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A narrativa africana de língua portuguesa O mar pingando lembranças [...] A cidade era governada pelas marés. E as marés eram mandadas por pássaros. Assim se dizia. Um passarito cinzento chamava a enchente. Outro, maior, de asas brancas, convocava a baixa-mar. Me encantava essa crença, o poder de singelas criaturinhas comandarem o imenso oceano. Eu menino não era guiado por relógio. Vivia como essas aves que esperam as ondas. [...] Agora, em meu sono, já não há paisagem sem mar. [...] As pequenas canoas — os conchos e as almadias — vencem as águas lamacentas do esquecimento. O Índico ficou margem da minha alma. Nesse lá eu nasci. Nasci tanto que, agora, os meus so- nhos são anfíbios. O passado é um litoral onde tudo se converte em espuma. [...] Sou moçambicano, filho de portugueses, nasci em pleno sistema colonial, combati pela Independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao capitalismo, da revolução à guerra civil. Vim à luz num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que está nascendo. [...] Cresci nesse ambiente de mestiçagem, escutando os velhos contadores de his- tórias. Eles me traziam o encantamento de um momento sagrado. [...] Eu queria saber quem eram os autores daquelas histórias e a resposta era sempre a mesma: ninguém. Quem criara aqueles contos haviam sido os antepassados, e as histórias ficavam como herança dos deuses. [...] COUTO, Mia. Águas do meu princípio. In: Pensatempos: textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005. p. 147-151. (Fragmento). O fio da história [...] Qual então o fio da histó- ria? O cão? A toninha? O mar? Luanda? Ou tudo isso é que afinal era a vida boa daqueles tempos pouco depois da independência [...], em que a vida estava na pedra de cada muro, no buraco de cada rua, na coragem toda nova das pessoas de olharem para o fundo dum beco sem saída e encontra- rem força de sorrir? [...] PEPETELA. O cão e os caluandas. Lisboa: Dom Quixote, 1985. p. 179. (Fragmento). Título criado para fins didáticos. Meninos no mar, Bazaruto, Moçambique, 2007. Charneira: pessoa ou coisa que une dois ou mais elementos; articulação. 745 A n ar ra ti va a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial2_C.indd 745 11/11/10 5:46:01 PM A África que conta histórias Creio que a literatura nacional é elemento indispensável, tão importante como outro qualquer, para a consolidação da independên- cia. É um fator que ajuda a aumentar a unidade nacional, por ser veículo de situações, modos de vida e de pensar, dentro do País [...]. Afirmo que não há, não pode haver, a criação dum país verdadeiramente independente sem uma literatura nacional própria, que mostre ao povo aquilo que o povo sempre soube: isto é, que tem uma identidade própria. PEPETELA. Citado por HILDEBRANDO, António. “Pepetela: A parábola do cágado velho – construindo pontes”. In: SEPÚLVEDA, Maria do Carmo; SALGADO, Maria Teresa. África e Brasil: letras em laços. São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2006. p. 317. (Fragmento). Um imenso tronco de árvore, do qual brotam novos galhos e no qual alguns galhos se emaranham e outros morrem, em um movimento contínuo de transformação e renovação. Essa é uma boa imagem para simbolizar o repertório de narrativas de uma dada cultura. Os vários galhos representam as elaborações e recriações da tradição oral e escrita de um povo. No caso das culturas essencialmente ágrafas, o peso da oratura na construção de uma identidade cultural é imenso. A oratura é a literatura oral, constituída pelas lendas, pelos romances, pelos contos, pelos provérbios, pelas quadras, pelas parlendas, pelas rezas e orações. Um imenso repertório que se renova à medida que passa de uma geração a outra, alimentando o imaginário popular. Tradição oral, ficção escrita: encontros necessários Acostumados ao mundo da escrita e dos livros, é frequente nos esquecer- mos de que a África é um continente no qual o analfabetismo ainda é imenso. Nos países africanos lusófonos, o alto índice de analfabetismo é uma das conse- quências herdadas dos anos de submissão à máquina colonial portuguesa. Com a chegada da independência, países como Angola e Moçambique en- frentaram duros anos de guerra civil que afetou a vida de milhões de pessoas e, entre outras coisas, comprometeu dramaticamente um sistema educacio- nal já muito incipiente. Segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, divulgado em 2005, o índice de analfabetismo em Moçambique corresponde a 53,50% da população. Em Angola, a 33,20%. O fato de tantas pessoas não saberem ler ou escrever não significa que não produzam cultura. Também não significa que a literatura não seja uma parte importante de suas vidas. É no âmbito da oralidade que essas pessoas constroem suas histórias. Em um contexto como esse, é natural que oratura e literatura se aproximem. Mais natural ainda é o movimento feito por muitos escri- tores que buscam, na tradição oral do povo a que pertencem, temas fundadores para inspirar as narrativas que escreverão. Com a decisão consciente de participarem da construção da identidade do povo do qual fazem parte, esses autores transformam suas obras em espaço de resgate das vozes populares que nem mesmo as décadas de governo colonial foram capazes de calar. Da fala para a escrita Angola é composta de 9 grandes grupos étnico-lin- guísticos. Essa rica formação manifesta-se na oratura em seis classes principais: Mi- sosso (histórias tradicionais envolvendo animais falantes em que predicados como a inteligência e a astúcia são valorizados), Maka (histórias verdadeiras ou contadas como se fossem verdadeiras, de função exemplar), Ma- -Lunda ou Mi-Sendu (crônicas históricas transmitidas pelos mais velhos apenas a alguns membros da classe dominan- te), Ji-Sabu (provérbios), Mi- -Imbu (poesia e música, qua- se sempre inseparáveis) e Ji- -Nongo Nongo (adivinhas). A partir de 1948, um grupo de estudantes, entre eles Antonio Jacinto e Agostinho Neto, começam a revisitar as lendas, os provérbios, as adivinhas e toda a tra- dição presente na oratura angolana. Esse processo faz parte do movimento “Vamos descobrir Angola” que tem como um de seus objetivos resgatar a oratura silenciada pelo colonizador e incorporá- -la à escrita, deixando para trás as tradições europeias impostas por anos de re- pressão. Assim ganham voz, na literatura, os sentimentos e as aspirações do povo angolano. Dançarinos em trajes típicos durante cerimônia de iniciação, na fronteira de Angola e Zâmbia, c. 1975-1995. 746 S eç ão e sp ec ia l R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial2_C.indd 746 11/11/10 5:46:03 PM Como sempre circularam fora dos meios oficiais e institucionais associa- dos à divulgação da cultura, essas vozes sobreviveram aos mecanismos de censura ditatoriais e representam um repertório dos elementos verdadeira- mente autênticos associados à identidade de um povo. Elas ganharão vida nova na forma de galhos nascidos na grande árvore do repertório narrativo. Nossa intenção, ao apresentar alguns dos principais nomes da ficção afri- cana em língua portuguesa, não é compor uma história da literatura escrita nesses países. Também não pretendemos realizar um estudo minucioso dos autores escolhidos. Queremos somente revelar parte dessa produção literária, ainda bastante desconhecida por nós brasileiros, e, com isso, ajudar a divulgar um pouco da história de luta pela constituição de uma identidade autônoma que se faz presente nos contos e romances dos autores africanos. Escritores angolanos: engajamento político e criaçãoliterária Minha história. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda. VIEIRA, José Luandino. Estória da galinha e do ovo. In: Luuanda: estórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 132. (Fragmento). Entre os territórios africanos dominados por Portugal, Angola é aquele com história mais longa. O interesse em promover o desenvolvimento da colônia e garantir uma estrutura urbana e social mais acolhedora para os emigrados fez com que o governo português cuidasse do território e, como contrapartida, acabou por garantir que os angolanos conquistassem mais cedo algumas condições essenciais para o desenvolvimento de uma voz própria. Como acontece nos países colonizados, o romance é um gênero importa- do, trazido pelos colonizadores quando se instalaram nos novos territórios. Em Angola essa chegada aconteceu no século XIX e, desde então, o país viu surgirem ficcionistas locais. A ficção a serviço da História Muitos intelectuais africanos, que iam para Portugal buscar uma formação universitária, encontravam-se em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império (CEI), entre 1944 e 1965. Ali, discutiam os destinos das colônias africanas lu- sófonas, irmanando-se em torno de posições libertárias e ideais socialistas. Nesse espaço de debate cultural e político, reuniram-se alguns dos es- critores que participariam dos movimentos de libertação e reconstrução de seus países, como Agostinho Neto (poeta e futuro presidente de Angola), José Luandino Vieira e Pepetela. Na CEI, o mote “Vamos descobrir Angola”, lançado por jovens intelectuais angolanos em 1948, renasce e passa a inspirar a ficção de Luandino Vieira e Pepetela. Quando os movimentos anticolonialistas africanos ganharam força, na década de 1960, a prosa de ficção foi uma das frentes de combate. Em um período tenso, a visibilidade que as figuras marginalizadas conquistaram nas narrativas contribuiu para alimentar o desejo de resistência popular ao governo português. Um pedaço da África em Lisboa O governo de Salazar, in- teressado em manter um espaço para dar apoio aos estudantes provenientes das colônias portuguesas, fundou em 1944 a Casa dos Estudantes do Império. Ape- sar da orientação fascista das comissões administra- tivas escolhidas para essa instituição, a CEI acabou por se tornar o berço das ideias nacionalistas que levariam à independência das colônias africanas. Nesse espaço formaram-se importantes intelectuais e surgiram os membros dos quadros de liderança dos partidos que lutaram contra a metrópole. Os jovens africanos chega- vam a Lisboa financiados, muitas vezes com sacrifício, por suas famílias, pela Igreja ou por outras instituições. A efervescência de suas ideias e a força de seus so- nhos germinaram no coração da metrópole as sementes da independência africana. Placa comemorativa da Casa dos Estudantes do Império, Lisboa. 747 A n ar ra ti va a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial2_C.indd 747 11/11/10 5:46:06 PM