Prévia do material em texto
1 SUMÁRIO 1 VICENTE FRANZ CECIM – VIDA E OBRA ........................................................ 2 2 NO INÍCIO ERA O VERBO: Andara. Viagem ao lugar da reminiscência narrativa ....................................................................................................................... 4 3 ANDARA E AS TRÊS FORMAS TRANSPARENTES .......................................... 8 3.1 O VAZIO COMO CHEIO. O NÃO – SER DE ANDARA ....................................... 8 3.2 O SILÊNCIO: falar sem boca ................................................................................... 9 3.3 ANDARA: o livro invisível ....................................................................................... 11 4 O ELEMENTO MÍTICO: “A história de Andara não tem fim” ........................... 13 4.1 O ETERNO RETORNO, O TEMPO CÍCLICO ....................................................... 13 4.2 O CAMINHO DA SERPENTE - o livro que o não é de Fernando Pessoa. Afinidades com Andara o livro invisível ................................................................... 14 5 O VERBO TRANSCENDENTE. UMA CABALA PARTICULAR ...................... 16 5.1 CONFLUÊNCIAS ENTRE O MITO DE BABEL E O RIO DE HERÁCLITO, OS ESPELHOS, OS OLHOS E OS NÍVEIS DA CRIAÇÃO ......................................... 16 5.2 OS SIMULACROS. Na penumbra andara: diálogo com sombras ............................ 19 5.3 CECIM E A ICONOGRAFIA NATURALISTA ...................................................... 21 5.3.1 A Iconografia Naturalista – uma exegese arquetípica ....................................... 22 6 “ÀS FLORES VISIONÁRIAS DO AR” ................................................................... 23 6.1 ANDARA E O SEM-DISTÂNCIA ........................................................................... 23 6.2 A FACE ONÍRICA DE ANDARA - APROXIMAÇÕES COM RENÉ MAGRITTE... 25 6.3 A ANTÍFRASE E OS ABSOLUTOS ........................................................................ 27 6.4 SIMULTANEIDADE: a origem ................................................................................ 29 6.5 A QUEDA: além do homem hiperbólico ................................................................... 30 7 A ANTIESTRUTURA DO TEXTO. SERDESPANTO, O HERÓI NEOPLA- TÔNICO ...................................................................................................................... 33 8 A OBRA NO CONTEXTO HISTÓRICO ................................................................ 36 8.1 O REGIONAL, O UNIVERSAL, O UNO E O MÚLTIPLO .................................... 36 8.2 MANIFESTO CURAU. UMA ANTROPOFAGIA DECANTADA ........................ 37 9 FIM DE Ó SERDESPANTO?... .............................................................................. 39 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 40 2 1. VICENTE FRANZ CECIM - VIDA E OBRA Diz o estrangeiro entre as areias: toda coisa no mundo é nova pra mim. E o nascimento do seu canto, não lhe é menos estranho. Saint John Perse Vicente de Jesus de Araújo Cecim é o seu nome de batismo. Iniciou a carreira assinando apenas Vicente Cecim, passando a Vicente Franz Cecim após a morte do seu filho Franz, em 1993. Nasceu em Belém do Pará, em 7 de agosto de 1946. Filho de Miguel Cecim Janino e Yara de Araújo e Souza Cecim. Seus avôs paternos eram emigrantes europeus. A avó, Florinda Janino, natural da Sardenha, Itália, o avô, Josef Cecim, natural do Líbano. Da parte materna, Manoel Pedro de Araújo e Sousa e Honorina Bastos de Araújo e Sousa, tinham sangue português e indígena, respectivamente. Cecim cresceu ouvindo histórias e lendas da Amazônia que sua mãe, Yara, também escritora, lhe contava. A vocação precoce para a escrita o levou a se tornar, ainda estudante, campeão geral da Maratona Intelectual promovida pelos colégios paraenses, representando o tradicional colégio Paes de Carvalho. Abandonou os estudos formais no segundo ano clássico, iniciando a carreira no jornalismo n’ A Folha do Norte, em 1966, e atuando depois em outros jornais. Tornou-se crítico de cinema e membro da Associação Paraense de Críticos de Cinema (APCC). Realizou curtas-metragens em super-8 no final dos anos 70. Ingressa na publicidade como redator de propaganda. Mais tarde, acrescentaria a essa profissão a de redator de marketing político, atuando no Brasil e na África. Publica o primeiro livro, A Asa e a Serpente, em 1979. Por Viagem a Andara recebe em 1988 o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), que em 1980 já lhe conferira o Prêmio Revelação de Autor por Os Animais da Terra. Em 81 recebe menção especial no Prêmio Internacional Plural, México, por A Noite do Curau, publicado depois com o título Os Jardins e a Noite, seu terceiro livro. Em 1983 durante a realização do Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Belém, lança o manifesto poético-político Flagrados em Delito contra a Noite - Manifesto Curau. Em 1985 muda-se para a Bahia. Em 1998, retorna a Belém. 3 Publica em Portugal o livro Ó Serdespanto, em 2001, considerado o segundo mais importante lançamento do ano pelo conjunto da crítica portuguesa. O lançamento de K O Escuro da Semente, também publicado em Portugal, em 2005, inaugura o estilo o qual nomeia Iconescritura, a decantação poética que já anunciava desde os primeiros livros. Já publicou 15 livros com o título geral Viagem a Andara oO Livro Invisível. No Manifesto Curau propõe uma tomada de posição dos artistas da Amazônia: “Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor”. 4 2 NO INÍCIO ERA O VERBO: Andara. Viagem ao lugar da reminiscência narrativa Andando não acharás os limites da psique. Embora percorras todos os caminhos, tão vasto é o seu discurso. Heráclito A verdadeira viagem se faz na memória. Marcel Proust Vista por parte da crítica como metáfora da Amazônia, Andara, a região ficcional, região - conceito da obra de Vicente Cecim, abrange, mas excede a definição mencionada. A obra total apresenta peculiares do imaginário regional como, por exemplo, a influência da tradição oral, porém, de forma não regionalista, em que se destaca a capacidade de fabulação mítica ancestral universal. O ponto de ligação da obra com a tradição amazônica é, portanto, amplo, mas indireto... Segundo o autor, Andara é “literatura fantasma”, sugerindo com a definição uma escritura incorpórea, informe ou translúcida, que se volatiza numa espécie de “espectro da representação” (em sentido generalíssimo de imagem ou idéia do objeto e/ ou do real). Conforme já observado pela crítica, a conexão Andara - Amazônia se dá em nível próximo da relação Livro - Região estabelecida por dois mestres da literatura brasileira: Manoel de Barros e Guimarães Rosa. Este último classificava de “metafísico” o sertão por ele recriado, inclusive no seu título mais conhecido, Grande Sertão: Veredas. O mesmo se dá com as alusões do paraense à floresta. Em resumo, as menções a floresta relacionadas ao conceito de Andara podem ser tomadas não apenas como metáfora expandida da Amazônia, mas como alegoria sui generis dos mistérios da Escritura, e veremos mais adiante, desta como um reflexo da história, e principalmente da vida. Compreende-se por alegoria um conjunto de símbolos inter- relacionados que embutem enunciados morais em narrativas míticas ou teológicas. No entanto, em virtude da ausência da sentença moral que tradicionalmente a define, alegoria é, ainda, uma classificação limitada. A rigor, no caso específico, o “recurso alegórico” é utilizado para reunir um conjunto de questionamentos filosóficos que resultam na ampla e sutil especulação sobre a vida a partir do Verbo na forma depersonagem-região. Diz o autor em entrevista que “Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da Amazônia” (AZOUGUE, 2005, p. 4). Precisamente, no aspecto semântico-verbal, o nome Andara sintetiza e subentende as primeiras questões. Em O Tempo 5 na Narrativa, Benedito Nunes (1988) sustenta que os tempos verbais ultrapassam a divisão pensada pelos gramáticos. As formas do pretérito indicariam locução narrativa ou o próprio tempo da narrativa em função do distanciamento e curso livre que imprimem à linguagem; ao passo que os demais tempos verbais se aplicam a locução discursiva, de comentário. Além de ressaltar, pelo nome, a essência narrativa, o vocábulo também remete diretamente ao verbo Andar, avançar contínuo de passos, progressão. No passado mais que perfeito, o sentido denotativo do movimento concluído carrega ao mesmo tempo, conotativamente, a impressão de continuidade, de fluxo narrativo. Andara como movimento que se inscreve no passado em passos (presente) que levam / ou levaram a frente (futuro). Com o truque semântico, os modos temporais passado, presente e futuro, se unem e ao mesmo tempo se anulam na figura poética, instalando a impressão de simultaneidade, ou da ausência de qualquer tempo. Por isso, Andara, em sua condensação metalingüística, assinala no nome próprio o conceito da narrativa do devir como simultaneidade. A percepção do nome como "movimento suspenso" é também comparável à do “Instante” platônico, que difere do “agora”. Para o grego, o Instante estava fora do tempo e era o interstício entre uma fração de momento e a eternidade: “O Instante parece indicar o que serve de transição entre duas mudanças inversas. A passagem do movimento ao repouso e vice versa não ocorre a partir da imobilidade que ainda está imota, nem do movimento que ainda está se movendo. A natureza um pouco estranha do instante está no fato de ser o ponto médio entre repouso e movimento, mesmo não estando ele no tempo, o que o torna ponto de chegada e de partida do que se está movendo em direção ao estar parado, e do que está parado em direção ao mover-se” (PLATÃO, 2003, p.156). O tempo simultâneo alude igualmente ao Mito do Eterno Retorno, hipótese de transcendência da noção linear da História. Silencioso como o Paraíso, segundo livro do autor, por exemplo, não tem começo nem fim, cada lado da brochura é um início onde dois “finais” convergem para o centro. No entanto, o narrador, insatisfeito, tenta ir além deste mito fundamental ao se perguntar: “através de Andara não se irá à parte alguma?”. Em outras palavras, no que redundaria o tempo ou o ciclo do tempo, quais os limites da viagem, da vida, da história? O tempo é linear ou cíclico, finito ou eterno? O que é o tempo? O tempo é a imagem movente da eternidade? (PLATÃO, 1972). Em quais pontos da linguagem (verbo) e da memória - refeita constantemente pela linguagem - encontra-se a compreensão da natureza total do Homem? Sobre isso comenta o narrador, misterioso: “Usem a memória. Saibam: a memória, Ela é a Outra literatura [...]” (CECIM, 2001, p. 73). E sobre a indefinição 6 ontológico-temporal a qual o nome assinala, resume, ainda enigmático: “a memória é um retorno sobre os mesmos passos, para onde quer que se vá [...]”(CECIM, 2001, p. 73). O poder diretivo e ao mesmo tempo incerto, tênue da memória, é ilustrado num trecho de Silencioso como o Paraíso (CECIM, 1994), que alegoriza as questões supracitadas na dinâmica com os postulados da teoria do Inconsciente. No enredo, um local secreto - “a Festa dos Cabelos Trançados” – é procurado pelos personagens em Andara, permanecendo indefinida a sua localização. À medida que avançam em Andara, tanto os referenciais, quanto os nortes: as certezas, vão se rarefazendo a semelhança de uma busca mística por meio da chamada “via negativa”, que consiste no despojamento progressivo do ego, da matéria, das palavras, em direção a uma “plenitude do tempo”, realização ampla de si próprio ou hipotético encontro com a divindade. O despojamento é experimentado como a própria experiência da morte, que por sua vez é tida como a base simbólica de toda iniciação filosófica... Disse Cecim em entrevista que a Amazônia, por ser Lugar de Natureza, é lugar do sagrado em epifania. Para diversas doutrinas a natureza já foi ou é tida como local da divindade. Para Gaston Bachelard (1989), a floresta é uma espécie de arquétipo da Psique, da Anima. Por isso, sobre a busca pela festa dos cabelos trançados na floresta Andara, podemos traçar um paralelo entre esta procura com a especulação teórica de Carl Jung sobre os limites da Psique: se uma psique meramente onírica, ou se portadora de um “Espírito Universal”. Ou seja, a Psique seria mais vasta a ponto de transcender a si mesma? (JUNG, 2001). Na anímica floresta Andara (Psique) existe uma ponte para a Festa (alma, Espírito Universal)? Em suma, a busca pela festa dos cabelos trançados em Andara simboliza o movimento de busca pela Alma Imortal ou pela supraconsciência. A busca dentro do Tempo e da Memória. Mas não a memória de registro prontamente acessível, mas a memória sutil que se supõe ou se pressente possuir e não se mostra de forma evidente: “Andara, a viagem, ela mesma nunca será escrita diretamente” (CECIM, 2001, p. 13). Apesar das limitações evidentes, Andara é como a ânsia da psique visionária que tenta ver não apenas “à frente”, mas a si mesma em sua totalidade, tal como na citação de Ó Serdespanto, que resume a idéia de plenitude do tempo de São Paulo: “Agora vemos em espelho. Amanhã conhecerei como sou conhecido” (CECIM, 2001, p. 49). Andara e a Festa dos Cabelos Trançados representam a indefinição e a tentativa de arqueologia da Psique em busca de um espaço profundo e mais além do chamado “fluxo da consciência” surrealista, uma técnica imaginativa que apenas revela, revelaria os rudimentos da linguagem e cognitivos do Homem, porém não explicaria a si mesma. Exatamente como disse o 7 personagem Hamlet, personagem shakespeariano, o próprio sonho não passa também de uma sobra. A hipotética passagem para a festa em Andara se aproxima do conceito de Reminiscência, de Platão, entendida pelo filósofo como a “Memória da alma imortal do Homem”, que só se mostra sob formas sutis, por exemplo, na escritura e na busca filosófica, pois, para Platão, a busca, assim como a aprendizagem, é uma forma de Reminiscência. Do mesmo modo, enquanto procuram, os personagens de Cecim têm a sensação de estarem na Festa, ou ficam em dúvida quanto a sua existência... Isto é, quando os personagens intuem em Andara a Festa dos Cabelos Trançados, isto é apenas um sonho com a sua abundante e complexa arbitrariedade imagética, os rudimentos e estilhaços de consciência animal, ou uma Reminiscência à maneira platônica? (ver paralelos no capítulo o aspecto onírico na obra). A resposta, assim como a pergunta, fica, por assim dizer, no ar. Mesmo que os personagens não alcancem o caminho para a “Festa em Andara”, ou seja, um desfecho ontológico para os questionamentos, paradoxalmente a festa já existe. Existe como hipótese, porque Andara é a terra das hipóteses. “Aonde a sombra das estrelas viesse se juntar também à sombra de uma dúvida” (CECIM, 2001, p. 81). Um lugar presente-ausente, um ponto metafísico, mas de interrogação. Andara é a aporia da Psique como parte indissociável de todo pensamento que se debruce sobre si mesmo. O inefável mostrado como lugar que existe. E esse inefável, esse lugar, é a própria vida. 8 3 ANDARA E AS TRÊS FORMAS TRANSPARENTES 3.1 O VAZIO COMO CHEIO. O NÃO – SER DE ANDARA Poemas são ânforas cheias de silêncio. Jean Cocteau. A grande plenitude parece vazia, entretanto o uso constante nunca a esvaziará. O pensamento de Lao Tsé (1993), no Tao Te Ching, aproxima-se do ponto de vista diverso do paraense com relação aodiscutido vazio em que redunda a linguagem, seja quando especula sobre a sua própria origem, seja na substancia incerta da poesia. Conforme observamos no título do capítulo, o Vazio é uma das Três Formas Transparentes de Andara, juntamente com o Silêncio e o Invisível. Em entrevista, Cecim comenta querer a palavra Vazio em vez da palavra Nada, dizendo deixar a última “à deriva no ocidente” (CARPINEJAR, 2002). A diferença a que Cecim se refere é que o Nada ocidental como, por exemplo, o existencialista ou o de Martin Heidegger, ainda que fossem tidos também como forma de “presença” se baseavam na experiência da angústia. Em tese e em resumo, o Vazio contrasta com o Nada na medida em que o último é um sinônimo do Não-Ser como obliteração existencial e negação do Ser. Ao passo que no vazio oriental, a exemplo do Tao Te Ching, em O Uso dos Meios, está escrito: “todas as coisas nascem do Ser. O Ser nasce do Não-Ser” (TSÉ, 1993, p. 40). Uma idéia de que não existe obliteração ou dualismo estanque entre ser e não ser, vazio e cheio, mas a hipótese de fluxo e interdependência necessária. Entramos neste ponto em terreno inefável, e no tópico simbólico que o estudioso do imaginário Gilbert Durand batizou de “abstração antifrásica”, ou a “negação da negação”; traço marcante da obra de Cecim, vide a presença da mesma em outras instâncias da obra, e que veremos ao longo dos capítulos, como nos casos da idéia da Queda (X PÁG), e do seu estilo particular de Iconografia Naturalista (PÁGZ). As personagens e as indagações na obra oscilam entre as noções e sensações de nada e vazio. Ora experimentando a Angústia do Nada, como nesse exemplo: “Andara às vezes não é nada. É só uma estrada aonde uma sombra longa de homens, de pó, vai passando “... Ora contemplando e percebendo o nada como vazio (grifo nosso): “Cheio de 9 espanto já não persiste em si e se amplia em não-ser. Diz-se disso. Serdespanto caindo para o pó” (CECIM, 2001, p. 104). A despeito das dúvidas na obra, para o autor Vicente Franz Cecim, conforme defende no referido ponto da entrevista, é o vazio e não o nada que circunscreve a vida. Atualmente, mesmo nos círculos científicos é sabido que o lugar do vazio é, também, o lugar da energia. Por isso, os “vales que se enchem graças ao vazio” no Tao Te Ching são da mesma natureza que leva à pergunta desafiadora, quase afirmativa, do livro Ó Serdespanto: “Por que não semear de mãos vazias?” (CECIM, 2001, p. 210). 3.2 O SILÊNCIO: falar sem boca Silêncio do grão agora. Silêncio humano e vegetal. Enquanto na árvore se abre uma flor de silencio. Vicente Franz Cecim A Escritura de Cecim tangencia explicitamente com o Silêncio absoluto, nominalmente e nas muitas páginas quase brancas de cada um dos seus livros. É por isso que o Silêncio, junto com o Invisível e o Vazio, é um dos três “pilares transparentes” da obra. A angústia frente ao inominável absurdo, que encontra catarse oblíqua nas palavras, é sugestão constante na obra. A limitação ontológica das palavras se mostra no rumorejar e indagações das personagens e seus sentidos que erram entre conceitos, mostrando quão insuficiente pode ser a linguagem para exprimir o inexprimível, e, ao mesmo tempo indispensável quando se trata de qualquer obra ou vida. No livro Viagem a Andara (CECIM, 1988, p.327), a metáfora “cascas de palavras” expressa a limitação do significante na distância muitas vezes abissal dos significados mais profundos. A palavra também pode ser veículo para transportar interstícios como o silêncio eloqüente, no qual repousaria simbolicamente a essência. Cecim faz menção ao silêncio quando o refere nominalmente ou quando o abarca no todo da espacialidade do texto, com poucas frases esparsas a cada página, e nas quais o silêncio por vezes é um convite palpável e uma dádiva: “Haverá trigo e mel no silêncio do instante se nesses anos nós colhermos em silêncio.” (CECIM, 2001, p. 87). No ensaio filosófico que aborda a capacidade humana ancestral de fabulação mítica, cujo título é Mitologia, o acadêmico português Eudoro de Souza diferencia silêncio de simples ausência de palavras. Para ele, o que chamou de O Grande Silêncio, “está para a 10 linguagem como o Ser está para os entes que o ocultam, quando nos entes se revela”. Para Souza (1984, p. 20) “O Grande Silêncio é como a noite cosmogônica, a Grande Matriz da linguagem. A linguagem das múltiplas palavras é a negação-afirmativa do Silêncio- Um como o Mundo das múltiplas coisas é a negação-afirmativa do Um- Deus”. É de acordo com esta noção que Cecim intitula o seu segundo livro de Silencioso como o Paraíso. Isto é, silencioso como antes do pecado original, principalmente, antes da perda da unidade. O caráter ontológico e idílico do silêncio, o rareamento das palavras e a recorrente evocação metafórica ao Grande Silêncio (SOUZA, 1984) são como pegadas na areia em Andara: “Que ela, ave, não seja vítima das víboras deste texto que fez seu ninho entre ruínas de linguagens, que se partem. Em silêncio, ouvem?”. A palavra partida é um refugo da eloqüência una do silêncio. Na palavra há multiplicidade, mas o silêncio é um só. Se tomarmos a metáfora do trecho, a ave, símbolo ascensional, não se quer engolida pelo rumorejar estilhaçado da linguagem. Mas é no texto que a ave faz seu ninho. Além do inevitável paradoxo, a ave é a utopia autoconsciente de transcendência da linguagem na linguagem por meio da compreensão secreta que informa sobre o Grande Silêncio. Ainda com relação às negações negadas (antifrásicas), o silêncio, mesmo quando não nomeado, ou mais diretamente sugerido, pode também se mostrar em outras palavras e coisas, na própria expressão. Na obra, é significativo que haja menos ações e substantivação freqüente (“música do sangue das estrelas”), e um povoamento de imagens, elementos naturais, animais, vegetais e coisas inanimadas, freqüentemente recombinados entre si - árvore, estrelas, rio, céu, terra, fogo - simulando um dar lugar, e em alguns casos até mesmo voz, ao que não fala. Ilustrativo disso é a árvore falante de Ó Serdespanto, “de longos braços humanos”. No livro, é o Ser que há na planta a “falar”. O simbólico episódio da árvore falante remete a um poema de Hermann Hesse (1984, p. 12) em que “o sol fala com a luz, a flor com aroma e cores, o ar nos fala com a nuvem, chuva e neve”. Assim como tudo contém a utopia do Grande Silêncio, inclusive as palavras, os silêncios aparentes das coisas também são “falares“ da vida. A pura expressão também é linguagem. A vida é uma linguagem misteriosa, e nesse sentido, forma de linguagem silenciosa. Cecim sintetiza poeticamente a percepção próxima à de Hesse com as expressões: “bichos-caligrafia, Homens-caligrafia, céu-terra caligrafias” (CECIM, 2001, p. 277). No penúltimo trecho de Ó Serdespanto, em “às estrelas: Falar sem boca”, Cecim reforça a percepção da linguagem misteriosa que supera a funcionalidade das palavras, e evoca o espírito da linguagem que há em tudo, e que muitas vezes se mostra por meio do silêncio uno. Diz: “Falar sem boca não é fazer perguntas ou dar respostas e que estas se 11 derramam por toda parte, sobre a vida, soterrando a vida” (CECIM, 2001, p. 266). No entanto, ao propor um mundo silencioso nesse sentido preciso, o impasse se lhe advém e pergunta: “Depois dela, quando Ela essa boca passe a existir, quem ainda poderia falar sobre isso?” (CECIM, 2001, p. 270). 3.3 ANDARA: o livro invisível A harmonia invisível, a visível supera. Heráclito Se as portas da percepção se abrissem. Nós veríamos o mundo como ele realmente é. William Blake E O- além- do- real, o invisível? A Pergunta supracitada, do livro Ó Serdespanto, destaca uma idéia associada à obra ceciniana: a condição de invisibilidade. O Livro Invisível énão apenas subtítulo do livro Viagem a Andara, o livro mais festejado de Cecim, mas um conceito-chave da obra total. Na escritura do autor paraense, bem como para algumas teorias místicas, a imaginação do Invisível é algo viável. Contudo quando o assunto é abordado pelo âmbito estritamente conceitual, fica clara a entrada em terreno movediço. Isto porque não nos é dado pensar num “invisível puro” como sugerido. O invisível só pode ser pensado na relação com o visível. A própria palavra é uma derivação da última e, portanto, a imaginação do invisível está contextualizada no visível, na visão, seja para negá-la, seja para declarar a sua insuficiência. Quando Oscar Wilde (1961) escreve em Retrato de Dorian Gray que o mistério do mundo não está no invisível, mas no visível, ressalta esta argumentação que, no entanto, não nega necessariamente a afirmação inversa, pois o que está em questão é um senso peculiar de visão, do "visionário" que é capaz de conceber um invisível que não seja mera ausência de objeto visível, e o objeto visível como Epifania. Wilde apenas situa o problema para o seu contexto irradiador: a visão. Isto também parece validar a observação de Foucault em As Palavras e as Coisas. Para o filósofo francês nenhuma descoberta surge sem que haja um referencial visível para tal, ainda que por vezes difuso. Para ilustrar, Foucault (1999) menciona Paracelso, o alquimista, místico e precursor da ciência moderna, para quem o mistério punha pistas e marcas visíveis na natureza. 12 Ainda seguindo o raciocínio de Oscar Wilde, o que se coloca é que a visão é o próprio mistério, pois poder ver não significa compreender ou abarcar o mistério. A visão é percepção sensorial limitada e não compreensão última. Embora seja referencial aparentemente seguro, um sentido valorizado e importante, é superestimado, pois a visão não explica a si mesma e é limitada na compreensão total do mistério da vida. Deus não é a única fantasmagoria cognitiva do homem. É o próprio homem uma fantasmagoria cognitiva... Por isso Cecim entoa “uma espécie de canção de desamparo... E eis a fábula Que se chamasse, se chamaria: todos que olham sem ver” (CECIM, 2001, p. 22). Isto resume a sensação dos personagens, por assim dizer, cientes que estão “cegos” por falta de “vidência”. E apesar da limitação expressa na fala do narrador, o Livro Invisível de Cecim se aferra ao conceito da idéia do Invisível que excede a analogia com a visão a ponto de tornar- se imponderável, ou seja, de um invisível enquanto instância em si, e não apenas a configuração de uma ausência ou mero “contrário” da visão. Simbolicamente, portanto, a idéia do Livro Invisível sintetiza a impossibilidade da escritura, o horizonte que Blanchot definiu em seu Livro Por Vir como um fundo de céu que descortinasse o vazio para além dele. O Livro Invisível é a meta, mas ainda que assim se nomeie, contém estes problemas conceituais por que a meta é um limite inefável. Mas a rarefeita Andara é o ponto onde visível e invisível tangenciam-se nas visões e cegueiras próprias a ambos, não existindo, pois, hierarquia evidente entre ambos, como existe, por exemplo, no próprio conceito de Livro Invisível e no mito Hindu de Maya, para o qual o mundo visível é tido como a Grande Ilusão. Em Ó Serdespanto, a hierarquia do invisível sobre o visível do mito hinduísta se mostra, por exemplo, nessa passagem: “Contra esses olhos todos que nós temos em nós, humanos, esses mil olhos que tudo vêem e nada vendo?” (CECIM, 2001, p. 52). Entretanto, se mostra precisamente com uma dúvida. Cecim cita Novalis - um dos seus poetas preferidos- em entrevista: “somente a precariedade dos nossos sentidos nos impede de ver que estamos num mundo feérico”. Aqui, novamente, o invisível em relação à visão. Ainda que seja referência a um mundo mais amplo descortinado pela percepção antes limitada, também está contextualizada com a visão, outra visão, é certo, mas não à ausência de toda visão ou meio de percepção evidente. O livro invisível alude a essa visão, a de um visionário incomum, a de um estranho visionário, que “vê o invisível”, descortina o desconhecido ou o percebe. O Livro Invisível quer, enfim, transcender as limitações da visão meramente óptica. “A vida não é levar as pedras do caminho nos olhos” (CECIM, 2001, p. 238). 13 Visível e invisível são entidades da obra, o primeiro figurando com sua ausência presente, e o segundo, com sua presença misteriosa. Os estares de Ó Serdespanto, fluidos, espectrais, são objetos de uma ausência, miragens, e, portanto, dialogam com o mito hindu de Maya. No entanto, o autor, por assim dizer, os retrata, e a partir desta apreensão a visão não se restringe mais a mera mirada sensória. Fabrício Carpinejar escreve no seu Biografia de uma Árvore, como a validar a utopia do Livro Invisível: “até a ausência tem direito a um corpo” 4. O ELEMENTO MÍTICO. A história de Andara não tem fim. O mito não só uma vez precedeu o logos, mas sempre o precede. Eudoro de Souza 4.1 O ETERNO RETORNO, O TEMPO CÍCLICO O tempo é a imagem movente da eternidade. Platão. O tempo é meu único contemporâneo. Nietzsche. Aspecto marcante da obra de Vicente Franz Cecim, as questões sobre o Tempo assumem formas em Andara, como a sintética imagem mítica da serpente Ouróborus. Símbolo alquímico que representa o tempo cíclico e o eterno retorno, a serpente que come a própria calda pode ser encontrada, por exemplo, literalmente ilustrada no centro do livro Silencioso como o Paraíso, selando este ao meio, onde convergem os dois pontos extremos, sem começo e final, de cada metade do livro, reforçando com isso a idéia de continuidade e não linearidade da narrativa. Quem sabe da história? O tema do tempo cíclico também está presente nas referencias à Esfera, pela história de Andara recontada em todos os livros, e por idéias metafísicas como em Viagem a Andara (1988), onde se afirma que “a memória é um retorno sobre os mesmos passos aonde quer que se vá”. Ou em perguntas metafísicas como a lapidar “através de Andara não se irá à parte alguma?”. Cecim menciona a possibilidade do Eterno Retorno na macro-história e na obra, mas também pergunta se não existe nada além da visão perturbadora da repetição infinita, 14 uma vez que para o homem não é revelada a verdade, engendrado que se (des) encontra na virtualidade do tempo. Só é lhe dado saber da viagem “entre dois pontos que não existem”. Está sonâmbulo no tempo círculo sem saber qual o propósito do movimento. Tal como o Processo de Kafka, personagens passam o desenrolar da história buscando o sentido de estar sendo “processados”, ou ainda “castigados”, a propósito que a serpente está associada também ao mito do pecado original. Podemos conferir, por exemplo, nessa passagem: “a serpente aprisiona como corda ao corpo” (CECIM, 2001, p. 23). Ou seja, o templo cíclico seria uma espécie de encantamento ou castigo, e os questionamentos incluem como libertar-se disso, do próprio tempo, como transcendê-lo. Independentemente da angústia que o mito levanta, o tempo do eterno retorno é presença nítida de Andara, e as passagens que o referem são constantes, como neste exemplo: “Eu Palavra desconhecida dos homens que dormem, Não sou o dia claro sobre o túmulo de um rei que sobrevive Entre o centeio negro Ainda poderia dizer, sem os lábios que perdi Numa noite de sol, Tudo O que esqueci, se aguardasse a pele nova Da serpente” (CECIM, 2001, p. 200). O sexto verso – poderia dizer sem os lábios que perdi – descreve a consciência que transcenderia a materialidade e deduz-se a própria vida após a morte. Este Eu que é palavra desconhecida dos homens que dormem seria a consciência maior do Eu, para além dos limites humanos, ou a deDeus? Os homens que dormem são os homens que não tem a consciência de que são deuses, ou não conhecem a Verdade, ou não conhecem Deus. Este Eu, é a porção divina do eu, ou um Deus extrínseco que falasse, possivelmente não em forma direta, antes de uma “nova” vida, com “a pele nova da serpente”, a ressurreição divina ou a renovação encerrada na repetição? Para Gilbert Durand no seu As Estruturas Antropológicas do Imaginário (1997), os “símbolos cíclicos” do tempo são a forma de, pelo simbolismo, dominar o devir, domesticando-o. E polemiza ao afirmar que: Os arquétipos e esquemas que se polarizam em torno dessa ambição fundamental são tão poderosos que chegam, nas mitologias do progresso, nos messianismos e na filosofia a ser tomados como realidade objetiva, como moeda validada do absoluto e já não como resíduo concretizado de simples estruturas singulares, de simples trajetos da imaginação. (DURAND, 1997, p. 35) A história se repete incessantemente na forma de pergunta, e tal como na vida, na metamorfose da serpente a história permanece na forma de enigma. Cecim suspende certezas, mostrando os limites de nossa compreensão sobre o enigma do tempo e desta parte ao mesmo tempo tangível e abstrata da vida. Porque a desculpa de Deus é não existir (Nietzsche). 15 4.2 O CAMINHO DA SERPENTE de Fernando Pessoa e Vicente Franz Cecim. Não há paraíso sem serpente. Goethe. Nesse ponto mostraremos aproximações conceituais entre o Livro Invisível de Vicente Cecim e o projeto místico de Fernando Pessoa O Caminho da Serpente - O livro que o não é. As semelhanças começam com as seguintes premissas. É o “não ser” que escreve ambos os livros, de Pessoa e Cecim. E tal como na obra do poeta português, a serpente assume papel importante na fantasmática ceciniana, dualizando com a asa e formando a díade arquetípica mais importante de Andara. As pesquisas intensas do poeta português sobre matérias herméticas influenciaram as suas convicções sobre a arte, inclusive na sua invenção mais notória, a heteronímia. Esta influência dá-se a ver no espólio do poeta, em fragmentos de ensaios, especialmente nos esboços de O Caminho da Serpente. Nestes Pessoa escreve (CENTENO, 1985, p. 22) sobre a simbologia da serpente: “A sua fuga é o seu mistério. Mas ela não sabe nem do seu mistério nem de todos os mistérios, porque conhece tudo, e conhecer é não existir”. Escreve ainda: “ela não conhece os mistérios, mas os envolve” (CENTENO, 1985, p. 34). De modo semelhante ao verso de Cecim sobre o eterno retorno (tópico anterior) e o transcurso do tempo, a serpente do não – livro de Pessoa é a guardiã do mistério. Pessoa escreve que “a serpente atravessa tudo, satã, Deus, e deixa igualmente a tudo com a pele largada”. Conforme já abordado, a imaginação cíclica suscita polêmicas e impasses, que não roubam, no entanto, o poder de inspiração dos não-livros de Pessoa e Cecim, pois “de cada coisa, ao seu redor na vida, como da serpente que passava, agora ele tira o motivo. E canta”. 16 5 O VERBO TRANSCENDENTE. UMA CABALA PARTICULAR 5.1 CONFLUÊNCIAS ENTRE O MITO DE BABEL E O RIO DE HERÁCLITO, OS ESPELHOS, OS OLHOS E OS NÍVEIS DA CRIAÇÃO E os espelhos são a invenção mais impura. Herberto Helder Com versos e imagens à maneira de oráculos e axiomas filosóficos, o pensamento sintético é característico do autor, que imprime longos discursos em frases poéticas e períodos relativamente breves, a exemplo do trecho (CECIM, 2001, p. 204.): “Esses rios têm espelhos partidos, e tudo o que foi submerso é um caos perdido”. Veremos que a citação alude às confluências entre Obra – o Mito de Babel, da criação; e obra – de arte, especialmente a escritura. Bem como ao Hermetismo e aos Simulacros platônicos. O rio ceciniano, uma metáfora da vida e do discurso humano, nasce da intertextualidade com Heráclito, o filósofo pré-socrático que utilizou o rio como metáfora icônica da mutabilidade da existência; e se une às demais metáforas: espelho submerso e caos perdido, compondo a impressão particular do autor sobre o contexto da obra literária e da escritura. Por sugestão e metonímia os espelhos representam a imagética e a visão humana, não apenas pelo fato de tecnicamente “refletirem imagens”, mas porque simulam a visão, aludindo com isso às implicações embutidas neste ato. Por essa razão, estudiosos do imaginário como Durand (1997) apontam que, arquetipicamente e em algumas civilizações, o espelho é tido como uma espécie de “objeto mágico”, cujo caráter simbólico está relacionado ao misticismo. Literalmente partidos no rio, os espelhos de Cecim ilustram o aspecto fragmentário e falho dos conceitos e faculdades mencionados, e de um modo mais profundo, do olhar místico e propriedades transcendentes que estes metaforizam. Estendendo a análise, expressam as “possibilidades” da visão mística não diretamente atestável, à semelhança de postulados Herméticos como este: “a luz única e intangível do uno-onipresente acaba por se estilhaçar em múltiplos reflexos por intermédio do prisma do espírito” (BURCKHARDT, 1991, p. 5). Os fragmentos de espelhos refletem, contudo, imagens inteiras. Apesar de “partidos” fazem supor que são partes de um grande espelho, e por isso, na frase subentendem unidade, 17 ou derivação difusa de uma “matriz”; tal como o conceito platônico de Idéia, a teoria da existência de espécies, imagens únicas intuíveis – as Idéias, que em tese são modelos excelsos, matrizes perfeitas das coisas existentes – os chamados Simulacros, reflexos truncados, incompletos ou turvos destes modelos. Em Parmênides, contudo, o grego coloca em dúvida a existência de Idéias correspondentes aos elementos naturais (fogo, água e outros), assim como questiona a existência de uma matriz – Idéia – para o Homem. Quando refere o caos perdido, a metáfora de Cecim mostra afinidade com a mesma incerteza. A noção de escritura/Escritura está condensada na metáfora do profundo e vasto (dis) curso do rio (vida). Os espelhos são a metáfora dos olhos e das palavras do Homem, que refletem a opacidade e a translucidez-cega da vida, ou seja, a evidência da vida e da própria língua, mas a obliteração da sua origem, porque estas estão misteriosa e encantatoriamente auto-encerradas: “Porém, os homens esqueceram a tua Voz onde deixaste um espelho” (CECIM, 1988. p. 44). A Escritura está saturada do mistério não desvelado da Origem: Em O Nome de Deus, A teoria da Linguagem e Outros Estudos de Cabala e Mística, Scholen (1999, p. 229) escreve: “Totalidades são transmissíveis somente de forma velada. O Nome de Deus é acessível, mas não pronunciável. Pois somente o fragmentário nele presente torna a língua falável. A verdadeira língua não pode ser falada, não mais do que o concreto absoluto pode ser realizado” Segundo o Mito de Babel, as palavras são fragmentos esfacelados de Deus. A língua como herança divina truncada é representada pelos fragmentos do espelho que subentendem a Totalidade perdida. O Mito da Origem judaico está intimamente imbricado ao mito da própria linguagem, a ação divina fundadora pela linguagem. E um espelho em certo sentido também se faz ”imagem e semelhança”, como o Homem de Deus. Por isso, na passagem referida da obra, o espelho adquire o simbolismo de um portal virtual inefável, do vislumbre do mistério e da Unidade perdida. Platão, por exemplo, falou a respeito da grandeza e da multiplicidade que podem ser abrangidas com um único olhar: “o que faz supor que o grande é uno”. Emersos, os espelhos refletem o firmamento e o apreendem como horizonte-limite, ultra-exterior. Imersos, refletem as águas, a vida submersa, ultra- interior. Os que refletem a vida (o rio) têm o foco na imanência, e os que refletem o firmamento,na transcendência. Mas sob determinada ótica são dois lados de um 18 mesmo enigma, e apenas focos. A metafísica vira, então, miragem, porque o “olhar” do espelho é virtual. Reproduz a visão, mas não “vê” em sentido literal. A frase total de Cecim, tal como na Cabala, tem “expressividade enigmática” (SCHOLEN, 1999, p. 224), haja vista que “O alegórico pode ser sempre expresso por um modo diferente, é sempre traduzível, sempre relacionável a outra coisa existente no mundo. Os símbolos numa compreensão mais exata dizem respeito aos fatos que se revelam e comunicam não em si mesmos, mas exclusivamente na transparência em outros objetos, em outros fatos. Os símbolos não podem ser traduzidos. Eles expressam algo que não é exprimível, que se esquiva da comunicação lingüística em forma direta... E um simbolista, nesse sentido exato, é uma pessoa para a qual o mundo se torna transparente em sua interioridade fechada”. (SCHOLEN, 1999, p. 73). A implicação da imagem simbólica é um dos aspectos mais importantes da obra de Cecim. Como na pintura zen, ou na linguagem mítica, uma imagem sugere cosmogonias. No rio de Ó Serdespanto, vê-se a ilustração dos dois aspectos referidos por Scholen (1999): o simbólico e o alegórico. O componente alegórico do rio de espelhos é utilizado para refletir nos diversos primas sobre a essência simbólica da vida. Afinal, dentro do (dis) curso do rio, há o “transcurso” dos espelhos: Interstício entre o texto primeiro e o infinito da interpretação. Fala-se sobre o fundo de uma escrita que se incorpora ao mundo; fala-se infinitamente sobre ela, e cada um de seus signos torna-se, por sua vez, escrita para novos discursos, mas cada discurso se endereça a essa primeira escrita, cujo retorno, ao mesmo tempo que promete, desvia (FOUCAULD, 1999, p. 57). Portanto, a frase de Cecim levanta questões em torno da leitura e exegese das Escrituras Sagradas ou ainda do mito da origem da linguagem, e sua derivada mundana, secularizada, a escritura poética. Para os místicos e poetas “simbolistas” (na acepção de Scholen), uma Escritura não é apenas alegoria, embora assim se apresente sob determinada ótica. O rio é a alegoria da vida, mas a vida está prenhe de espelhos, isto é, de símbolos que se esquivam de uma compreensão direta e última. Citando a Torá, Scholen (1999) menciona que a mística judaica vê nas Escrituras (e aqui mais uma correspondência com o rio de espelhos) “a luz resplandecente, infinitamente multifacetada, na riqueza de sentidos infinitos, que agora possibilita a descoberta de novos níveis de significado, a introvisão simbólica nos segredos do ser divino” (SCHOLEN, 1999, p. 74). 19 Comumente definido “escritor hermético”, xamã da literatura brasileira, cabe, porém, evitar o equívoco de uma interpretação de cunho místico literal da obra, que é, sobretudo, heterodoxa, revisitando as questões existenciais básicas: de onde viemos, quem somos, para onde vamos. Em entrevista Cecim menciona a diferença fundamental entre “artistas que praticam a arqueologia da história da arte” daqueles que “praticam a arqueologia da própria vida”. O rio de espelhos partidos exemplifica a segunda categoria. Acerca do problema da leitura na escritura poética, o rio de espelhos também metaforiza a fluidez da interpretação possibilitada em textos desta natureza radicalmente diversa. Os espelhos (da obra) no qual se miram os leitores podem alterar a percepção total da obra. O rio de espelhos com sua introvisão é tão poderoso e exuberante quanto (o mito grego de) Argos, o rei que possuía “cem olhos”, dos quais, alternadamente cinqüenta se conservavam abertos, enquanto o restante repousava, e, que por uso indevido destes sentidos, Hermes, o mensageiro dos deuses, sob ordem do deus supremo, os transformou em “olhos” da calda de um pavão. Como que a dialogar com este mito e retomar as questões do rio de espelhos, pergunta o narrador a si e aos leitores: “São esses mil olhos que tudo vêem e nada vendo?” (CECIM, 2001, p. 52). 5.2 OS SIMULACROS. Na penumbra Andara, diálogo com sombras. 1 Os nomes das coisas são pedras nas sombras. Vicente Cecim. No presente contexto designamos “simulacros” às palavras e as sugestões na obra a um pensamento, palavra ou forma de linguagem na sua impossibilidade de transcendência. O conceito de simulacro no sentido literal de cópia imperfeita, deriva da hipótese filosófica da Idéia de Platão: suposição de existência de uma espécie única intuível e perfeita na multiplicidade de objetos. Aristóteles, que impôs outro paradigma, negava da teoria da Idéia platônica a “unicidade e o valor”, mas reafirmava-lhe o sentido de essência, de substrato. A segunda é uma perspectiva telúrica, sensível, enquanto que a primeira é do domínio do inteligível e do transcendente. Cecim pensa a palavra como simulacro, posto que esta, quando quer transcender a si própria ou encontrar sua essência própria esbarra na sua dimensão limitada. A sombra é a metáfora principal deste pensamento. Na virtual semelhança com a Palavra – a hipotética transcendência, as palavras turvam-se e não informam sobre a sua própria origem. “Os 20 homens procuram a tua voz onde deixaste um espelho” (CECIM, 1988, p. 44). A aspiração pela Palavra, que é substituída pela noção de simulacro, é onipresente em Ó Serdespanto: “O nome do Nome Um dia passou coberto de eras, Sem haver vindo Quando vier o tempo bom renascerá da semente o Bosque sem paixões O nome do fruto eu não digo Tu não dizes O nome do fruto O nome do fruto nenhum de nós dirá Bosque sem paixões [...]” (CECIM, 2001, p. 224). A idéia de simulacros é substituída pelas metáforas sombra, coberto, cascas. Coberto de heras, coberto de sombras, cascas (de palavras), alienado no próprio espelho, envolto em neblinas, brumas... As metáforas de simulacros compõem, juntas, uma espécie de tautologia da tentativa de superar a palavra. Por isso escreve mais adiante: A palavra Palavra não grita o nome das palavras cravado nos lábios durante o sacrifício. Longo leito de areia para ti também lá o centeio negro não é o Centeio Negro. O centeio branco não é o Centeio Branco. Lábios não se abrem pra nós dizer o nome da árvore, o nome Do homem, o nome Daquilo que um dia virá Sem achar o caminho da voz Que dirá o nome da Árvore, o nome Da Estrela, o nome Daquele que ainda não veio, E está passando coberto de heras, O Nome [...]. (CECIM, 2001, 225). No último trecho de “Lua dos que choram”, escreve: “má sorte é ter nascido sem saber jogar com as sombras melhor será dormir abraçado às garras de um deus” ou ainda “e é um sonho ser um homem até os ossos e suas canções do corpo que nenhum ouvido ouve que nenhuma boca canta ou só a boca de uma sombra cantará”. (CECIM, 2001, p. 125). Além da palavra, também encontramos a imagem do próprio homem como simulacro, tentando enlevar-se, e a consciência da limitação mundana: “O homem de pó deixou a sua sombra na estrada” (CECIM, 2001, p. 253). “Música com sombras. Porque te vestes de sombra é que eu te espero onde os dias morrem para sempre Escuta é a voz humana Essa areia sufocada em tua garganta: isso, a areia Soprada por um vento, É a coisa que os homens chamam a voz humana A nossa voz Ah Dela, nada dizer calar na bruma Porque tu vestes de sombra” (CECIM, 2001, p. 233). E ainda em Música das estrelas, finaliza: “não é a voz humana, nem ao menos murmurando” (CECIM, 2001, p. 235). 21 5.3 CECIM E A ICONOGRAFIA NATURALISTA A prosa poética de Vicente Cecim apresenta objetos e elementos naturais de modo profundo e muito particular... Primeiramente, há pouca ou nenhuma menção a artefatos, exceto pela referência ao “livro”. No cenário de Ó Serdespanto, os elementos apontados são em sua grande maioria naturais:..animais, vegetais, minerais, cósmicos. Mas ao contrário do descritivismoda natureza morta e do paisagismo, encontramos uma natureza pulsante, tal como na natureza divinizada do paganismo ou na concepção de Iconografia Naturalista. Termo cunhado por Gilbert Duran, a Iconografia Naturalista é definida pelo retratar de um dado objeto de forma aparentemente naturalista, mas com tal força expressiva que revela e subverte a mera descrição naturalista. Os objetos são retratados de modo a evidenciar imanências e seus sentidos insólitos subjacentes. No exemplo dado por Durand, o estranhamento proporcionado por Vicent Van Gogh com uma simples cadeira, um quarto prosaico ou um ramo de girassóis. Este recurso, ainda segundo Durand (1997, p. 277): “conta mais com a intensidade expressiva do que com a vastidão decorativa”. A herança da “iconografia naturalista” remonta aos monges budistas e sua reflexão pictórica sobre, principalmente, paisagens. Para os monges este tipo de pintura refletia eloqüências profundas que a própria imagem dava a ver, sentir, saber. Refletidas através deste tipo de olhar e contemplação “demorada”, as imagens são, paradoxalmente, naturalistas e enigmáticas (ícone). Durand sublinha que este tipo de minimalismo está impregnado de intenções antifrásicas 1 , numa definição poética, pretende dar a ver o universo no grão de areia. Os exemplos citados por Durand (1997) de iconografia naturalista são a pintura dos monges e os jardins em miniatura feitos pelos orientais (ikebanas), porém adaptamos o conceito pela semelhança com a simbologia do texto ceciniano. Certamente, para cada uma das formas, pintura e escrita, o efeito obtido para não é idêntico, uma vez que mesmo isolando objetos na narrativa à 1 Pode falar-se também de antífrase quando se tenta atenuar uma idéia negativa, utilizando palavras mais optimistas. Na Grécia antiga, as Fúrias eram designadas por Euménides, isto é, “benévolas”. Exemplo semelhante registra-se na história nacional com a antífrase de D. João II, quando mudou o nome do Cabo das Tormentas para Cabo da Boa Esperança. Esta acepção da antífrase pode fazê-la confundir com o eufemismo. A diferença está em que a antífrase exagera o eufemismo quando inverte o sentido original das palavras (CEIA, 2005). 22 maneira de uma partitura imagética (como o faz Cecim), os elementos e objetos quando combinados não podem ser “cristalizados” da mesma maneira que na pintura em função do fluxo narrativo. A iconografia naturalista, portanto, se dá no fio narrativo, se encontra em cada contextura, palavra ou imagem do texto. Em “Ó Serdespanto” existem as expressões ossos de textos e Minérios e Memórias, isto é, metáforas do pensamento essencial e o que há de universal e altamente significativo nos signos, não da simples redução de elementos na espacialidade do texto, um minimalismo, mas da volta ao essencial, um retorno aos símbolos atávicos, àqueles que o psicanalista austríaco Carl Jung chamou de “arquétipos” e que veremos a seguir. 5.3.1 A ICONOGRAFIA NATURALISTA, UMA EXEGESE ARQUETÍPICA. “As palavras que aparecem mais amiúde num texto delatam a obsessão do poeta” (BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, 1991, p. 12). Tomando de empréstimo a percepção precisa de Charles Baudelaire, demonstraremos as palavras chave da obra para desvendá-la mais um pouco, na sua microestrutura que é a palavra. Em razão da influência dos mitos na obra ceciniana, baseamo-nos na classificação de arquétipos e estudo do imaginário, de Gilbert Durand (1997), e a partir do referido enfoque listaremos as imagens de maior ocorrência na obra com os seus sentidos genéricos correspondentes. Em destaque na obra de Cecim a ampla presença dos símbolos ascensionais: a montanha, a ave, o pássaro, as asas, que constituem, pela metonímia, o anjo e não o pássaro. Da pureza, os correlatos: céu, a luz, o sol, o vento, as estrelas e a água. O pó, o sangue, as cinzas, os ossos, a carne (a “carne de sonhos”, “Serdespanto caindo para o pó”), representam a corporeidade finita e o tempo terreno. As limitações corpóreas também estão nas ocorrências constantes da sombra e da pedra. E do tempo, considerado mais abstratamente, nas figuras do deserto, da areia, da semente, do fruto e da noite. Imagens místicas, metafísicas ou do mistério: a serpente, a esfera, os olhos, o lago, o espelho, a noite. Do sagrado: a voz, a fonte. E os adjetivos: a alvura, o mal, o negro, o alto, o altíssimo, também são arquétipos de cosmicidade. 23 6 “ÀS FLORES VISIONÁRIAS DO AR” 6.1 ANDARA E O SEM-DISTÂNCIA A cosicidade do vaso não reside, de modo nenhum, na maneira de que ele consiste, mas no vazio que contém. Martin Heidegger Em Ó Serdespanto um homem experimenta ao longo de um caminho a própria “carne tão próxima e mais distante do que as estrelas”. No trecho seguinte inscreve-se a possível complementação da imagem: “um céu de carne”. Na percepção do ser enquanto linguagem- espaço e relativização das noções de proximidade e distância, encontramos proximidades com Martin Heidegger. Em toda a sua obra, o filósofo alemão concebe o espaço em sua vinculação ontológica com a noção de lugar, considerando este último em sentido mais tangível, de lugares originários do mundo: a ponte, a casa, a poesia, a jarra. Para ele o pensamento do Ser era também um pensamento do espaço. Não no sentido da “criação de um espaço” pelo ser, mas do espaço como resultado da “conformação do ser no seio da facticidade de um lugar”. Entretanto, o “Desein Heideggeriano, literalmente, o “ser-aí”, jamais se encontra dentro ou fora de algum lugar, mas ele mesmo espacializa. Rompe as fronteiras entre dentro e fora e é ele mesmo esta abertura (PÁDUA, 2008). Assim como a noção do tempo não é apenas cronológica, mas também psicológica, a relação do Desein com os lugares não é delimitada apenas no que toca a “mensuração” de distâncias e proximidades, ou conteúdos e continentes, porque o ser, na dinâmica com os lugares os converte em “espaço” próprio, ele mesmo espacializa. As supracitadas passagens de “Ó Serdespanto” expressam um sentido próximo ao pensamento Heideggeriano posto que é o ser que está no eixo das espacialidades, no caso, de céu e corpo. A figura poética não tem conotação de “criação de um espaço”, do espaço céu de carne, um “terceiro lugar”, mas traduz poeticamente o sentido do desein, o ser-aí. No entanto, o espaço heideggeriano corresponde ao que existe de "fechado e prontamente reconhecível dentro da referencialidade, familiaridade do mundo”. Por isso, devido a presença do impasse metafórico de topografia ou corporalidade oblíqua – corpo 24 próximo e mais distante do que as estrelas – a idéia se aproxima ainda mais adequadamente do conceito de “Sem-Distância” do filósofo, que pergunta: “[...] que se passa, então se, ao suprimir as grandes distâncias, tudo ficar igualmente próximo e igualmente longínquo? Que é este equiforme (gleichforming) em que tudo, não estando nem perto nem longe, é por assim dizer, sem-distância?” (SOUZA, 1984, p. 54). E discorrendo sobre este estranho estado de além-aquém da percepção no qual “tudo flutua juntamente”, indaga o equiforme -sem- distância “não é ainda mais terrível do que uma interfissura de todas as coisas?” (SOUZA, 1984, p. 54). Na frase de Cecim um hiato flutuante “une” os extremos cabeça/céu; narrador/narrativa; carne/céu- estrelas. Na flutuação desta topografia-atópica, o personagem Serdespanto, como o próprio nome sugere, habita simultaneamente cindido e ciente da sua cosmicidade, o ser-aí que “encontra as estrelas”. Ou seja, a anteriormente ilustrada permeabilidade espacial do ser-aí, na visão poética torna-se a própria armadilha, encontra (barreiras para) a transcendência no espaço. O corpo da personagem, podemos dizer, que também assume o papel da Coisa heideggeriana, isto é, algo quecontém um lugar ou lugares. A carne ou corpo contém o céu e as estrelas, e o caminho pelo qual anda o homem, é como a imagem da ponte heideggeriana que reúne homem e firmamento. E a poesia a todos estes espaços... Como a maioria dos personagens em Andara, as citações expressam um buscador cindido em saga mística não satisfeita. A impressão é reafirmada na frase “corpo com estrelas apagadas” (CECIM, 2001, p. 42). Estas passagens contrastam com o verso da escritora Hilda Hilst (2002): “E o peito era maior do que o céu aberto”; sobre o sentimento – peito, preenchimento, íntimo – de integração cósmica, ou mesmo da experiência do amor tornado transcendente. A imagem de Hilst é virtualmente “centrípeta” e leve, enquanto que a personagem de Ó Serdespanto teme ou aspira a transcendência no espaço que resulta atópica. Em outras palavras, neste episódio de Ó Serdespanto não é consumada a Unio Mystica expressa por Hilst. A personagem, ao contrário, demonstra a percepção do “equiforme-sem- distância” a que está submetida, uma vez que (ainda citando A Coisa do filósofo alemão): “Pequena distância ainda não é proximidade. Grande distância ainda não é lonjura” (SOUZA, 1984, p. 250). A despeito da não consumação da Unio Mystica, a personagem ceciniana "sente- percebe" as fronteiras e ligações inefáveis entre si e o cosmos, entre ser e entorno, no limite em que os espaços (não) permitem. Para Heidegger o limite do espaço não era o extremo ou o fim, mas o início, a origem, o começo da essência. Mas o cosmos no corpo, simbolicamente o 25 ir além do ser-aí, na matéria da personagem é um holograma, percebido apenas em sentido metafísico cognitivo, daí a menção à cabeça, em contraste ao peito do verso de Hilst. Em Psicologia e Religião Oriental, Carl Jung (2001) comenta que o materialismo não passa de outro nome utilizado para designar o princípio supremo da existência. Ao desconstruir o conceito de materialismo, Jung pondera que o paradigma cientificista que fetichiza a matéria, e a coloca como alicerce e princípio de tudo, é, na verdade, apenas uma fronteira ou base formal para o insondável mistério da existência. Em Cecim encontra-se a tradução poética: a carne tão próxima e mais distante do que as estrelas. Mais adiante, em Para Obter Um Animal Sem Asas, em mais uma combinação metafórica de distâncias externas- internas (Horizonte-Sonho), os céus (cosmos) desabam como conseqüência aterradora da percepção total, mas ainda permanece um centro, o eixo sutil do ser que a tudo reúne. “E ainda mais vasto que os desmoronamentos do céu, sempre vemos em nossos sonhos horizonte e olhar severo olha pra dentro: o lapso distante” (CECIM, 2001, p. 236). 6.2 A FACE ONÍRICA DE ANDARA- APROXIMAÇÕES COM RENÉ MAGRITTE Sonhar. Aí está o obstáculo. Hamlet. Willian Shakespeare Sonhar é acordar-se para dentro. Mário Quintana Denomina-se onírica a faculdade de sonhar, a construção de imagens pelo Inconsciente. O tema se ampliou a partir dos estudos da Psicanálise e da experiência Surrealista, contudo, abordaremos apenas um recorte do mesmo: as semelhanças entre a imagética ceciniana e a do pintor René Magritte, um surrealista sui generis. No Manifesto Surrealista, André Breton defende, sem concessões e radicalmente, a livre expressão das motivações inconscientes sobre a “racionalidade burguesa”. O preceito, contudo, tem uma contradição inerente, uma vez que pela própria conceituação só pode haver “arte” se deliberada, também, pela consciência, mesmo que através da especulação de um “imaginário puro”. Salvador Dali definiu a questão brilhantemente ao comentar que a única diferença entre ele e um louco é que ele não era louco. 26 Ainda que o Surrealismo pretenda a não-interferência da consciência, seja com a escrita automática, seja por meio de manifestações pictóricas ou performáticas supostamente literais de fenômenos do Inconsciente, a interferência se dá, no mínimo, com o reconhecimento de tais processos de forma extrínseca ao sonho, isto é, no uso da técnica (pictórica, literária) que reproduz as imagens oníricas. A transposição em arte requer mediação da consciência, e mesmo quando fiel às imagens, o processo de feitura e reflexão posterior ao ato da criação as transformaria em coisa distinta do inconsciente puro. Ou seja, do próprio postulado surrealista. Apesar de nitidamente influenciado pelo Surrealismo, Cecim enfatiza a contradição por vezes questionando a validade ampla das visões oníricas pela voz das personagens. O sonho impera, mas dele é questionada a natureza e o sonho é posto como ilusão possível em Andara. Em passagem de Ó Serdespanto, por exemplo, mencionam-se as “possibilidades absolutas da Esfera”, imagem grandiosa que reuniria a tudo no Uno. Comentando a imagem metafísica problematizada por Plotino e outros pensadores, o narrador indaga: “quem sabe é apenas um sonho em que me sonho na Esfera?” (CECIM, 2001, p. 186). Perguntando se as visões do Uno, ou de transcendência são apenas sonho, o sonho é contraposto a (também hipotética existência da) Verdade. Na pergunta se o sonho seria apenas uma ilusão, a tentativa é de libertar-se da aparente arbitrariedade do mesmo, nos quais restos de imagens, muitas vezes desconexas, ecoam sem dizer da sua origem para além do Homem truncado. Na obra de William Shakespeare consta a famosa citação de que somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos. Mas é ele mesmo quem complementa na afirmação em Hamlet: Sonhar. Aí está o obstáculo. Em Ó Serdespanto, o que predomina é a especulação filosófica sobre o mistério da Psique, e sobre a interdependência dos conceitos de “sonho” e “realidade”, um em relação ao outro. A realidade considerada consensual é, pode ser também um sonho, uma ilusão? O sonho é mais real ou outra forma de realidade paralela? Tudo é sonho? O que é afinal a realidade? Qual a Verdade para além da ilusão? Não existe Verdade? A despeito de todas essas dúvidas, Cecim afirma em seu Manifesto Curau: Flagrados em Delito Contra a Noite, de 1983: É preciso tocar o calcanhar de Aquiles do real. Lá onde ele é sensível espera impaciente o acontecimento total que o transfigure. Ou seja, a chave do mistério está não num caminho fácil para o sonho, mas num ponto oculto e nevrálgico da própria realidade (no sentido fenomenológico), na qual o sonho também se encontra. 27 Quando o escritor, considerado onírico pela maioria dos críticos, levanta as questões acima, aproxima-se do infant terrible “surrealista” René Magritte (1898-1967), o pintor belga que, rompendo com os dogmas surrealistas, nos deixou imagens “ilusionistas” de teor filosófico. Questionado sobre se suas pinturas eram surrealistas, o belga respondeu que pintava o resultado dos seus pensamentos. Pensamentos como sonhos despertos, ou sonhos que se auto-questionam. Um estudioso observou que Magritte produzia “palavras-pintadas”. Cecim produz “paisagens-escritas”. Das duas maneiras a imagem está associada à busca de um sentido metafísico, especulativo, não ao circunscrito propósito da catarse onírica. Na história da pintura isto remonta conceitualmente ao precursor do Surrealismo e maior influência de Magritte, o pintor de sombras George de Chirico, cujo estilo é definido como “metafísico”. Cecim sublinha a imagética que subjaz na mente humana, do sonho como realidade impalpável, e do real como epifania, não o onírico historicamente circunscrito (surrealista ou fantástico). Para o escritor Inconsciente e Consciente, sonho e realidade, são duas faces de um mesmo e belo enigma. 6.3 A ANTÍFRASE E OS ABSOLUTOS Escreve com sangue que verás que sangue é espírito. Nietzsche Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim. E é assim que tu verás um S nesses dias cegos. A frase de Cecim,extraída da epígrafe de Viagem a Andara, postula um descobrimento afirmativo para a vida a despeito da evidência da morte. Chegar ao Sim nesse contexto é a negação da negativa da morte. Esta antífrase é como um axioma da obra total, pois resume a vocação de Andara de ser lugar de concepções do Absoluto, e de “não ter fim”. Além da frase axial da obra, estão presentes em Andara noções distintas do Absoluto e é esta fusão que a define. Além do Absoluto próprio do autor, resultante da soma de suas referencias, e que se encerra no nome Andara, encontramos citações diretas de teóricos do absoluto, algumas delas nominais. Caso de Mestre Echkart (1260-1328), o teólogo medieval que ficou conhecido por fundir Teologia Ocidental e Budismo. Outro exemplo, o racionalista Imanuel Kant, também faz sua “aparição” como uma ave em Andara com as suas “duas formas puras de intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori: “O espaço e o tempo” (CECIM, 2001, p. 28 57). E noutra passagem menciona-se “as razões puras Kantianas – Belas aves de pedra sob o céu de Andara (CECIM, 2001, p. 52). As diferentes noções de absoluto de Mestre Echkart e Kant, se encontram em Andara com o absoluto trancendente pessoal cristão, onde Deus não é nomeado, mas está implícito nas menções ao Pai, ao Verbo e outros símbolos bíblicos. Como neste exemplo: “[...] para encontrar lá no alto outro homem como ele. Disse disso: espelho do pai e do filho” (CECIM, 2001, p. 35). A Imagem e Semelhança bíblica na citação também implica um dado biográfico. A frase, que trata da morte e seu desenrolar seguida de ressurreição faz alusão a morte do filho de Vicente Cecim, Franz, cujo nome o autor adotou posteriormente ao fato. Em entrevista e por seus relatos, Cecim comenta acreditar que a incorporação do nome do filho é uma forma de metonímia mágica, e que com o ato, o filho passara a viver no escritor a partir de então, de uma forma que se assemelha ao cabalismo da magia pelo nome: “o V que vela o caminho para o Eu grande, e um Z que zela o caminho para o Eu pequeno”. Outra forma de absoluto, nesse caso pela palavra. O Absoluto racionalista, o absoluto pessoal transcendente judaico-cristão, a magia pelo nome, também podemos encontrar a imanência budista, e a epifania poética que tudo amalgama. A errância espiritualista é uma das marcas mais fortes e o estado que a tudo reúne: “Pois é o Eu vendo O Eu na vida vivendo Que cessa a luta dos Eus, Entre asas negras e brancas O Eu grande e o eu pequeno Se unem no Eu um, E um Que é ex-sou serei sido sendo Sendo Lá sido Aqui foi onde fluí, e não fui” (CECIM, 2001, p. 112). A idéia de absoluto também se evidencia em Andara pela quantidade de arquétipos cósmicos (ver no capítulo a Exegese Arquetípica), e pelas palavras em letra maiúscula que subentendem Idéia platônica. E pelo constelado corpo do livro como firmamento, que se projeta no cosmo e no absoluto: “Enquanto a noite cai sobre Andara. E estrelas bem altas negando o céu negro vão surgindo. É lá onde o humano não é mais o humano”. Apesar da quase ânsia pelo absoluto, a dúvida existencial é outra onipresença em Andara, que ainda se mantém “firme na pedra de sermos”: “E o que é, hein, lá entre as estrelas? E aqui, o que é, hein”. 29 6.4 SIMULTANEIDADE: a origem A voz existe a noite sagrada e nela eu estou, no fundo dos céus que não existem como uma criança em seu berço velado velando Do fundo dos céus, do fundo da noite sagrada que não é noite eu cintilo A luz Que envolve e anima a vida. Eu sou a origem. Eu estou lá na origem de tudo. (CECIM, 2001, p. 109) Os versos de A voz remetem a simulação do pensamento de uma divindade criadora, paradoxalmente cônscia e alheia a si (do fundo da noite sagrada eu cintilo), tal como na concepção oriental de ser divino. E de modo mais direto, é a metáfora da criação artística através do prisma do devir. Em A Voz a criação artística tem caráter subjetivo, e dá vazão a um mundo material em parte inconsciente, como uma criança prenhe de vida, velada, velando. Mas igualmente assume um caráter sagrado, pois a criança que “vela” é uma referência não literal a Jesus como “o filho de Deus”, ou seja, é a metáfora de uma centelha da divindade representada pela idéia do(s) filho(s) de Deus e do ser divino. Com estes versos metalingüísticos de viés metafísico, Cecim sustenta poeticamente que o ato de criar e o mito da Criação não apenas se espelham, mas “se tocam” por razões misteriosas. É nesse momento ou a partir desta percepção que acontece a narrativa do devir, em que a criação mimetiza a Criação, que está sempre se dando (Eu, aqui, estou lá), “como uma criança em seu berço”. Um tipo de Eu privilegiado - seja ele o Eu superior oriental, seja o Deus ocidental, a metáfora da criação que quer transcender-se ou do próprio criador cônscio de todas essas possibilidades - está no aqui, no instante do verso, que se presentifica na dimensão do texto, ao mesmo tempo estando lá na origem de tudo. A percepção aproxima-se do conceito de Instante de Soren Kierkergaard, que o considerava “a inserção subitânea da eternidade no tempo”. De modo parecido Platão entendia o Instante como interstício entre o agora e a eternidade. Sem conotação religiosa o Instante também foi tomado como forma de absoluto por outros pensadores como Jaspers (ABBAGNANO, 2000). A Voz resume que a experiência da criação, no instante em que se dá, é uma forma de absoluto. 30 Maurice Blanchot (1984) define o que chamou de Narrativa Pura como um tocar um céu que descortinasse o vazio além das estrelas. Cecim escreve de modo similar: “Eu estou lá no fundo dos céus, que não existem”. O absoluto do eu do criador aparentemente sem um Deus (céus que não existem), mas sendo por isso o seu próprio deus, ou o deus nada por que não pode ser verbalizado. Cecim em entrevista comenta “no início era o verbo. O verbo está em nós. Não nós que estamos nele” (CARPINEJAR, 2002, p. 5). A consciência da dimensão mítica e/ou sagrada da palavra quando capturada em pleno ato da criação tece o verso A voz. A palavra é um mistério que está em nós, permanecendo um mistério, mas que quando evocada reproduz o momento de sua Criação misteriosa. Portanto, em A Voz, não há o apenas a menção ao mito da palavra divina, mas como esta se dá pelo prisma do Instante ou da simultaneidade. Disse um estudioso do budismo (TOKUDA, 1989) que Deus criou o mundo, mas que o criou está no passado, e que, na verdade, ele está criando agora, nesse momento: a criação está sempre se dando. E completa à maneira de Heráclito: tudo vai mudando sempre: isto é criar. Por isso, o verso A Voz sugere que a criação artística remete de forma vívida ou ritual ao momento da Criação que está sempre se dando. 6.5 A QUEDA: além do homem hiperbólico Morrer é mudar de corpo como os atores mudam de roupa. Plotino Deus não é o princípio, nem o fim, é sempre o meio. Clarice Lispector O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua queda que irá descobrir sua leveza. Vicente Franz Cecim. O mito da Queda de Adão do paraíso, que transforma o Homem em mortal, é o ponto de partida para a imaginação da Queda na obra de Cecim, que ganha sentido mais complexo que o castigo divino per se, posto que é tomada como forma de ascensão (adquirir asas). A figura de linguagem da Queda ceciniana é um oxímoro, figura poética que ultrapassa a antítese, unindo mais intimamente que esta última duas sentenças díspares, a fim 31 de revelar que a conciliação de contrários é possível, por vezes indispensável para exprimir a verdade. Este recurso permite ”intensificar, ainda mais do que a antítese, a junção paradoxal”, e o confronto na força expressiva desperta o efeito epigramático(CEIA, 2005). Esta imaginação específica da Queda, além de aludir ao mito bíblico, faz menção ao pensamento hermético clássico - o que está embaixo é como o que está em cima, uma vez que possui conotação, por assim dizer, de “ascensão invertida”, queda como meio de ascensão. Diferentemente, por exemplo, da idéia maniqueísta de “Homem Hiperbólico” de Charles Baudelaire (FRIEDRICH, 1991), que habita na tensão entre extremos, sagrado e profano, ascensão e queda (Deus e Satã). Baudelaire defendia que era necessário dar vazão ao aspecto das paixões terrenas, “satânicas”, esgotando-as para “dar lugar” ao sagrado. O homem hiperbólico precisaria esgotar um para atingir o outro. Cecim, por sua vez, seguindo o mesmo raciocínio, pelo lado avesso, sublinha o lado divino por meio da figura da Queda. Deixar-se cair é poder vivenciar a experiência da Queda adâmica mítica, quando da ocasião da simbólica punição, mas na mesma proporção elevar-se como um Titã Prometeu – que roubou o fogo sagrado para dá-lo aos homens. Se auto-imputar a punição é iniciar a redenção, e ousar assumir o lado humano como valor à parte, também sagrado. “Andara é esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando pelo homem agarrado em seu tronco, lançando sobre ele clarões e sombras para que finalmente veja: A terra lá no alto, o céu embaixo de si [...]” (CARPINEJAR, 2002, p. 7). A Queda de Andara é forma de absoluto negativo e entre-mundos simbólico. Imaginação do ponto ou lastro de intersecção dos antípodas. A Queda do castigo se converte em re-experimentar a Queda primordial, responsável pelo lampejo da consciência sagrada (entre “clarões e sombras”). Cair deliberadamente representa a entrega radical a vida ou a morte. Alquimia de polaridades não estanques, imaginação da imanência, encerrada dentro de transcendências inauditas, uma vez que o movimento da Queda é apenas o que é dado saber de um contexto maior, além de. A Queda primordial, portanto, torna-se fundamento alegórico da existência e parte do movimento vital. A metáfora da Queda ceciniana não está entre o preto e o branco, maniqueísta, mas na infinita gama de matizes do cinza, que se propagam e espraiam transparentes até os respectivos extremos, os quais, de acordo com a figura do oximoro se anulam mutuamente. Por tais características, pode ser definida como um “símbolo de inversão” que, segundo Durand (1997), é todo símbolo que representa o “abandono do regime da antítese”: “Essas imagens conservam, apesar da forte intenção de antífrase, um traço de sua origem terrificante ou, pelo contrário, anastomosam-se curiosamente às antíteses imaginadas pela ascese 32 diairética” (DURAND, 1997, p. 51). Os símbolos de inversão, de acordo com esta classificação, pertencem ao Regime Noturno da Imagem, categoria que compreende os símbolos de fusão, imaginações microcósmicas, antifrásicas, e de imanência, enquanto que o Regime Diurno compreende antíteses, dualismos, símbolos de transcendência, paradoxos. Durand se refere aos símbolos de inversão como pertencentes ao Regime Noturno da Imagem, porém com esta peculiaridade: se anastomosam curiosamente as antíteses imaginadas pela “ascese diairética”, isto é, aos símbolos de transcendência do Regime Diurno. Para Durand (1997), os símbolos de inversão são imagens representativas da “dialética do retorno”. A queda adâmica, representação do Homem finito, mas também da Queda iniciática, morte como iniciação filosófica, ou a incorporação do lado misterioso da vida. A Queda ceciniana traduz-se em abandono e domínio, catarse e revelação. A queda arquetípica como condição própria de humanidade e não apenas castigo e destituição de um valor maior. Para além do desamparo da queda mítica, um ato de revelação, iniciação para a vida: “A música. Seus outros cantos. Vendo a terra que subia longe para o céu, ele cantou para aquele que cai. Depois veio o Tempo, Flor das mais estranhas [...]”. A teoria de Durand defende que a imaginação humana representa simbolicamente a angústia humana diante da finitude e da certeza da morte. Desta forma, cria imagens que triunfam sobre ela, revelando esquemas primários fundamentais. Por exemplo, no simbolismo que adquire a “descida” de eufemização simbólica da Queda (DURAND, 1997), que por sua vez já é eufemização da morte: “Declarar ao mundo que ali ainda um anjo, ali onde desceste um dia, espera soluçando, negro e espiando a vida” (CECIM, 2001, p. 197). A imaginação da queda ceciniana exalta o valor do Homem que “triunfa sobre a morte”, se imortaliza, mesmo sendo uma semente caída, “nunca será essa coisa de homens semeados em campos de prantos e colhidos por ninguém” (CECIM, 2001, p. 197). 7 A ANTIESTRUTURA DO TEXTO. SERDESPANTO, O HERÓI NEOPLATÔNICO Moro na possibilidade. Casa mais bela que a prosa. Emily Dynckinson Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro, acorda. Carl Jung 33 Em Estética da Criação Verbal, Mikhail Bakhtin (1997) se ocupa do problema do herói romanesco. Pois é na perspectiva do estruturalista russo que focalizaremos o “herói” Serdespanto para esmiuçar a obra homônima de Cecim. Segundo Bakhtin (1997), de modo genérico, são pontos importantes para definir um herói: a descrição da compleição corporal, sua configuração espacial, a exteriorização de sentimentos e pensamentos por meio de seus atos. Em resumo, a sinergia do herói com o “exterior” na trama. Ainda observa que cada tipo geral de herói (iluminista, romântico, entre outros) deve estar em consonância com o propósito da obra para realizar a ambos plena e mutuamente. Para Bakhtin (1997) o herói é a “personificação” da obra, que em geral se norteia por questões estéticas, éticas ou religiosas (descarta a psicologia e a filosofia naturais nas motivações do herói). Pela ótica estruturalista, o herói também reflete certo contexto histórico, já que resume um conjunto de forças entre interior e exterior (elementos da consciência e aspectos sociais), e é esse conjunto de forças que lhe dá forma: Dentro de si mesmo o homem adota uma postura ativa no mundo; sua vida consciente é sempre um ato; atuo mediante o ato, a palavra, o pensamento, o sentimento; vivo, venho a ser através do ato. Contudo, não me expresso nem me determino de maneira imediata pelo ato; se o ato realiza certo significado do objeto e do sentido, não realiza a mim mesmo enquanto objeto determinado ou que se determina: apenas o objeto e o sentido podem ser contrapostos ao ato. A autoprojeção da pessoa atuante está presente do ato que evolui num contexto objetivo significante [...]. (BAKHTIN, 1997, p. 54) Os heróis na visão de Bakhtin (1997) são personagens delineadas, personalidades. Em sentido generalíssimo, são egos ou entidades. Mas Serdespanto, segundo propriamente nomeado, é um ser e não uma entidade, e por isso não se enquadra nos requisitos que definem um herói típico. O herói acabado possui limites que a sua exterioridade ou alteridade preenchem e esta condição é incipiente na personagem Serdespanto e no livro onde tudo é volátil. Por esta razão de exceção, mesmo de transgressão às formas estruturantes, é possível aproximar a personagem Serdespanto do conceito de Bakhtin de Herói Neoplatônico, classificação que alude a Plotino e a escola neoplatônica. O neoplatonismo foi o último esforço do pensamento clássico de superação do dualismo platônico e racionalismo grego, por meio do monismo estóico, integrando a filosofia à religião e unificando o racionalismo grego (forma) ao misticismo oriental (conteúdo). O mais destacado pensador do neoplatonismo é Plotino, para quem Deus era o Uno, não tido 34 como o conhecimento ou o ser, mas a fonte inefável e “inconsciente” de todo o ser e de todo conhecimento. O herói neoplatônico de Bakhtin é definido com os seguintes traços: a “consciência