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1 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL - UNIJUÍ VINÍCIUS DILL SOARES A LITERATURA SOB UMA PERSPECTIVA MÍTICA E SIMBÓLICA: A ANÁLISE DE VIDAS SECAS Ijuí, 2012 2 VINÍCIUS DILL SOARES A LITERATURA SOB UMA PERSPECTIVA MÍTICA E SIMBÓLICA: A ANÁLISE DE VIDAS SECAS Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Letras – habilitação Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de licenciado em Letras. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Ferreira do Amaral Ijuí, 2012 3 VINÍCIUS DILL SOARES A LITERATURA SOB UMA PERSPECTIVA MÍTICA E SIMBÓLICA: A ANÁLISE DE VIDAS SECAS Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Letras – habilitação Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de licenciado em Letras. Prof. Dr. Ricardo Ferreira do Amaral (Orientador) Profa. Me. Fernanda Trein (Banca examinadora) Aprovado em 17 de dezembro de 2012 4 AGRADECIMENTOS Agradeço, primordialmente, à Ruth Dill Soares, minha doce e linda mãe, por ter me dado não somente a vida, mas o caráter, a honradez e a coragem de viver. É somente a ela que devo tudo e dedico este trabalho. Ao Ser Superior, que me ilumina desde antes de eu ser gente. Aos meus familiares, especialmente à minha irmã maravilhosa, Adriane Dill Soares, por sempre ter apostado e acreditado em mim. Ao Samuel Soares Oliveira, meu adorável sobrinho, que, por causa de sua existência, faz com que eu queira ser seu motivo de orgulho. Ao meu querido professor orientador, Dr. Ricardo Ferreira do Amaral, o homem a quem me espelho e tenho muito orgulho de ter sido aluno durante toda a graduação. Aos atuais e ex-professores do curso de Letras, que me ensinaram, através de seus exemplos, que a carreira docente é surpreendente e encantadora. Aos meus amados colegas de curso, com destaques à Fernanda Royers, Fabiane Facco e Lia Machado; sem todos eles, esses quase cinco anos de graduação não teriam sido tão mágicos e inesquecíveis. À Fernanda Eggers, minha grande colega, amiga, companheira, parceira, irmã. Sua amizade, sem dúvidas, irá perpassar os limites das salas de aula da universidade e dos ônibus de nosso transporte. Aos meus incríveis colegas de trabalho, em especial às amigas Tamar Santos, Mileni Denardin Portella e Gislaine Windmöller, pela força, pelas dicas, pela convivência, pelas palavras sábias e encorajadoras. Aos meus amigos, especialmente ao Augusto Link Riffel, pelo incentivo diário e pelo carinho sempre tão fraterno, e por me mostrar, cotidianamente, o quanto a vida é linda e colorida. À “família Centro”, o grupo de amigos que se formou nas viagens diárias de Panambi a Ijuí, por ter divertido e iluminado os meus caminhos. A todos, que, de uma forma ou de outra, contribuíram para minha formação e meu êxito, aos que sempre apostaram em mim e “compraram” junto comigo este sonho, o meu sincero e emocionado MUITO OBRIGADO! 5 Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam. – O mundo é grande. Graciliano Ramos 6 RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso discute a origem, importância e função dos motivos literários, símbolos e mitos inseridos na literatura, e o faz por meio de aportes teóricos. São apresentados e explicados estudos de grandes intelectuais especializados nas citadas áreas, como Mircea Eliade, Joseph Campbell, Vladimir Propp e Juan-Eduardo Cirlot. Sequencialmente, aborda pontos relevantes sobre a história da literatura, teorias de romance e ficção, e se detém na análise da narrativa ficcional Vidas secas, de Graciliano Ramos, o objeto de estudo do trabalho. Após o enfoque sobre aspectos narrativos e contextuais da obra, analisa nela os motivos literários, símbolos e mitos, através do uso de citações diretas do livro, e de interpretações baseadas nos discursos teóricos já anteriormente examinados. Palavras-chave: Literatura, motivos literários, mitos, símbolos, Vidas secas. 7 ABSTRACT This course conclusion work discusses the origin, importance and function of literary motifs, symbols and myths embedded in the literature, and it does through theoretical contributions. Studies are presented and explained in great intellectuals specialized in the areas cited as Micea Eliade, Joseph Campbell, Vladimir Propp and Juan-Eduardo Cirlot. Sequentially, discusses relevant points about the history of literature, theories and romance and fiction, and not dwell on the analysis of fictional narrative Vidas secas, in Graciliano Ramos, the subject matter of the work. After the focus on narrative and contextual aspects of the work, it examines the literary motifs, symbols and myths, through the use of direct quotes from the book, and interpretations based on theoretical discourses previously examined. Keywords: Literature, literary motifs, myths, symbols, Vidas secas. 8 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10 2. DISCUSSÕES TEÓRICAS ............................................................................................... 13 2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A LITERATURA ................................................ 13 2.2 O MOTIVEMA .................................................................................................................. 14 2.3 O MOTIVO ........................................................................................................................ 15 2.4 O SÍMBOLO ...................................................................................................................... 17 2.5 O MITO .............................................................................................................................. 18 2.5.1 O MONOMITO – A JORNADA DO HERÓI ................................................................ 21 2.6 TEORIAS DE ROMANCE E FICÇÃO ............................................................................. 21 2.7 TEORIA DA ESTRUTURA NARRATIVA ...................................................................... 22 2.7.1 O ENREDO ..................................................................................................................... 23 2.7.2 OS PERSONAGENS ...................................................................................................... 24 2.7.3 O TEMPO ........................................................................................................................ 24 2.7.4 O ESPAÇO ...................................................................................................................... 25 2.7.5 O AMBIENTE ................................................................................................................. 25 2.7.6 O NARRADOR ............................................................................................................... 26 2.7.7 O TEMA, O ASSUNTO E A MENSAGEM .................................................................. 26 3. ANÁLISES DE VIDAS SECAS ........................................................................................ 27 3.1 A ESTRUTURA NARRATIVA DE VIDAS SECAS .......................................................27 3.1.1 O ENREDO ..................................................................................................................... 27 3.1.2 OS PERSONAGENS ...................................................................................................... 30 3.1.2.1 FABIANO .................................................................................................................... 30 3.1.2.2 SINHA VITÓRIA......................................................................................................... 31 3.1.2.3 BALEIA ....................................................................................................................... 31 3.1.2.4 O MENINO MAIS VELHO ......................................................................................... 31 3.1.2.5 O MENINO MAIS NOVO ........................................................................................... 32 3.1.2.6 SEU TOMÁS DA BOLANDEIRA .............................................................................. 32 3.1.3 O TEMPO ........................................................................................................................ 33 3.1.4 O ESPAÇO E O AMBIENTE ......................................................................................... 33 3.1.5 O NARRADOR ............................................................................................................... 33 3.1.6 O TEMA, O ASSUNTO E A MENSAGEM .................................................................. 34 9 3.2 OS MOTIVOS LITERÁRIOS ........................................................................................... 34 3.2.1 A PAISAGEM SECA ...................................................................................................... 35 3.2.2 O INVERNO ................................................................................................................... 35 3.2.3 OS URUBUS ................................................................................................................... 37 3.2.4 O PENSAMENTO .......................................................................................................... 38 3.2.5 O SILÊNCIO ................................................................................................................... 38 3.2.6 OS CALCANHARES RACHADOS .............................................................................. 38 3.2.7 OS PREÁS ....................................................................................................................... 39 3.2.8 A RAPOSA ..................................................................................................................... 40 3.2.9 A LINGUAGEM ............................................................................................................. 40 3.2.10 A ANTROPORMOFIZAÇÃO ...................................................................................... 42 3.2.11 A ZOOMORFIZAÇÃO ................................................................................................. 42 3.2.12 AS ONOMATOPEIAS ................................................................................................. 44 3.3 OS MITOS LITERÁRIOS ................................................................................................. 44 3.3.1 FABIANO ....................................................................................................................... 45 3.3.1.1 O CENTAURO ............................................................................................................ 45 3.3.1.2 O HERÓI ...................................................................................................................... 46 3.3.2 SINHA VITÓRIA ........................................................................................................... 46 3.3.2.1 A SEREIA .................................................................................................................... 47 3.3.2.2 A ENTIDADE FEMININA.......................................................................................... 47 3.3.3 O TEMPO CÍCLICO ....................................................................................................... 48 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 49 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 51 10 1. INTRODUÇÃO A linguagem é uma característica constante da consciência humana. Mikhail Bakhtin (2006) diz que a palavra assume papel de material da consciência, porque é a partir dela que o homem ordena sua concepção de mundo e constrói seu conteúdo mental. Para ele, o sujeito não se apropria da linguagem como um sistema pronto e acabado, mas, sim, mergulha na corrente contínua de comunição verbal, constituída por múltiplos atores sociais. E Bakhtin (2006) afirma também que a enunciação, que se define como o discurso de um sujeito, é de natureza social, ou seja, ela não existe fora de um contexto social: a realidade da linguagem está na sua interação. E sob esta perspectiva dialógica que o homem primitivo teve necessidade de se comunicar, para, entre outros motivos, poder perpetuar sua espécie, transmitir suas vivências e buscar explicação a fenômenos de seu entorno. É possivelmente a partir daí que o mito nasce, já que tudo aquilo que o homem não compreendia, e o fascinava, ganha um nome e uma explicação. Segundo Georges Gusdorf apud Monteiro (2005), saber o nome de algo significa ter apreendido a sua essência, para poder, assim, atuar sobre ele. Essa busca para compreender uma outra dimensão – a do imaginário, dos sonhos e da fantasia –, a fim de explicar a própria condição humana, é o que sempre motivou o homem. Regina Monteiro (2005) disserta sobre essa experiência mítica: Os mitos retratam as diferentes situações da vida, as relações entre as pessoas, entre o indivíduo e a sociedade e a sociedade e a natureza. Analisando um mito, é possível entender a realidade social de um povo (sua economia, sistema político, costumes e crenças), toda a experiência adquirida pelos homens em sua caminhada histórica está contida nos mitos em narrativas metafóricas. (MONTEIRO, 2005, p. 54) Os mitos, para os povos primitivos, – enquanto função de ligação de grupos sociais – significava ajuda para vencer tudo o que lhes parecia hostil, como exemplos, os fenômenos da natureza e ameaças de animais. Os mitos e ritos colaboravam para que o homem participasse sem culpa de atos necessários à manutenção da vida. Monteiro (2005) explica: Como forma de não se perturbar em matar um animal, o homem primitivo desenvolveu ritos como o de pacificação e agradecimento ao animal sacrificado, que é invocado a cooperar no jogo da vida (sobrevivência humana). Utilizando-se de rituais como cumprimento de um mito, os povos primitivos exerciam suas práticas comunitárias, entre elas o rito da iniciação sexual e as representações da vida após a morte. As experiências ritualísticas tinham uma sequência de ações que chega até nós em forma de mitos, ou seja, de narrativas. (MONTEIRO, 2005, p. 55-56) 11 Joseph Campbell, psicólogo norte-americano especializado em mitos, também reconhece a importância deles para a sociedade e para a cultura como um todo. Ele diz: Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. (CAMPBELL, 2000, p. 6) A experiência mítica é matriz para as primeiras manifestações literárias. Segundo Vladimir Propp apud Monteiro(2005), a origem da narração está ligada ao que era dito durante rituais de iniciação. “Os mais velhos (iniciadores) contavam aos jovens (iniciantes) o que lhes aconteceria durante o ritual, narrando sobre o ancestral, o fundador da raça e dos costumes da tribo.” (p. 56) Isso demonstra o caráter fundamental que as narrativas, no caso, o conto, assumem para a sobrevivência de um povo. Elas aproximam indivíduos, transmitem valores, reforçam laços familiares e promovem a resolução de conflitos. Monteiro (2005) relata os quatro principais papéis sociais que o conto assume: a) estruturar o real, a partir das experiências vividas no dia-a-dia da comunidade; b) exercer uma função catártica, ao representar as tensões sociais, permitindo expulsar a violência latente; c) utilizar o código da vida social quotidiana, representando os laços familiares e comunitários, o destino individual, a prosperidade local, entre outros elementos e d) reforçar, assim, a coesão do grupo, da comunidade, da sociedade. (MONTEIRO, 2005, p. 56). Dada a importância da literatura como manutenção da vida, convém compreender que ela, assim como todas as manifestações artísticas e culturais, aperfeiçoa-se e desenvolve-se com o passar dos séculos. Contudo, a função dos mitos e dos símbolos permanece viva e latente em todas as culturas. Este trabalho pretende mostrar os processos e fenômenos míticos, simbólicos e motivacionais inseridos na literatura, baseando-se em bibliografias teóricas sobre esta temática, e, na segunda parte do trabalho, a análise destes aspectos é realizada na obra Vidas secas, de Graciliano Ramos. A escolha de Vidas secas se deu em virtude de toda a sua grandiosidade literária. Como um grande clássico e representante do Modernismo brasileiro, a obra já foi estudada por teóricos de inúmeras maneiras desde a sua publicação, na década de 1930. Convém citar a análise dos aspectos linguísticos por parte dos personagens e a fragmentação da estrutura narrativa, já que se trata de capítulos em forma de contos isolados, que em um conjunto formam o romance, como veremos explicitamente na sequência do trabalho. Porém, constata- se que a análise de Vidas secas sob o viés mítico, simbólico e motivacional ainda é raro, e esta 12 é uma área altamente interessante para estudo exploratório, e essa conclusão de baseia nos seguintes pontos: A presença dos motivos literários e das figuras míticas é tão importante quanto a ação e a trama em si. Também o caráter acrônico do foco narrativo contribui para o clima mítico que toma conta dessa obra, do seu começo ao fim. A ausência de uma linguagem coesa e coerente fornece extrema importância aos símbolos, já que a comunicação é rasa e restrita. A incorporação da figura de herói mitológico por parte de Fabiano, o protagonista da narrativa, confere a ele certa aura animalesca, e isso se dá através do processo de zoomorfização ao qual ele se submete. Por fim, e não menos importante, pouco se sabe sobre os personagens que nada mais são do que figuras não mais relevantes que os motivos literários que os circundam. E é esse ambiente de mistério, a que Affonso Romano de Sant’anna (1984) chama de dramaticidade fria, que fascina e envolve. Por tudo isso é que se torna importante a leitura e a análise de Vidas secas sob estes vieses. 13 2. DISCUSSÕES TEÓRICAS 2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A LITERATURA Sabe-se que Literatura é definida como uma arte verbal. Proença Filho (1981) explica esse conceito, ao afirmar que se trata de uma modalidade de linguagem que tem a língua como suporte. “As palavras tornam-se multissignificativas e adquirem um valor específico no momento em que se integram na mesma e passam a fazer parte dos elementos que, interligados e interdependentes, constituem um todo ficcional.” (p. 21). Sendo uma forma de arte, Maria Luíza Abaurre, Marcela Pontara e Tatiana Fadel (2005) explicam que o que diferencia essa forma artística de outras é que a Literatura permite, pela interação com seus textos, tomar contato com um vasto conjunto de experiências que foram acumuladas pelo homem ao longo de sua trajetória, sem que seja preciso vivê-las de fato. Etimologicamente, a palavra Literatura vem do latim litera.ae, que significa “letra do alfabeto, caráter da escrita” Mais tarde, literatura.ae passou-se a designar “ciência relativa às letras ou à arte de escrever”. Foi Aristóteles, na Grécia antiga, que separou a literatura em três gêneros: o lírico, o épico e o dramático, segundo Abaurre, Pontara e Fadel (2005). O gênero lírico, para Salvatore D’onofrio (1990), é a poesia, um estado de alma, uma união entre a subjetividade e o objetivo. Já o épico, para o mesmo teórico, é marcado pelo “distanciamento entre o poeta e o mundo representado, onde a vida é vista com transparência luminosa.” (p. 12). E o gênero dramático é o fruto de espíritos na sua pela maturidade intelectual, “é a explosão de um mundo em conflito, afetando este conflito um homem, uma classe, um povo ou a humanidade inteira.” (p. 12). No Brasil, a literatura já inicia seus primeiros passos a partir da colonização. Alfredo Bosi (1994) aponta a importância das manifestações culturais brasileiras como definidoras da identidade nacional. Ele diz que o Brasil só deixa de ser colônia quando passa a ser sujeito de sua própria história. E esse processo, obviamente, demorou alguns séculos para acontecer, através da miscigenação cultural do povo nativo – os índios –, do branco – os europeus –, e do negro – os escravos oriundos da África. 14 Os primeiros escritos brasileiros são documentos que relatam a descoberta e a visão dos descobridores acerca do Novo Mundo. Não são classificados como textos literários, mas Bosi (1994) evidencia a importância desses registros: No entanto, a pré-história das nossas letras interessa como reflexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram os primeiros observadores do país. É graças a essas tomadas diretas da paisagem, do índio e dos grupos sociais nascentes que captamos as condições primitivas de uma cultura que só mais tarde poderia contar com o fenômeno da palavra-arte. (BOSI, 1994, p. 14). Alguns teóricos acreditam que o nascimento da identidade nacional se deu com José de Alencar, no século XIX, ao criar personagens icônicos como Iracema, na obra homônima, e o índio Peri, em O guarani. Outros já afirmam que esse processo aconteceu de fato a partir da Semana da Arte Moderna, em 1922, através do Macunaíma de Mario de Andrade e da poesia moderna de Manuel Bandeira, além de outras manifestações artísticas. O certo é que, de lá para cá, o brasileiro já foi retratado por inúmeros ângulos e sob várias perspectivas, e que o país possui uma densa e importante literatura, que não deixa a desejar a nenhuma outra nação. Para Salvatore D’onofrio (1990), a literatura é uma forma de conhecimento da realidade que se serve da ficção e tem como meio de expressão a linguagem artisticamente elaborada. (p. 11). Caso ela não existisse, imagina Mario Vargas Llosa (2006), o mundo seria animal, porque teria como traço principal o conformismo e a submissão generalizada do ser humano ao estabelecido. O homem se guiaria somente por instintos primários e não haveria espaço para o espírito. Provavelmente prevaleceriam grunhidos e gesticulações em vez de palavras. “Haveria loucos, vítimas de paranoias e delírios de perseguição, e pessoas com apetites descomunais e excessos desaforados” (p. 390). Repleta de figuras e de elementos literários constituintes e importantíssimos, a literatura necessita de uma análise teórica a respeito de seus aspectos não tão conhecidos, mas que fazem diferença na experiência da leitura literária. É o caso do motivema, do motivo, do símbolo e do mito, elementos que passam a ser estudados na sequência desse trabalho. 2.2 O MOTIVEMA Lubomir Dolezel, umteórico da literatura nascido na Tchecolosváquia, transpôs para a análise do texto literário a terminologia de motivema sugerida por Alan Dundes, famoso folclorista americano, no campo da análise do texto narrativo folclórico, conforme explicam 15 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988). Segundo eles, “motivemas são as entidades variantes da história, regidas por uma sintaxe pouco flexível, marcada por um determinismo sequencial lógico e tipológico.” (p. 179). Esta proposta apresentou um modelo de análise do tipo estratificacional, compreendido em três níveis. O primeiro, chamado de nível dos motivemas, é formado por proposições de caráter mais abstrato e amplo. Por proposição, entende Reis e Lopes (1988), é a unidade narrativa mínima. (p. 183). O segundo, denominado nível dos motivos, é constituído por uma proposição que denota uma ação de um personagem. Reis e Lopes (1988) dizem que se trata já de “uma concretização figurativa, de uma especificação do ato em ação e do actante em personagem.” (p. 179). Uma sequência de motivos é denominada pelos autores de intriga. Já o terceiro nível, chamado de textura dos motivos, é composto por proposições que verbalizam – ou explicam – os motivos da intriga. Para ilustrar os três níveis, Reis e Lopes (1988) tomam as seguintes proposições: “O herói triunfa sobre o adversário” está no nível dos motivemas, já que tem sentido genérico e distante; “Ivan mata o dragão” corresponde ao nível dos motivos, pois relata uma ação realizada por um personagem; “Com a sua espada e num gesto corajoso, Ivan cortou as sete cabeças do dragão” é o nível da textura dos motivos, já que explana de forma mais completa sobre o motivo. (p. 179). 2.3 O MOTIVO Reis e Lopes (1988) explicam que o uso do termo motivo na literatura tem sua origem na música. Inicialmente, ele denominava uma unidade mínima musical que se repetia no decorrer da partitura, e que vários motivos articulados representavam o tema de uma partitura. (p. 179). Contudo, já na literatura, o motivo perde sua propriedade de conceito unívoco e assume papéis de diferentes níveis de análise. E são essas visões distintas que são apresentadas a seguir. A partir de uma interpretação temática, motivos são vistos como “esquemas expressivos, frequentemente assimilados a um repertório de metáforas”, (p. 180) que giram em torno de um tema determinado. Para Domingos Paschoal Cegalla (2008), metáfora é um desvio da significação de uma palavra. Ela nasce “de uma comparação mental ou característica comum entre dois seres ou fatos.” (p. 614). Ainda sob perspectiva temática, Reis e Lopes (1988) trazem à luz da discussão que o conceito de motivo tem – e mantém – afinidades com o conceito retórico de topos. “O topos é 16 um motivo codificado pela tradição cultural, uma estrutura figurativa dotada de forte coesão interna que reaparece constantemente na literatura.” (p. 180). Já no âmbito da narratologia, motivo é utilizado em vários aspectos. Para os formalistas russos, ele é a base de um critério de autonomia semântica: “o motivo é então a menor parcela temática do texto, suscetível de migrar de narrativa em narrativa, guardando sempre uma configuração reconhecível.” (p. 180). Os autores se referem a Tomachevski, que diz que os motivos se classificam entre estáticos e dinâmicos. Os primeiros traduzem uma situação, um estado, e permitem “a descrição das personagens e do espaço físico ou social que as envolve.” (p. 180). Já os motivos dinâmicos demonstram a modificação de uma situação e correspondem sempre a uma ação dos personagens. Sequencialmente, há a distinção estabelecida por Tomachevski para motivos presos ou associados e motivos livres, assim definidos: Os primeiros são os elementos nucleares que asseguram a integridade da fábula; os segundos podem ser eliminados sem que se altere a sucessão cronológica e causal dos acontecimentos narrados: correspondem a expansões subsidiárias e marginais que, no entanto, desempenham um papel dominante a nível de intriga, dado que contribuem para a construção artística da obra. (REIS e LOPES, 1988, p. 180). Na área da etnoliteratura, que, segundo Maria Margarida de Andrade, (2010) é um campo pertencente a um conjunto de ciências que estudam o homem e suas relações com o universo antropocultural, o motivo é visto como designador de uma unidade figurativa suscetível de aparecer em narrativas que circulam em inúmeras áreas geoculturais. Mas é com Vladimir Propp, um estruturalista russo do século XX, que o conceito de motivo é reformulado. Ele define função como um elemento invariante dentro do conto – ou narrativa – e, dessa forma, motivo passa a significar as múltiplas concretizações figurativas das funções. Nesta proposta, “os motivos são excluídos do domínio da análise estrutural, embora se reconheça a sua importância do ponto de vista estético.” (p. 181). Através dos motivos é possível ter uma leitura do tipo sociocultural da narrativa, pois, conforme explicam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988), “através deles se filtram os elementos antropológicos, temáticos e ideológicos que imediatamente refletem um contexto histórico específico.” (p. 181). Por fim, é importante destacar que, para estudar motivos, é indispensável notar os fatores de intertextualidade nas obras: “Inscritos virtualmente numa espécie de ‘memória’ transtextual, os motivos revelam claramente o caráter dialógico de qualquer produção discursiva.” (p. 181). 17 Um motivo literário, segundo Evaldo Pauli (1997), é uma ação causadora que move os acontecimentos de um enredo. Segundo o teórico, a ação só acontece à medida que a causa produz efeitos, que se retransmitem em cadeia. Seria, em outras palavras, a parte motora de um enredo, e não um indicador direto do assunto. Para fins de análise, neste trabalho consideraremos motivo como uma unidade literária que se repete ao longo da narrativa, uma visão ampla e conjunta de todas as perspectivas aqui apresentadas. 2.4 O SÍMBOLO O símbolo, por definição do Minidicionário Houaiss de Língua Portuguesa, é “o que, por analogia ou convenção, representa, sugere ou substitui outra coisa.” (p. 689). Mas no contexto literário, o símbolo assume diferentes conceitos, que cabem em uma análise mais específica. Juan-Eduardo Cirlot (1984), em seu Dicionário de Símbolos, discute diferentes concepções empregadas por estudiosos para símbolo. Ele diz que o filósofo Coomaraswamy define o simbolismo como “a arte de pensar em imagens.” (p. 25). Já para Diel, símbolo é uma “condensação expressiva e precisa que corresponde por sua essência ao mundo exterior (intensivo e qualitativo) por contraposição ao exterior (extensivo e quantitativo).” (p. 25). E ele esmiúça: “No símbolo, o particular representa o geral, não como um sonho nem como uma sombra, mas sim, como viva e momentânea revelação do inescrutável.” (p. 25-26). Outro teórico apresentado por Cirlot (1984) é Saunier, que diz que os símbolos são “a expressão sintética de uma ciência maravilhosa, da qual os homens perderam a lembrança, [mas que] ensinam tudo o que foi e será, sob uma forma imutável.” (p. 26). Outros estudos afirmam que “o mundo é um objeto simbólico”, (Salustio) e que o “simbolismo é a ciência das relações que unem a Deus a criação, o mundo material e o mundo das partes do universo – correspondências e analogias”, (Landrit), (p. 26). Cirlot (1984) diz também que o simbólico, na verdade, é limitado, e nem tudo pode ser ou haver uma função simbólica. Isso quer dizer que ele se contrapõe ao existencial e que suas “leis” “só têm valor no âmbito peculiar que lhe concerne.” (p. 8). Ele cita Jung para falar sobre a significação simbólica ao intelecto moderno. Para ele, coisas similares, do tipo das mais inesperadas significações dos símbolos, não são mais que 18 meros absurdos: “Tais conexões de pensamentosexistem e tiveram mesmo um papel importante durante muitos séculos.” (p. 8). Na busca por uma classificação dos símbolos, Erich Fromm os definiu em três gêneros, conforme explica Cirlot. (1984). O primeiro tipo é o convencional, e “se constitui pela simples aceitação de uma conexão constante, desprovida de fundamento ótico ou natural.” (p. 26). O segundo, chamado de acidental, “provém de condições estritamente transitórias, deve-se a associações por contato casual.” (p. 26). E o terceiro, denominado universal, é o que ganha atenção e estudo, pois se define “pela existência da relação intrínseca entre o símbolo e o que representa.” (p. 26). A linguagem simbólica possui uma essência, que é o de poder expor de forma simultânea os diferentes aspectos que a ideia expressa. Cirlot (1984) fala mais sobre isso: Esta linguagem de imagens e de emoções, baseada numa condensação expressiva e precisa, que fala das verdades transcendentes exteriores ao homem (ordem cósmica) e interiores (pensamento, ordem, moral, evolução anímica, destino da alma), apresenta uma condição, segundo Schneider, que extrema seu dinamismo e confere- lhe indubitável caráter dramático. (CIRLOT, 1984, p. 26-27). A explicação a isso, para Cirlot (1984), é que o lugar onde estão os símbolos, chamado de inconsciente, “ignora as distinções de contraposição. Ou, também, que a ‘função simbólica’ aparece justamente quando há uma tensão de contrários que a consciência não pode resolver com seus meios usuais.” (p. 27). Neste trabalho, símbolo será analisado como o objeto metafórico do motivo e do mito literário, e que possui um significado implícito dentro do texto literário. 2.5 O MITO A terminologia “mito” está amplamente associada a uma série de episódios fantásticos, ligados a crenças e a símbolos religiosos. O Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009) assim define mito: Relato fantástico protagonizado por seres de caráter divino e heroico que encarnam as forças da natureza ou os aspectos gerais da condição humana; lenda, fábula; [...] crença ou tradição popular que surge em torno de algo ou alguém; uma noção falsa ou não comprovada. (HOUAISS, VILLAR e FRANCO, 2009, p. 508). Ao analisar etimologicamente o vocábulo mito, constata-se que ele tem origem da expressão grega mythó, que, por sua vez, significa discurso, mensagem, palavra, invenção, 19 lenda, relato imaginário. Deste termo se deriva o vocábulo mitologia, que, também segundo Antonio Houaiss, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco (2009), significa “o conjunto de mitos de um determinado povo.” (p. 508). Ora, mas não basta apenas a definição etimológica da palavra para compreendê-la de fato. O mito atravessou períodos históricos, cercou povos e civilizações antigas e mantém-se vivo, ainda hoje, nas culturas da sociedade e nas páginas da literatura. Para recorrer à origem do uso dessa expressão, Adriana Monfardini (2005) apresenta o que Jean-Pierre Vernant, um historiador e antropólogo francês, aborda em relação ao mito na sociedade em que se insere. Segundo ele, nos primórdios, não havia distinção entre Mythos e Logos – a lógica. A diferenciação entre esses dois pensamentos, o mítico e o lógico, só ocorreu entre os séculos VII e IV a.C., influenciado, sobretudo, pelo surgimento da escrita. Foi através da literatura que a palavra escrita passou a ter um valor racional, assemelhando-se, assim, à lógica, e as histórias orais, ao mito. Melhor explica Monfardini (2005): A palavra falada e a palavra escrita se opõem também pelos seus efeitos sobre os ouvintes/leitores. Enquanto a mensagem escrita exige uma postura mais séria e crítica do leitor, a mensagem falada supõe uma relação de prazer: o narrador (que fala) busca encantar o ouvinte, ao passo que o orador (que escreve) busca convencer o leitor da verdade por ele veiculada. Estabelece-se, assim, a distinção entre mythos e logos, sendo o primeiro localizado na ordem do fascinante, do fabuloso, do maravilhoso, e o segundo, na ordem do verdadeiro e do inteligível. (MONFARDINI, 2005, p. 51). Mircea Eliade, intelectual romeno naturalizado norte-americano, um dos mitólogos mais importantes do século XX, teve dificuldades para definir mito em seu grandioso Mito e Realidade. Ele duvida ser possível encontrar uma única definição capaz de cobrir todos os tipos e funções do mito, já que se trata de “uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.” (1972, p. 9). Porém, na busca de uma definição mais ampla, Eliade (1972) afirma que o mito conta uma história sagrada, um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o hipotético valor temporal chamado de no princípio. E também narra uma realidade que passou a existir: a forma como algo foi produzido e começou a ser. O autor confere aos entes sobrenaturais a responsabilidade por essa criação, que nada mais são do que os personagens míticos. E ele assim sintetiza: Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do "sobrenatural") no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das 20 intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELIADE, 1972, p. 9). Não obstante, o real entendimento do que seja essa realidade mítica preocupa o teórico, que diz que o mito, por ser considerado uma história sagrada, é, concomitantemente, denominado de história verdadeira, porque sempre se refere a “realidades”. Porém, isso depende, e muito, da visão cultural de cada povo e indivíduo, já que quem está inserido na cultura mítica não questiona a veracidade dessas histórias. Exemplificativamente, ele cita que o mito cosmogônico é “verdadeiro”, pois o mundo de fato existe, e que, da mesma forma, o mito da morte é real, já que o homem é um ser mortal. Vernant também aponta a oposição existente entre mito e história. No primeiro, há a referência a um passado longínquo e difícil de ser apreendido, o que vem ao encontro do que diz Eliade com a ideia do hipotético no princípio. Já a história abrange o passado mais recente, “que pode ser testemunhado e que tem uma existência real no tempo humano.” (MONFARDINI, 2005, p. 2). Joseph Campbell apud Monteiro (2005) diz que os temas míticos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano. “No mito, o conteúdo simbólico revela sua plenitude. A certeza do símbolo é comprovada pela constante repetição em diversos mitos.” (p. 57). O psicólogo suíço Carl Gustav Jung também tem contribuições importantes para a teoria mítica. É de Jung (2000) o conceito de arquétipo, ao dizer que se trata de comportamentos psíquicos instintivos que fazem parte do inconsciente coletivo. (p. 54). Monteiro (2005) afirma que a referência aos heróis mitológicos leva aos arquétipos. E explica mais: No cerne de todos os complexos comuns aos homens (complexo paterno, materno, sexual, de poder, de dinheiro) encontra-se um Arquétipo. Enquanto as ações instintivas dos animais são observáveis somente a partir de fora, o arquétipo revela- se através da introspecção. Ele não pode ser visto; sua existência é revelada pelo observador. Observáveis são, apenas, seus efeitos, ou seja, o fato de seres de todas as épocas e de todos os povos produzirem, com estruturas semelhantes, gestos rituais míticos (arquetípicos) representações imagéticas verbais e pensamentos que atuam carregados de emoção e fascínio. (MONTEIRO, 2005, p. 57). O inconsciente coletivo, para Jung (2000) é constituído por um conjunto de arquétipos. Para ele, símbolos míticos têm um efeito gerador de vida, pois passam de geração a geração, de forma inconsciente. E isso, inevitavelmente, perpassa para as páginas da literatura. Parafins de análise, mito, aqui, será considerado como uma unidade literária significativa dentro da narrativa, e que possui características simbólicas universais. 21 2.5.1 O MONOMITO – A JORNADA DO HERÓI Northrop Frye (1957) afirma que a forma fundamental de processo mítico é o movimento cíclico, a alternância do êxito e declínio, esforço e repouso, vida e morte. São essas contradições polarizadas que, na visão do teórico, garantem o sucesso do processo. Essa noção cíclica do mito é incorporada por Joseph Campbell (2000) ao explicar a sua teoria para o monomito. Segundo ele, a criação do termo é de James Joyce – escritor irlandês do século XX –, e também é chamado de aventura do herói. (p. 30). O monomito campbeniano, elencado ao âmbito da narratologia, diz que o herói possui uma trajetória circular e universal, e que esse modelo se repete ao longo de toda história mitológica e se abarca também nas produções artísticas contemporâneas. Esta jornada, narra Campbell (2000), inicia-se com a partida do herói, que é quando, em sua trajetória, surge um erro, aparentemente apenas ocasional, e ele adentra em uma “relação com forças que não são totalmente compreendidas.” (p. 31). Depois, o herói parte em busca da aventura por caminhos desconhecidos, recebe auxílio sobrenatural (p. 39), passa por inúmeras provas (p. 57), encontra-se com uma entidade feminina (p. 62), depara-se com a figura da mulher que lhe é tentadora (p. 68) e entra em sintonia com uma figura masculina, simbolizada pelo pai (p. 71). Na sequência, ele chega ao ápice do conflito a que está envolvido (p. 82), tem sua grande conquista e inicia o retorno ao seu lugar (p. 114), para, enfim, poder retornar e gozar de sua liberdade (p. 132) e, posteriormente, encontrar um novo erro e dar seguimento ao processo cíclico. 2.6 TEORIAS DE ROMANCE E FICÇÃO Para dar embasamento à posterior análise, convém levantar alguns conceitos sobre o gênero ao qual pertence a obra sequencialmente analisada, no caso, o romance moderno ficcional. A respeito das origens do romance, Cândida Villares Gancho (2003) explica que o gênero narrativo advém do gênero épico, acrescentando-lhe elementos mais modernos. O romance, segundo a autora, é uma das narrativas ficcionais em prosa mais difundidas na atualidade e pode ser classificado como narrativa longa. Este texto ficcional envolve um 22 número considerável de personagens e de conflitos, além de conter o tempo e o espaço bem dilatados. Mikhail Bakhtin (2006) diz que o romance se caracteriza, sobretudo, por apropriar-se de outras formas literárias. A partir de sua visão diacrônica da língua, o teórico afirma que o romance foi se reestruturando paralelamente à literatura: Bem ao contrário, o romance no seu conjunto reestruturou-se como um todo único, orgânico, submetido a suas próprias leis específicas. Portanto, reestruturam-se também todos os outros elementos do romance; sua composição, seu estilo. Mas esta reestruturação do romance completou-se também em estreita ligação com as demais transformações no conjunto da literatura. (BAKHTIN, 2006, p. 39-40.). A literatura moderna se dedica, segundo Campbell (2000), em larga escala, “à observação corajosa e atenta das imagens enjoativamente fragmentadas que abundam diante de nós, ao nosso redor e em nosso interior.” (p. 16). Essa noção de fragmentação define bem o papel que a literatura assume na tentativa de representação do real, já que a vida e, mais especificadamente, o pensamento humano, é quebrado e não segue uma sequência lógica. Sobre ficção, Mario Vargas Llosa (2006) afirma que ela surgiu por causa do desejo humano de viver uma realidade diferente da sua. Ele diz que no embrião de todo romance ferve um inconformismo, pulsa um desejo insatisfeito. Mesmo que as histórias dos romances sejam irreais, não significa que as exaltações, comoções e as identificações com as experiências narradas ali não representem a introspecção humana. Os romances não são escritos para retratar a vida, mas sim, para transformá-la, adicionando-lhe algo diferente. Para Llosa, a ficção se aprofunda na medida em que expressa uma necessidade geral. Nela, o fato real pode ser descrito de diversas maneiras. Cabe ao autor escolher uma – ou umas – dessas possibilidades para retratar. Através da ficção, ainda segundo o romancista e teórico, podemos vivenciar situações tangentes à vida real. Ela nasce do desejo humano de ser diferente. A ficção também levanta múltiplas possibilidades em relação à fé, pois quebra a visão unitária e absoluta da religião. 2.7 TEORIA DA ESTRUTURA NARRATIVA Como narrativa longa que é, a obra analisada Vidas secas possui uma estrutura narrativa, e, por isso, é necessário aprofundar-se nas teorias para a realização da análise. Toda narrativa se estrutura em cinco elementos e, sem eles, ela não existe. É o que diz Cândida Villares Gancho (2003) em seu didático e importante Como analisar narrativas. 23 Estes cinco elementos são, não concomitantemente por ordem de importância, enredo, personagens, tempo, espaço e narrador. Contudo, há que se ressaltar que existem outros elementos também presentes em narrativas passíveis de análise. São eles: ambiente, tema, assunto e mensagem. Nas palavras da autora, “sem os fatos não há história, e quem vive os fatos são os personagens, num determinado tempo e lugar.” (p. 9). 2.7.1 O ENREDO O enredo é o conjunto dos fatos de uma história. Ele possui duas características distintas: estrutura e verossimilhança. Sobre esta natureza ficcional, Gancho (2003) explica que se trata da “lógica interna do enredo, que o torna verdadeiro para o leitor.” (p. 10). Isto não quer dizer que os fatos narrados necessitam ser verdadeiros, mas, sim, que devam ser verossímeis, ou seja, “o leitor deve acreditar no que lê.” (p. 10). Para perceber a verossimilhança na narrativa, é necessário analisar a relação causal do enredo, pois cada fato possui uma causa e gera uma consequência. Já quanto à estrutura do enredo, ela possui um elemento principal, que é o conflito. Assim define Gancho (2003): “Conflito é qualquer componente da história (personagens, fatos, ambiente, ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor.” (p. 11). E é este elemento que determina as partes do enredo, que são, respectivamente: exposição, complicação, clímax e desfecho. A exposição, sempre segundo Gancho (2003), é geralmente o começo da narrativa, onde se apresentam os fatos iniciais, bem como os personagens e também o tempo e o espaço. Trata-se do elemento que situa o leitor. Já a complicação, também chamada de desenvolvimento, é o elemento do enredo em que são desenvolvidos os conflitos, ou apenas um, variando, obviamente, em cada história. O clímax se trata do momento mais importante da história; é quando ela chega à sua parte de maior tensão, em que o conflito se estabelece em seu ponto máximo. Dentro do enredo é a parte mais importante, pois, conforme Gancho, “é o ponto de referência para as outras partes do enredo, que existem em função dele.” (p. 11). E o desfecho, explica Gancho, (2003) igualmente chamado de desenlace ou conclusão, “é a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer configurando-se num final feliz ou não.” (p. 11). 24 A autora pondera ainda sobre a existência de enredos psicológicos, “no qual os fatos nem sempre são evidentes, porque não equivalem a ações concretas do personagem.” (p 12- 13). Este tipo de enredo também possui uma estrutura, já que contém um conflito, partes estruturantes e verossimilhança. 2.7.2 OS PERSONAGENS Personagens, para Gancho (2003), são os seres fictícios que fazem a ação. Ele é um ser “que pertence à história e que, portanto, só existe como tal se participa efetivamente do enredo, isto é, se age ou fala.”(p. 14). Isto quer dizer que um personagem pode ser um ser humano, um animal, ou qualquer coisa que tenha fala e que seja julgada pelo narrador ou por outros personagens. A autora adota diferentes classificações a personagens, conforme segue. Referente ao papel desempenhado na história, os personagens podem ser protagonistas, antagonistas ou secundários. Os protagonistas, por sua vez, dividem-se em herói e anti-herói; os antagonistas são sempre os que se opõem aos protagonistas e os secundários são os personagens menos importantes na história. Quanto às suas características, os personagens são classificados, sempre segundo Gancho (2003), em planos e redondos. Porém, aqui, cabe uma análise mais profunda para haver uma definição coerente das distinções de cada papel. Os personagens planos possuem um pequeno número de atributos e não são complexos. Eles se subdividem em tipo, que é o personagem marcado por suas “características típicas, invariáveis, quer sejam elas morais, sociais, econômicas ou de qualquer outra ordem.” (p. 16); e em caricatura, que é o personagem com características fixas e ridículas. Já os personagens redondos são complexos, possuem características internas dinâmicas e que também são classificadas em vários eixos. São eles: características físicas, psicológicas, sociais, ideológicas e morais. Um personagem redondo é aquele mutável, introspectivo e que não se tem uma totalidade de certeza sobre seu caráter. É o que mais se assemelha com o ser humano real. 2.7.3 O TEMPO 25 Gancho (2003) afirma que os fatos do enredo estão ligados ao tempo em vários níveis. E são estes aspectos que passam a ser apresentados a seguir. A época em que se passa a história é o que dá o pano de fundo ao enredo; ela “nem sempre coincide com o tempo real em que [a história] foi publicada ou escrita.” (p. 20). A duração da história é o período em que ela leva para transcorrer; é um nível bastante variável e que pode ser percebível através dos índices de tempo inseridos na narrativa. Já o tempo cronológico é o “nome que se dá ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo.” (p. 21). Ele é ligado ao enredo linear e é mensurável em medidas de classificações do tempo. Por fim, tempo psicológico é aquele que ocorre em uma ordem apontada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou personagens e tem ligação com o enredo não-linear da história. 2.7.4 O ESPAÇO O espaço é o lugar físico onde se passa a ação da narrativa e ele tem como funções, conforme Gancho (2003), “situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo transformações provocadas pelos personagens.” (p. 23). Para caracterizá-lo, é importante analisar as referências espaciais presentes na narrativa, e ele pode ser interpretado como espaço fechado ou aberto, urbano ou rural, entre outros. 2.7.5 O AMBIENTE Segundo teoriza Gancho (2003), trata-se do espaço psicológico, moral e social em que vivem os personagens. Ele “aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais, acrescido de um clima.” (p. 23). Possui funções variadas, entre as quais, situar os personagens no tempo e no espaço, ser a projeção dos conflitos, estar em conflito com os personagens e fornecer índices para o andamento do enredo. (p. 24-25). 26 2.7.6 O NARRADOR Este é o elemento estruturador da narrativa. Segundo Gancho (2003), o narrador possui duas funções básicas, a de ser o foco narrativo da história e a do ponto de vista. A autora diz que “tanto um quanto outro referem-se à posição ou perspectiva do narrador frente aos fatos narrados.” (p. 26). Há dois tipos básicos de narrador, o em primeira pessoa e em terceira pessoa. O narrador em terceira pessoa está fora dos fatos narrados e, por isso, ele é mais imparcial. Algumas de suas características básicas são a onisciência, que é quando ele sabe tudo sobre a história, e a onipresença, que se dá quando o narrador está presente em todos os lugares em que a história de passa. Porém, há algumas variações na narração em terceira pessoa. Um exemplo é o narrador intruso, que, nas palavras de Gancho (2003), é “o que fala com o leitor ou que julga diretamente o comportamento dos personagens.” (p. 28). Também, há o narrador parcial, que se identifica com algum personagem e permite que ele tenha um maior destaque na narrativa. A narração em primeira pessoa se dá quando o narrador é também personagem da história. Ele participa de forma direta do enredo de forma parcial, já que seu campo de visão é limitado. Possui igualmente algumas variações, como, por exemplo, o narrador testemunha. Nas palavras da autora, este tipo “geralmente não é o personagem principal, mas narra acontecimentos dos quais participou, ainda que sem grande destaque.” (p. 28-29). Também há o narrador protagonista, que assume a função de personagem principal da história. 2.7.7 O TEMA, O ASSUNTO E A MENSAGEM Não menos importantes em uma narrativa, o tema, o assunto e a mensagem podem ser confundidos entre si em uma análise não tanto minuciosa. Porém, existem diferenças claras entre eles, e Gancho (2003) os define da seguinte forma: tema é a ideia em torno da qual se desenvolve a história. Assunto é a concretização do tema, isto é, como o tema aparece desenvolvido no enredo. E mensagem é um pensamento ou conclusão que de pode depreender da história. (p. 30). 27 3. ANÁLISES DE VIDAS SECAS Vidas secas é um romance de autoria do escritor alagoano Graciliano Ramos. Publicado originalmente em 1938, esta obra é classificada como pertencente à segunda fase do Modernismo brasileiro, mais conhecida como Geração de 30, conforme conta Abaurre, Pontara e Fadel (2005). Trata-se de um movimento literário marcado pelo espírito construtivo e pelo desenvolvimento do romance regionalista. Assim explicam as autoras sobre este movimento: A seca passou a ser não apenas o ambiente, mas a própria personagem da história, transfigurada num estilo conhecido pela primeira vez: uma prosa árida, despojada, o avesso completo de qualquer possibilidade épica. [...] Agora, o nordestino é apresentado de modo fiel à realidade, diferente do que ocorria nos romances românticos. Por essa razão, o romance regionalista da segunda geração modernista também passa a ser designado como neorrealista. (ABAURRE, PONTARA e FADEL, 2005, p. 46). Alfredo Bosi (1994), um dos mais importantes teóricos de literatura brasileira, diz que Vidas secas, e toda obra de Graciliano Ramos, figura como um romance de tensão crítica. Isto acontece porque o herói se opõe e resiste agonicamente às pressões da natureza e do meio social, não possui explicitamente uma ideologia e vive em um permanente mal-estar. 3.1 A ESTRUTURA NARRATIVA DE VIDAS SECAS A obra em estudo é dividida em treze capítulos. Trata-se de treze pequenas narrativas independentes que, juntas, formam o todo narrativo. Cada capítulo pode ser estudado isoladamente, e não há sequência linear entre eles. Ou seja, a leitura pode ser iniciada não exclusivamente pelo capítulo 1, intitulado “Mudança”, mas por qualquer outro, que haverá sentido e compreensão no conjunto narrativo. Bosi (1994) diz que não se trata de um ciclo fechado, mas, sim, uma série de romances, cuja descontinuidade é sintoma de indagação e problema. 3.1.1 O ENREDO 28 Diante dessa não linearidade do enredo, tem-se uma peculiaridade no contexto de análise literária. Não é possível apontar uma única estrutura do enredo de Vidas secas, pois cada capítulo possui uma estruturação completa: exposição, complicação, clímax e desfecho. Para Bosi (1994), o roteiro da obra se norteia por um coerente sentimento de rejeição que advém do contato do homem com a natureza. “Escrevendo sobo signo dialético por excelência do conflito, Graciliano não compôs um ciclo ou um todo fechado sobre um ou outro polo da existência.” (p. 367). Mourão apud Mousinho e Andrade (2010) diz que em Vidas secas é impossível assinalar critérios de sequência, já que não há seguimento e nem disposição simétrica entre os contos-capítulos: “Esse não sequenciamento entre as ações é o que promove a autonomia das partes da narrativa, conferindo-lhe um caráter desmontável, já que estas não compõem uma unidade sequencial em que todos os pontos dos enredos necessitem estar interligados.” (p. 3). Como o foco geral neste trabalho é a análise dos elementos míticos, simbólicos e motivacionais, segue a apresentação resumida de cada capítulo, por ordem de apresentação no livro, que ajudará na posterior leitura sob as perspectivas propostas. Vidas secas inicia com o capítulo “Mudança”, relatando uma longa viagem que uma família faz por uma paisagem árida, a catinga. Trata-se da família de Fabiano, composta por ele, pela sua esposa Sinha Vitória, pelos dois filhos – em nenhum momento nomeados, apenas chamados pelo narrador de menino mais velho e menino mais novo –, e também por dois animais, a cachorra Baleia e o papagaio. Eles chegam a uma fazenda abandonada, devastada pela seca, e ali se instalam. No segundo capítulo, intitulado “Fabiano”, o protagonista está à margem de um rio, acompanhado de Baleia e dos filhos, e trava consigo mesmo algumas lutas psicológicas. Inicialmente, este conflito gira em torno da dificuldade dele assumir a sua identidade de homem. Em alguns momentos, ele conclui que na verdade é um bicho, e não um humano. Depois, lembra-se de seu Tomás da bolandeira, o único homem alfabetizado do sertão, que impunha respeito por causa de seu conhecimento. Sequencialmente, Fabiano se preocupa com o futuro e a educação dos filhos, pois teme que eles não sejam fortes o bastante para enfrentar a vida no sertão. O terceiro capítulo, “Cadeia”, começa com Fabiano indo à cidade comprar querosene e chita vermelha, conforme Sinha Vitória havia pedido. Mas ele entra em um bar, começa a beber, é desafiado no jogo por um policial, nomeado soldado amarelo, e perde todo o dinheiro. Arruinado, sem saber o que fazer para explicar a situação à esposa, sai do bar, encrenca-se com o soldado, que abusa da sua autoridade e o prende. Fabiano vive então 29 momentos de grande tensão psicológica na cadeia, pois não entende como podem prender um pai de família sem motivo. Não consegue acreditar que o soldado amarelo represente o governo, pois, para ele, o governo era distante, perfeito e não poderia errar. No quarto capítulo, chamado “Sinha Vitória”, a mãe de família prepara um fogo dentro da camarinha da fazenda e tem altos fluxos de pensamentos. Ela pensa sobre as possibilidades de comprar uma cama de verdade para o casal, relembra a comparação que Fabiano fizera dela com o papagaio, briga com Baleia e com os filhos, e rememora o incidente do roubo de uma galinha por uma raposa. No capítulo seguinte, o menino mais novo é apresentado. Ele se orgulha do pai e deseja ser igual a ele quando crescesse. Na sequência do livro, é a vez do menino mais velho ser protagonista de capítulo. Ele se mostra uma criança curiosa, pois encasqueta com o desejo de saber o que significava a palavra inferno, e também demonstra uma ingenuidade infantil, já que divaga sobre os lugares do mundo e acredita que todos os que ele conhece são bons. O sétimo capítulo é dedicado ao inverno, o período de chuvas do sertão. A família está reunida dentro de casa, em volta do fogo, e Fabiano e Sinha tentam manter, em vão, uma conversa desconexa, com incongruências e repetições. Enquanto ela se preocupa com a possibilidade da água invadir a casa, ele se mostra tranquilo e de bom humor por causa da cheia, que afasta, temporalmente, a seca. Segue o capítulo “Festa”, em que a família vai para a cidade celebrar o Natal. Eles têm problemas desde o início do caminho com as roupas que usam, apertadas e desajeitadas, e também fluxos de consciência de Fabiano são intensos. Ele bebe demais e tenta comprar briga gratuita com qualquer valente, mas tem insucesso. O próximo capítulo, “Baleia”, é sem dúvidas o mais emocionante da obra, pois narra a morte da cachorra da família. Ela está doente e, para poupá-la, Fabiano resolve sacrificá-la. Os meninos sofrem com a decisão do pai, e Baleia delira após levar o tiro da espingarda de Fabiano, até morrer. O décimo capítulo da narrativa, chamado “Contas”, mostra como Fabiano se desentende com seu patrão e é mandado embora. Ele se sente odiado e humilhado por ter aquela vida miserável, ao qual chama de sina. O décimo primeiro capítulo marca o reencontro de Fabiano com o soldado amarelo, o homem que o prendeu e o humilhou injustamente no passado recente. Fabiano o encontra, levanta o facão contra ele, movido pelo desejo de vingança, mas não consegue concretizar a vontade. No fim, ensina o caminho que o soldado procurava. 30 Na sequência, o capítulo “O mundo coberto de penas” relata o fenômeno da arribação, que é a imigração das aves, um sinal que a seca está por vir. Aí Fabiano lembra-se de Baleia e pensa na próxima viagem e de tudo o que precisa fugir: do soldado amarelo, das dívidas e da fazenda. O último capítulo, “Fuga”, expõe a família mais uma vez caminhando em busca de um lugar para ficar. Em pensamento, Fabiano espera que no futuro os filhos sejam tão fortes quanto ele e que vivam em outro mundo, com escola e mais oportunidades. 3.1.2 OS PERSONAGENS Todos os personagens de Vidas secas são definidos como planos do tipo social. Eles não possuem complexidade psicológica, são limitados e não têm profundos dramas de consciência. As características apresentadas, tanto físicas quanto psicológicas, são poucas, mas elas são bem definidas, como se explicita abaixo: 3.1.2.1 FABIANO Fabiano é o protagonista da narrativa. Ele é um homem ruivo, vermelho, queimado e de olhos azuis. (p. 18). Pai de família, vaqueiro, retirante, possivelmente nordestino, passa por um processo de zoomorfização ao longo da narrativa, pois tem dificuldade em assumir sua identidade humana. No excerto a seguir, retirado do segundo capítulo do livro, intitulado Fabiano, percebe-se este processo conflituoso do protagonista: - Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. [...] Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a murmurando: - Você é um bicho, Fabiano. (RAMOS, 2011, p. 18-19). Nota-se uma confusão psicológica de Fabiano justamente na questão identitária. Enquanto estava à beira de um rio, acompanhado de Baleia e dos filhos, seus pensamentos conflitam sobre sua identidade. Sua semelhança com animais, assim como sua mulher Sinha 31 Vitória, tem mais a ver com a ausência do domínio da linguagem, do que por outros fatores externos, conforme explica Affonso Romano de Sant’Anna (1984): Era justamente a incapacidade de Fabiano e Vitória de se articularem como sujeitos que os reduzia a meros objetos horizontalizando-os com a própria natureza. A impotência existencial dos figurantes corresponde a uma impotência verbal diante da realidade. Comunicando-se através de gestos, ruídos guturais animalescos, incapacitados de organizar o mundo num sistema de representações e ideias, eles se postam como coisas que podem ser permutadas tanto no tempo como no espaço. (SANT’ANNA, 1984, p. 176). 3.1.2.2 SINHA VITÓRIA Sinha Vitória é a esposa de Fabiano, mãe dos dois meninos, dona do papagaio. É uma mulher sofrida, com expressões e atos muitas vezes grotescos, mas trabalhadorae fiel à família. Seus sonhos são tão humildes quanto sua própria vida. “Desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira.” (p. 46). Exercia autoridade sobre os filhos: “Sinha Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa.” (p. 59). 3.1.2.3 BALEIA Baleia é a cachorra de estimação da família. Personagem interessante, pois faz o processo inverso de seus donos. Sofre o fenômeno da antropormofização, ou seja, a transformação do animal em humano, como se pode perceber nos excertos a seguir: A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. (RAMOS, 2011, p. 56.). 3.1.2.4 O MENINO MAIS VELHO Tinha uma curiosidade natural para uma criança (p. 55), mas um vocabulário limitado, tal qual o papagaio da família. (p. 57). “Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava o berro dos animais, o barulho do vento, o 32 som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se.” (p. 59). Era grande amigo de Baleia, pois “todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia.” (p. 57). Preservava uma inocência infantil ao acreditar que todos os lugares conhecidos eram bons (p. 58) e de que o inferno, por ser uma palavra bonita, não era um lugar ruim. (p. 59). 3.1.2.5 O MENINO MAIS NOVO Sente muita admiração e respeito por seu pai, o vê como a criatura mais importante do mundo. (p. 47). Fabiano, para ele, é um verdadeiro herói, já que até mesmo as características não tão relevantes assumem grau de idealização por parte do Menino Mais Novo: Esqueceu desentendimentos e grosserias, um entusiasmo verdadeiro encheu-lhe a alma pequenina. Apesar de ter medo do pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se nas perneiras, tocou as abas do gibão. As perneiras, o gibão, o guarda-peito, as esporas e o barbicacho do chapéu maravilhavam-no. (RAMOS, 2011, p. 49). Tão grande era a admiração que sentia pelo pai que queria ser ele, imitá-lo: “Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano. Conversando, talvez conseguisse explicar-se.” (p. 50). 3.1.2.6 SEU TOMÁS DA BOLANDEIRA Seu Tomás da bolandeira era o homem mais culto do sertão. Fabiano o admirava e sabia que seu conhecimento representava poder, conforme expresso no excerto que segue: Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais. Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: – “Seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros.” Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não podia aguentar verão puxado. Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás da bolandeira passava, amarelo, sisudo, montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. (RAMOS, 2011, p. 22). Seu Tomás é modelo de erudição a todos os caboclos e sabe como tirar proveito de seu prestígio no sertão. Era um homem cortês que não mandava, mas pedia. E todos o obedeciam (p. 23). “Era uma pessoa de consideração e votava.” (p. 28). 33 3.1.3 O TEMPO Affonso Romano de Sant’Anna (1984) diz que a história de Vidas secas é a-histórica, “definindo-se mais um tipo de acronia, uma vez que não se situa em nenhum tempo específico.” (p. 167). Diante disso, fica mais claro entender a função do tempo na obra. Não há indícios de tempo cronológico na narrativa; não se sabe se ela se passa na contemporaneidade do autor ou se é mais antiga que isso, ou então talvez uma projeção futurista. O certo é que este caráter acrônico descrito por Sant’anna contribui para a noção cíclica mitológica do tempo, conforme se verá mais adiante. A duração da história também é imprecisa, uma vez que não são encontrados fatores temporais ao longo da obra. 3.1.4 O ESPAÇO E O AMBIENTE O espaço onde se passa a narrativa ficcional é, possivelmente, o sertão nordestino do Brasil. Não há indícios que realmente seja nessa região, mas é através das características descritas que se chega a essa conclusão. Já o ambiente, marcado por uma constante tensão crítica, é definido por Sant’anna (1984) como dramaticidade fria. Esta tensão se dá basicamente por causa do clima árido hostil, e isso transpassa para os personagens e suas inter-relações entre si e com o meio. Diante do ambiente seco, os indivíduos passam também a ser “secos”. Alfredo Bosi (1994) afirma que nos romances em que a tensão atingiu ao nível da crítica, como é o caso de Vidas secas, “os fatos assumem significação menos ‘ingênua’ e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz no tecido da pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda.” (p. 358). 3.1.5 O NARRADOR O narrador de Vidas secas é em terceira pessoa, onisciente e onipresente, e com inúmeras passagens com discurso indireto livre. O narrador intercala seu discurso com fluxos de pensamentos dos personagens, como se nota neste excerto: 34 Fabiano cochilava, a cabeça pesada inclinava-se para o peito e levantava-se. Devia ter comprado o querosene de seu Inácio. A mulher e os meninos aguentando fumaça nos olhos. Acordou sobressaltado. Pois não estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da cachaça. Não era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara. (RAMOS, 2011, p. 35). 3.1.6 O TEMA, O ASSUNTO E A MENSAGEM Diferentemente do que se acredita inicialmente, a temática predominante de Vidas secas não tem a ver com a pobreza extrema a qual os retirantes estão submetidos, mas, sim, com a ausência do domínio da linguagem. O assunto é, de maneira resumida, a trajetória de uma família de retirantes sertaneja miserável, que, para sobreviver ao clima hostil em que vivem, precisam se adaptar de inúmeras maneiras, iniciando pelo lugar onde escolhem viver, e a precariedade da linguagem utilizada pelos personagens, e da comunicação como um todo, influencia constantemente neste processo. Já a mensagem que pode ser apreendida de Vidas secas é a de que o traço definidor do processo existencialista, e da identidade humana, é a linguagem: o ser humano só existe porque desenvolveu a linguagem, e ela, como princípio de conhecimento, significa poder. 3.2 OS MOTIVOS LITERÁRIOS O estudo dos motivos literários em Vidas secas é indispensável para compreender a grandiosidade da obra. Affonso Romano de Sant’Anna (1984) afirma que os motivos recorrentes na obra em estudo são tão importantes, que, da maneira como são distribuídos, substituem verdadeiramente a ação e a trama do livro. Além de esconderem o significado que o discurso não oferece de maneira aberta, os motivos também: Se apresentam como desdobramento de um texto onde os mesmos desenhos se repetem isometricamente com as mesmas cores sobre o tecido narrativo. A invariância desses motivos é, em parte, responsável pelo caráter acrônico do texto portador de uma dramaticidade fria. Aqui, os sujeitos articulam-se mais como objetos, e o que seria o fio narrativo é antes um bordado que pesponta a importância dos motivos recorrentes – pontos estáticos entre os figurantes semiparalisados. (SANT’ANNA, 1984, p. 169-170). 35 O autor afirma também que a recorrência é um processo estilístico típico de Graciliano Ramos e “assume formasespecíficas conforme a obra em análise.” (p. 170). Segue, explicitamente, a análise dos principais motivos literários da obra. 3.2.1 A PAISAGEM SECA Já no primeiro capítulo, Mudança, o motivo literário da seca aparece de forma intensa. A narrativa inicia falando que “na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.” (p. 9). Adiante, na página 10, intensifica-se a ênfase à seca, “A cantiga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas”. Outros excertos que trazem essa temática são: “Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se.” (p. 23). “Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.” (p. 24). Juan-Eduardo Cirlot (1984), em seu Dicionário dos Símbolos, afirma que toda paisagem pode ser vista como a modificação de um complexo dinâmico originariamente inespacial. Isso quer dizer que “forças internas liberadas desdobram-se em formas que revelam por si mesmas a ordem qualitativa e quantitativa das tensões.” (p. 438). Ou seja, em Vidas secas, a seca é um dos elementos essenciais da trama, já que é a partir dela que se instaura o clima árido de tensão, não só espacialmente, no que diz respeito ao sol ardente, à falta de chuvas e a outros fatores climáticos, mas também intrinsecamente, no interior dos personagens, e também sob relações entre si e com o meio. Não é exagero afirmar que os personagens refletem esse meio seco onde estão inseridos. 3.2.2 O INVERNO O inverno, em Vidas secas, assume simbologias distintas e interessantes. A sabedoria popular relaciona a estação mais fria do ano à ideia de morte, já que é durante este período que a natureza em geral sucumbe, e posteriormente renasce, com a chegada da primavera. Seria uma espécie de resguardo e de declínio. Em uma determinada passagem, é possível observar esta interpretação. 36 No capítulo chamado Baleia, a cachorrinha da família está doente e é sacrificada por Fabiano. Ela agoniza e tem alucinações até sucumbir. Antes disso, porém, Baleia sente frio. É o simbolismo do inverno associado à morte que se faz presente, e o narrador é o responsável por essa dramaticidade: Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. [...] Baleia assustou-se. Que fazia aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. [...] Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida aos arredores. (RAMOS, 2011, p. 90). Contudo, o inverno também incorpora outra simbologia dentro da narrativa de Ramos. O capítulo central do livro é intitulado Inverno, e sobre ele há considerações importantes a se fazer. Inicialmente, é preciso levar em conta que a realidade climática de ambientes áridos, como a catinga – retratada no livro, é peculiar. As quatro estações do ano não são bem definidas, e os sertanejos as classificam apenas como verão e inverno. O verão é o período da seca, do sol escaldante e das condições desérticas; já o inverno é a época das chuvas, da cheia, a oportunidade para os seres vivos se revigorarem a fim de enfrentar mais um posterior verão. Em todos os outros capítulos do livro o clima predominante é a seca; somente neste, em especial, a chuva é a protagonista climática. “Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão distante.” (p. 63). Para Sinha Vitória, trata-se um período de preocupação, já que há possibilidades de ocorrer inundação na modesta casa da família: A água tinha subido, alcançado a ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do pátio. Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a água topasse os juazeiros? [...] Se o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torrões que formavam o enchimento das paredes de taipa. Deus os protegeria. (RAMOS, 2011, p. 66). Já para Fabiano, não há motivo para tanta apreensão. Ele estava satisfeito (p. 63) e de bom humor. (p. 65). E, em virtude disso, pôs-se a falar desordenadamente, “iniciou uma história bastante confusa” (p. 64) que não era entendida de forma clara pela família. Lembrou- se também do período que ficou na cadeia e dos seus sonhos de vingança ao soldado amarelo (p. 67). Fabiano estava contente e esfregava as mãos. Como o frio era grande, aproximou-se das labaredas. Relatava um fuzuê terrível, esquecia as pancadas e a prisão, sentia-se capaz de atos importantes. O rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Não havia notícia de que os houvesse atingido – e Fabiano, seguro, baseado nas informações dos mais velhos, 37 narrava uma briga de que saíra vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano acreditava nela. (RAMOS, 2011, p. 67). Cirlot (1984) descreve a chuva como evidente símbolo da fertilização e purificação, um agente mediador entre o informal e o informal e também como símbolo da descida das influências espirituais celestes sobre a terra. (p. 159). Ora, essa visão esclarece a despreocupação de Fabiano com relação à cheia, pois ele cria que, assim que a chuva passasse, a vida iria se renovar, mas também permite mais uma análise. É a partir da chuva que Fabiano intensifica o uso da linguagem, apesar de falar coisas sem muito sentido, e também é capaz de sonhar e de acreditar em seus sonhos. O inverno, para ele, é benéfico e utópico; já para Sinha Vitória, é preocupante e intimidador. Estamos diante de mais um paradoxo, dentre tantos que circundam a narrativa em análise. 3.2.3 OS URUBUS No primeiro capítulo, aparece pela primeira vez o motivo literário dos urubus. O narrador assim diz: “O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.” (p. 10). Não fica claro se o narrador se refere realmente a animais que estão para morrer, ou se faz uma referência à família de Fabiano que anda pela paisagem árida. O voo circular das aves já denota a ideia do ciclo de tragédias que farão parte da narrativa, já que o urubu é uma ave que se alimenta de carniça. Ainda neste capítulo os urubus mais uma vez aparecem, no trecho em que Fabiano entra na fazenda que a família encontra no caminho; os urubus se fazem presentes naquela paisagem árida e funérea: “Trepou-se no mourão do canto, examinou a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus.” (p. 13). No último capítulo, não coincidentemente, os urubus novamente aparecem para infernizar os pensamentos de Fabiano. Enquanto a família parte para mais uma retirada, o protagonista lamenta que tenha abandonado o cavalo do patrão na fazenda, pois certamente ele morreria por falta de alimentação, e seria alvo dos urubus. O clima hostil e as incertezas em virtude de mais uma partida novamente aqui aparecem: O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis [urubus] tinham de atirar bicadas as olhos de criaturas que já não se podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num voo baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno de seu corpo, de sinha Vitória e dos meninos. (RAMOS, 2011, p. 126). 38 A morte parece mais uma vez rondar a vida dos personagens, tanto que Fabiano chega ao ponto de ter alucinações com os urubus. Por mais que ele esteja, nesse ponto da narrativa, esperançoso com a viagem, sabe que enfrentará ainda muitas dificuldades. E os urubus são o símbolo mórbido dos problemas dessa categoria na obra. 3.2.4 O PENSAMENTO Há passagens em que o pensamento de Fabiano é intenso, e este ato figura também como um motivo literário. No primeiro capítulo, Fabiano chegou a pensar em abandonar pelo caminho o filho mais novo, pois ele estava atrasando a família com seu andar
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