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Sonoridades e Movimentos 2016 Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 2 Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 3 Performatividades e Oralidades em Museologia Neste número três da Lusotopia – Revista de Geocultura abordamos a questão da unidade das expressividades e performatividades nas cultura africanas. Na nossa tese “Casa Muss-amb-ike – O compromisso no processo museológico” (Leite, 2010), já evidenciamos a relevância da abordagem integrada dos fenómenos performativos, quer na oratura, quer na musica e dança. É um campo complexo, onde a questão da performatividade da tradição se encontra com a inovação moderna, seja através da revisitação das práticas folclóricas (segundo a abordagem de Vladimir Propp, seja por via da invenção da memória (segundo a abordagem da reinvenção da tradição de Eric Hobsbawm). Na altura partimos da encenação da oralidade, para analisar o caso das práticas da Timbilas, dos Chopes de Moçambique. O género M’Zeno ou canto solene, é um modo de expressão da comunidade. Mas o que nos interessou na altura foi demonstrar a poética da oralidade que transportava em si uma forma de encenação. Na altura verificamos que a observação da performatividade no contexto da formação social em que se produz permite verificar que os problemas que abordam, no espaço e no tempo são simultaneamente únicos e globais. Pode naturalmente ser documentada, registada, conservada. Mas a sua riqueza está no momento do evento, quando os significados devem ser fundamentalmente vividos como uma relação dos problemas do tempo e do espaço duma comunidade. Daqui podemos deduzir que a observação metodológica da arte performativa e pictórica se torna numa componente essencial da análise dos marcadores de memória na museologia. O que justifica então que a análise deste campo do saber e da ação, pois que o artista necessita duma aprendizagem que se concretiza na ação, continue a ser analisado, pela ciência no âmbito das ciências particulares. À etnomusicologia cabe o estudo das músicas tradicionais, o folclore das danças ditas tradicionais e assim por diante. Se como diz António Manuel Hespanha, “A música, como outros, mas não todos os produtos culturais, constitui um contínuo transversal que cruza os grupos duma mesma sociedade, ganhando em cada sub-universo social, sentidos, fronteiras, contornos, contextos e evocações diferentes” (HESPANHA, 1997, p. 1) para depois concluir “a música constitui objeto de transações interculturais” (HESPANHA, 1997, p. 1). Um saber que invoca a ordem (porque incorporam as ideias implícitas) e que transporta “uma natureza congenial ou simbiótica, estreitamente ligada a pulsões quase físicas de prazer” (HESPANHA, 1997, p. 1). A museologia encontra uma clara convergência no campo da musicologia, e por analogia na dança e na oratura, quando aborda as questões da ligação entre natureza e as comunidades humanas, isto é da práticas que resultam do mundo natural e das formas de adaptação e interpretação do homem (isto é cultura como Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 4 conceito). Assim, enquanto campo da complexidade, o processo museológico que trabalha com as memórias sociais não pode deixar de abordar esta multidimensionalidade de expressões orais e performativas das comunidades. A vantagem desta abordagem, pelo campo epistemológico da museologia, será o de, ao invés de partir da especialidade performativa dos seus campos de saberes técnicos (como é tradição no ocidente, de estudar a música, a arte, o teatro, o canto, etc.), tornar possível de estudar esta fenomenologia como um “fato museal” e a partir dessa complexidade produzir outras sínteses como ações museológicas. Essa prática não colide com as diferentes especialidades e técnicas inerentes aos diferentes processos culturais. O que nos interessa fundamentalmente salientar, para o caso da análise dos processos museológicos, é a pluralidade e a potencialidade do uso das diversas técnicas narrativas que estão presentes quando vamos procurar alicerçar um processo museológico nas práticas das comunidades. As práticas já existem. O processo museológico apenas necessita de se apropriar dessas técnicas para criar as suas narrativas no seu espaço e no seu tempo como expressão duma consciência do mundo. Este olhar sobre fatos museais no âmbito dum processo museológico permite revelar uma necessidade de dialogar com formas plurais de expressão dos objetos da memória social. Ou seja, o objeto museológico não é apenas um qualquer artefacto ou produto cultural (canto, oralidade, gestualidade) cristalizado num tempo e num espaço. Esse objeto insere-se no interior duma dinâmica, sendo que o processo museológico pode e deve incluir essa dinâmica. Não se trata contudo de reinventar as tradições mas trabalhar os recursos disponíveis em função das necessidades da comunidade. Na altura defendemos que essa disponibilidade se incluía no âmbito da Função Social dos Museus (MOUTINHO, 2008). Neste número dos Informal Museology Studies apresentamos várias abordagens onde se pode observar essas linguagens no âmbito da geocultura lusotópica. Num primeiro texto, construído a partir da prática da oralidade afro- cubano, apresentamos algumas reflexões construídas a partir da oficina de Corália Rodriguez, que irão constituir um fundamento para uma novsa oficina a desenvolver em 2017. De seguida, dois artigos sobre a Marrabenta de Moçambique. Um artigo de Rui Laranjeira, sobre a história da Marrabenta, feito a partir da sua dissertação de mestrado na Universidade Eduardo Mondlane, que já noutro lugar havíamos referenciado, e um artigo de João Domingos, também sobre a História da Marrabenta. João Doingos, um autor credenciado desta música, falecido neste ano de 2016, escreve aqui algumas notas autobiográficas, sobre as quais é possível fazer uma leitura em dialogo entre os dois artigos. Dentro da mesma linha, a partir da festa em duas outras comunidades lusotópicas, o artigo do antropólogo de Cabo Verde, Brito Semedo, sobree as festividades da Cola de San Jon, e da atriz paulista Crsitina Tolentino, sobre as Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 5 Festas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ou a festa do Congado, que se realizam por todo o brasil, como testemunho da diaspoira africana. De seguida, uma reflexão sobre a Educação e Cidadania de Luísa Teutónio Pereira. Nos idos anos de 1980, desenvolvemos no CIDAC em Lisboa, algumas atividades de Educação para o Desenvolvimento. Esta artigo dialoga com a evolução desta questão, mostrando a sua complexidade. Finalmente, num último artigo. “ Teoria vinda do Sul ou como a Euro- América está a evoluir em direção a África “, um artigo de Jean e John Comaroff, onde a partir duma reflexão sobre o "Sul Global" procuram ligações epistemológicas para os problemas globais. Esta artigo procura contribuir para pensar a questão geocultura da lusotopia como um elemento da reconfiguração das diversidades culturais, um tema que procuraremos ampliar no próximo ano. Referencias Hespanha, António (1997). in “Apresentação” CASTELO-BRANCO, Salwa El- Shawan, Portugal e o Mundo: O encontro de Culturas na Música, Lisboa, Publicações Dom Quixote, pp 1-3 HOBSBAWM, Eric (1988) “Tradições Inventadas”, in Desporto e Sociedade, Lisboa, Direção Geral de Desportos, nº 80, 18 páginas Leite, Pedro Pereira(2011). Casa Muss-amb-ike: o compromisso no processo museológico, Lisboa, Marca D’Água Moutinho, Mário (2008) “Museus com Instituições Prestadoras de Serviços, Lisboa, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, Working Paper, distribuído durante o Seminário “Função Social do Museu” do Curso de Doutoramento. dezembro 2016 Pedro Pereira Leite Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 6 Oralidadenos contro afrocubanos Por Pedro Pereira Leite1 Mais uma das oficinas do XIV Palavras andarilhas, desta feita com Corália Rodriguez, atriz e narradora oral. Nasceu em Cuba, nas terras do interior de Havana, no lugar “onde o diabo gritou 3 vezes e ninguém o ouviu”. Herdeira da tradição oral e familiar. Estudou teatro e narração oral no seu país e começou a contar na década de 80, guiada pelo prof: Francisco Garzon, no Grande Teatro de Havana, em Cuba inspirados nos trabalhos de Lydia Cabrera sobre os Contos Negros de Cuba Na Oficina: “Acercamiento a la tradición oral afrocubana”, realizada a 27 de agosto, Corália fala da pesquisa sobre as tradições religiosas afro-cubanas pesquisada pelo etnomusicólogo Fernando Ortiz, uma dos fundadores do movimento afrocubanismo, e por Lydia Cabrera. Este etnomusicólogo que aborda as questões da Santeria resgata as memória dos tambores e batidas presentes nos ritmos cubanos, atribuindo-lhes as origens africanas. “Pinta a tua aldeia e ele será universal” diz Corália Rodriguez, inspirada no trabalho sobre a narração oral e os tambores e batuques que acompanhavam a oratura na sua infância. Corália afirma que a oratura se forma como um elo de ligação entre a mãe e a criança. A corrente que passa 1 Pedro Pereiral Leite, CES.UC / ULHT no processo de aleitamento e na fala, canto ou histórias tradicionais, são modos de acesso à tradição e à memória duma comunidade A narrativa oral afro-cubana, inspirada na mitologia ubuntu são forma de acesso à verdade. Na mitologia ubuntu, cada um tem uma verdade, e é a partir do dialogo que se acede á uma outra verdade. Há um contro tradicional cubano que fala dessa situação. Duas rainhas, que vivem de lados diferentes do rio, uma com abundância de água e outra com abundância de terra e sementes. Durante muito tempo uma das princesas visitava a outra, trocando a água que permitia criar comida. Um dia a que preparava a comida fartou-se de preparar a comida para a outra e zangaram-se, separando-se. Viveram separadas e com fome, até ao dia em que voltaram a reunir-se e a entender o sentido do contributo coletivo. Em Cuba a narrativa oral foi muito forte nos inícios dos anos 30, com Lídia Cabrera que publica os seus contos negros em 1940. A inspiração negra estava então na moda nos círculos artísticos e intelectuais: Por exemplo Fernando Garcia Lorca, nos seus poemas sobre Cuba, que visita nos anos vinte evidencia este fascínio2. Lydia Cabrera, amamentada por uma ama negra, teve uma maior facilidade em aproximar-se ao universo mítico da cultura afro-cubana, pois a sus sensibilidade tinha sido marcada na mais tenra idade por uma aproximação a universo cosmológico afrocubano. 2 http://www.poemas-del-alma.com/son-de- negros-en-cuba.htm Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 7 A oficina de contos afrocubanos A oficina de Corália Rodriguez é construída no âmbito da procura do reconhecimento do eu e do outro através da oralidade. É feita como um processo de construção de identidade. A primeira proposta, de reconhecimento iniciou-se pela procura da origem do nome próprio. Saber porque é que cada um se chama assim. Qual é a origem e a ideia de que o nome é um projeto pré- definido pelos pais. A nossa origem está ligada a um projeto. O exercício procura reconhecer essa identidade. A oficina da oratura afro-cubana é feita com humor. O humor é um instrumento narrativo. É eficaz se for um humor positivo, feito com um sorriso. Não com o sorriso feito para dentro. Mas um sorriso para partilhar. Os contos servem para adormecer as crianças, mas também servem para educar adultos. Por essa razão, o trabalhar com adultos e crianças, há que ter em atenção a estrutura do conto. Todos os contos têm uma introdução, tratam um conflito e têm um desenlace. É necessário ao narrador, saber o que é o conto, porque se conta, e como é contado (narrado). O conto, quando está escrito, é independente do narrador, mas é o narrador que tem que procurar a transcendência do conto através da sua narração. Entregar-se ao conto, entregar-se à narração é não só a aplicação duma técnica (onde a técnica de representação ajuda), mas também a consciência do que se procura transmitir nesse conto. O narrador necessita de saber porque escolhe esse conto, ou porque razão o conto escolheu essa forma narrativa, através desse narrador. Na oratura afro-cubana, o conto não é apenas uma estrutura narrativa pre- existente. É um processo que vive, que se manifesta duma determinada forma através dum narrador. O narrador também não é apenas um agente de transmissão (comunicação) inocente. É um agente, ou ator ativo, envolvido no processo, que acrescente uma experiencia pessoal e que dialoga com a estrutura do conto. A oratura trabalha uma dimensão emotiva da memória. A memória emotiva A memoria emotiva é trabalhada no teatro do espontâneo. Introduzida por Konstatin Stanislavsky que evitava os gestos parasitas, os gestos que não levam a nada e que são estéreis. Á memória emotiva é um processo da preparação do ator, onde após a introspeção e a concentração de procura a memória emotiva do ator. As emoções são livres, não se trabalham. O que o ator trabalha são as condições do corpo que expressam as emoções. Por essa razão o ator, ao procura na sua memória emotiva as relações de proximidades ou de semelhança com a personagem, está a criar as condições de se entregar ao papel. Evidentemente que a memória emotiva, pode limitar a aproximação do ator apenas às experiencias vividas. Contudo, muitas experiencias não são apenas experimentadas, são também vivenciadas através de contos e experiencias dos outros. Na técnica da oratura, onde não há a representação dum papel, mas a Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 8 mediação dum processo. É necessário tem em atenção o olhar. Os olhos são o espelho da alma. O olhar é revelador das emoções do narrador e fornece, igualmente a medição da temperatura da audiência. Uma oratura deve ser sincera e emotiva. Deve facilitar a proximidade e a entrega do narrador à oratividade e da audiência à audição. Podem ser criados pequenos momentos de participação. Podem ser encorajados momentos de participaçºão em momentos chave da oratura. Na narração oral, como em tudo, não há caminho sem obstáculos. E a única maneira de ultrapassar os obstáculos é enfrenta-los. Um conto é sempre um obstáculo que devemos enfrentar. O tempo da narração é um processo de superação. Um outro elemento relevante da oratura é o ritmo da narração. Um conto deve ser projetado na audiência. Mas a narração tem que ser interior. Tem que vir de dentro. Tem que estar sintonizada com o ritmo da respiração. Se uma oratura é uma forma de contar o mundo ele tem que estar em conexão com o mundo. Narrar um conto é também um ato criativo. Narrar implica recriar. A preparação deve ter em atenção que em todo o conto à uma estrutura, um esqueleto que orienta. É sobre essas linhas que o narrador cria. Quem conta um conto acrescenta um ponto e no mundo dos contos tudo é permitido sem romper a logica da história. Finalmente, algumas questões práticas para o narrador. Já ficou implícito a necessidade de dispor de um momento para concentração. O vestuário deve ser confortável e adequado à aduência e ao espaço. Antes de se fazer a narração deve-se lavar os dentes, as mãos e a cara. A narração é um processo de entrega ao outro. De construção com o outro Para finalizar a oficina, Corália Rodriguez canta um poema recolhido por Samuel Feijo - Investigador de contos tradicionais de cuba. E revela o seu objeto narração. Uma pequena boneca negra, que lhe foi oferecida num terreiro de candomblé, na Bahia.Abayome. Dibulee oni Emi omi omo Yemaya tiyale. Bibliografia http://mondoral.org/?-Coralia- Rodriguez-Comedienne-Conteuse- Cubaine- http://www.cuentacuentos.eu/nar radores/miembros/suiza/CoraliaR odriguez.htm http://www.revistadeteatro.com/ artez/artez164/zona/gentedepala bra.htm Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 9 Biografia do Corália Rodriguez Integra desde 1993 integra a equipa etnóloga cubana Natalia Bolívar. É presidenta da Asociación Cultural “Las Tejedoras de Palabras” de Genebra. Apresentou-se em vários eventos de oralidade cénica e de teatro em Cuba, México, Venezuela, Brasil, Canadá, Suiça, França, Espanha, Itália, Luxemburgo, Alemanha, Liechtenstein, Áustria, Bélgica, Portugal, Burkina Faso, Costa de Marfim, Egipto, Tunísia, Argélia, Ilha de Runião e Guiana Francesa. Recebeu diversos prémios pela sua narração (María Antonia, Santa Camila de la Habana Vieja), assim como os premios Cuentería, Chaman y Juglar. Atualmente é colaboradora permanente do Foro oro de Narración Oral del Gran Teatro de La Habana. Desenvolve trabalho de tradução simultânea em español e francés, no teatro e nas artes narrativas. É artista associada da “Compañía Teatro el Público de Cuba”, dirigida por Carlos Díaz. Em otubro de 2012 integrou la companhía de narradores oraies do Café-Crème de Lyon, Francça, e em el 2013 o Grupo “Orisha Oko”. Publicaciones En la Punta de la Lengua (UNEAC, 1999) Premio del Concurso Nacional de los Talleres Literarios juventud y Cultura. El Sapo Querendón (Le Crapaud Calin, 2015) Antología El Arbol de la palabra, Cuba CD Cantos y Leyendas Afrocubanos, Ginebra, 1996, Grupo Ambos Mundos. CD Había Una Vez Un Cocodrilo Verde (Francés) Ginebra, Suiza con Paco Chambi Lusotopias – revista de geocultura – nº 3 2016 10 Poemas cubanos de Garcia Lorca3 Cuando llegue la luna llena iré a Santiago de Cuba, iré a Santiago, en un coche de agua negra. Iré a Santiago. Cantarán los techos de palmera. Iré a Santiago. Cuando la palma quiere ser cigüefla, iré a Santiago. Y cuando quiere ser medusa el plátano, iré a Santiago. Iré a Santiago con la rubia cabeza de Fonseca. Iré a Santiago. Y con la rosa de Romeo y Julieta iré a Santiago. ¡Oh Cuba! ¡Oh ritmo de semillas secas! Iré a Santiago. ¡Oh cintura caliente y gota de madera! Iré a Santiago. ¡Arpa de troncos vivos, caimán, flor de tabaco! Iré a Santiago. Siempre he dicho que yo iría a Santiago en un coche de agua negra. Iré a Santiago. Brisa y alcohol en las ruedas, iré a Santiago. Mi coral en la tiniebla, iré a Santiago. El mar ahogado en la arena, iré a Santiago, calor blanco, fruta muerta, iré a Santiago. ¡Oh bovino frescor de calaveras! ¡Oh Cuba! ¡Oh curva de suspiro y barro! Iré a Santiago. 33 Lee todo en: Son de negros en Cuba - Poemas de Federico García Lorca http://www.poemas-del-alma.com/son-de-negros-en-cuba.htm#ixzz4K3OoP3Gg
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