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O HIBRIDISMO CULTURAL NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E SUA INFLUÊNCIA NA PRODUÇÃO DE OBJETOS COLECIONÁVEIS NA CONTEMPORANEIDADE Wagner Alexandre Silva Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, Brasil RESUMO O estudo a ser desenvolvido no presente trabalho teve por objetivo principal analisar a influência das histórias em quadrinhos na produção sígnica de objetos denominados como colecionáveis e que são inspirados em personagens diversos, oriundos especificamente dessas narrativas midiáticas contemporâneas. Com base nas ideias de “hibridismo cultural” de Néstor Garcia Canclini (2013) e Peter Burke (2003); de “estudos culturais” de Richard Johnson (1999) e Roberto Grandi (1995); de “colecionismo” trazidos por Walter Benjamin (2009), Maria Cristina CastilhoCosta (1995) e Jean Baudrillard (2008); de “memória coletiva” de Maurice Halbwachs (2006); de “comunicação” e “consumo” elaborados por Grant McCracken (2003), Mike Featherstone (1995) e Mary Douglas eIsherwoodBaron (2013); e de “cultura de massas” e “imaginários” apresentadas por Edgar Morin (2002), dentre outros conceitos e autores; o presente artigo buscou, por meio do entrecruzamento das conceituações acima citadas, compreender a quão importante tem sido a hibridação cultural incorporada nas histórias em quadrinhos, o quão relevantes têm se tornado essas culturas híbridas para a construção de imaginários e, igualmente, a importância de suas contribuições para a retomada da prática do colecionismo, uma vez que, as incessantes (re)leituras advindas dessas narrativas na contemporaneidade, têm propiciado a materialização desses imaginários, sob a forma de objetos colecionáveis. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação e Consumo; Colecionismo; Histórias em Quadrinhos. CONSIDERAÇÕES INICIAIS As histórias em quadrinhos1 já há muito tempo estão presentes no dia a dia de milhares de pessoas em todo o mundo. Elas ensinam e entretêm, a um só tempo, influenciando o imaginário, produzindo novos significados ou propiciando uma nova leitura daqueles já existentes. A cultura popular midiática/massiva (SOARES, 2014, p. 6) na contemporaneidade, a qual é também é conhecida como cultura pop contemporânea – e mais recentemente nomeada comumente como cultura geek (SILVA, 2015, p. 16) – pode ser vista como um 1 Em alguns momentos no presente trabalho, faremos uso da palavra “quadrinhos” como sinônimo de “histórias em quadrinhos”. misto de reiterações e reinterpretações, pois se alimenta de um sem fim de referências das mais variadas Culturas, com o intuito de enriquecer suas diversas narrativas e, por consequência, acabam contribuindo para a produção dos designados “objetos colecionáveis”, sobre as quais falaremos mais profundamente a posteriori. Segundo Lotman (1981), “a cultura cria um modelo inerente à duração da própria existência, à continuidade da própria memória”, concebendo “a si como existente apenas se se identifica com normas constantes da sua própria memória, a continuidade da memória é a continuidade da existência” (LOTMAN, 1981, p. 42), em termos simplificados, para esse autor, “cultura é memória” (SILVA, 2015, p. 40) e esta memória se vale das mais diversificados textos culturais (LOTMAN, 1981). Em nosso entendimento, esse empréstimo de elementos de diferentes textos culturais, sejam eles de maneira integral ou parcial, assemelha-se àquilo que foi designado por Canclini (2013) como Hibridismo Cultural, que segundo esse autor corresponde a “[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2013, p. XIX). Deste modo, se observamos mais atentamente, notaremos que a cultura pop contemporânea é um híbrido, uma vez que, está repleta de uma infinidade de referências, oriundas das mais diversas fontes, que compartilham de maneira democrática elementos e características que se tornaram parte daquilo que Maurice Halbwachs (2006) designou como memória coletiva (HALBWACHS, 2006). Ora, mas de onde vem essa memória a que todos têm acesso? Ela advém justamente das reminiscências históricas (interdiscurso) que se interconectam e interpenetram, continuamente, e que somam ou excluem, total ou parcialmente, de maneira temporária, mas periódica, elementos e características das mais variadas culturas, daí, tornando-se adequado trazer ao presente trabalho, o conceito de “Estudos Culturais”, para melhor aprofundarmos nosso entendimento sobre como a hibridação cultural nas histórias em quadrinhos influencia a produção de objetos colecionáveis na contemporaneidade, tomemomes por base a declaração de Richard Jhonson (1999), quanto aos Estudos Culturais, que elucida que estes […] dizem respeito às formas históricas da consciência ou da subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma redução, [que] os Estudos Culturais dizem respeito ao lado subjetivo das relações sociais. (JHONSON, 1999, p. 23). Entendemos, desta forma, que o ambiente social contribui de maneira decisiva e direta não somente para a formação cultural, mas também para a formação de imaginários, assim, se direcionarmos nossa análise às narrativas midiáticas contemporâneas e, mais estritamente, às histórias em quadrinhos, constatamos que os inúmeros personagens e mundos fictícios apresentados por essas narrativas, propiciaram a eclosão do que notamos ser muito próximos aquilo que Morin (2002), denominou como “olimpianos modernos” (MORIN, 2002, p. 105), assinalando que No encontro do ímpeto do imaginário para o real e do real para o imaginário, situam-se as vedetes da grande imprensa, os olimpianos modernos. Esses olimpianos não são apenas os astros de cinema, mas também os campeões, príncipes, reis, playboys, exploradores, artistas célebres, Picasso, Cocteau, Dali, Sagan (MORIN, 2002, p. 105). Para Edgar Morin (2002) esse olimpismo se originaria de um imaginário, ou seja, de papéis representados por atores e atrizes em filmes, ou em outras personalidades, de suas funções sacras (reis, políticos, etc.), ou, ainda, de seus feitos (campeões olímpicos, por exemplo), ou, até mesmo, por devido a sua sensualidade ou erotismo (MORIN, 2002, p. 105). Ao trazermos para a contemporaneidade esta conceituação, poderíamos, então, incluir os personagens das histórias em quadrinhos, uma vez que, tornam-se alvo de admiração, cujas “vidas” são acompanhadas periodicamente pelas páginas das revistinhas. Desta maneira, essas novas vedetes (MORIN, 2002, 105) – agora comumente conhecidas como celebridades – advindas dessa narrativa midiática, passaram a ser igualmente “veneradas e cultuadas” (O grifo é nosso) por milhares de pessoas ao redor do mundo. Edgar Morin (1997) nos apresenta a ideia de “projeções-identificações ou participações afetivas” (MORIN, 1997, p. 111), que na análise em desenvolvimento, concebemos as participações afetivas dos leitores como um dos componentens que contribuem para a gradação do aproximação com os universos fictícios dos quadrinhos. Desta forma, quanto maior o envolvimento, mais intensa será a experiência tida em relação à narrativa midiática, pois a “participação afetiva estende-se, assim, dos seres às coisas, reconstituindo fetichizações, as venerações, os cultos” (MORIN, 1997, p. 112). Esse autor, ainda, ao analisar o cinema nos traz o conceito de ego-involvement (1997, p. 127), para se referir a projeção-identificação de um espectador para com um personagem de filme, que pode ser estendido as histórias em quadrinhos, ao conceber que O ego-involvement é, assim, mais complexo do que parece. Joga não só com o herói à minha semelhança, mas também com o herói à minha dissemelhança: ele,simpático, aventureiro, vivo e alegre, eu macambúzio, prisioneio, funcionário. O filme excita assim tanto uma identificação com o semelhante como uma identificação com o estranho, sendo este segundo aspecto o que quebra nitidamente com as participações da vida real. [...] O cinema, como o sonho, como o imaginário, acorda e revela vergonhosas e secretas identificações... (MORIN, 1997, p. 127). Notamos que por também deter os quadrinhos em seu âmago elementos e características muito próximos as técnicas cinematográficas, igualmente existiria uma propensão ao ego-involvement, assim sendo, como sugere ALVES (2017) Foi [...] com as histórias de aventuras protagonizadas por super-heróis, que os quadrinhos se destacaram como instrumentos valioso da chamada indústria cultural. A popularização das histórias de aventura devem seu sucesso a seus protagonistas, atraindo um novo perfil de leitor, que via nesses personagens “uma espécie de reencarnação dos mitos gregos e romanos [...]. (ALVES, 2017, p. 38). Cabe, então, ressaltar que não somente a mitologia greco-romana se faz presente nas histórias em quadrinhos, mas também, em graus variados, dezenas de outras Culturas (chinesa, japonesa, nórdica, africana, árabe, indígena, maia, egípcia, etc.), servem de base para a construção de personagens e de universos ficcionais dessas narrativas midiáticas. Em outras palavras, essas culturas ao se combinarem, reconfiguram-se, dando formas e significados outros aos elementos delas oriundos, embora nem sempre seja facilmente identificável a exata procedência dos referenciais nela utilizados. Como podemos notar, este hibridismo cultural, além de ter enriquecido as histórias em quadrinhos, tem contribuído também para a incorporação de várias etnias aos universos ficcionais, gerando maior proximidade dos leitores com esses personagens e permitindo que os quadrinhos atinjam públicos diversos em todo o mundo. Assim, com o aumento da popularidade das histórias em quadrinhos, os personagens, pouco a pouco, foram ganhando tamanha notoriedade, que chegaram ao ponto de ser atualmente considerados como celebridades, igualando-se a artistas ou esportistas, capazes de mobilizar uma legião de fãs, que para demonstrar sua admiração e estabelecer vínculos de proximidade, passam a adquirir objetos que remetam a esses personagens (roupas, acessórios, brinquedos, dentre muitos outros), prática esta que por possuir características tão peculiares, permite-nos designá-la como prática colecionista ou, simplesmente, colecionismo, tema que retomaremos mais a frente. O HIBRIDISMO CULTURAL E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS Como dito, nas linhas anteriores, os quadrinhos fazem amplo uso das mais variadas fontes para construírem seus universos e personagens, alguns prontamente reconhecíveis, devido a manutenção de elementos de fácil apreensão, já outros não tão facilmente identificados. Ninjas, criaturas místicas, nomes, histórias, toda e qualquer coisa pode ser incorporada, ressignificada, retrabalhada, reaproveitada, para que a história contada se torne mais interessante e intrigante. Esta hibridização cultural, não é um algo recente nas histórias em quadrinhos, no entanto, sua influência foi se extendendo para além das fronteiras das páginas das revistinhas e se propagou a diversas outras narrativas midiáticas contemporâneas, que se inspiram nos quadrinhos para apresentar diferentes lógicas de produção e diversificadas estratégias midiáticas que se articulam ao consumo, não somente material, mas, mormente, simbólico, afetivo e midiático (NUNES, 2015). Como já elucidado, defendemos no presente estudo que os quadrinhos tomam emprestados elementos e características das mais diversificadas culturas, buscando enriquecer-se narrativamente, embora, como visto outrora, nem todos esses traços culturais são notados de modo espontâneo. Essa não identificação, pode ser dar por simples desconhecimento do leitor das referências utilizadas ou devido a mudanças tais, que se torna difícil determinar a fonte original dessas referências. Como exemplo, tomaremos dois personagens amplamente conhecidos e cultuados das histórias em quadrinhos, que pertencem ao chamado Universo Marvel Comics: o personagem Thor, membro da equipe de super-heróis conhecida como Os Vingadores e a personagem Tempestade, membro da equipe denominada como X-men. Na mitologia nórdica, Thor é o deus pagão dos trovões e das batalhas. É filho de Odin e pertence ao clã dos deuses Æsir, deuses que residem em Asgard; usando como arma e acessório o lendário martelo Mjolnir e o cinto Megingjord, que lhe confere força sobre- humana. Na mitologia nórdica, Thor está associado aos trovões, relâmpagos, tempestades, árvores de carvalho, força, proteção da humanidade e também a santificação, a cura e a fertilidade2. Nas páginas dos quadrinhos, Thor possui a mesma origem do deus pagão da mitologia nórdica, porém, embora ainda seja considerado como o deus do trovão, ele se junta ao um grupo de super-heróis humanos de Midgard – Como é chamada a Terra pelos deuses de Asgard, tanto na mitologia como nas histórias em quadrinhos – e passa a enfrentar os super-vilões desse universo fictício. Nas imagens abaixo, percebemos que embora a aparência do Thor da mitologia (Figura 1) e do Thor super-herói (Figura 2) sejam notadamente diferentes, muitas das características (simbólicas e físicas) da versão mitológica, estão incutidas no seu híbrido quadrinizado: deus do trovão, os cabelos loiros, o martelo Mjolnir, filho de Odin, etc; elementos estes que tornam fácil a identificação da cultura utilizada para a sua construção. 2 Tudo o que você precisa saber sobre a mitologia nórdica. Disponível em: < https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2017/08/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-mitologia- nordica.html>. Acesso em: 10 jun. 2018. Figura 1 – Batalha de Thor contra o Jötnar (1872) por Mårten Eskil3 Figura 2 – Thor vs Frost Giants (2010) por Reilly Brown4 Agora analisaremos a personagem Tempestade (Storm no original em Inglês) da equipe dos X-men, reside no mesmo universo ficcional de Thor. Ororo Munroe – “nome civil” da personagem Tempestade –, é membro de um grupo de pessoas com habilidades especiais e que são chamados de mutantes (O grifo é nosso). Os mutantes nas histórias da Marvel, são seres humanos evoluídos (Homo Superior) que desenvolveram poderes, devido ao chamado gene mutante, conhecido como gene-X, mas que são tratados como uma minoria social pelos humanos normais (Homo Sapiens). Tempestade, além de pertencer a uma minoria social (mutante) nesse universo fictício, é mulher e negra, de descendência africana direta, pois sua mãe (N-Dare5) era princesa de uma desconhecida tribo no Quênia. Some-se ainda o fato de Tempestade, como o próprio nome sugere, possuir a habilidade de controlar o clima, sendo capaz de fazer ou 3 GOOGLE ARTS & CULTURE. Disponível em: <https://artsandculture.google.com/asset/tor-s-fight-with- the-giants/3gGd_ynWqGjGfQ>. Acesso em 10 jun. 2018. 4 DEVIANTART. Disponível em: < https://reillybrown.deviantart.com/art/Thor-vs-Frost-Giants-colored- 192026773>. Acesso em 10 jun. 2018. 5 MARVEL DATABASE. Disponível em: <http://marvel.wikia.com/wiki/N%27Daré_(Earth-616)>. Acesso em: 10 jun. 2018. parar de chover, lançar raios, fazer nevar, em questão de segundos, mesmo em regiões do planeta Terra em que tais mudanças climáticas seriam praticamente impossíveis em tão curto espaço de tempo, sendo, então, por isto, considerada também no universo Marvel como sendo uma deusa (Grifo é nosso) para a tribo africana de sua mãe, cujos poderes nos quadrinhos revilizam-se ao de Thor, o deus nórdico. Este fato curiosode um humano possuir poderes que rivalizam-se ao de um deus, não é aleatório, pois ambos os personagens, descendem de figuras mitológicas: Thor, nórdica e Tempestade, africana. Na cultura africana, a deusa conhecida por Oyá – conhecida no Brasil com Iansã – é a Deusa da espada de fogo, Dona das paixões, Iansã é a Rainha dos raios, dos ciclones, furacões, tufões, vendavais. Orixá do fogo, guerreira e poderosa. Mãe dos eguns, guia dos espíritos desencarnados, Senhora dos cemitérios. Não é muito difícil depararmo-nos com a força da Natureza denominada Iansã (ou Oyá). Convivemos com ela, diariamente. Iansã é o vento, a brisa que alivia o calor. Iansã é também o calor, a quentura, o abafamento. É o tremular dos panos, das árvores, dos cabelos. É a lava vulcânica destruidora. Ela é o fogo, o incêndio, a devastação pelas chamas.6 Oyá/Iansã é a deusa-guerreira dos ventos, das mudanças bruscas e dos redemoinhos; e está associada ao elemento ar, sendo a divindade que controla os ventos, possuindo um temperamento agressivo. Sua descrição em muito se iguala a como a personagem Tempestade apresentada nas histórias em quadrinhos da Marvel Comics, uma mulher guerreira, cujas mudanças de humor, fazem com que o clima ao seu redor também se modifique rápida e bruscamente. Outra característica física peculiar da personagem dos quadrinhos, é que Tempestade tem longos cabelos brancos/prateados, como uma marca diferenciadora de sua divindade e também, o fato de possuir olhos azuis7, que se tornam totalmente brancos, 6 MARIA PADILHA DAS ALMAS. Disponível em: <http://mariapadilhadasalmas.no.comunidades.net/historia-de-iansa>. Acesso em: 10 jun. 2018. 7 Aqui existem indícios de que também a cultura popular afro-brasileira, tenha sido incorporada na construção dessa personagem, devido as histórias sobre a Escrava Anastacia, que é descrita como uma linda mulher negra de olhos azuis, embora sua existência não tenha sido comprovada. quando a mutante está utilizando seus poderes de controle climático. A personagem é costumeiramente apresentada como uma mulher de personalidade forte, tendo inclusive, líder dos X-men, durante um período histórico dos quadrinhos, demonstrando como a editora já se posicionava além de seu tempo, já na década de 1990, ao colocar uma mulher afro-descendente como líder de uma das maiores equipes de super- heróis das histórias em quadrinhos daquela época. Nas imagens que se seguem, percebemos a semelhança iconográfica entre a deusa africana Oyá/Iansã (Figura 3) e Tempestade (Figura 5), já numa das primeira aparições da personagem mutante nos quadrinhos, ocorrida na revistinha Giant-Size X-men #1, em maio de 1975 (Figura 4), e no diálogo que a acompanha (Figura 4) vemos Ororo – que ainda não havia adotado o nome de Tempestade –, e Charles Xavier (Professor X), que estava formando a equipe que viria a ser chamada de X-men, estabelecendo o primeiro contato nas histórias em quadrinhos. ORORO: – Quem é você? Que negócios tem você nas terras de Ororo? PROFESSOR X: – Eu me chamo Xavier e eu venho para lhe fazer uma oferta, que eu rogo que não seja recusada. ORORO: – Uma... OFERTA? Que teria você a oferecer a uma deusa?8 Figura 3 – Oyá por Caio Cacau9 Figura 4 – Giant-Size X-men #110 8 Diálogo da Figura 4 - Tradução nossa. No diálogo entre Ororo Munroe e o Professor X (Figura 4) podemos notar a intenção dos roteirista e ilustradores de apresentarem a personagem não como mais uma mera mutante do universo Marvel, mas uma mutante diferente dos demais personagens vistos até, então, uma personagem especial, uma deusa, uma deusa africana. E nas várias versões iconográficas que se apresentaram até hoje (Figura 5), a personagem sempre deteve as mesmas características de Oyá/Iansã, mantendo, desta forma, elementos culturais que nos permitiram no presente estudo (re)descobrir a fonte originária para sua concepção/construção, ou seja, a mitologia africana. Figura 5 – Mighty Thor Vol 1 2 X-Men Evolutions Variant11 Retomemos, então, ao que havíamos elucidado anteriormente, sobre o fato de Tempestade, ser considerada nas histórias em quadrinhos tão poderosa quanto Thor (Figura 6). Enquanto este último detém a alcunha de “deus do trovão”, também Tempestade, é conhecida como: deusa do tempo (clima), princesa dos céus e bruxa do tempo (clima), todas essas terminologias utilizadas para reforçar a grandiosidade de suas habilidades; o 9 THEIMGPIC. Disponível em: <http://theimgpic.pw/Storm-is-actually-OYA-OF-THE-ORISHA-Walking- the-ORISHA-path.html>. Acesso em: 10 jun. 2018. 10 GIANT SIZE X MEN VOL 1 #1. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KQLSjx2YFzQ>. Acesso em: 10 jun. 2018. 11 Mighty Thor Vol 1 2 X-Men Evolutions Variant. Disponível em: <http://marvel.wikia.com/wiki/File:Mighty_Thor_Vol_1_2_X-Men_Evolutions_Variant.jpg>. Acesso em: 10 jun. 2018. que nos permite reforçar a análise aqui apresentada de utilização que fizeram e fazem os quadrinhos de textos culturais distintos, na construção de suas histórias. Na imagem a seguir (Figura 6), temos uma das muitas ilustrações icônicas em que vemos a deusa Tempestade enfrentando o deus do trovão Thor. Não cabendo aqui entrar na seara de quem venceria ou perderia tal disputa, tal imagem nos serve como uma lembrança dos elementos e características dos textos culturais utilizados na construção desses dois personagens e reforço dos argumentos apresentados de que ambos são versões quadrinizadas da deusa africada Oyá/Iansã e do deus nórdico Thor. Figura 6 – Tempestade vs Thor12 DAS PÁGINAS DAS REVISTINHAS PARA O MUNDO DOS COLECIONÁVEIS Se o hibridismo cultural serviu para a construção de inúmeros personagens e mundos fictícios nas histórias em quadrinhos, então, notadamente verificamos que sua contribuição se estendeu para além dessas narrativas, atingindo também a toda produção 12 CARTOON WALLPAPER. Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/- XsoNC4gJ65Y/ToNZYK5rWXI/AAAAAAAAAtc/1fxwWtM8eWk/s1600/Thor-12.jpg>. Acesso em 14 jun. 2018. que nestas foram baseadas ou buscaram inspiração, dentre as quais, especificamente, a produção de objetos colecionáveis. Walter Benjamin (2009) destaca que o ato de “colecionar é uma forma de recordação prática e de todas as manifestações profanas da ‘proximidade’, a mais resumida” (BENJAMIN, 2009, p. 239). Entendendo-se este recordar prático como uma forma de rememorar as aventuras vividas pelos personagens nas histórias em quadrinhos, cabe, ainda, enfatizar que devido ao hibridismo, os textos culturais empregados para a construção dos universos ficcionais dos quadrinhos, também são rememorados, de modo que, elementos e características das culturas utilizadas sejam reconhecidas ou se não prontamente identificadas suas origens, ao menos sejam percebidas, por fazerem parte de uma imaginário coletivo. Nas imagens a seguir vemos as estátuas colecionáveis de Thor (Figura 6) e Tempestade (Figura 7), ambas trazendo elementos e caractarísticas que nos permitem retomar os textos culturais originários (nórdico e africano) utilizados para a construção dessas personagens nos quadrinhos. Figura 7 – Thor Polystone Statue by Bowen Designs13 Figura 8 – 1/4 Scale Statue Storm by XM Studios14 Ao analisarmos as imagens anteriores, notamos que a estátua de Thor (Figura 6), traz o deus nórdico em uma versão quadrinizada, girando o lendário martelo Mjolnir, 13 SIDESHOW. Disponível em: <https://www.sideshowtoy.com/collectibles/marvel-thor-bowen-designs-901473/>. Acesso em 11 jun. 2018. 14 XM Studios. Disponível em: <https://www.xm-studios.com/products/storm.aspx>. Acesso em: 11 jun. 2018. https://www.sideshowtoy.com/collectibles/?type=Polystone%20Statue https://www.sideshowtoy.com/collectibles/?manu=Bowen%20Designs https://www.sideshowtoy.com/collectibles/?manu=Bowen%20Designs enquanto que a estátua de Tempestade (Figura 7), contemplamos a deusa do tempo (clima) “cavalgando” um remoinho, ou seja, uma quadrinização hibridizada da deusa Oyá/Iansã, divindade africana conhecida por controlar os ventos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo teve por objetivo analisar a influência das histórias em quadrinhos na produção sígnica de objetos colecionáveis inspirados em personagens oriundos dessas narrativas midiáticas contemporâneas. Ao longo de nossa análise constatamos que a hibridização cultural, foi constituiu-se de condição indissociável para a formulação de personagens e universos ficcionais que hoje permeiam nosso imaginário, fazendo uso das mais diversas elementos e características culturais que propiciem uma melhor identificação dos leitores com a narrativa apresentada pelos quadrinhos. Por meio do entrecruzamento dos conceitos elucidados neste trabalho, foi possível compreender a importância da hibridação cultural incorporada nas histórias em quadrinhos e, igualmente, o quão relevante se tornaram essas culturas híbridas para a construção de imaginários, bem como, a importância de sua contribuição para a prática colecionista, uma vez que, as incessantes (re)leituras advindas dessas narrativas na contemporaneidade, propiciaram e propicia a materialização dos mais variados tipos de objetos colecionáveis. Cabe salientar que cada objeto adquirido, além de deter uma parcela de tempo fictício daquilo que foi vivido pelo do personagem nas histórias dentro dos quadrinhos, também possui em seu cerne, uma historicidade advinda dos textos culturais originários que lhe serviram de fonte de inspiração, historicidade essa que complementa um objeto anterior, mas que, do mesmo modo, necessita de um outro para completá-lo, um “jogo serial” (BAUDRILLARD, 2008, p. 98) de infinitas aquisições, em outras palavras, a prática colecionista, que segundo SILVA (2015) Não se trata de uma propensão ao nostálgico, mas sim, por meio dos objetos adquiridos, [uma] busca pela aproximação à sua adorada personalidade artística ou personagem [, pois, quanto] mais o fã possuir objetos ou informações que remetam ao personagem de sua adoração, mais intensa é a sensação de proximidade para com ela. Tratando de uma personalidade artística, ele a entende, sabe de seus medos e anseios, se alegra com a notícia do nascimento de seu filho ou se entristece e se sensibiliza a ela pela perda de um ente querido. Já quando é um personagem ou figura imaginária, ele a humaniza, buscando assim preencher todas as lacunas e dúvidas que possam existir para trazê-la ao mundo real. Afinal, ele é um fã e os fãs são os únicos capazes de entender completamente os seus ídolos. (SILVA, 2015, p. 31-32) Como visto, a análise iconográfica constituiu parte indissociável das argumentações apresentadas neste trabalho, visto que foi por intermédio das imagens que pudemos verificar o processo de hibridização operado nas histórias em quadrinhos e, assim, constatar o quão importante foi esse processo para a evocação de referências que se incorporaram a essa narrativa midiática. A produção sígnica atrelada aos quadrinhos, se deve a um alto grau de entrosamento, ou seja, um grande envolvimento dos leitores com as histórias em quadrinhos, propiciando a criação (ou recriação) de novos conteúdos e, por consequência, novos objetos, que ao permitirem maior aproximação aos personagens e mundos ficcionais, por estabelecerem elos mais fortes desses fãs com essas narrativas, tornam-se, então, colecionáveis. Por intermédio de textos culturais oriundos das culturas nórdica e africana, intentamos detectar pontos de intersecção entre alguns elementos e características dessas culturas e que se apresentam nas histórias em quadrinhos, de tal modo, que nutrem o imaginário dos leitores, ao mesmo passo que, ilustram como a hibridização pode assertivamente operar simbólica, afetiva e midiática na memória coletiva. Neste estudo entendemos a prática colecionista como uma extensão do consumo material, simbólico, afetivo e midiático dos quadrinhos e, por isto, buscamos por meio do entrecruzamento dos conceitos trazidos nas linhas acima, salientar a motivação que levou ao empreendimento do deste trabalho, deixando a ressalva de que não foram esgotadas todas as possibilidades de análise do presente tema e que ainda há muito por percorrer no tocante ao campo da Comunicação e Consumo. Por fim, mas não menos importante, percebemos que os objetos colecionáveis produzidos como uma extensão do processo de hibridização cultural sofrido pelos quadrinhos, permitem além da aproximação e fortalecimento de nossos vínculos símbolicos-afetivos com essas narrativas midiáticas contemporâneas, também a reconstrução de memórias, dada a interdiscurssividade existente entre os textos culturais e as histórias em quadrinhos. REFERÊNCIAS ALVES, Vanessa da Silva. 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