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DESCRIÇÃO Investigação da relação cultura-literatura, com apresentação de possíveis contribuições dos entendimentos sobre a cultura para os estudos literários. PROPÓSITO Conhecer as relações entre cultura e literatura para abordagens mais embasadas e esclarecedoras do fenômeno literário em diversos vieses. OBJETIVOS MÓDULO 1 Analisar a relação literatura-cultura MÓDULO 2 Analisar a relação literatura-sociedade MÓDULO 3 Descrever questões identitárias relativas à literatura INTRODUÇÃO Prepare-se para descobrir a riqueza de uma palavra: cultura. Você saberia defini-la? E se ela estiver relacionada ao termo literatura? Isso facilita sua empreitada? Como você verá adiante, é possível tatear o conceito de cultura, mas talvez seja impossível encontrar uma conceituação muito categórica ou fechada e que abarque tantos sentidos quanto essa palavra pode ter. Mas não se intimide pela dificuldade, não desista de pensar sobre isso. O final de cada etapa será recompensador! Vamos embarcar agora numa importante investigação sobre as relações entre a literatura, a cultura e a sociedade. MÓDULO 1 Analisar a relação literatura-cultura Neste primeiro módulo, lançaremos um olhar panorâmico sobre a ideia de cultura. O QUE É CULTURA? COMO DEFINIR ESSE TERMO COMPLEXO? A partir dessa definição ampla, caminharemos pela compreensão de que não há uma cultura, e sim culturas, no plural, e que a vida em sociedade é uma vida em relação, que não deve ter os saberes hierarquizados. Por fim, entraremos na intensa relação entre literatura e cultura, entendendo como a literatura tem um papel fundamental na tradução e construção simbólica de sentidos. A IDEIA DE CULTURA Cultura é uma palavra genérica que engloba uma série de características, comportamentos e manifestações de grupos humanos. Um povo, uma nação, uma tribo se reúne em volta de uma miríade de práticas culturais heterogêneas e que, na maioria das vezes, são plurais mesmo dentro de um determinado grupo. A forma de organizar a família, os acordos sociais, a maneira de encontrar e lidar com os recursos naturais, de habitar, de se manifestar artisticamente são pontos que definem o que é cultura para cada sociedade. Antropologicamente falando, muitas são as maneiras de entender o desenvolvimento intelectual e cultural do ser humano e o porquê de haver certa distinção entre o humano e o animal. Talvez a principal diferença seja a capacidade da humanidade de criar conjuntos de signos e símbolos e os interpretar de formas muito diferentes. Um animal não é capaz de reconhecer os significados que certos objetos recebem em cada cultura humana. A cor preta pode significar luto entre certos povos, mas, para os chineses, é o branco que expressa esse sentimento. Mesmo um chimpanzé, capaz de realizar tarefas complexas para o cérebro humano, de forma ágil e eficiente, não saberia fazer a distinção entre um pedaço de pano solto ao vento e o significado de uma bandeira desfraldada. Esses conceitos formalizam um escopo do que é cultura para a humanidade, nos distinguindo dos animais. No entanto, essa separação gera também problemas, pois, ao nos apartar do que seria “natural”, constrói uma ideia de superioridade em relação ao resto do planeta do qual dependemos para sobreviver e para nos expressar culturalmente. Uma sociedade culturalmente formada só pode existir em relação, também, com a natureza, e não em face de uma atitude predatória e colonizadora. POR ISSO, É IMPORTANTE ENTENDERMOS QUE A IDEIA DE CULTURA É UMA IDEIA EM RELAÇÃO. Partindo de uma origem biológica comum, a humanidade se espalhou pelo planeta e se organizou em grupos que se desenvolveram paralelamente em tempos e biomas muito diferentes. A enorme diversidade linguística dos agrupamentos humanos e suas distinções dialetais internas mostram a complexidade desse desenvolvimento cultural em campos paralelos. Uma evolução em múltiplos movimentos concomitantes, que se aproximam, se afastam e se tocam, como placas tectônicas de conhecimento se movendo não no interior, mas sim na superfície do planeta. Assim como as placas que sustentam os continentes, os grupos humanos se distanciam, se acercam e se chocam, causando, muitas vezes, grandes terremotos socioculturais. A história envolve contatos, contágios, conflitos e acordos entre distintas culturas que vivem em movimento permanente; é essa capacidade de troca, de escambo e permuta, tanto de bens, mas principalmente de conhecimentos, o que nos constitui como seres sociais, sempre em relação com o outro. Vilarejo de Masai, perto de Arusha, Tanzânia. Cidade medieval de Semur em Auxois, Borgonha, França. Al Qasr, antiga vila no deserto de Dakhla, Egito. Aldeia de Guizhou Xijiang Miao, China. Mesmo sendo a cultura uma expressão particular, que se diferencia de grupo para grupo, e possui um arcabouço de conhecimento com infinitas manifestações, existem certos procedimentos compartilhados. A transformação das sociedades de um comportamento caçador e coletor de alimentos para a fixação em conjuntos arquitetônicos que se organizam, de forma mais sedentária, em torno da agricultura e da domesticação de animais, é algo que se nota na maior parte do planeta. Ainda que encontremos muitos desses traços comuns entre as diversas culturas ao redor do globo, não é possível traçar, como já se tentou, uma evolução cultural da humanidade. Culturas seculares, que possuem longa tradição escrita, gravando assim sua história, nos deixam a possibilidade de construir uma linha evolutiva de comportamentos. No entanto, não podemos crer que, a partir das transformações registradas na milenar cultura japonesa, possamos traçar uma evolução que servirá para qualquer outro grupo social. É importante notar, aliás, como a tradição oral ficou por muito tempo em “desvantagem” em investigações e avaliações que se faziam a respeito de grupos que não tinham escrita. Uma avaliação limitadora e que escondia riquezas culturais. Nesse sentido, as ideias de bárbaro, selvagem e civilizado caem por terra. A hierarquização entre as culturas é um caminho que leva a generalizações e preconceitos que apagam saberes, línguas e procedimentos culturais, em nome de outros considerados mais avançados. Quando os portugueses aportaram no Brasil, em 1500, o choque cultural foi intenso. Em uma primeira interface entre literatura, escrita e cultura nestas terras, a carta de Pero Vaz de Caminha (1500), escrita ao rei de Portugal para descrever as riquezas da nova terra conquistada, mostra uma construção narrativa que acaba por criar uma separação entre os dois povos, um civilizado e outro bárbaro. “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.” CAMINHA, 1500. Desconhecer a língua do outro sempre foi o primeiro passo para classificar um grupo como bárbaro. Para o Império Romano, assim era com todos que não falavam latim. No século XVI, a invasão portuguesa se chocou com a organização tribal dos povos que já habitavam o que hoje conhecemos como Brasil. Um enorme espanto tomou conta dos portugueses ao se depararem com a falta de vestimentas que cobrissem as ditas vergonhas, as línguas desconhecidas, os deuses inimagináveis, uma outra cosmogonia e outra relação com as ideias de riqueza e acúmulo. Para citar um exemplo desse choque, podemos lembrar da fama pejorativa utilizada com os povos indígenas, descritos como povos preguiçosos, que se deitavam em redes à sombra ao invés de trabalhar. Essa visão provém desse choque de conceitos sobre o que é riqueza. MAS E SE OLHARMOS PELA VISÃO DO OUTRO LADO? SE TENHO O NECESSÁRIO PARA ME PROVER E PROVER À TRIBO, POR QUE TRABALHAR MAIS PARA ACUMULAR EMEXCESSO? Esse exemplo, de um encontro que aconteceu há mais de quinhentos anos, aqui nesta terra que habitamos, repercute e resiste até hoje. Por isso, é fundamental que reconheçamos a pluralidade e a diversidade cultural tanto externas quanto internas à nossa sociedade. É somente dessa forma que podemos criar laços empáticos e comunicativos com o outro, com o diferente, enriquecendo o nosso mundo com o encontro de saberes, numa outra história que tenha como foco eliminar preconceitos, hierarquizações e perseguições entre populações, grupos e categorias. ALTA CULTURA VERSUS BAIXA CULTURA? A noção de cultura, que se amplia de forma intensa após o século XVI, a partir da expansão marítima europeia e suas relações de invasão, contato e contágio entre povos e pensamentos muito distintos, acabou por criar uma divisão entre alta e baixa cultura: uma ideia de que o desenvolvimento das manufaturas e tecnologias provenientes da produção industrial em massa é mais avançado do que os saberes de povos ditos primitivos. Essa perspectiva enxerga uma suposta civilização com acesso à cultura e um povo bárbaro que ainda deve civilizar-se para atingir seu apogeu cultural. Tão equivocada quanto preconceituosa, essa afirmação criou, ao longo dos últimos séculos, uma ideia de que os colonizadores tivessem que tutelar os povos colonizados para construir um ambiente civilizado que os tornasse capazes, até mesmo, de se governarem. AQUELES QUE PROCLAMAM A NECESSIDADE DE UM PERÍODO DE INCUBAÇÃO ÉTICA PARA PREPARAR HOMENS E MULHERES PARA A CIDADANIA POLÍTICA INCLUEM OS QUE NEGAM AOS POVOS COLONIAIS O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO ATÉ SEREM SUFICIENTEMENTE ‘CIVILIZADOS’ PARA O EXERCÍCIO DE SUAS RESPONSABILIDADES. IGNORAM O FATO DE A MELHOR PREPARAÇÃO PARA A INDEPENDÊNCIA POLÍTICA SER, DE LONGE, A INDEPENDÊNCIA POLÍTICA. (EAGLETON, 2005, p. 20.) Essas palavras, do teórico Terry Eagleton, falam sobre independência cultural, e plantam a semente de um pensamento descolonizante. SAIBA MAIS Descolonizar X Decolonizar Há uma importante discussão teórica sobre o uso dos termos descolonizar ou decolonizar, sendo o segundo indicativo de que não é possível descolonizar, o que enfatiza que o passado não pode ser reescrito, ainda que não precise limitar as construções futuras. A PARTIR DESSAS IDEIAS, PODEMOS COMPREENDER QUE A PALAVRA CULTURA É DIFÍCIL DE SER USADA NO SINGULAR. O que experimentamos são culturas plurais e diferentes, formando uma galáxia de vivências possíveis, a menos que, por uma força impositiva, colonial ou ditatorial, os sistemas políticos cerceiem e impeçam as manifestações culturais de aflorarem. É nesse sentido impositivo que se constrói a ideia dos saberes ditos civilizados e outros bárbaros, colocando em níveis diferentes de valor o saber erudito e o saber popular. Essa baixa cultura estaria ligada a grupos específicos e que não estão conectados a certo rigor científico na produção de seus conhecimentos, ou não estão em posições de poder. A IDEIA DE QUE OS BRANCOS EUROPEUS PODIAM SAIR COLONIZANDO O RESTO DO MUNDO ESTAVA SUSTENTADA NA PREMISSA DE QUE HAVIA UMA HUMANIDADE ESCLARECIDA QUE PRECISAVA IR AO ENCONTRO DA HUMANIDADE OBSCURECIDA, TRAZENDO-A PARA ESSA LUZ INCRÍVEL. ESSE CHAMADO PARA O SEIO DA CIVILIZAÇÃO SEMPRE FOI JUSTIFICADO PELA NOÇÃO DE QUE EXISTE UM JEITO DE ESTAR AQUI NA TERRA, UMA CERTA VERDADE, OU UMA CONCEPÇÃO DE VERDADE, QUE GUIOU MUITAS DAS ESCOLHAS FEITAS EM DIFERENTES PERÍODOS DA HISTÓRIA. AGORA, NO COMEÇO DO SÉCULO XXI, ALGUMAS COLABORAÇÕES ENTRE PENSADORES COM VISÕES DISTINTAS ORIGINADAS EM DIFERENTES CULTURAS POSSIBILITAM UMA CRÍTICA DESSA IDEIA. (KRENAK, 2020, p. 11) A partir desse pensamento de Ailton Krenak acerca da visão que coloca uma distinção cultural entre metrópole e colônia, podemos entender como a história da literatura no Brasil desprezou, por muito tempo, os cantos e a cultura oral dos povos originários. Na maioria dos livros de história da literatura no Brasil, ela começará no século XVI com os primeiros textos escritos em português em território brasileiro. AILTON KRENAK Ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia, comendador da Ordem de Mérito Cultural da Presidência da República e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Vale aqui destacar algumas iniciativas, como a antologia Poesia.br, que incluiu como marco fundador da literatura brasileira os cantos ameríndios. Entrando na interface literatura e cultura, vemos nessa coletânea cantos de culturas orais fixados em português moderno em uma pesquisa realizada por antropólogos e poetas. É JUSTAMENTE NO FIO DESSA NAVALHA ENTRE LITERATURA E CIÊNCIAS SOCIAIS QUE A INTERFACE CULTURA-LITERATURA SE DARÁ. SAIBA MAIS Vale lembrar também do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, que assume como ano 1 a “deglutição do Bispo Sardinha” pelos indígenas caetés, sendo o manifesto assinado no ano 374 dessa nova e significativa contagem. O conflito entre alta e baixa cultura persiste até hoje. Essa falsa ideia de que existem níveis diferentes de valor para saberes e criações artísticas foi o que fez do samba um ritmo perseguido no início do século XX; é o que até hoje cria o preconceito contra o funk e suas variações. Não à toa esses são ritmos que nascem desse amálgama entre pretos, indígenas e brancos expatriados. Foram nos terreiros de candomblé, remixados na presença dos santos católicos, que os tambores dos ogãs variaram as batidas ritualísticas, criando o samba de terreiro. É esse tambor que pulsa no sangue e no peito do Brasil que se tornou o tamborzão do funk carioca do início do século XXI. O preconceito recai sobre a música e os corpos de quem pensa e cria por meio de uma outra linha evolutiva que não passa, diretamente, por uma reverência aos reinados europeus. Foi também por conta dessas ideias que separam quem é erudito e alto de quem é popular e baixo que Carolina Maria de Jesus, autora do impactante Quarto de despejo, passou tanto tempo sem o devido reconhecimento como escritora de fundamental importância para o entendimento do Brasil. Neste entre lugar fraturado, que não é ocidente nem oriente, neste novo mundo latino-americano, lidar com as antigas tradições e criar a partir de segundas leituras incorporadas será um importante papel do escritor que aqui vive. Veremos mais adiante como essa interface entre literatura e cultura se configurará em um campo de uma batalha de narrativas semiológicas. INTERFACE CULTURA-LITERATURA Não é só a forma de um povo se comportar e como ele lida com o universo ao seu redor que define o que é cultura. Essa estruturação se dá também por uma série de práticas e, principalmente, de intercâmbios de sentidos. É por meio do compartilhamento de significados, pela forma como um grupo interpreta o mundo, que se forma o entendimento do que é cultura. É esse entendimento, essa troca simbólica, que diferencia o elemento humano em seu comportamento social daquilo que é somente biologicamente direcionado. Tal produção de sentido se dá em inúmeras esferas capazes de traduzir o mundo. A linguagem, e seus muitos desdobramentos visuais, escritos e sonoros, é um pilar fundamental desse comportamento social humano. A PARTIR DA LINGUAGEM SE FORMARÁ ESSE SISTEMA DE REPRESENTAÇÕES. Do vetor que nos impulsionou para a língua falada e escrita emerge a literatura, uma interface de leitura do mundo que respira, se expande, se dobra e desdobra na tradução e criação de sentidos. Entendendo a cultura a partir dessa ideia de sua dupla função: Cultura orientadora de processos comunicativos Cultura tradutora de processos comunicativos Mediante essa concepção de dupla função que se materializa em distintos e variados sistemas simbólicos, responsáveis pela manutenção, reprodução de sistemas culturais e sociais e por uma constante transformaçãoem suas bases, vemos que as discussões teóricas sobre o tema apontam uma tendência a entender a cultura como saber coletivo, gerado por processos cognitivos e comunicativos heterogêneos, pelos quais indivíduos definem as suas esferas de realidade. Quando essa ampla esfera de conhecimentos e conceitos ganha forma por meio de uma manifestação artística complexa, como é a literatura, ganhamos uma nova interface de leitura do mundo. É possível ler as manifestações culturais partindo de muitos olhares diferentes, seja a partir dos preceitos e regras de ciências exatas como a Física ou das biomédicas como a Biologia, ou a partir das etnografias e descrições das ciências sociais. No entanto, é pelas manifestações artísticas que teremos vozes e visões que, ao mesmo tempo, serão capazes de ler e instaurar mundos. A literatura tem um papel fundamental em todas as sociedades, é também por intermédio dela que reconhecemos e decodificamos um corpo de signos que nos rodeia. Seja na tradição oral, passando de geração a geração cantos e poemas que contam a cosmogonia de um povo, seja na literatura contemporânea, capaz de fazer leituras do presente transformando biografias em ficção, é a partir da operação no texto que temos um contorno possível para nos reconhecermos enquanto sociedade. “Para os filólogos, o conceito de cultura mais proveitoso corresponde certamente a uma identificação com o universo textual, em que momentos culturais particulares permitem ser decodificados a partir de determinada contextualização. A semiótica da cultura compreende-se, nesta perspectiva, como imensa estrutura horizontal e vertical de textos em lenta e constante transformação. As linguagens, a mídia, as metáforas, a simbolização e até as instituições tendem a ser interpretadas, neste âmbito, como formas de decodificação sistemática e constitutiva de diferentes realidades sociais.” (KRIEGER, 2008, p. 78) Odisseia, texto basilar da literatura e da cultura ocidental, recontada em manuscrito do século XV. Compreendemos, assim, esse papel de dupla articulação entre literatura e cultura. Um eixo paradigmático que faz girarem juntas a prática interpretativa e a construção de sentidos. Nesse movimento de gravitação, as diversas estruturas textuais da literatura irão tecer um mundo a partir desse caldo cultural que se apresenta vivo e em constante transformação. Como todo tecido a envolver um corpo, essa vestimenta também altera aquilo que é observado, pode revelar certas partes e esconder tantas outras. Daí a importância da pluralidade de vozes que se expressam por meio dessa interface. AS CRIAÇÕES E CONSTRUÇÕES LITERÁRIAS SÃO PARTE CONSTITUTIVA DO QUE CHAMAMOS DE CULTURA. Como uma porta que abre para os dois lados, essas esferas irão se interpenetrar, constituindo uma leitura que a um só tempo interpreta e cria novos mundos. Quando Miguel de Cervantes escreve o seu célebre As aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, não só uma acurada leitura do que era a cultura espanhola no século XVII se descortinava, como também um outro mundo era instaurado. Reconhecido como o livro fundador do romance moderno, o procedimento de Cervantes para escrever essa história se destaca de seus contemporâneos e predecessores. Primeira edição de Dom Quixote. D. Quixote e Sancho Pança, Gustave Doré, 1863. O que mais se lia na Península Ibérica naquele momento eram romances de cavalaria: livros repletos de histórias de aventuras sobre heróis montados em cavalos, com suas lanças, atravessando os campos plenos de virtudes, cheios de verdades e vitórias. A história de Dom Quixote é o avesso de tudo isso. Após ler toneladas desses romances, o velho camponês delira na figura do cavaleiro e parte pelas terras de La Mancha, com seu fiel escudeiro Sancho Pança, por uma história que narra as falhas, as desventuras, a loucura, a pobreza e outras realidades impensáveis em um romance de cavalaria tradicional. Cervantes a um só tempo descreve uma Espanha partida em seu interior cheio de conflitos e cria um espaço para a invenção de algo novo. Os gigantes que Quixote enfrenta são moinhos de vento, as damas que encontra e corteja são prostitutas na porta das vilas assoladas pela fome. A figura do cavaleiro justiceiro e virtuoso cede espaço ao louco, mas é justamente esse louco que é capaz de descortinar um novo olhar sobre um país que se transformava. Sempre acompanhado por seu fiel escudeiro Sancho Pança, personagem complexo e fiel que tenta conectar seu amo à realidade fática, mas em nenhum momento o abandona, chegando ao ponto de reconhecer que os moinhos eram gigantes quando um já fatigado Dom Quixote se entrega ao peso da realidade. Nessa virada da história, quando Dom Quixote desiste de sua própria fábula e Sancho Pança muda de papel e convoca seu amo a reafirmar seu delírio, percebemos que, de fato, eram gigantes os moinhos. Talvez não mais os gigantes dos contos fantásticos de outrora, mas a representação de uma relação violenta de poder dentro dos feudos, uma relação de exploração entre os que produziam o alimento e viviam com muito pouco e o senhor feudal, que, em seu castelo, lucrava com aquela produção pré- industrial. SERIA DOM QUIXOTE UM REVOLUCIONÁRIO? GUIADO POR UM INSTINTO DE CAVALEIRO A LIVRAR SEU POVO DO JULGO DAS VERDADEIRAS FORÇAS DO MAL? O romance abre espaços para infinitas leituras. É mediante a interface do romance moderno que a leitura das culturas se fará de forma potente e aguda. Ao construir mundos fictícios a partir da observação do que nos cerca, a literatura se tornará um importante mediador entre a nossa experiência no mundo e a elaboração dessa aventura diária que é conviver em sociedade. Dentro dos livros e suas histórias, podemos viver a existência de infinitos personagens, caminhar por paisagens impensadas e ler o mundo por outros olhos, em um caminho da arte que nos permite receber informações por uma via do cérebro que não está totalmente fechada com os cadeados de nossos preconceitos cotidianos. LITERATURA E CULTURA Vamos voltar aos principais pontos do tema, mas agora em forma de bate-papo? Aproveite! LITERATURA E MÍDIA, INTERFACES POSSÍVEIS A interface cultura-literatura está atrelada não só ao tipo de transcriação simbólica que se pode fazer a partir da percepção das manifestações do mundo ao redor, mas ao meio como essa literatura se apresenta ao leitor. O teórico Marshall McLuhan, autor da famosa frase “o meio é a mensagem”, estava ciente disso ao traçar um caminho de transformações pelas quais a literatura passou e vem passando, uma transformação diretamente ligada ao meio físico pelo qual as letras se difundem. Para McLuhan, há um caminho que passa da cultura oral à cultura letrada manuscrita, chegando ao que ele chama de galáxia de Gutenberg, com a invenção da tipografia, até passar pelas revoluções da era eletrônica. Cada um desses passos enfatiza um aspecto das possíveis percepções enquanto deixa outros de lado. A cultura oral e a literatura oral são expressões diretamente ligadas ao corpo, às experiências sensoriais e ritualísticas do canto e da dança. Foi assim que a literatura nasceu, muito antes da escrita. Quando fazemos a passagem para a cultura letrada manuscrita, querendo ou não, há a perda dessa dimensão corpórea, passando a uma atividade ligada à dedicação manual e a uma leitura mais intimista e individualizada. A explosão da galáxia de Gutenberg, nas palavras de McLuhan, cria a possibilidade de se copiar milhares de vezes um texto, podendo espalhá-lo por uma enorme comunidade de leitores. Se, por um lado, saímos da experiência sensorial, entramos em um diálogo muito maior com a ampliação do alcance dessa voz. Já a chegada da revolução eletrônica impõe à literatura um intenso contato com a visualidade das imagens em movimento. O cinema, a televisão, o computador e a internet criam uma experiência de leitura em hipertexto que nos coloca diante de um infinito de informações. Neste momento no qual enfrentamosuma crescente virtualização das relações, a literatura continua presente como interface de leitura das manifestações da cultura. A cada passo dado por essas transformações no meio pelo qual a produzimos, precisamos estar atentos para não cair na cilada dos aprisionamentos que as tecnologias também trazem. A questão não é se ater ao saudosismo e querer voltar ao corpo e aos cantos da literatura oral. Nosso corpo sempre estará aqui e nossas experiências com ele serão sempre possíveis e bem-vindas, é bom lembrar, mas o desafio da interface literatura-cultura na era digital é o de imaginar que espaço queremos construir, seja ele na fisicalidade sinuosa dos rios, na dureza das retas avenidas ou na virtualidade elétrica do ciberespaço. Que mundo desejamos? Que mundo queremos? Que mundo estamos construindo? VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 2 Analisar a relação literatura-sociedade Indo mais a fundo nos estudos culturais e literários, encontraremos a interseção entre literatura e Ciências Sociais. Veremos adiante como uma obra literária pode ser uma potente chave de interpretação e de leitura social. Como a literatura se relaciona com o espaço urbano e com o campo, com a pluralidade de realidades sociais, e como se dissocia da realidade para se tornar dela um espelho invertido por intermédio da ficção e da inventividade. LITERATURA E ANTROPOLOGIA A literatura pode ter uma enorme gama de funções, como produzir beleza com a linguagem, sem um fim ou um porquê definido, até servir como instrumento de interpretação social. Quando estamos falando da literatura enquanto leitora e descritora do mundo, esbarramos nas Ciências Sociais e na Antropologia. UM ANTROPÓLOGO NÃO É UM ROMANCISTA, MAS TAMBÉM USA A LINGUAGEM PARA DESCREVER COSTUMES E CULTURAS. A Etnografia é uma ciência que pretende, a partir de uma relação de proximidade (inicialmente física) com o outro, interpretar, descrever e gravar em escrita como determinado grupo humano se comporta e lê o mundo simbolicamente. A criação literária, na prosa e no romance em especial, pode ter pontos de contato com a Etnografia, mas funciona de forma distinta. O antropólogo que observa e descreve um grupo cultural não é um criador de realidades, é alguém que interpreta gestos, ritos e comportamentos. O romancista não está necessariamente preocupado com certo rigor ao descrever determinado grupo e pode criar ficções e realidades que não descrevem o real, mas nos ajudam a percebê-lo. Etnografia e escrita narrativa se tocam e se afastam, são formas de abordar, interpretar e traduzir o que vemos com contornos e objetivos bem distintos. Mas muitas histórias no universo da literatura constroem descrições tão elaboradas quanto afetivas de um determinado momento ou grupo social, que se transformam em verdadeiras etnografias da condição e comportamento humanos. Dois bons exemplos dessa conexão são os livros O cortiço, de Aluísio de Azevedo, e Quarto de despejo, de Maria Carolina de Jesus. EM O CORTIÇO, TEMOS UM GRANDE PERSONAGEM PRINCIPAL QUE NÃO É HUMANO, É O PRÓPRIO CORTIÇO. Em algumas passagens do livro, é essa entidade quem ganha vida como um corpo único, formado de muitos outros corpos vários (os moradores e frequentadores do cortiço), em uma enorme engrenagem que funciona com organismos que vivem em simbiose, atração e repulsa, numa vida pobre e batalhadora. “Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.” (AZEVEDO, 2016, p.32) O escritor brasileiro Aluísio Azevedo (1857-1913). Projetado no romance mais do que os personagens que ali vivem, o cortiço é um desenho de parte da sociedade do Rio de Janeiro do final do século XIX. Pelo centro da cidade, centenas de casarões habitados por um número enorme de pessoas eram a ocupação de moradia típica. O romance traça algumas linhas narrativas de personagens que ali vivem e descreve com precisão e criação uma espécie de ocupação da cidade que, anos mais tarde, seria arrasada pelos novos planos de reurbanização do centro do Rio de Janeiro. Publicado em 1890, mas com a história se passando em um Brasil anterior à abolição da escravidão, O cortiço também narra as tensões sociais e raciais de um país que tentava se libertar de uma mentalidade escravocrata e violenta que até hoje nos assola. É por conta desse pensamento que o centro da cidade foi gentrificado, isto é, limpo dos indesejáveis corpos que ocupavam seus cortiços e ruas tortuosas, que deram lugar às largas avenidas de estilo parisiense. O povo pobre da cidade subiu, então, os morros e as primeiras favelas começaram a surgir. Maria Carolina de Jesus era moradora de São Paulo, mas lá também vivia em uma favela, a do Canindé, na Zona Norte da cidade. Em uma vertiginosa sequência escrita em forma de diário, Carolina conta o cotidiano de sua vida na favela, as idas para buscar água, a fome, o descaso do Estado, o cuidado com os filhos, a salvação na vida comunitária, o desejo de um futuro melhor. Por muitos anos, Quarto de despejo foi considerado um documento da vida em uma favela e não literatura, ficando alocado em um lugar nem da etnografia, que deveria ser feita seguindo as regulações das Ciências Sociais, nem da literatura, pois essa deveria ser praticada por homens bem letrados e viajados. A obra de Maria Carolina de Jesus é genial pelo que expõe de realidade e por seus procedimentos literários. Construindo a narrativa em forma de diário, os dias se empilham em repetições e continuações que nos fazem perder a noção de tempo, dando tons mais fortes para as questões sociais e políticas envolvidas naquela vida de urgências e profunda dedicação ao agora. Nessa passagem, que junta os dias 15 e 16 de julho em um só a partir da sequência dada pela ordem da filha no dia 15 e seu cumprimento no dia 16, o tempo da narrativa vai sendo construído como um grande novelo embolado no qual não é mais possível distinguir as pontas e traçar início e fim. Quarto de despejo é um livro que poderia ser lido em múltiplas direções, como o Jogo da Amarelinha, do argentino Julio Cortázar. No entanto, em cada página está presente uma leitura social e cultural duríssima. O excesso de trabalho e a falta de recursos aparecem exaustivamente no recurso literário da repetição, nas descrições dos detalhes e na exaustão da personagem/autora. Jogo de Amarelinha é a obra-prima de Julio Cortázar, célebre por sua transgressão à linearidade narrativa e a gêneros literários fixos. Chegou a ser chamado de antirromance e mistura diferentes linguagens, como a coloquialidade, a gíria, as novelas de rádio, quadrinhos, entre outros. As leituras e interpretações sociais da literatura feitas por quem está imerso no fogo da falta e por quem olha como observador distante promovem um grito de alerta, uma possibilidade de percorrer espaços, campos e ideias que, muitas vezes, nos são negados por um olhar imediatista e pouco abrangente da realidade que nos cerca. A importância dessa literatura que revela a cidade em fotos preto e branco muito cruas é a de abrir nossos olhos para o que dizem as esquinas enquanto passamos absortos, focados em nossas telas de dispositivos móveis. LITERATURA REGIONAL VERSUS UNIVERSAL – O CAMPO E A CIDADE Durante muito tempo, a literatura manteve sob a alcunha de regionalista toda a produção que estivesse fora dos grandes centros urbanos. No Brasil, o que estavafora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo, focado no interior, era considerado regional. Essa leitura do campo apartado da cidade impôs uma cisão dentro da literatura brasileira e uma relação com a interpretação cultural que tornava: A cidade (o centro) Espaço do homem universal. O campo Periferia. Se, em um sentido econômico, pensando estritamente onde circula o dinheiro, essa leitura fazia certo sentido, no campo do simbólico não poderia estar mais equivocada. As leituras de um Brasil rural foram e são tão importantes para essa função da literatura como potência interpretativa das manifestações culturais quanto a literatura urbana o é. Vidas secas, romance publicado em 1938 por Graciliano Ramos, é hoje um dos cânones da nossa literatura. Enveredando pelo sertão mais recuado do país, pisando a terra mais seca do nordeste brasileiro, Graciliano, que havia sido prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, faz uma aguda leitura da vida em terras áridas. Acompanhando uma família em busca de terra e água, Graciliano anota pensamentos, imaginações e desejos de personagens que caminham no chão do real, mas que têm a sua voz silenciada pelo barulho dos espaços centrais do país, incapazes de escutar as bordas e interiores. Capa da primeira edição (1938) do romance Vidas Secas. Ao cavar o chão seco do Nordeste, o romance de Graciliano constrói uma espécie de etnografia do sertão do país, lendo o contexto social de um espaço importante da nossa geografia, um campo que produz para a sobrevivência da cidade, mas que vive invisível e desidratado. Sua linguagem é cortante e seca como a terra onde se anda. Entre os anos de 2019 e 2020, o romance Torto arado, de Itamar Vieira Junior, ganhou grande projeção ao também retratar o Nordeste. Passado numa fazenda do interior da Bahia, Torto arado visita e descreve situações precárias de trabalho, relações sociais delicadas, um mundo regido por saberes ancestrais, das ervas, dos encantamentos e das tradições machistas, patriarcais e colonialistas. “Aquele tempo parecia ter passado com violência para ela, agora mãe de um menino. Pude ver seus seios despontarem da roupa que vestia, cheios, caídos de amamentar Inácio. Mas isso nada significava para nós mulheres da roça. Éramos preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os senhores, fosse para as nossas terras de morada ou qualquer outro lugar onde precisassem.” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 116) Itamar Vieira Junior O romance de Itamar atualiza as leituras de Graciliano em um diálogo que interpreta um Brasil à luz dessa relação campo/cidade numa realidade mais contemporânea. O enfoque nas personagens femininas e em fortes imagens do que é esperado delas joga um olhar para corpos talhados para a produção, seja do milho, da cana ou de filhos. As imagens do sertão brasileiro, a pobreza econômica e a riqueza de outros saberes que envolvem esse ambiente estão presentes nas leituras que livros como esses fizeram do sertão, mas também pelo poder criativo de outras experiências literárias nesse contexto. Homenagem filatélica em 1978 destacando o regionalismo de Guimarães Rosa. De outra feia, Grande Sertão: veredas, livro-ícone do escritor mineiro Guimarães Rosa, é, a um só tempo, leitura e invenção de um sertão que fala outra língua, constrói outras ideias de país e lê o mundo por meio de outras linguagens. Repleto de sensualidade em sua escrita, que ressoava a oralidade da região, o romance mostra personagens de sexualidade fluida, em um interior que vibra na voz e na sabedoria de quem vive em conexão permanente com os quatro elementos - água, terra, fogo e ar. LITERATURA, FICÇÃO E REALIDADE Grande Sertão: veredas deflagra uma importante face da experiência da interface literatura-cultura que se distancia da Antropologia, da ideia de etnografia, e de sua função apenas como leitora da realidade. A literatura, mesmo para interpretar o real, está sempre usando um artifício das linguagens artísticas, que é a ficção. Ao instaurar novos mundos, criar realidades alternativas, intervir no que entendemos como real, o romance, o conto e o poema criam um espelho invertido, ao qual podemos nos mirar, nos assistir em ação, vendo muitas vezes aquilo que não somos, podendo perceber algo de nosso que jazia invisível. SE POR UM LADO TODA LITERATURA É DOCUMENTO, POIS DESCREVE E NAVEGA EM CERTO CONTEXTO CULTURAL, SOCIAL E HISTÓRICO ESPECÍFICO, ELA TAMBÉM É CRIAÇÃO. Uma criação que vai além da representação e problematiza a impossibilidade da representação. A leitura do mundo acaba por ir além de tradução da realidade cultural, se transforma em trabalho laborioso com a linguagem, que se torna homogênea no seu uso corriqueiro, mas ganha outras possibilidades dentro da experimentação literária. A palavra pode ser torcida, espremida, e podemos beber de seu sumo uma nova percepção. O escritor argentino Ricardo Piglia, em seu artigo Uma nova proposta para o novo milênio, escrito em 2001, convoca a literatura para ocupar um espaço que transcenda o uso da língua reduzida a sua forma técnica. Para Piglia: UMA NOVA PROPOSTA PARA O NOVO MILÊNIO O nome do artigo reverbera Seis propostas para o próximo milênio, de Ítalo Calvino, coletânea de seis palestras que o autor proferiu em Harvard, investigando o futuro da literatura. “A LITERATURA SE DEFRONTA DIRETAMENTE COM ESSES USOS OFICIAIS DA PALAVRA E, POR CONSEGUINTE, SEU LUGAR E SUA FUNÇÃO NA SOCIEDADE SÃO CADA VEZ MAIS INVISÍVEIS E RESTRITOS. [...] EM MOMENTOS EM QUE A LÍNGUA SE TORNOU OPACA E HOMOGÊNEA, O TRABALHO DETALHADO, MÍNIMO, MICROSCÓPICO DA LITERATURA É UMA RESPOSTA VITAL”. (PIGLIA, 2001, p. 1-3) Ao se afirmar como instauradora de mundos, a literatura se posta em outro local dessa interface prismática cultura- literatura. Piglia enxerga com potência o papel vital da literatura em responder ao uso opaco da linguagem, à imposição da vida em um movimento maquinal, reduzido ao máximo da eficácia. A VIDA NÃO É SÓ A PRATICIDADE DAS COISAS. Lembrando que é a construção desses campos dos signos e símbolos o que nos define como humanos, é fundamental que tenhamos atenção a esse aspecto da existência. Intervindo na linguagem e na língua em si, realimentando o que escrevemos a partir dos sons que falamos, lendo símbolos e recriando signos, o papel da literatura se expande, constituindo um pensamento que vibra aquilo que os corpos dançam e, por vezes, nem sentimos, no compasso insano das caminhadas, corridas e escaladas do cotidiano. LITERATURA E SOCIEDADE Cultura, arte, literatura e sociedade: o papo continua. Pense, aprenda e divirta-se! VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 3 Descrever questões identitárias relativas à literatura Como a literatura se articula com as ideias de identidade? Desde a ideia considerada central de identidade nacional, até a potência das pluralidades culturais, sociais, raciais e afetivas, veremos como essas vozes, por tanto tempo silenciadas, ganham espaço e passam a ocupar um importante espaço no universo literário, capaz de trazer questões por muito tempo apagadas e abafadas por um centro que reduziu a experiência do corpo a ideias eurocêntricas, falocêntricas e colonizadoras. IDENTIDADE NACIONAL Como vimos anteriormente, a literatura atua no mundo de muitas formas, como interface de leitura do real e como instauradora de outros mundos possíveis. Nesse sentido, a relação entre literatura e identidades ganha um especial estreitamento e uma enorme força criadora. MAS O QUE ESTAMOS CHAMANDO DE “IDENTIDADE”? Identidades são um conjunto de costumes, saberes e comportamentos que definem determinado grupo, ou mesmo pessoas. Logicamente, as fronteiras desses limites não são tão definidas como as fronteiras políticas traçadas em mapas, as áreas de contato se borram e os grupos criam interseções entre si. Mesmo assim, a literatura é um vetor capaz de exprimir certo sumo principal de determinada identidade, assim como ajudar a forjá-la, a reforçá-la ou modificá-la.No Brasil, um país fraturado pelo violento processo de colonização, cheio de profundos traumas vividos nesse amálgama entre as populações autóctones, a diáspora africana e a invasão europeia, a literatura teve um enorme papel de tentar criar uma identidade nacional para um país de proporções continentais. Foi no período do Romantismo que a literatura brasileira olhou de forma aguda para as questões do país que se formava. Aportando no Brasil via experiências europeias, a poesia e a prosa românticas exaltaram as belezas naturais do país, construíram a ideia do índio como um selvagem puro que fora corrompido pelas leis do mundo dito civilizado. Esse ideal, de um paraíso natural que vivia numa certa juventude do planeta, veio das ideias do filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau e está presente em romances que são ícones do período como Iracema e O guarani. Tal ideia coloca, novamente, os indígenas como um povo ingênuo, forjador primeiro dessa terra idílica, mas que precisa ser tutelado para estar em contato com a sociedade dos homens brancos. Os poemas da fase romântica que cantam as belezas do Brasil ressoarão por muito tempo, soando ainda na canção de Ary Barroso, Aquarela do Brasil. Assista ao vídeo: Aquarela do Brasil, Ary Barroso. É uma das mais populares canções brasileiras de todos os tempos, foi escrita em 1939. Por mais que algumas experiências românticas na literatura, como as histórias de quilombolas de Bernardo Guimarães e o imenso poema Navio negreiro, de Castro Alves, expusessem outras realidades em tensão no país (“Presa nos elos de uma só cadeia/ A multidão faminta cambaleia/ E chora e dança ali!/ Um de raiva delira, outro enlouquece/ Outro, que martírios embrutece/ Cantando, geme e ri!”), a ideia romântica de identidade nacional reforça o mito existente na carta de Pero Vaz de Caminha. E NESSE CAMINHO ROMÂNTICO SEGUIU A FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE BRASILEIRA. O BRASIL SE TORNOU INDEPENDENTE NO MESMO PERÍODO DA PRODUÇÃO LITERÁRIA ROMÂNTICA. Um novo país surge apartado, no papel, de sua dependência de Portugal, mas nasce dentro de um nacionalismo romântico ufanista que encontra um novo mundo virgem, puro, que precisa de um caminho que só o homem branco, novamente ele, poderia guiar. Essa identidade nacional persistirá até o rompimento geral criado pelas ideias explosivas do Modernismo. O movimento modernista no Brasil, que tem como marco a Semana de Arte Moderna de 1922, 100 anos após a independência do país, já vinha sendo ensaiado desde o início do século XX por outros autores e agentes culturais. Mas vamos nos ater aqui aos cânones desse movimento e ao modo como eles usaram a literatura para mudar a visão e as ideias de identidade nacional. Cartaz da Semana de Arte Moderna. Brasil, cidade de São Paulo, 1922. O Modernismo brasileiro tenta tencionar as fraturas sociais e raciais brasileiras, criando um amálgama do branco europeu com o negro vindo de África e o indígena que aqui já estava. O mito das três raças ressurge no século XX e aparece construindo um brasileiro diverso do imaginado no Romantismo. EXEMPLO O romance Macunaíma, de Mário de Andrade, bebe em um mito amazônico para construir o caminho de um índio que nasce preto e vira branco, em sua busca para derrotar o gigante que roubou a Muiraquitã, a pedra de poder que mantém viva a sua tribo. Do bom selvagem de José de Alencar ao herói sem nenhum caráter de Mario de Andrade, uma enorme operação cultural é feita. Este “nenhum caráter”, presente no título do livro de Mário, não significa falta de caráter, mas sim uma personalidade em transformação, capaz de absorver a união das três raças dentro de um ser híbrido, mestiço, criador de uma nova identidade. A ideia de identidade nacional não é fixa e, hoje, quase cem anos após as revoluções modernistas, essa ideia vem passando por transformações e críticas. Podemos entender esse caminho por meio da literatura, esse campo sempre grávido de diálogos e trocas, fazendo um rápido percurso poético partindo da Canção do exílio, célebre poema romântico de Gonçalves Dias. Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá, As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. (DIAS, 1993, p. 172) O poema de Gonçalves Dias, publicado pela primeira vez em 1857, mas escrito quando o poeta estudava direito na Universidade de Coimbra em Portugal, se tornou um marco do Romantismo brasileiro exaltando as belezas naturais, a saudade da terra, o desejo de viver em um Brasil cheio de riquezas naturais. O nacionalismo ufanista de Dias será sempre lembrado, mas a ideia de Brasil se transforma ao longo do tempo. Tendo o poema como um marco fundador de uma identidade nacional brasileira, muitos poetas irão recorrer a ele fazendo paráfrases e paródias que, com profunda ironia, alteram a visão que se tem de Brasil. Ao longo dos efervescentes anos do Modernismo brasileiro, alguns poetas irão recorrer à paródia dessa canção para expor e tencionar um outro país, uma outra identidade que se descortinava. Oswald de Andrade vai se conectar aos seus afetos por São Paulo, às ideias de modernidade ligadas ao progresso e ao desenvolvimento para criar o seu Canto de regresso à pátria. Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase tem mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra [...] Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo. (ANDRADE, 1966, p. 112) O procedimento de trocar palmeiras por palmares já começa torcendo a canção original substituindo a paisagem idílica pelo espaço de luta que representou Palmares na emancipação de um Brasil negro que vivia sob o julgo da escravidão. Este “quase mais amores” também é outro drible de paródia feita pelo poeta, a inclusão desse advérbio muda a intensidade desse amor, deixando no ar o esplendor de uma terra que, além das belezas, estava tomada por enormes desníveis e desafios. A última estrofe realiza um corte seco nas belezas naturais para um caminhar pelas ruas de uma metrópole em desenvolvimento, construindo uma outra ideia de Brasil que começava a deixar o campo para fazer crescer as cidades. Jogos florais I, poema de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, publicado em 1974, faz girar a roda da história relendo Oswald e relendo Gonçalves Dias. Uma terra de palmeiras e de cantos, mas onde os pássaros já se comportam de outra forma. Funcionando como metáfora de um país marcado já por uma década de ditadura militar, o sabiá come o nosso fubá. O milagre moderno, do desenvolvimentismo sonhado nos primeiros anos do século XX e vendido como slogan de solução econômica pela ditadura militar, azeda! A água só vira vinagre. Minha terra tem palmeiras onde canta o tico-tico. Enquanto isso o sabiá vive comendo o meu fubá. Ficou moderno o Brasil ficou moderno o milagre: a água já não vira vinho, vira direto vinagre. (CACASO, 1985, p. 110) Mesmo com a manutenção dos mesmos elementos como as palmeiras e forças das belezas naturais, o país sofre inúmeras transformações. No caminho por esses poemas, vemos a leitura do que é ser brasileiro sendo atualizada. Não somos um país da unidade e de um orgulhoso amor à pátria. Somos um país de lutas, de misturas e de fraturas. Além das de Oswald de Andrade e Cacaso, a Canção do exílio ganhou releituras de Casimiro de Abreu, Murilo Mendes,Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade e de autores mais contemporâneos, como José Paulo Paes, Dalton Trevisan e Chico Buarque, entre outros. Ainda mais recentemente, o poeta trans Tom Grito fez, no serviço de streaming de áudio Spotify, uma paródia ao poema de Gonçalves Dias, dando características mais humanas às folhagens da palmeira, a evocarem uma corporeidade mais livre para pensar e sentir seus prazeres e afetos. Todos esses poemas conectam-se entre si por pensarem questões da identidade nacional e afetiva. São exercícios de intrincados pensamentos literários que constroem uma visão de mundo e traduzem sentimentos identitários. Textos que se colocam em uma fresta, uma fenda, um entre-lugar no discurso, para usar as palavras do crítico e escritor Silviano Santiago. COMO, POR MEIO DA LITERATURA, TRANSFORMAR EM LUTA AQUILO QUE NOS É PASSADO COMO INFLUÊNCIA INESCAPÁVEL? Realizar, pela palavra, a construção de uma identidade híbrida e em movimento, uma potência que destrua ideias de unidade e pureza. O Modernismo soube transfigurar elementos que foram aportados ao novo mundo pelo colonizador, e criaram um discurso, gerando e promovendo uma identidade híbrida, não unívoca. Mas há outros movimentos da história cultural e literária que seguiram caminhos parecidos. A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. [...] o trabalho do escritor em lugar de ser comparado ao de tradução literal, propõe-se antes como uma espécie de tradução global, de pastiche, de paródia, de digressão. (SANTIAGO, 2000, p.18-20) Esses gestos, que podem conter humor, ironia e violência, não são destruidores, mas criadores de uma segunda obra, que, em diálogo com a primeira, desmistifica os discursos totalizantes e cria, a partir dos imaginários afetivos, coletivos e particulares, uma nova gramática para a compreensão cultural das nossas identidades. Ao falar sobre esse processo de deglutição do outro para, em uma mistura digestiva, criar outras realidades possíveis, Silviano Santiago bebe na fonte do Modernismo brasileiro a ideia de antropofagia. Pensando sobre a relação cultural dos índios antropófagos no gesto de devoração de seus inimigos, Oswald de Andrade escreve o Manifesto Antropófago: Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. (ANDRADE, 1976, p. 26) Na mistura de raças, línguas e no sincretismo religioso, Oswald retoma o gesto canibal, mas não de forma literal. Para os índios antropófagos, só era possível comer um valoroso guerreiro de uma tribo inimiga, pois, ao fazê-lo, aqueles que participavam do ritual ganhavam a força e as qualidades do outro. Em uma operação literária, Oswald busca incorporar esse traço cultural indígena nos procedimentos de construção de uma literatura nacional, própria, e não mais subjugada ao pensamento eurocêntrico. Uma literatura de outra margem do mundo, que se relacionasse com o que vem de fora a partir da mixagem com suas experiências culturais próprias. Ataque dos índios caetés à vila de Igarassu em Pernambuco, 1549. Gravura de Theodor de Bry no livro Duas Viagens ao Brasil de Hans Staden. A PLURALIDADE CONTEMPORÂNEA Mas a literatura não cuida apenas da identidade nacional. No poema de Tom Grito, por exemplo, há uma provocação a uma suposta alta cultura, a comportamentos considerados mais civilizados e, no limite, ao já citado falocentrismo. Outras identidades são mobilizadas. Ainda no âmbito cultural, o pensamento modernista ligado às ideias de antropofagia, apropriação e mestiçagem construiu um mito de um Brasil misturado por índios, negros e europeus. Criou a ideia de que um povo misturado é mais potente do que separado. Mario de Andrade, um dos grandes mentores do movimento, escreve um poema que une o Brasil de ponta a ponta. Descobrimento Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De sopetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim, Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro de cabelos escorrendo nos olhos Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu… (ANDRADE, 1987, p. 56) Ao redescobrir esse Brasil distante dos grandes centros e realizar uma conexão sob o signo do brasileiro, Mario de Andrade costura um projeto de integração nacional. Muito embora esse projeto tenha sido fundamental para repensar o Brasil naquele momento, fazendo surgir novas ideias sobre que roteiros seguir, os quase 100 anos que nos separam do início do Modernismo fizeram o Brasil caminhar roteiros diversos e outras vozes se somaram a esse pensamento do que é uma nação. Roteiros, roteiros, roteiros, é um chamado Oswaldiano, novos caminhos precisam sempre ser criados. Na relação entre literatura e identidades, outros corpos aparecem com voz ativa nesse contexto. A ideia modernista de antropofagia ganha reflexões, inflexões e críticas a partir de ideias que surgem desses corpos que, em 1922, estavam nas ruas e na produção cultural e musical, mas fora desse núcleo que cunhou o movimento na famosa Semana de Arte Moderna de São Paulo daquele ano. Mário de Andrade (primeiro à esquerda, no alto), Rubens Borba de Moraes (sentado, segundo da esquerda para a direita) e outros modernistas em 1922, dentre os quais (não identificados) Tácito, Baby, Mário de Almeida e Guilherme de Almeida e Yan de Almeida Prado. O artista plástico carioca Yhuri Cruz fez, em 2019, uma nova versão das ideias de antropofagia em seu projeto intitulado Pretofagia. Exposição, ato, performance e literatura se unem em uma explosão híbrida, que traz novas ideias sobre um Brasil plural que precisa olhar de outra forma para seu cotidiano de violências e fraturas. A partir da frase “Vida, estou comendo você.”, Yhuri repensa a antropofagia mediante esse corpo preto marginalizado, apartado do concerto das ideias, e traz essa boca devoradora para o centro. Ao contrário de separar, Pretofagia inclui mais bocas nesse gesto de devoração brasileira. Importante lembrar que o samba, nascido em 1917 com a primeira gravação de Pelo Telefone, as primeiras escolas de samba e todo esse movimento marginalizado aconteceram em concomitância com o Modernismo oficial. A Pretofagia de Yuhri reconvoca a pensar a identidade nacional a partir de corpos que, hoje, apesar de todas as violências sofridas, têm outra participação no cenário nacional. Evidentemente que não é de hoje que as criações literárias e as ideias do que representa o povo negro no Brasil estão presentes. Autores como Machado de Assis e Castro Alves, além de importantes intelectuais como Abdias do Nascimento, haviam já apontado e pavimentado a história desse pensamento. No entanto, atualmente há uma convocação a um outro pensamento que seja capaz de resolver o racismo e os preconceitos estruturais específicos de nossa sociedade. É a partir dessa convocação que muitos grupos, vozes e visões irão se manifestar pela literatura chamando a atenção para temas antes impossíveis sequer de serem nomeados. Os movimentos feminista, negro, LGBTQIA+ terão grandes representantes nesse caldeirão cultural que move o país. Não é possível ser ingênuo e achar que isso significa uma vitória e o fim dos preconceitos, mas a ação desses grupos recebe uma reação conservadora gigantesca, a tentativa, reincidente, do silenciamento. Mas é impressionante a força da voz daliteratura e a sua capacidade, como linguagem artística, de ser um veículo e um vetor para a vocalização das energias do pensamento. Essa vocalização é capaz de romper com as mordaças impostas por um sistema cruel. Castigo de Escravos, Jacques Etienne Arago, 1839. A escritora Grada Kilomba traz a ideia de máscara ao lembrar da máscara de Anastácia. Uma imagem recorrente que traz o rosto de uma mulher negra escravizada, com uma mordaça de metal que a impedia de falar. Calar o outro é um gesto brutal de dominação. Ao perder a voz e as palavras, perdemos o poder de articular literatura, de vocalizar nossas visões de mundo, de fabular. É tirando essas mordaças e colocando em jogo, em palavras, pela boca e fixando na escrita, que poderemos entrar em contato com esses corpos que sofrem com esse silêncio. Ouvir para poder estar junto nessas lutas. LITERATURA E DESCOLONIZAÇÃO O processo de descolonização não se dá somente pela independência de um país, é importante notar a importância de descolonizar ideias, corpos e comportamentos. Para a escritora Grada Kilomba, “Descolonização refere-se ao desfazer do colonialismo. Politicamente, o termo descreve a conquista da autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas/os e, portanto, envolve a realização da independência e da autonomia” (KILOMBA, 2019, p. 213). Kilomba calca seu pensamento sobre descolonização relacionando-o diretamente ao racismo. Um corpo negro é também descoberto, invadido e subjugado pelo racismo cotidiano. Para se libertar desse jugo, não basta independência nacional e abolição da escravidão, mas é fundamental descolonizar esse corpo e trazer de volta sua voz silenciada. A LITERATURA, EM SUA RELAÇÃO INTRÍNSECA COM A CULTURA, ACABA SE CONSTITUINDO COMO UM ESPAÇO DE ATUAÇÃO DESSAS IDEIAS SOBRE DESCOLONIZAÇÃO. Um novo movimento que surge nos textos por ser esse um espaço possível para articulação da pluralidade de vozes. São importantes esses olhares, pois podem ler, por outros ângulos, realidades que são inscritas no corpo. Existem muitos exemplos na literatura brasileira de escritores que expuseram essas fraturas em tempos distintos, seja nos comentários dos contos de Machado de Assis ou no romance de Carolina Maria de Jesus, ou nos contos e poemas de Conceição Evaristo, esse corpo negro aparecerá resistindo a uma violência externa que se deseja silenciadora. Um apagamento violento que encontrará respostas fortes como na fala de Evaristo: “ELES COMBINARAM DE NOS MATAR, MAS NÓS COMBINAMOS DE NÃO MORRER”. Esse ato de resistência de corpos tidos como fora do padrão heteronormativo branco irá ganhar potência no universo da literatura. Do final do século XX para cá, uma enormidade de autorxs reafirmam essas vozes de luta em romances, contos e poemas de temática queer, trans e de sexualidade fluida. A presença dessa polifonia trará para o campo da literatura todas essas novas ideias sobre as identidades de gênero. AUTORXS Usa-se aqui o x no lugar do marcador de gênero para expor a pluralidade de possíveis classificações hoje existentes. COMENTÁRIO Sendo o Brasil uma contradição continental, o país que mais mata transexuais no mundo e o primeiro na lista dos sites de busca na internet sobre pornografia trans, podemos compreender o quanto essa literatura é importante para perceber essa violência e instaurar outras possibilidades de vivências. Dos romances de temática feminista de Virginia Woolf, na primeira metade do século XX, ao Manifesto Contrassexual, de Paul Preciado, do início do século XXI, poderemos ler a presença e o grito desses corpos dissidentes em sua luta por espaço, poder político, mas, principalmente, pela vida. No prefácio do livro Esses Poetas – Uma antologia dos anos 90, a crítica e antologista Heloisa Buarque de Hollanda atenta para o surgimento desse concerto de vozes vindas de distintos lugares. Hollanda atenta para a presença feminina na cena literária, que havia sido já revelada nos anos 1980 e que se mostra em definitivo, traduzindo-se em números que colocam homens e mulheres em equivalência; considera o que chama de outing gay, uma presença intensa e super potente, além de uma proliferação de publicações vindas de áreas tidas como periféricas como a Antologia dos poetas da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, poetas ligados ao movimento Mangue Beat, em Recife, e outros conectados aos movimentos sociais como o MST, espalhados por todo o país. Ao sair da ideia fixa de que literatura é um oceano que só pode ser navegado por quem tem acesso a uma certa alta cultura letrada, acontece uma explosão de novos autores vindos desses outros espaços geográficos. As transformações culturais das últimas décadas tanto colocam a literatura em xeque como a transformam, nesse movimento de dupla articulação, do qual já falamos, entre o que adentra e o que sai do texto. Assim, transforma-se o espaço da fala, do livro, da literatura na rua, nos muros e na vida em um ambiente combativo, que convoca os autores para uma jornada que conecta experiências ancestrais e a diversidade de identidades de um mundo múltiplo, que deve ser capaz de conviver e de se misturar para se tornar mais rico do que o mundo apartado dos guetos criados pela violência dos corpos que ocupam a posição de poder e querem se instituir como única verdade. Nesse sentido, a literatura tem um papel fundamental como esfera de penetração cultural capaz de lançar um olhar panorâmico sobre questões sensíveis do agora e instituir, por intermédio de suas estratégias discursivas, novas possibilidades de existências, outras dúvidas possíveis e sementes que germinem respostas para tempos de mais compreensão e interconexão. LITERATURA E IDENTIDADE Uma "função" histórica da literatura foi promover identidades nacionais. Mas ela tem a ver com outras identidades também. Continue a assistir a essa conversa para ir além. VERIFICANDO O APRENDIZADO CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste passeio que fizemos até aqui, refletimos juntos sobre importantes noções para qualquer grupamento humano: cultura, identidade, sociedade, arte e literatura. A partir do questionamento do que é cultura, chegamos a um entendimento abrangente e não hierárquico desse termo. Discutimos o papel das obras literárias na tradução e na construção simbólica de sentidos. Vimos diferentes aspectos em que a literatura é também leitura social. Por fim, em um contexto que vai além das identidades nacionais, investigamos a articulação do literário com diversas formas identitárias. O pensamento se mostrou não apenas de forma abstrata, mas sempre com ilustrações e exemplos de obras que marcaram sobretudo a cultura e a sociedade brasileira, mas também outras culturas. PODCAST A professora Catharina Epprecht entrevista o poeta e pesquisador Domingo Guimaraens. REFERÊNCIAS ANDRADE, M. de. 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