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Anais PORTO ALEGRE - RS FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO - FABICOE COMUNICAÇÃO - FABICO 7 a 10 dez. 2022 ANAIS ORGANIZADORAS Profa. Ana Carolina Gelmini de Faria (UFRGS); Profa. Ana Celina Figueira da Silva (UFRGS); Lizandra Caon Bittencourt (discente do Curso de Museologia e PPGMusPa/UFRGS); Profa. Márcia Regina Bertotto (UFRGS) Profa. Vanessa Barrozo Teixeira Aquino (UFRGS) 5º SEBRAMUS SEMINÁRIO BRASILEIRO DE MUSEOLOGIA Porto Alegre - RS Museologia em movimento: lutas e resistências 7 a 10 de dezembro de 2022 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Criação da Identidade Visual: Sofia Martinez – Design de Produto/UFRGS – Museu da UFRGS Ana Porazzi – Design Visual/UFRGS – Museu da UFRGS Capa e Editoração eletrônica: Lizandra Caon Bittencourt NÃO ILUSTRADO Rede de Docentes e Cientistas do Campo da Museologia Coordenação - Gestão 2022-2024 Dr. Jezulino Braga – UFMG (coordenador) Dra. Vanessa Barrozo Teixeira Aquino – UFRGS (vice-coordenadora) Dra. Anna Paula Silva – UFBA Dra. Thainá Castro – UFSC 5º Seminário Brasileiro de Museologia Coordenação Geral Profa. Dra. Vanessa Barrozo Teixeira Aquino – UFRGS Profa. Dra. Márcia Regina Bertotto – UFRGS Comissão Organizadora Profa. Dra. Ana Carolina Gelmini de Faria – UFRGS Profa. Dra. Ana Celina Figueira da Silva – UFRGS Profa. Dra. Andréa Reis da Silveira – UNIASSELVI Ma. Claudia Porcellis Aristimunha – Museu da UFRGS Ma. Daniela Amaral – Representante dos pesquisadores/profissionais de museus Prof. Dr. Daniel Viana de Souza – UFPel Prof. Dr. Diego Ribeiro – UFPel Ma. Eliane Muratore – Museu da UFRGS Me. Elias Machado – UFRGS Prof. Me. Eráclito Pereira – UFRGS Profa. Dra. Fernanda Albuquerque – UFRGS Profa. Dra. Fernanda Rechenberg – UFRGS 374 GT 12 - MUSEUS E CULTURA POLÍTICA Coordenadores Gleyce Kelly Heitor (Oficina Francisco Brennand - PE) Glauber de Lima (UFG) Resumo O Objetivo deste GT reside nos usos que são dados à cultura e aos museus em meio à esfera das políticas culturais. Os trabalhos devem ter como referência os processos em que ambos assumem propósitos definidos sob uma retórica democratizante e inclusiva, mas que implicam em experiências dotadas de efeitos reguladores e hierarquizantes. Isto inclui tanto discussões sobre o que há de ser o horizonte epistemológico de um fazer dos museus, assim como de experiências concretas em que estes se tornam peças chave de políticas interessadas em imperativos de desenvolvimento e cidadania. Aqui se toma tal paradoxo (retórica inclusiva x estética hierarquizante) como algo constitutivo da própria experiência contemporânea de museu. Neste sentido, interessa aqui discutir os seus fazeres mais rotineiros (exposições, programas educativos, formação de acervos, políticas de gestão etc.) enquanto expedientes por meio dos quais esta contradição é instituída. O foco, portanto, é menos na eficiência das políticas culturais que se enunciam sob esta gramática multicultural (inclusão, participação, reconhecimento, empoderamento, comunidades etc.), e mais na utilidade que se busca dar aos museus e a cultura sob tais arranjos retóricos e seus respectivos efeitos materiais. 375 REDUÇÃO DE DANOS E A MUSEOLOGIA DO CUIDADO Ellen Nicolau PPGMus/USP. Mestranda em Museologia RESUMO Como estratégia de Saúde Pública, a Redução de Danos (RD) pode ser compreendida como um mecanismo capaz de provocar mudanças nas formas do consumo de substâncias psicoativas. Dirigida às pessoas que não querem ou não conseguem deixar de usar essas substâncias, normalmente inseridas em circuitos de maior vulnerabilidade, a RD está destinada a esses contextos e alicerçada no postulado dos Direitos Humanos, pois impacta diretamente na diminuição dos riscos, danos sociais, econômicos e de saúde aos indivíduos e sua coletividade. Orientada pelo intuito de modificar o padrão de uso através de práticas socioculturais ligadas às condições de vida e seus determinantes, pressupostos da RD se relacionam à Museologia na medida em que podem operacionalizar transformações a partir dos repertórios de seus protagonistas, personalizar suas estratégias e serem necessariamente construídas em conjunto com usuários. Em contextos nacionais, marcados pela necropolítica e vulnerabilidade como lugar comum, com o objetivo de pensar a promoção do cuidado em museus e considerando a RD como um caminho a ser abraçado pelas instituições museológicas, observa-se sua realização nos museus como prática democrática de cultura e saúde. Desta forma, o presente trabalho busca traçar considerações da Museologia do cuidado como meio de elaboração de futuros democratizantes aos museus, orientados por práticas em saúde e conexões com questões do presente e dos territórios em que estão inseridos, apontando o fortalecimento de políticas públicas em saúde e cultura através dos museus como meio concreto de fomentar processos de cidadania, pertencimento e cuidado coletivo. PALAVRAS-CHAVE Museologia. Redução de Danos. Saúde Pública. Museologia do cuidado. Necropolítica. ABSTRACT As a Public Health strategy, Harm Reduction (HR) can be understood as a mechanism capable of causing changes in the ways people consume psychoactive substances. Aimed at people who do not want or are unable to stop using these substances, normally inserted in circuits of greater vulnerability, HR is aimed at these contexts and based on the postulate of Human Rights, as it directly impacts on the reduction of risks, social, economic damages and health to individuals and their community. Guided by modifying the pattern of use through sociocultural practices linked to living conditions and their determinants, HR assumptions are related to Museology insofar as they can operationalize transformations based on their repertoires, customize their strategies and necessarily be built together with users. In national contexts, marked by necropolitics and vulnerability as a commonplace, with the objective of thinking about the promotion of care in museums and considering HR as a path to be embraced by museological institutions, its realization in museums 376 is observed as a democratic practice of culture and health. In this way, the present work seeks to outline considerations of the Museology of care as a means of elaborating democratizing futures for museums, guided by health practices and connections with issues of the present and the territories in which they are inserted, pointing to the strengthening of public health policies and culture through museums as a concrete means of promoting processes of citizenship, belonging and collective care. KEYWORDS Museology. Harm Reduction. Public health. Museology of care. Necropolitics. Introdução Este texto começa com um exercício. Fechamos os olhos por alguns segundos e imaginamos cenários de metrópoles brasileiras e os elementos que compõem sua paisagem em regiões centrais. Abrimos os olhos. Tem-se a certeza que dentre as descrições aparecem uma série de indicadores que colocam situações de vulnerabilidade à vida. Façamos o mesmo exercício imaginativo com os museus. Que elementos compõem sua paisagem? Quem é o corpo visitante que percorre seus corredores, faz a leitura de seus acervos e proposições? Será que imaginamos, de imediato, as mesmas corporalidades, fatores ou ações permeadas de públicos diversos? Considerações deste texto ligam-se a experiências de uma trajetória de trabalhadorade museus inseridos em territórios marcados pela intensidade de desigualdades. Pelo fortalecimento de práticas voltadas à conexão dos museus com seus territórios, a presente comunicação nasceu da realidade da região central de São Paulo, mais especificamente do bairro do Bom Retiro, Campos Elíseos e Luz e busca evocar a Museologia como força de contato entre o cuidado coletivo e a promoção da saúde em atenção aos determinantes sociais, agravados pelo acirramento das desigualdades econômicas dos últimos anos, pela manutenção de um modelo de desenvolvimento capitalista dependente e pelo neoliberalismo epidemiológico. Em resumo, pela própria estruturação da necropolítica, aplicada a corpos e territórios específicos, o presente texto, fruto de comunicação oral apresentada no 5º Seminário Brasileiro de Museologia (SEBRAMUS) e integrante do Grupo de Trabalho Museus e Cultura Política, é uma tentativa de refletir os museus como lugares fundamentais para a promoção da saúde ampla em seus territórios a partir da Redução de Danos (RD). Pelo fortalecimento de uma ideia e de práticas voltadas à conexão dos museus com seus territórios, entendidos como o resultado da produção de diferentes forças capazes de compreender uma região como o espaço vivido, usado e habitado (SANTOS, 1993), a Museologia se apresenta como força de contato entre o cuidado coletivo advindo de instituições como os museus, ou melhor, de profissionais dessas instituições e a promoção da saúde a indivíduos cada vez mais afetados pelas assimetrias em aspectos socioeconômicos refletidos em situações de vulnerabilidade. 377 Na tentativa de articulação em busca de sociedades cada vez mais justas e da compreensão do papel da Museologia nessas lutas, a nova definição de museu, na qual “um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade, que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus promovem a diversidade e a sustentabilidade. Atuam e se comunicam de forma ética, profissional e com a participação das comunidades, oferecendo experiências variadas de educação, entretenimento, reflexão e compartilhamento de conhecimento” (ICOM, 2022) pode auxiliar na garantia de participação de diferentes comunidades em sua atuação, o que em contextos abaixo da linha do equador, envolve radicalmente, seu comprometimento e engajamento ativo com questões sociais. De museus que não se conformam com os desequilíbrios que permeiam seus arredores, fundamentalmente interdisciplinar em seus métodos de pesquisa, formação e ação (GUARNIERI, 1981), a Museologia, aliada à questões concretas da realidade, permite não só refletir a intencionalidade da criação dos museus e seus modos de funcionamento, como transcender suas potencialidades de uso e fomentar recriações criativas de seus processos. Ao examinar o museu enquanto possível agente de transformação local com impacto em saúde, observam-se cenários inter-relacionais com Determinantes Sociais da Saúde (DSS) que perpassam as próprias relações estruturais responsáveis pela reprodução de desigualdades, também na esfera cultural. Como desafio à Saúde Pública, entendida como o conjunto de medidas que focaliza problemas e políticas de saúde definidas em termos de mortes, doenças, agravos e riscos de ocorrência em coletividade mobilizadas por articulações entre sociedade e Estado, que definem, respostas sociais à essas necessidades (PAIM; FILHO, 2000), se inserem as condições de vulnerabilidade que englobam características objetivas e subjetivas, de complexa demanda de intervenção e acompanhamento que demonstram as exigências da utilização de um conceito ampliado de saúde, capaz de envolver aspectos da própria democracia cultural dada a multiplicidade de sua penetração e alcance em termos de mapeamento e práticas sociais. Na ampliação da discussão das temáticas de Saúde Pública e sua relação com a Museologia, sucessivos levantamentos de experiências residem em propostas de intervenção com programas e projetos específicos voltados a públicos em situações de vulnerabilidade. Porém, a questão recai muito mais em aspectos e dados quantitativos como números de visitas e público do que sobre transformações de média, longa duração e fortalecimento de vínculos. Neste sentido, o vínculo constitui aspecto central à formulação da Museologia do cuidado e de propostas de RD pois é justamente da quebra dessas relações que torna-se possível compreender a vulnerabilidade enquanto esfacelamento das redes sociais de suporte do indivíduo (CASTEL, 1997), formadas tanto pela família, amigos e vizinhos enquanto rede primária, como pelos serviços de atuação do Estado e de políticas públicas composto por instituições de assistência, saúde, cultura e educação numa rede secundária, que quando enfraquecidas em múltiplas dimensões e em diferentes 378 relações afetivas, sociais e de trabalho abrem ainda mais caminhos para o crescimento de fatores de vulnerabilidade (SLUZKI, 1997). Dessas redes, o entrelaçamento dos fios revela que o espaço entre os pontos, encontra- se demasiado aberto e sua fixação, apesar de movimentos com mais intensidade por parte de coletivos e movimentos sociais, parece suscetível a rupturas devido aos regimes de necropolítica impostos como instrumentos de poder a determinados grupos sociais (MBEMBE, 2018) e em muitos casos, refletidos na trajetória de pessoas com redes primárias e/ou secundárias fragilizadas. Cabe destacar, que o próprio conceito de rede, usado em políticas públicas de saúde na esfera da gestão governamental, à informática com suas interações e conectividade, à administração com parcerias e colaboradores, à sociologia e psicologia com grupos sociais e a museologia, com a articulação local entre diferentes agentes e iniciativas de memória é força motriz para uma atuação voltada à RD. Ao inserir o conceito de RD no cerne dos debates museológicos contemporâneos, ela pode ser compreendida como um mecanismo apto a provocar mudanças nas formas do consumo de drogas e substâncias psicoativas capaz de acompanhar, promover diferentes abordagens e reduzir eventuais problemas associados a seus usos. Dirigida às pessoas que não querem ou não conseguem deixar de usar substâncias psicoativas, normalmente inseridas em circuitos de maior vulnerabilidade, a RD está destinada a esses contextos e alicerçada no postulado dos Direitos Humanos e na própria defesa da dignidade da vida, sendo fundamental tanto na RD como na museologia, o fato de que essa é uma estratégia construída conjuntamente entre profissionais e usuários. Orientada pela intencionalidade em modificar o padrão de uso através de práticas socioculturais ligadas às condições de vida, pressupostos da RD se relacionam à Museologia na medida em que podem operacionalizar transformações a partir dos seus repertórios, personalizar suas estratégias e serem necessariamente construídas em conjunto. Em contextos nacionais e mais especificamente da cidade de São Paulo, marcados pela constância da necropolítica e da vulnerabilidade como lugar comum, a RD “restitui, na contemporaneidade, um cuidado de si subversivo às regras de conduta coercitivas. Reduzir danos é, portanto, ampliar as ofertas de cuidado dentro de um cenário democrático e participativo” (PASSOS; SOUZA, 2011, p.161) que também auxilia na promoção do cuidado em museus como prática na elaboração de futuros democratizantes, orientados por práticas em saúde e conexões com questões dos territórios em que estão inseridos, pois nesse jogo de poder e ausência de direitos, ações com caráter museológico comprometidas com movimentos sociais no enfrentamento às injustiças podem ser vistas, desde que inseridas na lógica da saúde como produção social e coletiva, como contribuintes diretas para a qualidade de vida das pessoas, dos territórios e combate à diferentes disparidades de populações por meio da diminuiçãode fatores de risco, danos sociais, econômicos e de saúde aos indivíduos e sua coletividade, potência no estímulo à participação social, gestão democrática e fomento a experiências educativas críticas e emancipatórias que podem interferir diretamente 379 sobre realidades complexas e impactar os DSS. Museologia do cuidado Em torno de reflexões sobre as responsabilidades dos museus, instituições em sua maioria públicas e não diretamente lucrativas, inseridos nas sociedades capitalistas e expostos a diversos fatores de risco que exigem a operacionalização de estratégias em relação a seus públicos e modelos de financiamento, indagar as formas pelas quais os museus exercem relações de poder pelas dimensões simbólicas da linguagem, da cultura e das práticas performativas (GOUVEIA; SCHIAVONI, 2022) é indispensável a práticas museológicas comprometidas com o presente. Nas urgências de atuação exigidas pelas situações de catástrofe a qual determinadas populações são colocadas, o cuidado se configura como forma transversal de atuar em prol do tempo presente e em sua concepção de integralidade, significa assumir o paradoxo de que esta lógica não cabe à sociedade capitalista vide o exemplo da saúde, no qual o trabalho em produção de cuidado é baseado no acolhimento, responsabilização e resolutividade (MERHY, 2013) e dificilmente consegue ser realizado, assim como com o exemplo da nova museologia, que se coloca como um segmento comprometido com transformações sociais em uma agenda popular, democrática e de desenvolvimento local (DUARTE, 2014) que na maioria das vezes, atua pela lógica das insistências, visto que apesar de uma série de discursos museológicos apoiados em projetos e ideais progressistas, por meio de uma operação de ressignificação dada por diferentes fatores, acabam ganhando um sentido instrumental e despolitizante (LIMA, 2014) configurando a Museologia do cuidado, tanto na saúde, como nos museus, como possibilidade dissonante ao modelo capitalista. Ao pensar o museu como lugar de saúde e o cuidado como lugar de acolhimento e fortalecimento de vínculos, alinhamos suas estratégias à investigação da produção social das doenças e espaço auxiliar na realização de ações previstas no planejamento e na organização dos serviços de saúde pública de determinada região. Em sua dimensão cuidadora, a saúde nos museus e a Museologia do cuidado envolve tornar o público parte do processo museológico no qual a vida tenha centralidade em mobilizações da memória. Aliada a serviços de saúde, a historicidade das práticas museológicas brasileiras reside principalmente no campo da Saúde Mental, visto o histórico de movimentos como a Reforma Psiquiátrica Brasileira1 e a própria tradição dos ateliês em instituições psiquiátricas com profissionais 1 Alguns outros casos, mais vinculados a projetos e programas estão no projeto revivendo memórias do Museu do Futebol, realizado em parceria com o Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas de São Paulo que convida portadores de Alzheimer para conversa sobre memória e futebol e na Pinacoteca do Estado de SP com programas inclusivos específicos voltados a pessoas em situação de sofrimento psíquico e redes de parceria com organizações sociais e CAPS. Outros exemplos são diversos e incluem até mesmo o uso dos museus por unida- des básicas de saúde e políticas públicas, como o edital lançado pela Prefeitura de Niterói do Rio de Janeiro por meio da Secretaria Municipal de Saúde na busca de selecionar propostas culturais que dialoguem com temáticas de saúde. 380 como Nise da Silveira e Osório César. Visto que estratégias crescentes como a prescrição social, que permite ligar pessoas que necessitam de cuidados de saúde, em termos principalmente da atenção primária, aos recursos de apoio existentes nessas instituições como uma resposta diferenciada que contribua para melhorar a saúde, aponta-se a formulação de redes intersetoriais a partir dos museus que construam o cuidado integral como mecanismo direto de atuação em seus territórios, processos museológicos e em suas narrativas, dado que o “o conhecimento museológico ocupa-se da realidade e da história” (GUARNIERI, 2010, p. 129). Como exemplo dessas ações, algumas exposições também têm abordado de maneira crescente a tônica da redução de danos não somente em suas temáticas, ações educativas, acessibilidade atitudinal, como na própria construção expográfica. A exemplo destas ações, destaca-se aqui duas exposições, uma no bairro da luz e outra nos campos elíseos, lugares circundados pela região conhecida como ‘Cracolândia’, marcada por cenas de uso e recorrente vítima da dispersão forçada, da violência policial e de projetos especulativos de urbanização e valorização imobiliária. A primeira é a exposição coletiva Birico – Poéticas autônomas em fluxo2 realizada no Sesc Bom Retiro em 2022 com trabalhos de artistas que formam parte desse coletivo e contou com obras produzidas coletivamente, interlocuções aos movimentos sociais, artistas da região e dispositivos de RD como se pode ver na imagem abaixo, com o fornecimento de suprimentos de higiene e piteiras de borracha para cachimbos dentro da própria exposição. Figura 1 - Exposição Birico – Poéticas autônomas em fluxo. SP, Sesc Bom Retiro Fonte: Ellen Nicolau, 2022. 2 O coletivo Birico é um projeto de solidariedade entre artistas criado para arrecadar fundos para ações sociais na região da ‘Cracolândia’. Mais informações sobre o coletivo podem ser obtidas em: https://www.instagram.com/birico. arte/. Acesso em: 22 de jan. de 2023. 381 Outra exposição, no mesmo território marcado por diversas cenas de uso, foi intitulada O Colecionador: arte contemporânea e colecionismo no acervo da Pinacoteca com perspectivas da cultura do colecionismo em diversos suportes. Aqui, destaca-se a obra do artista e ativista Raphael Escobar, que trabalha em contextos de educação não formal e vulnerabilidade social, intitulada ‘Cachimbeiro’ de 2016 na qual ele apresenta uma coleção de 25 cachimbos de usuários3, construídos de maneiras diversas com folhas em A4 para distribuição com instruções ilustrativas de como construir um cachimbo de maneira segura. Figura 2 - Exposição ‘O Colecionador: arte contemporânea e colecionismo no acervo da Pinacoteca’. Obra ‘Cachimbeiro’ de Raphael Escobar, 2016. SP, Estação Pinacoteca Fonte: Ellen Nicolau, 2022. Nessas ações, apresentadas a princípio pela RD, se expandindo a diferentes frentes de saúde em museus, é possível identificar traços de atuação em comum que podem gerar repercussões na criação de redes colaborativas de saúde. Neste sentido, propõe-se a criação de redes articuladas a partir dos museus que devem oferecer um ambiente no território para a prática de um cotidiano de ocupação, entendida não como força produtiva, mas como força de sociabilidade com envolvimento social e potência de encontro, troca, reconhecimento de habilidades e dessa forma, que permitam atuar com perspectivas técnicas, a partir de diferentes instituições e políticas públicas em viés de práticas coletivas e comunitárias, em acolhimento ou encaminhamento à diferentes necessidades. 3 Nessa obra, os cachimbos foram coletados na região da ‘Cracolândia’, na qual o artista inclusive coordena um mo- vimento chamado a Craco Resiste, criado em 2016 sob lutas contra a violência policial na região, sendo seu trabalho artístico uma conexão com suas lutas e a região em que a Estação Pinacoteca está localizada. Mais informações sobre o coletivo, estão disponíveis em: https://www.instagram.com/cracoresiste/. Acesso em: 22 de jan. de 2023. 382 Dessas possibilidades, a Museologia do cuidado, que opera a partir de redes, se constitui como lugar cotidiano que pesquisa e mapeia problemas, potências e necessidades, realiza tramas em prol de parcerias em resoluções e gera um lugar seguro de proteção e pertencimento em relação a subjetividades e direitos sociais. Neste sentidoe aliada a políticas públicas de 2010 como o ‘Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas’, ampliado em 2011 pelo programa ‘Crack, é Possível Vencer’ (BRASIL, 2012), mesmo ano de implementação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), inserida como uma das quatro redes prioritárias de ampliação da área da saúde que reforça a interpretação do cuidado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do paradigma da rede social, essas se constituem fundamentais ao território das considerações deste texto e a aliança dos museus à estas iniciativas por meio dos serviços de atenção à saúde mental, álcool, crack e outras drogas com destaque à integração e articulação dos diferentes dispositivos de saúde e características impressas a programas como o ‘De Braços Abertos’ (São Paulo, 2014), implementado em esfera municipal com o objetivo de inserir a perspectiva de RD para a população em vulnerabilidade social da região central atuando com interdisciplinaridade e conexão entre diferentes esferas dos serviços públicos. Essas iniciativas podem auxiliar na formulação dessa rede, tecida entre considerações da museologia e da saúde pública, suas formas de vida e luta pela manutenção e investimento de políticas públicas, visto seus históricos de rupturas e fragilidades e permite criar um cotidiano de ações voltadas para o bem-estar de suas populações e colaboração com a superação sistêmica de desigualdades. Considerações Finais Assim, como consideração deste texto cabe refletir sobre as relações entre as questões de saúde da cidade, suas populações e a função dos museus nesses contextos. Diante do esfacelamento de políticas culturais e de assistência, parece ser importante questionarmos que responsabilidades cabem aos museus hoje, sobretudo em sua condição de lugar de memória e pela maneira como deve ser permeável à estrutura social, sendo parte de sua realidade enquanto instituição que ao mesmo tempo em que age na sociedade, reage às suas transformações e deve mudar seu modo de agir de acordo com elas. Desta forma, as relações entre Museologia e Saúde podem se consolidar em estratégias de atuação conjunta, com indicadores interáreas, capazes de promover pertencimento, fortalecimento de vínculos e a dignidade da vida através do que entende-se como Museologia do cuidado, reunindo a saúde ampla, RD, criação de redes que incorporem metodologias próprias da saúde pública desenvolvidas através das necessidades em saúde, características de um território e o fortalecimento de vínculos afetivos nos museus e para além dos museus. Também cabe 383 criar abordagens multidisciplinares com foco na inclusão cultural e de saúde e no trabalho com indicadores voltados a tecnologias do cuidado, no contexto de desigualdades sistêmicas do Sul Global e impulsionamento de ações de saúde pública ampla através da RD. Ao considerar esses mecanismos em prol do fortalecimento de políticas públicas em saúde e cultura através dos museus, os mesmos passam a ser um meio concreto de fomentar processos de cidadania, pertencimento e cuidado coletivo com impacto na saúde ambiental, de indivíduos e seus grupos sociais. Com caráter democratizante e inclusivo, que priorizam o bem-estar coletivo em vez do individual, a Museologia do cuidado, formulada a partir das estratégias da RD e de sua compreensão como força política vê na formação de redes possibilidades de cidadania que garantem engajamento e comprometimento institucional em diferentes instâncias de políticas públicas com o objetivo que os museus sejam cada vez mais vistos como lugares de promoção de justiça e saúde pública. Ao apresentar paralelos entre as possibilidade de atuação dos museus e abordagens da RD, o texto, fruto da comunicação e discussões do evento, concentrou suas forças na explanação de que diante situações de agravamento das desigualdades é responsabilidade direta de instituições como os museus, produzirem conjuntamente a outras entidades e instâncias políticas, condições de vida e fatores de saúde em cotidianos sociais dos seus territórios pois o foco está no empoderamento dos protagonistas e suas histórias e a estratégia está na convivência e no mapeamento coletivo de questões e formas de enfrentamento. Com a diversidade de práticas e possibilidades de vida, a RD como prática transversal na utilização de serviços e equipamentos intersetoriais, como os museus e as políticas públicas de cultura, pode auxiliar nos processos democráticos de sua ocupação, significação cidadã e transformação social de cunho coletivo e solidário. REFERÊNCIAS BRASIL. Crack, é possível vencer. Brasília, 2012. 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