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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO Teoria Geral do Direito Penal Ana Elisa Liberatore S. Bechara Tipo Penal e Tipicidade Tipo penal é materialização do princípio da legalidade, exercendo a função de garantia dos cidadãos, por limitar intervenção penal. Com o tipo, individualiza-se a conduta ofensiva a determinado bem jurídico. Tipo Penal: Figura abstrata elaborada pelo legislador, descrevendo a conduta penalmente proibida. Elementos descritivos e normativos (objetivos e subjetivos). Tipicidade: Primeiro momento de valoração da conduta. É a relação que se estabelece entre a conduta efetivamente praticada pelo indivíduo e sua identidade com o alcance e a função de proteção da norma penal incriminadora. Determinar a tipicidade de uma conduta não se esgota em um mero processo lógico-formal de subsunção, implicando também uma valoração (tipicidade formal X tipicidade material). O tipo penal expressa, portanto, mais do que a descrição causal de determinado comportamento, contendo uma situação social dotada de significado negativo, por implicar a afetação de um bem jurídico. Em razão do fim do tipo penal de servir de instrumento de comunicação entre o Estado e a sociedade, pelo qual se estabelecem as zonas do proibido, sua interpretação exige a utilização de um sistema aberto, entrelaçando-se dogmática e política criminal para tornar claro o âmbito de proteção normativa (ex. anencefalia e aborto). TIPICIDADE Tipicidade subjetiva: - Dolo ou culpa Tipicidade objetiva: - Causalidade - Imputação Objetiva Conceito de Ação Conduta humana = essência do delito Então, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são predicados de um substantivo, que é a conduta. Teoria Causalista da Ação: Edificada por Franz Von Liszt no fim do Séc. XIX, com influência do positivismo naturalista. Ação era considerada o movimento corporal voluntário, que causa modificação no mundo exterior. Elementos da ação: pensamento, manifestação de vontade, resultado e relação de causalidade. * Não entra no conceito o conteúdo da vontade (a finalidade), que é deslocado para a culpabilidade. Teoria Finalista da Ação: Edificada por Hans Welzel na década de 30 do Séc. XX. Ação era considerada o exercício de atividade final, isto é, uma conduta dirigida a um fim, e não puramente causal. Finalidade da ação: fundada na constatação de que ser humano, graças a seu saber causal, pode antever as consequências possíveis de seu comportamento. * Entra no conceito de ação o comportamento exterior (aspecto objetivo) e seu conteúdo psicológico (aspecto subjetivo). ⚫ CRÍTICAS: Crimes culposos e omissão não são abrangidos pela intenção do agente; ontologismo. ⚫ De todo modo, influi na concepção penal dominante (dolo e culpa na tipicidade, culpabilidade normativa) A delimitação da ação penalmente relevante possui função primordial negativa, funcionando como critério de exclusão de fatos que devam ser considerados irrelevantes. Assim, não só a mera cogitação é desprovida de relevância penal, como também: ❖ Coação física irresistível (vis absoluta): coagido funciona como mera massa mecânica, sendo só instrumento do crime. ❖ Movimentos reflexos: decorrentes de simples estímulos sensoriais (ex. convulsão ou queimadura). ❖ Estados de inconsciência: hipnose, sonambulismo ou letargia. Embriaguez ⚫ Actio libera in causa = não exclui a conduta, mesmo que completa, se voluntária ou culposa. ⚫ Se completa e proveniente de caso fortuito ou força maior, exclui a imputabilidade do agente quando ele era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 28, CP). Causalidade e Imputação Objetiva Caso prático: Em uma briga de bar, A esfaqueia B, seu notório inimigo, no braço. B é imediatamente socorrido por ambulância que, no caminho ao hospital, capota em razão de óleo na pista, levando à morte de todos em seu interior. Por qual crime poderá A ser responsabilizado? Causalidade e Imputação Objetiva A doutrina causalista concebia o nexo entre a ação e o resultado como mera relação de causalidade, em termos naturalísticos. Constatada esta, entendia-se realizado o tipo objetivo. Ao tipo penal objetivo não interessa qualquer relação causal, mas apenas aquelas jurídico-penalmente relevantes. A questão jurídica fundamental não consiste em verificar se ocorrem determinadas circunstâncias, mas sim em estabelecer os critérios conforme os quais determinados resultados podem ser imputados a alguém. A essência da imputação objetiva reside, portanto, nos critérios de análise a que se submetem os dados empíricos (a relação causal). Produz-se, portanto, uma mudança de perspectiva dogmática na solução de problemas de imputação do resultado: Causalidade • Esfera ontológica Imputação • Esfera normativa A causalidade como pressuposto da imputação objetiva do resultado Princípio de causalidade a toda causa se segue um resultado Relação de causalidade nexo entre a causa e o resultado Exame de Imputação Objetiva: determina quando esse vínculo natural interessa ao Direito Penal Causalidade e Imputação Objetiva Teorias sobre a relação de causalidade A causalidade como condição: Fim do Séc. XIX – Stuart Mill (concepção empírico-positivista) Julius Glaser (processualista austríaco) e Von Buri (magistrado do Tribunal Supremo Alemão) – adaptação ao âmbito processual. Estabelecer a causalidade como condição era suficiente para afirmar a presença do tipo objetivo. É causa do resultado toda condição que interveio em sua produção, independentemente de sua maior ou menor proximidade temporal. (teoria da equivalência das condições) Critério: é causa toda condição que, suprimida mentalmente, faria desaparecer o resultado. (fórmula da conditio sine qua non ) Críticas: ❖ O postulado de equivalência das condições do resultado como causas conduz a uma determinação muito ampla da causalidade = regresso ao infinito. ❖ Essa teoria não demonstra nada, tratando-se de um método de comprovação posterior que nada diz sobre o fundamento material da relação causal. Só se aplica quando já se sabe sobre a eficácia de uma condição (como aplicar a fórmula da conditio sine qua non em temas complexos?) ❖ A teoria não resolve os casos de cursos causais hipotéticos ou de dupla causalidade (ex. caminhoneiro imprudente e ciclista bêbado) Todas as objeções não questionam a validade da teoria da condição, mas o método hipotético da conditio sine qua non. Que utilidade essa fórmula lógica tem para o Direito Penal? Estabelecer a presença (natural) de uma relação de causalidade é uma condição necessária, porém não suficiente para afirmar a tipicidade (normativa). A condição suficiente corresponde ao exame de imputação objetiva. Teoria da adequação (médico Von Kries – fim Séc. XIX): Nem toda condição do resultado é causa em sentido jurídico, mas apenas aquela que normalmente é adequada para produzi-lo. Critério: probabilidade ou previsibilidade objetiva de produção do resultado (exame ex ante, no momento da ação, por um homem objetivo e prudente, com base nos conhecimentos sobre a situação de que o autor dispunha, sobre a previsibilidade objetiva ou probabilidade do resultado). Crítica: A teoria da adequação seleciona os processos causais a partir de critérios estatísticos (probabilidade) e de normal aparição, os únicos apreciáveis pelo “homem prudente”, sem expor com clareza a relevância NORMATIVA de tais processos causais. Por isso, a teoria é ainda muito ampla e pouco precisa como critério de limitação da responsabilidade. Ainda, Teoria da causalidade relevante (Mezger, 1921): Só é causal a condição relevante, a partir das exigências do tipo penal correspondente. Ambas as teorias introduzem considerações alheias à questãocausal estrita, relacionadas às exigências da tipicidade penal, de conteúdo normativo. Assim, essas teorias são antecedentes da teoria da imputação objetiva. Teoria da Imputação Objetiva: Base: Larenz e Richard Hönig (1930 – Ensaio Causalidade e imputação objetiva). Claus Roxin depura de todo sentido ontológico e sistematiza a imputação objetiva na teoria do delito (1970 – Reflexões sobre a problemática da imputação em direito penal): Princípio de risco Só é objetivamente imputável um resultado causado por uma ação quando ela haja criado um perigo juridicamente desaprovado que tenha se materializado no resultado típico. Teoria da Imputação Objetiva: Análise composta por 2 elementos: 1. Pressuposto nos delitos de resultado: Existência de uma relação de causalidade entre ação e resultado. 2. O resultado deve ser a expressão de um risco juridicamente desaprovado implícito na ação, isto é, o desvalor da ação concretizado no resultado produzido. Teoria da Imputação Objetiva: Não se trata apenas de um critério de correção (às vezes necessário) da causalidade, e sim de uma exigência geral da realização típica. Teoria da Imputação Objetiva: Imputação objetiva da conduta: Para que a conduta causadora do resultado típico seja considerada a parte objetiva do tipo é necessário que ex ante seja criadora de um risco tipicamente relevante. Assim, não podem ser imputadas objetivamente condutas que diminuam o risco, que não gerem um risco suficiente ou que impliquem um risco socialmente permitido. Teoria da Imputação Objetiva: Casos de diminuição do risco: Conduta causante do resultado voltada a evitar outro risco mais grave ao mesmo bem jurídico. Não há criação de um novo risco que permita a imputação objetiva. (exs: desvio de golpe na cabeça; fratura de costela em reanimação) Teoria da Imputação Objetiva: Casos de ausência de criação de um risco suficiente ou juridicamente relevante: Condutas que ex ante não implicam um risco quantitativamente suficiente (risco insignificante ou não controlável). Suficiência é verificada a partir do critério ex ante, conforme uma pessoa prudente no momento da ação, com os conhecimentos que vivenciou o autor. (ex. golpe na perna ou pequeno empurrão) Teoria da Imputação Objetiva: Casos de risco socialmente adequados: São riscos que não merecem ser considerados pelo ordenamento jurídico em razão de sua utilidade social. São aqueles que, sem constituir uma violação do dever de cuidado, cedo ou tarde podem levar à ofensa de um bem jurídico. (ex. mulher que se separa de marido que se suicida, esporte, pesquisa, tecnologia) Teoria da Imputação Objetiva: Realização do risco no resultado: Nexo de aumento do risco proibido: O comportamento hipotético correto sequer aumentaria as chances de o bem jurídico se salvar (ex. caminhoneiro imprudente e ciclista bêbado). Teoria da Imputação Objetiva: Âmbito de proteção da norma: O resultado da conduta tipicamente objetiva do agente deve estar dentro do âmbito de proteção da norma. O essencial é determinar se o fim protetor da norma está destinado a impedir a produção de consequências diretas ao bem jurídico ou também abrange ofensas secundárias desencadeadas por aquelas (ex. morte de mãe de pedestre atropelado; uso de drogas). Teoria da Imputação Objetiva - Conclusões Teoria da imputação objetiva deve ser utilizada como critério de limitação da responsabilidade penal: nem toda ofensa ao bem jurídica pode ser objetivamente imputada ao agente. Não haverá imputação objetiva se: - A conduta tiver diminuído o risco ao bem jurídico; - A conduta não tiver aumentado ou criado o risco; - O risco era socialmente adequado; - O risco não se materializa no resultado típico ou o resultado não estiver no âmbito de alcance do tipo Caso prático: Der Metzgermeister 3. Excurso sobre o âmbito de proteção do tipo: a disponibilidade de bens jurídicos Hipóteses de exclusão de imputação por meio do fim de proteção do tipo: Situações em que determinados comportamentos e as respectivas consequências não estão compreendidos no âmbito de incriminação da norma. ❑ Autocolocação da vítima em perigo ❑ Consentimento do ofendido Raciocínio decorrente da teoria pessoal do bem jurídico Se o bem jurídico deve servir ao livre desenvolvimento do indivíduo no contexto social, não se pode afirmar a relevância jurídico-penal de sua lesão quando esta decorra de uma atitude de disposição de seu respectivo titular, considerada como expressão de seu desenvolvimento. Qual é o referencial para a compreensão do consenso da vítima? Reconhecimento da disponibilidade de bens jurídicos O sentido da disponibilidade de bens jurídicos: do jusprivatismo à valoração normativa Concepção tradicional: O Direito Penal tem natureza essencialmente pública, no qual a prescrição da proteção de bens jurídicos se dá, inicialmente, de forma independente da vontade do denominado sujeito passivo da ação delitiva. Assim, considera-se a disponibilidade de bens jurídico-penais em caráter excepcional. Teoria do consentimento = concepção tradicional fortemente influenciada por conotação jusprivatista. Falta de critérios para avaliar a disponibilidade de bens jurídicos? Necessidade de reformulação teórica do consentimento Delimitação da esfera de liberdade do indivíduo em relação à intervenção estatal Intervenção penal mínima Dignidade humana No Estado Democrático de Direito, o ordenamento deve ser funcional à tutela da liberdade e da personalidade do indivíduo, tomado em suas relações sociais. Assim, O bem jurídico não pode ser considerado sob uma perspectiva estática, mas sim em sua relação com o sujeito (conceito relacional). Em conclusão: A partir da consideração do bem jurídico como interesse, e não como valor em sentido transcendente e universal, sua disponibilidade já não deve mais ser tratada como exceção no ordenamento jurídico-penal, passando a representar uma consequência natural de sua própria essência, a determinar a irrelevância penal de comportamentos concretos em razão da ausência de bem jurídico a ser tutelado pela norma. Paternalismo penal: paternalismo direto e indireto Paternalismo penal – características: 1. Intervenção diz respeito ao bem jurídico do próprio indivíduo atingido; 2. Coerção (impossibilidade do indivíduo repelir a medida) Espécies de paternalismo a partir dos sujeitos envolvidos: 1. Paternalismo direto – Criminalização da conduta de uma pessoa que se autolesiona ou que tenta se autolesionar. 2. Paternalismo indireto - Emprego do Direito Penal para proibir comportamentos que auxiliam um outro indivíduo a intencionalmente lesionar-se. * O Direito Penal raramente utiliza-se de proibições diretamente paternalistas, recorrendo com maior extensão ao paternalismo indireto. Exemplos de dispositivos penais paternalistas no ordenamento jurídico-penal brasileiro: 1. Art. 28 da Lei Federal 11.343/06 (paternalismo direto); 2. Indução ou auxílio ao suicídio; 3. Manutenção de casa de prostituição; 4. Rufianismo; 5. Charlatanismo; e 6. Curandeirismo (hipóteses de paternalismo indireto) Críticas ao Paternalismo penal: * Base fundamental: BECCARIA e HOMMEL (séc. XVIII) Demanda pela utilização do Direito Penal apenas para a prevenção de danos sociais. * John Stuart MILL (séc. XIX) – Harm principle * Joel FEINBERG (1984): princípios do dano e de perturbação a terceiros (offense principle) – doutrina do liberalismo Embora possa o Estado impedir a exploração de cidadãos em desvantagem ou vulneráveis (déficits de autonomia), criminalizando condutas, mesmo que haja seu consentimento, voltadas para sua proteção, não é possível num contexto democrático a intervenção penal em relações sociais estabelecidas de forma equilibrada. Oposição às críticas: ⚫ “Nenhum homemé uma ilha” (consequências indiretas derivadas do comportamento do indivíduo); ⚫ Conceito de autonomia como capacidade de decisão racional e livre de pressões não é compatível com a realidade psicológica humana Retomada da crítica ao paternalismo penal: dignidade humana, autonomia e bem jurídico 1. Concepção democrática de dignidade humana; 2. Autonomia individual: não pode ser entendida democraticamente em sentido profundo, pois muitos indivíduos falham no desenvolvimento de objetivos a longo prazo coerentes ou na avaliação realista dos riscos de seu próprio comportamento. Preferível compreender a autonomia em conexão com a ideia de FEINBERG de autodeterminação simples na tomada de decisões (Andrew Von HIRSCH) 3. A autonomia não pode ser entendida de forma residual ou por exclusão, tomando-se como referencial a sociedade, uma vez que todos os comportamentos humanos possuem múltiplas consequências e implicações sociais, ao menos sob o ponto de vista indireto. Assim se estaria a proteger a esfera individual não mais a partir da consideração à pessoa, e sim à coletividade. Há possibilidade de evitar o dano indireto a terceiros por meio do recurso a outros meios de controle social. Ao se entender o bem jurídico não como um bem, mas sim como um interesse, de natureza relacional, justifica-se a incidência do Direito Penal apenas face a ataques de terceiros. A autolesão, ainda que possua existência naturalística, não pode ser revestida de relevância jurídico-penal justamente porque não se refere a um bem jurídico no caso concreto.