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WESLEI CHALEGHI


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A ARTE COMO REPRESENTAÇÃO: ALGUMAS CARACTERÍSTICAS NA LITERATURA E NO CINEMA
Weslei Chaleghi de Melo[footnoteRef:1] [1: Doutorando em Letras: Estudos Literários – Universidade Estadual de Londrina (UEL). weslei@alunos.utfpr.edu.br] 
RESUMO: Essa pesquisa tem como finalidade comentar como a arte pode ser representativa de um ideal coletivo, cada linguagem com suas especificidades, capazes de construírem simbolismos na sociedade. Como um espaço de representação, a literatura e o cinema podem, em um inconsciente coletivo, orientar estigmas, ou tentar desfazê-lo a partir de figuras e estereótipos que formam um todo, um corpo representativo da realidade. A pesquisa partiu de um interesse incessante de entender como a narrativa, seja ela cinematográfica, seja literária, constroem a percepção intersubjetiva do que está sendo representado. Para isso, nos debruçamos em autores de diferentes áreas como a filosofia da linguagem; literatura e a relação na construção da memória coletiva. A pesquisa baseou-se em materiais teóricos recomendados durante a disciplina de Literatura, Cinema e suas Materialidades, artigos, livros e trabalhos que possuem sua relevância dentro da discussão presente na pesquisa e no meio acadêmico. A pesquisa concluiu que a imagem construída a partir de muitos simbolismos impressos na cultura, é edificada também pelas essas duas modalidades de arte, a literatura e o cinema. Estes, assim como outros elementos da cultura, constroem um imaginário que pode mudar a percepção na qual a sociedade enxerga um fato e, até mesmo, para perpetuá-lo na memória. 
Palavras-Chave: Literatura, Cinema, Memória.
INTRODUÇÃO
	Para discutir a literatura e cinema como representação é necessário dizer que a configuração das ideias deste artigo, propositalmente, assemelha-se a um ensaio. Escolhemos essa organização, pois pretendemos, neste trabalho, dar ênfase ao cunho teórico em relação ao analítico[footnoteRef:2]. [2: Reconhecemos a necessidade de ambas às abordagens para o avanço cientifico, mas para atender melhor nosso objeto de pesquisa, optou-se pela utilização de diversos exemplos de obras cinematográficas e literárias distintas, para demostrar essa maleabilidade da subjetividade da arte.] 
	Sabemos que tanto os estudos teóricos quanto às análises de obras possuem “seus lugares ao Sol”, mas nosso objetivo é verificar, em um campo diegético, seus reflexos na realidade. Para isso, não teremos como norteador nenhuma obra literária ou fílmica específica sobre as quais voltaríamos nossos esforços em esmiuçá-las. O que propomos aqui se difere disso, traremos ao longo de nossa argumentação, exemplos de diferentes obras, pois o que buscamos observar é o fio de condução, um traço transversal, que a linguagem literária e cinematográfica sustenta, capaz de lidar com a intersubjetividade da realidade e presente em diversas narrativas de cunho testemunhal.
A literatura e o cinema possuem a potencialidade de passar informações suficientes para que se possa construir uma narrativa lógica por meio de imagens, quadros ou imagens mentais, apreendidas pelos sentidos. É necessário destacar que independente da linguagem, seja cinematográfica ou literária, possui diferentes intencionalidades ideológicas, estéticas, de crenças ou até moral. Dessa forma conceber a Arte como intencional é fundamental para compreendermos tais expressões.
A pesquisa baseou sua fundamentação teórica instruída pela professora Dra. Bárbara Cristina, durante a disciplina ofertada pelo programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Estadual de Londrina, textos que discutem sobre a semiótica do cinema, da literatura e como tais expressões se constroem no imaginário coletivo. Entender o cinema e a literatura sem compreender o impacto que possuem é abandonar a busca por um conhecimento complexo da potencialidade dessas formas.
O objetivo da presente pesquisa é visualizar como a literatura e o cinema pode reformular a perspectiva social quanto a etnias e culturas historicamente marginalizadas e como as narrativas cinematográficas e literárias que em uma visão ocidentalista, canônica servem para privilegiar apenas determinados grupos, pode também servir com fins extremamente opostos, o de legimitar socialmente a luta de etnias e minorias historicamente oprimidas como forma de resistência e memória de lutas e conquistas.
	Sendo assim, o esforço de fugir de uma literatura e um cinema colonialista e segregador, fora dos ditames ocidentais, hetenormativos e branco é um desafio no qual a indústria cinematográfica e a indústria editorial tenta, ao máximo, calar. A resistência se dá a partir do momento em que a insurgência a tais ditames ocorrem em ambas às artes, exceto obras que tenham em seu seio esse caráter de militância. 
2 O ENCONTRO ESTÉTICO: A LITERATURA, O CINEMA E SUAS ESPECÍFICIDADES
Diferente do que muitos pensam, de acordo com Silva (2010), o cinema possui uma “pré-história” que remonta a muito antes da revolução industrial, na China ainda agrária, nos séculos anteriores ao XIX, havia uma espécie de teatro que utilizava sombras para transmitir histórias. Havia, também, uso de outras artes como pinturas, jogo de iluminação, posição do público e sons para completar o modelo artístico. É possível, como afirma Silva (2010) que essa manifestação é um dos primeiros passos para o cinema como é concebido atualmente, mas sua essência está baseada na imagem que, com o passar do tempo, foi adquirindo movimento. Sendo, portanto, uma arte multissemiótica. 
	O uso de mecanismos para dar a impressão de movimento era realizada a partir de uma sequência de quadros, várias fotografias quase em um paralelismo por segundo, gerando uma impressão para quem assiste de que há uma movimento uniforme e quase que natural. O cinema como mecanismo e técnica, portanto, para Deleuze (1985), surge com a função de registrar o movimento de forma que pareça um fluxo continuo apreendido pelos sentidos.
	Dessa forma:
É estranho ao cinema qualquer outro sistema que porventura reproduza o movimento através de uma ordem de poses projetadas de modo a passarem umas através de outras, ou a "se transformarem". É o que fica claro quando se tenta definir o desenho animado: se ele pertence inteiramente ao cinema é porque aqui o desenho não constitui mais uma pose ou uma figura acabada, mas a descrição de uma figura que está sempre sendo feita ou desfeita, através do movimento de linhas e de pontos tomados em momentos quaisquer do seu trajeto (DELEUZE, p. 15, 1985).
	O desenho animado, como observa Deleuze (1985), segue o mesmo mecanismo do cinema que é o de apresentar vários quadros seguidos para dar uma impressão de continuidade. Entretanto, o desenho animado segue uma geometria cartesiana, um plano de duas dimensões (altura e largura) onde o movimento ocorre em apenas duas direções. O cinema, por sua vez, segue uma geometria euclidiana à medida que é fácil observar a profundidade, ainda que a película tenha teoricamente duas dimensões.
	Uma marca presente nos primórdio do cinema industrial é o chamado instante privilegiado, com poucos quadros passando na tela era importante que apenas os mais importantes para a compreensão do público fossem mostrados, um galopar de cavalo, por exemplo, mostrava uma sequência repetitiva de algumas patas do cavalo tocando no chão e algumas no ar.
 O instante privilegiado perde-se a partir do momento em que a técnica consegue mostrar uma quantidade significativa de quadro e começa a imperar a ideia do “instante qualquer” que, para Deleuze, nada mais é do que o conceito de que todos os instantes, se mostrados dentro de uma média que varia de 24 ou 30 quadros por segundo superam o entendimento do público em comparação ao “instante privilegiado”. 
	Dessa forma:
O instante qualquer é o instante equidistante de outro. Definimos assim o cinema como o sistema que reproduz o movimento reportando-o ao instante qualquer. Mas é aí que a dificuldade avulta. Qual o interesse de tal sistema? Do ponto de vista da ciência, muito superficial.Pois a revolução científica era de análise. E se era necessário reportar o movimento ao instante qualquer para poder analisá-lo, não se percebia o interesse de uma síntese ou de uma reconstituição fundada no mesmo princípio, a não ser um vago interesse de confirmação (DELEUZE, 1985, p.17).
	O ritmo que o cinema consegue imprimir na atuação, de acordo com Deleuze, faz com que elementos da dança e outros gêneros artísticos estejam presentes, esse evento pode ser chamado de “dança-ação”, assim como o cinema mudo, pode ser chamado de mímica-ação. Sendo assim, o que torna o cinema uma arte tão rica e complexa nada mais é do que a sua capacidade de abarcar outras artes e saber colocá-las em instantes.
	O cinema, dentro da perspectiva filosófica de Bergson, segundo Deleuze (1985), não deve ser encarado como uma “ilusão” na qual convence um público de uma realidade simulada como as sombras platônicas, pelo contrário, deve ser visto como uma segunda realidade na qual possui uma lógica própria e deve, por sua vez, ser aperfeiçoada.
	Sobre o enquadramento, a formação da imagem e o olhar da direção o autor acrescenta:
Partamos de definições muito simples, sob pena de corrigi-las mais tarde. Chamamos enquadramento a determinação de um sistema fechado, relativamente fechado, que compreende tudo o que está presente na imagem, cenários, personagens, acessórios. O quadro constitui, portanto, um conjunto que tem um grande número de partes, isto é, de elementos que entram, eles próprios, em subconjuntos. Podemos operar nele uma redução. Evidentemente, as próprias partes são também imagem (DELEUZE, 1985, p.20).
	O enquadramento, na linguagem cinematográfica, nada mais é do que uma maneira de passar informações de forma não verbal. Objetos que compõem a cena, por exemplo, podem possuir uma função narrativa. Isso mostra o quanto diferentes elementos podem colaborar para a construção de uma história, além de fazerem com que gestos, figurino e atuação tragam auxílios para a compreensão ou novas interpretações por parte do público.
Um bom exemplo de objetos e enquadramento cumprindo função narrativa está presente em Onde os Fracos Não tem Vez, quando Anton Chigurh, interpretada por Javier Bardem, joga com a vida do pequeno comerciante o quadro se fecha nos rostos dos personagens e o foco secundário da cena torna-se as cordas que fazem referência a enforcamento, na próxima cena, quando tudo fica mais tranquilo o quadro se abre e as cordas não são mais o foco. 
	Produções cinematográficas que abordam diferentes formas de resistência seja ela por gênero, etnia, classe e etc., faz com que os padrões estéticos sociais mudem. Uma indústria cultural, onde englobam literatura e cinema, que sempre privilegiou artistas, narrativas, conceitos e paradigmas brancos, ocidentais, cristãos e heteronormativo tendem a criar um imaginário popular voltado a ver como inferiores os grupos que fogem disso.
Representatividade não pode servir como uma simples palavra de ordem do momento é necessária que ela aconteça de forma orgânica dentro da cultura. O consumo cultural determina visões de mundo, preconceitos, discriminações e etc., A partir do momento em que grupos, até então marginalizados, aparecem com papeis desconexos da subalternidade passam a ser vistos com outro olhar pelas pessoas comuns. (DERRIDA, 2001)
	O cinema, a novela e a literatura brasileira, durante uma boa parte de sua história, separaram papeis sociais definidos e vinculados a estereótipos para cada grupo marginalizado, com um disfarce de “inclusão”. Bons exemplos é o do “homossexual cabeleireiro”, a da “criada negra” e, por outro lado, patrões ricos e brancos.
	Inverter tais papéis pode ser preponderante para quebrar tais estereótipos e incutir uma perspectiva social onde o preconceito dentro da arte se desfaça e construa novas perspectivas no mundo real. Isso, porém, não se trata da representatividade liberal, onde alguns “representantes de minorias[footnoteRef:3]” alcancem o sucesso e sejam “exemplos”, mas sim, pelo contrário, que todos, sem exceção, possam ter acesso, uma igualdade que não privilegie nenhum grupo étnico, social, religioso e cultural em detrimento a outro. [3: Que não são minorias, mas sim discriminados.] 
De todas as quebras de paradigmas e revoluções na história da arte, talvez o cinema e a Literatura tenham representado uma das mudanças mais significativas[footnoteRef:4]. Entretanto, apesar de linguagens autônomas de sentidos, se conversam de muitas formas, não apenas contando histórias, descrevendo cenários de um lado ou enquadrando de outro, mas sim sendo uma linguagem artística com possibilidades singulares. [4: Nota pessoal do autor.] 
Em 1900 foi realizada uma das primeiras adaptações de literatura para o cinema, as técnicas de cinema ainda podiam ser consideradas rudimentares, mas já conseguiam se apropriarem de novos elementos para contar uma mesma história. Cinderela, o famoso conto de fadas, foi o escolhido e tornou-se uma das maiores contribuições para a história do cinema (JOZEF, 2010).
Logo após houve outras adaptações de obras clássicas como Romeu e Julieta, A Cabana do Pai Tomás e muitos outros. Entretanto, a adaptação cinematográfica a partir de obras literárias começa ainda no século XIX, Cervantes, Balzac, Dostoievski e Tolstoi são adaptados para o cinema surgindo, assim, toda uma indústria que operava a partir de tal prática. Estima-se inclusive que de 20 até 50% de toda a produção cinematográfica da virada do século XIX para o XX tenha sido realizada a partir de adaptações (JOZEF, 2010).
   Dessa forma:
A maioria dos filmes estava baseada em obras literárias que haviam obtido êxito de público. Com suas películas, Meliès demonstrou que o cinema podia recontar histórias literárias de modo interessante. A adaptação cinematográfica de obras literárias começou no início do século XIX. Para provar isso, podemos referir alguns nomes de uma lista que seria muito extensa, visto que todos os grandes autores do romance clássico. (JOZEF, 2010, p.241)
A figura do cineasta e do romancista se confunde muitas vezes à medida que tenham algo para ser narrado, a diferença entre um trabalho e outro são os recursos utilizados, o difícil trabalho do romancista de criar mentalmente cenário, personagens, sequência narrativa e etc., se torna um desafio ainda mais complexo quando. Além de tudo isso. ainda é necessário executar uma cena com tais elementos. 
	O audiovisual brasileiro, de acordo com Carvalho (2018), passou a assumir uma postura voltada à diversidade a partir de incentivos fiscais e subsidiários no fim dos anos de 1990 e início dos anos 2000. O investimento público na arte e na cultura fez com que as obras voltadas para atender exclusivamente as demandas mercadológicas, principalmente no cinema, não fosse mais um padrão, é nesse momento que um cinema brasileiro que abarcasse diferentes etnias e um pluralismo artístico começou a se manifestar.
	Um grande exemplo é a obra teatral Auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Esse é um grande exemplo de representatividade da cultura nordestina que foi adaptada, tornando-se um filme de grande sucesso no cenário nacional, mostrando os dilemas do dia a dia e das crenças locais. 
	Não obstante, o filme traz nessa “pegada” de resistência, além da exaltação da cultura popular, a retratação da malandragem de João Grilo e Chicó, demostra a subversão de papeis sociais eurocêntricos por meio da caracterização de personagens: Um Jesus negro, um Demônio encourado representando um vaqueiro.
Imagem 1 – Cenas do filme o Auto da compadecida
Fonte:http://educacao.globo.com/literatura/assunto/resumos-de-livros/auto-da-compadecida.html. Acesso em 01 de ago. 2021.
Os dois protagonistas representados na imagem trazem a religiosidade como forma de alcançar a verossimilhança ao demostrar que é possível, após uma vida sofrida e pobre, alcançar a redenção. 
Com a literatura os caminhos seguidos foram um tanto diferentes, já havia, de fato, uma literatura sólida em produções que contemplava parcialmente a diversidadeantes dos anos de 1990 como O bom Crioulo, de Adolfo Caminha, lançado em 1895 que retrata a vida de Amaro, um negro, marinheiro, que vive um romance com uma pessoa do mesmo sexo, Aleixo. Entretanto, com incentivo público essas produções começam a sair da margem cultural e vão aos poucos fazendo parte da grande produção nacional. Obviamente que até a atualidade não se pode dizer que há uma produção em volume ideal, mas ainda sim maior do que no século passado.
Uma das características do cinema da retomada é a diversidade na estética, na linguagem e no modo de realização dos filmes. As produções acenam para a multiplicidade de narrativas e pluralidade temática, dedicadas amiúde a explorar os diferentes nichos do mercado cinematográfico nacional. Pragmáticas ou de estilo pop, as novas produções apresentavam uma proposta de sétima arte comprometida, sobretudo, com o espetáculo e as regras do mercado, sem preocupação de investir no experimentalismo nem contestar o establishment. As mazelas e contradições da sociedade brasileira, por exemplo, lhes servem apenas de ornamento, não são discutidas. (CARVALHO, 2018, p.2)
Glauber Rocha, para Carvalho (2018), pode ser considerado um dos mais importantes cineastas brasileiros, dentro de um contexto (anos de 1950 em diante) artístico cinematográfico chamado "estética da fome", nesse contexto de produção, anterior aos investimentos públicos na arte, os filmes possuem baixo orçamento e tem como temáticas causas sociais e políticas, além de discutir mazelas, desigualdades e trazer para o grande público, reflexões e críticas relevantes, tudo isso dentro de uma linguagem "proletária".
Na literatura esse movimento também pode ser visto facilmente, uma literatura de final do século passado que tinha suas condições de produção, sua abordagem e suas críticas sociais que estavam de acordo com o cinema da geração de Glauber Rocha. Um bom exemplo dessa literatura se encontra em Conceição Evaristo, com obras de qualidade e com produções que atualmente são reconhecidas, entretanto, nos anos de 1980 e 1990 não havia praticamente o menor reconhecimento.
Ao mesmo tempo, de acordo com Carvalho (2018), que a literatura e o cinema começam a assumir a diversidade, a inclusão e novas abordagens progressistas com incentivo público, surgem cineastas que ainda estão vinculados com os ditames do neoliberalismo e, por influência deste, esvaziam  a politização do discurso à medida que adotam narrativas e roteiros que tratam apenas de temas cotidianos como as relações familiares, a amizade, a vida na cidade grande dentre outros.
A falta de representatividade de elenco, diretores e escritores negros, de acordo com Carvalho (2018), não é exclusividade do cinema e da literatura. O audiovisual brasileiro como um todo possui esse déficit ainda na atualidade, mesmo que tal panorama esteja mudando aos poucos, ainda é evidente a hegemonia branca em propagandas, novelas e outros, tudo isso em uma sociedade que possui mais da metade da população preta ou parda.
A cota racial para o setor, nas últimas legislações, tem fixado, na maioria das vezes até 15% de vagas destinadas a esse grupo, entretanto fica evidente a ineficiência de tal medida, ainda que ajude não resolve o problema estrutural da ausência de diversidade étnica dentro do audiovisual brasileiro. Sendo assim, Carvalho (2018, p. 7) revela que:
[...] O filme veicula estatísticas que demonstram a discriminação racial, mas também faz menção aos esforços do negro para conseguir uma representação mais adequada, sem estereótipos, caricaturas ou folclorizações. A conclusão de Araújo – tanto no livro quanto no filme – é que a telenovela não retrata fielmente a composição racial do Brasil. De 98 novelas produzidas pela Rede Globo, apenas em 29 o número de atores negros contratados ultrapassou a marca de 10% do total do elenco; as imagens predominantes em todas elas carregam, como subtexto, o elogio dos traços brancos como o ideal de beleza para todos os brasileiros; em poucas novelas, os atores negros interpretam os papéis principais, de protagonistas ou antagonistas. De modo geral, ao ator afro-brasileiro estão reservados os personagens sem, ou quase sem, ação, os personagens passageiros, decorativos, que buscam compor o espaço da domesticidade, ou da realidade das ruas, em especial das favelas; são raras as famílias negras, assim como as cenas de preconceito e discriminação.
O cinema, assim como a literatura, passa por um processo contínuo de descolonização no qual há constantemente a tentativa de reafirmar os preceitos da semana da arte moderna de 1922, na qual preconizava a importância de uma identidade nacional, agora, muito mais do que antes, com foco voltado a uma produção artística e não apenas na identidade, mas também na representatividade - conceito fundamental para se construir expressão e visibilidade –.
A literatura brasileira, além dos desafios e caminhos já citados, enfrenta outros que vão desde esconder, de forma voluntária ou involuntária, a origem étnica de determinados autores até a tentativa velada de omitir autores negros em bienais, festivais e até mostras – cenário que está em desconstrução –. 
O cinema e a literatura, de acordo com Souza (2019), faz com que os sujeitos, nessa relação de apreciação e consumo, estabeleçam novos olhares e construções a partir das imagens que se configuram por meio de narrativas. Que na literatura a imagem é construída pelo leitor, no cinema ela vem pronta, isso não quer dizer que a síntese entre a interpretação e obra não existam.
Ambas as modalidades artísticas, de acordo com Souza (2019) e dentro de uma perspectiva multiétnica e multicultural, não devem estar restritos tão somente a promoção da diversidade ocupando espaços onde antes estavam destinados a uma hegemonia branca. Tais espaços precisam assumir uma postura política que dê um passo além, e assuma uma postura antirracista e participem da educação de uma sociedade excludente.
A literatura negra, de acordo com Evaristo (2010), está muito além da cor de pele ou as origens étnicas do escritor, ou até a do cineasta/elenco (caso o assunto seja o cinema), encarar o estigma social perante as etnias marginalizadas, lutar e assumir um posicionamento mediante as injustiças é que de fato consagra a literatura negra.
Dessa forma:
O que caracteriza uma literatura negra não é somente a cor da pele ou as origens étnicas do escritor, mas a maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro escritor. Não podemos deixar de considerar que a experiência negra numa sociedade definida, arrumada e orientada por valores brancos é pessoal e intransferível. E, se há um comprometimento entre o fazer literário do escritor e essa experiência pessoal, singular, única, se ele se faz enunciar enunciando essa vivência negra, marcando ideologicamente o seu espaço, a sua presença, a sua escolha por uma fala afirmativa, de um discurso outro – diferente e diferenciador do discurso institucionalizado sobre o negro – podemos ler em sua criação referências de uma literatura negra. (EVARISTO, 2010, p. 134).
Já dentro do cinema, como afirma Souza (2019), o cineasta Jeferson De, no décimo primeiro Festival de Curtas Metragens lança um conceito que causou polêmica e criou um debate ímpar da relação do negro com o cinema. Assim como na literatura negra, preconizada por Evaristo (2010), a ordem da vez era dar uma diretiva ao cinema negro, abandonando certas abordagens que só incentivavam o racismo e a exclusão, repensar esse cinema foi fundamental para construir uma nova identidade negra no cinema e no audiovisual como um todo.
 As sete orientações, de acordo com Carvalho, Domingues (2018, p.4), preconizava exigências:
[...] fundamentais para a produção de um cinema negro: (1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes; (5) personagens estereotipados negros(ou não) estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; (7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.
Muitos críticos podem ler tais "mandamentos" como autoritários ou até como uma "camisa de força" da arte à medida que coloca parâmetros para uma modalidade de cinema, entretanto é muito difícil negar que os filmes que consegue minimamente se atentar a tais diretivas fogem de criar um cinema que estimula o racismo e promove a discriminação étnica, objetivo que deve ser central em qualquer produção que se assuma como negra.
Diferentemente do que era padrão até o começo do século XXI a literatura negra ganha um novo espaço inusitado, o cinema também de certa forma e em menores proporções, um espaço que se consolida no meio acadêmico, onde produções literárias começam a fazer de inúmeras universidades públicas e privadas.
A crítica feita a uma literatura que se faz presente no âmbito acadêmico é que tal produção pode ficar restrita a leitores dentro desse mesmo espaço, o desafio de levar tal literatura, assim como toda a produção acadêmica para as pessoas comuns é algo a se considerar, levando em conta que a academia nem sempre dialoga com a sociedade e que tal expressão artística é urgente na realidade contemporânea se faz necessário  tanto uma literatura não acadêmica quanto uma literatura acadêmica que consiga alcançar a sociedade de forma mais ampla.
Dessa forma se faz necessário:
[...] a formação de um público leitor afro-descendente como fator de intencionalidade próprio a essa literatura e, portanto, ausente do projeto que nortearia a literatura brasileira em geral. Impõe-se destacar, todavia, que nenhum desses elementos isolados propicia o pertencimento à Literatura Afro-brasileira, mas sim a sua interação. Isoladamente, tanto o tema, como a linguagem e, mesmo, a autoria, o ponto de vista, e até o direcionamento recepcional são insuficientes. (SOUZA, 2010, p.3)
 	Não é possível definir a literatura negra apenas ressaltando produções e autores que versam sobre o sofrimento e a alguns estereótipos da "cultura negra", reduzir toda uma literatura a tão poucos aspectos é diminuir o valor de tal expressão, é importante lembrar que essa literatura carrega consigo toda uma estética que configuram toda uma maneira de pensar e criar narrativas que possuem muito em comum dentro da mesma modalidade. (AGAMBEN, 2008)
Tais afirmativas não induzem ao erro de dizer que a literatura negra não pode tratar de temas sensíveis e voltados para a cultura negra, entretanto deve-se trazer a luz que o que compõe essa literatura é mais rico e amplo do que se imagina a forma, o conteúdo e a estética, como já citado, fazem da expressão cultural lentes que possibilitam novos olhares externos para quem enxerga essas produções.
O tópico da autoria é dos mais controversos, pois não apenas implica a consideração de fatores propriamente biográficos e fenotípicos, com todas as dificuldades inerentes à definição do que é ser negro no Brasil, mas também em função da defesa de uma “literatura negra de autoria branca”, feita por alguns estudiosos, como Benedita Gouveia Damasceno.  .
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a presente pesquisa foi possível observar como a literatura e o cinema podem, dentro de uma perspectiva artística, mudar a compreensão e a percepção de um público quanto à sensibilidade estética, a visão de mundo e até reformular conceitos e preconceitos. Esse caráter epistemológico de ambas as formas artísticas é o que os tornam tão influentes na cultura globalizada na contemporaneidade. 
Dentro de uma perspectiva/concepção da arte como fenômeno de inclusão social e de negação das desigualdades o cinema e a literatura podem assumir uma função ímpar à medida que constroem no imaginário popular novas categorias dentro do inconsciente coletivo, que propiciam um olhar acolhedor entre o "nós" e o "eles". Narrativas cinematográficas e literárias que prezam pela diferença incutindo respeito pela pluralidade colhem sensibilidade social perante temas sensíveis. Além disso, desestruturam um eurocentrismo branco, hétero e criam uma nova configuração estética de resistência e multiculturalismo.
	Compor personagens que fogem de "caricaturas" faz com que haja uma resignificação dos papeis sociais atrelados a etnias, desconstruir uma narrativa imaginada e produzida há tanto tempo pelo áudio visual brasileiro. Não se trata apenas de colocar nas telas atores e diretores negros ou pertencentes de algum grupo tido erroneamente como minoria, é necessário que estes assumam todos os papeis sociais e não apenas aqueles sem prestigio social como o negro "bandido" ou a negra empregada doméstica.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 175 p.
CARVALHO, Noel dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. Dogma Feijoada: A invenção do Cinema Negro brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, dez. 2018, v. 33, n. 96, p. 1-18. 
CARVALHO, Noel. Dogma feijoada: a invenção do cinema negro brasileiro. RBCS: Revista Brasileira de Ciências Sociais, [s. l.], n. 33, p. 1-18, 2018.
DELEUZE, G. Cinema 1: A Imagem-Movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. p. 132- 142.  
JOZEF, Bella. Cinema e literatura: algumas reflexões. Contexto, Rio de Janeiro, v. 3, p. 236-253, 2010.
SELIGMANN-SILVA, M. Estética e política, memória e esquecimento: novos desafios na era do Mal de Arquivo. Remate de Males, Campinas, SP, v. 29, n. 2, p. 271–281, 2010. 
SOUZA, Paula. Literatura e cinema com o abí axé egbé: indicações para a educação das relações étnico-raciais. Ciências Sociais e Antropologia, [s. l.], p. 1-11, 2010.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2008.
Observações: 
Artigo interessante a partir de uma prática bastante ensaística das relações entre literatura e cinema com embasamento pertinente em Deleuze, Derrida e outros. O texto oferece reflexões importantes para o campo dos estudos comparativos entre cinema e literatura.
Quadro avaliativo
	1. Pertinência e relevância do artigo em consonância com a disciplina
	Valor
4.5
	Nota atribuída
4,5
	2. Linguagem e redação
	3.0
	3,0
	3. Análise (adequação à proposta do artigo; uso de material teórico-crítico; relevância e profundidade das reflexões analíticas)
	2,5
	2,5
	Total
	10,0
	10,0
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