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O trem da história - 23_07_2019 - João Pereira Coutinho - Folha

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25/07/2019 O trem da história - 23/07/2019 - João Pereira Coutinho - Folha
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João Pereira Coutinho (/colunas/joaopereiracoutinho/)
O trem da história
Para Chantal Mouffe, só o populismo de esquerda pode derrotar o de direita
23.jul.2019 às 2h09
 EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2019/07/23/)
De vez em quando, alguns leitores interessados em política me pedem
conselhos bibliográficos. Eu dou. Eles reclamam. Sobretudo quando
recomendo autores de esquerda que esteja a ler no momento (Agamben,
David Graeber, o excelente Paulo Arantes etc.).
Nunca entendi o descaso. É mais proveitoso ler autores com os quais
discordamos (grosso modo) do que gente que se limita a pregar aos
convertidos.
Um dos melhores exemplos é Chantal Mouffe, a filósofa belga que tem
pensado como ninguém os dilemas que a esquerda contemporânea enfrenta.
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Na década de 1980, e perante a "ofensiva neoliberal" de Thatcher e Reagan,
Mouffe criticava a (sua) esquerda pela visão essencialista de só considerar os
trabalhadores como sujeitos oprimidos da história. Para a autora, existem
vários tipo de dominação que merecem uma resposta progressista.
Sem o saber, Mouffe influenciou aquela parte da esquerda que encontrou na
luta das minorias --sexuais, culturais, étnicas etc.-- uma nova bandeira pós-
marxista.
O problema, porém, é que Mouffe nunca defendeu que as classes
trabalhadoras deveriam ser substituídas pelas minorias. Na estratégia de
Mouffe, uma nova "hegemonia progressista" seria plural, feita de várias
vozes, e não de uma tribalização selecionada.
Eis o programa que Mouffe relembra no seu mais recente ensaio, que
obviamente recomendo: "Por um Populismo de Esquerda" (edição
portuguesa pela Gradiva).
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 23.jul.3019. - Angelo Abu
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O título é um achado. "Populismo" é palavra maldita para muitos
progressistas, compreensivelmente assustados pelos populistas de direita
que tomaram conta do palco.
Não para Mouffe. Mais: ela defende explicitamente que a única forma de
derrotar o populismo de direita passa por uma alternativa populista de
esquerda.
O momento histórico que vivemos assim o determina. Durante 30 anos, o
que Mouffe entende por "hegemonia neoliberal" teve rédea solta. De tal
forma que os tradicionais partidos socialistas se converteram à ortodoxia
dos mercados, aceitando a sua trilogia sagrada --desregulação, privatização,
austeridade. Bill Clinton ou Tony Blair, os papas da "terceira via", foram os
rostos dessa rendição.
Mas a crise financeira de 2008 abriu uma brecha na narrativa de sucesso
neoliberal. A direita populista entendeu isso, conquistando o voto dos
deserdados da globalização. A esquerda, obcecada com as minilutas das
miniminorias, perdeu o trem da história.
É preciso recuperá-lo. Primeiro, replicando a dicotomia do populismo de
direita: é mesmo "nós" contra "eles" --ou, melhor dizendo, o "povo" contra a
"oligarquia" neoliberal. E que povo é esse?
Para Mouffe, é a reunião de todas as forças democráticas --trabalhadores,
imigrantes, minorias etc.-- que não se reveem no modelo neoliberal e na pós-
democracia reinante.
Entendo o diagnóstico da autora. Parcialmente, concordo com ele. A
globalização, como qualquer processo histórico revolucionário, provocou
rupturas tecnológicas que atingiram duramente o "proletariado".
Além disso, a pós-democracia, entendida como redução da soberania
nacional e desvalorização dos parlamentos, é uma evidência na Europa. A
União Europeia pode ter vários méritos, mas há uma sombra
antidemocrática no funcionamento político da Europa que tem alimentado a
abstenção e a revolta entre os eleitores. É preciso lembrar o brexit?
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Acontece que a proposta de Mouffe tem várias contradições. A primeira delas
é mais ou menos óbvia. Como conciliar na sua noção de "povo" interesses tão
díspares?
Uma parte dos trabalhadores que hoje votam em Donald Trump ou Marine
Le Pen o fazem, precisamente, contra as minorias que Mouffe pretende
aglutinar. É um voto contra a imigração irrestrita, entendida também como
ameaça econômica global.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre esse assunto? Abram as
fronteiras e tudo será perfeito?
Mas não só. Na narrativa de Mouffe, há duas datas que a autora ignora: o 11
de Setembro e a crise dos refugiados de 2015. Podemos dizer que a primeira
data, pela reação militar que despertou a Ocidente, está diretamente
relacionada com a segunda.
O populismo de direita é filho dessas duas datas e do sentimento de
insegurança coletiva correspondente.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre isso? O terrorismo é mera
"islamofobia"?
Como sempre, Chantal Mouffe toca em temas essenciais, como o abandono
do "proletariado" pela nova esquerda ou o momento pós-democrático na
Europa.
Mas desconfio que ainda não é dessa vez que o populismo de direita tem um
rival à altura.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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