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obedeceu.
Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo! Enxerguei os
confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo se ir
até lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é
cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de
desamparo. Apertei os dedos no pau da canoa. Não me lembrei
do Caboclo-d'Água, não me lembrei do perigo que é a "onça d'água",
se diz – a ariranha – essas desmergulham, em bando, e
becam a gente: rodeando e então fazendo a canoa virar, de
estudo. Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. E tanta
claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco
extenso d'água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas
eu tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que,
quando canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente se apoiar
nela, encostar um dedo que seja, para se ter tenência, a
constância de não afundar, e aí ir seguindo, até sobre se sair no
seco. Eu disse isso. E o canoeiro me contradisse: – "Esta é das
que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e de
pau-d'óleo não sobrenadam..." Me deu uma tontura. O ódio que
eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de
faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e a gente
tinha escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de
madeira burra! A mentira fosse – mas eu devo de ter arregalado
doidos olhos. Quieto, composto, confronte, o menino me via. –
"Carece de ter coragem..." – ele me disse. Visse que vinham
minhas lágrimas? Doí de responder: – "Eu não sei nadar..." O
menino sorriu bonito. Afiançou: – "Eu também não sei."
Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma
luz. – "Que é que a gente sente, quando se tem medo?" – ele
indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. –
"Você nunca teve medo?" – foi o que me veio, de dizer. Ele
respondeu: – "Costumo não..." – e, passado o tempo dum meu
suspiro: – "Meu pai disse que não se deve de ter..." Ao que meio
pasmei. Ainda ele terminou: – "... Meu pai é o homem mais
valente deste mundo." Aí o bambalango das águas, avançação enorme
roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi
aquele rio. Aquele, daquele dia. As remadas que se escutavam,
do canoeiro, a gente podia contar, por duvidar se não
satisfaziam termo. – "Ah, tu: tem medo não nenhum?" – ao
canoeiro o menino perguntou, com tom. – "Sou barranqueiro!"
– o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho. De tal o
menino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eu também. O
chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo. Os olhos, eu
sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro.
Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me
ver tremido todo assim, o menino tirava aumento para sua
coragem. Mas eu agüentei o aque do olhar dele. Aqueles olhos
então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a
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