. BRASIL. Instrução Normativa CTNBio nº 08, de 09 de julho de 1997. 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