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Humanização em 'Sorôco, sua mãe e sua filha'

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Análise de "Sorôco, sua mãe e sua filha", à luz do conceito de humanização.
No conto presente em "Primeiras Estórias" de João Guimarães Rosa, publicado em 1962, somos apresentados a Sorôco, um personagem peculiar de uma pequena comunidade sertaneja, cuja mãe e filha foram tristemente afetadas pela loucura. Em decorrência desse fato, um trem vindo do Rio é designado para levar essas que são a única família do personagem para fazer um tratamento em Barbacena. O enredo é permeado por temas como separação, perda, ausência e distância, mas também revela compaixão, empatia e solidariedade entre os personagens. 
A linguagem rosiana apresenta diversas peculiaridades. Uma delas é a sugestão sonora presente no nome do personagem Sorôco, que evoca palavras como "oco", "coro" e "só louco”. Além disso, o autor cria neologismos para transmitir com precisão o que deseja expressar. No conto, encontramos termos como "desacontecido" e "brutalhudo", onde o escritor adiciona o sufixo "udo" a um adjetivo, o que, no entanto, pela regra gramatical, é permitido apenas a substantivos. Essas escolhas linguísticas de Guimarães Rosa contribuem para transmitir com precisão as nuances e expressões desejadas em sua escrita. 
Ainda, o autor mescla uma linguagem extremamente rica com o linguajar regionalista do sertanejo. Ele não apenas possui uma habilidade engenhosa de contar histórias, mas também uma admirável capacidade de retratar a complexidade do ser humano diante do mundo, com suas virtudes e defeitos. Em "Sorôco, sua mãe e sua filha", busca retratar personagens que estão à margem da sociedade.
No conto, podemos identificar a presença de duas forças antagônicas: a loucura e a sanidade. O autor utiliza ao longo da narrativa diversos elementos contrastantes. Um exemplo é a descrição de Sorôco, que aparece dando o braço às mulheres, como se estivesse prestes a entrar em uma igreja para um casamento, mas a atmosfera se assemelha mais a um enterro. Além disso, as personagens também são representadas de maneira contrastante. A mulher mais jovem é descrita com roupas extravagantes e quase carnavalescas, enquanto a mais velha apresenta um aspecto mórbido, vestindo-se completamente de preto dos pés à cabeça, quase como se simbolizassem, respectivamente, vida e morte. 
A dicotomia presente no conto "Sorôco, sua mãe e sua filha" se manifesta em diversas dimensões, abrangendo não apenas a oposição entre o urbano e o rural, o normal e o anormal, a vida e a morte, mas também uma divisão temporal entre o presente e o passado. A narrativa se desenrola em dois períodos distintos, claramente demarcados pela chegada do trem que leva as mulheres, simbolizando uma divisão entre o passado, quando Sorôco desfrutava da companhia das mulheres, e o presente, no qual ele se encontra privado de sua presença. Diante desse cenário, o protagonista é confrontado com a dor da perda e a incerteza em relação ao seu futuro.
Outro aspecto fundamental da estória reside na sua condução por um narrador que é, ao mesmo tempo, onisciente e personagem. O narrador não se limita à mera observação dos acontecimentos, ele também é parte do povo da comunidade, como evidenciado pelo uso da expressão "a gente". Ele acompanha os demais habitantes do local enquanto testemunham o ocorrido de fora, transmitindo a sensação de que esse acontecimento não é particularmente relevante para eles e que o homenzarrão não é exatamente uma figura querida. 
No entanto, o narrador também está presente quando todos se unem ao protagonista em um gesto de solidariedade repentino, revelando um novo afeto por ele. Essa alternância entre a distância e a proximidade do narrador com o personagem faz com que o leitor, que já está imerso na história, se sinta envolvido com o coletivo representado pelo "a gente" e desenvolva também certa empatia por Sorôco, passando a gostar dele.
Em suma, o conto "Sorôco, sua mãe e sua filha" apresenta uma narrativa em que uma tragédia individual se transforma em um drama coletivo dentro de uma comunidade do interior. A solidariedade se destaca como o tema central da narrativa e é por meio da cantiga de desatino entoada previamente pelas mulheres e agora adotada por toda a comunidade sertaneja que Sorôco consegue encontrar o caminho de volta para sua verdadeira casa. A interpretação sobre se o personagem sucumbiu à loucura ou se está impulsionado pela saudade de sua família fica em aberto para o leitor, mas o que importa é que todos se unem a ele em canto e se reintegram coletivamente. 
É a habilidade magistral de Guimarães Rosa em abraçar com facilidade tanto a linguagem sertaneja quanto a mais culta, aliada à sua capacidade de explorar temas universais, como a dor da perda e a transitoriedade da vida, que conferem à obra um aspecto profundamente humanizador.
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