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Copyright © 2020 Brasil Paralelo Os direitos desta edição pertencem a Brasil Paralelo Editor Responsável: Equipe Brasil Paralelo Revisão ortográfica e gramatical: Equipe Brasil Paralelo Projeto de capa: Equipe Brasil Paralelo Produção editorial: Equipe Brasil Paralelo Berlanza, Lucas O histórico do pensamento liberal brasileiro ISBN: 1. Economia 2. Liberalismo CDD 330 __________________________________________ Todos os direitos dessa obra são reservados a Brasil Paralelo. Proibida toda e qualquer reprodução integral desta edição por qualquer meio ou forma, seja eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução sem permissão expressa do editor. Contato: www.brasilparalelo.com.br contato@brasilparalelo.com.br http://www.brasilparalelo.com.br/ mailto:contato@brasilparalelo.com.br SINOPSE Como as ideias liberais chegaram ao Brasil e estiveram presentes no país ao longo de sua história e diversos períodos políticos? Nesta aula, Lucas Berlanza remonta dos tempos coloniais à contemporaneidade para fazermos cientes do percurso percorrido pelas ideias liberais no solo brasileiro e como estas se disseminaram atualmente na sociedade. OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM Ao final desse e-book, espera-se que você saiba como as ideias liberais chegaram ao Brasil; quais as defesas de teor liberal feitas ao longo da história brasileira; as figuras que defenderam o liberalismo no Brasil. INTRODUÇÃO Esta aula trata da aventura histórica do liberalismo no Brasil. Esse relacionamento difícil, delicado, complicado, mas, ao mesmo tempo, longevo, entre as ideias liberais e a brasilidade. Esse é o nosso tema. Para abordar a inserção das ideias liberais no contexto brasileiro, é preciso primeiro saber que conceito de liberalismo estamos utilizando aqui, pois existe uma tremenda polissemia, não só em relação ao liberalismo, como em relação a quase todo rótulo político que se preze. Existem acepções distintas. É legítimo que haja acepções distintas, porque é um fenômeno natural que as palavras ganhem significados diferentes em contextos e momentos diferentes e nas obras de autores diferentes. A palavra é um fenômeno histórico que adquire acepções distintas ao longo do tempo. O que é liberalismo? No entanto, é preciso, para que nós dialoguemos, estabelecer um conceito, mais do que propriamente uma definição. O que nós queremos dizer quando falamos em liberalismo e em liberais? A minha base para construir esse conceito, que não foi escolhida por acaso, mas justamente por trabalhar com a minha premissa de que as palavras vão ganhando esses contornos diferenciados nos contextos históricos e no avanço do tempo, é a obra do José Guilherme Merquior, que é um dos personagens que abordaremos hoje. Antecipo sua menção pelo fato de ele conceituar do que estamos tratando quando falamos em liberalismo. José Guilherme Merquior afirma que o liberalismo é dificilmente definível, justamente por essa consciência que nós começamos a externar, mas que se pode entender o conceito de liberalismo partindo-se da premissa de que ele se estrutura e se enraíza em um movimento, que se manifesta em ideias, em obras, em instituições, em iniciativas políticas, partidos, sistemas políticos estabelecidos em determinadas nações, no sentido de retrair a dimensão do arbítrio do Estado, a dimensão da autoridade do Estado, exercida sem nenhum condicionante, sem nenhuma delimitação aparente, explícita, pelo menos, e favorecendo a expansão da dimensão do indivíduo, das prerrogativas dos sujeitos que vivem naquela sociedade, favorecendo então, também, uma certa dose de expansão da heterogeneidade dentro daquela sociedade. Ou seja, não prevalece, em absoluto, algum modelo cultural, ideológico, estabelecido pelo Estado. Existe a margem para que haja preferências distintas no sentido estético, no sentido cultural, que não sejam impostas como um molde absoluto de cima. Passa a haver uma margem maior para aquilo que o sociólogo argentino Gino Germani vai chamar de ações eletivas. A palavra autoexplicativa. O indivíduo elege, ele não se amolda a uma imposição de cima, uma imposição histórica, uma imposição do Estado. Há uma margem maior, não quer dizer que seja absoluta ou que tenha de ser absoluta, para que o indivíduo se manifeste e se expresse. Grosso modo, essa expansão da dimensão individual e a retração e a delimitação da autoridade do Estado, de alguma forma, é o que conceitua a ideia de liberalismo historicamente compreendida e inserida. A partir daí, sendo necessariamente redundante, a expressão ganha suas diferentes acepções ao longo do tempo, e subtendências, encaminhamentos, que vão em um sentido ou no outro. O próprio Merquior expõe a existência de diferentes liberdades. Há o liberalismo clássico, por exemplo, que nasce por volta dos séculos 17 e 18. Há a liberdade britânica, a liberdade francesa - que enfatiza a participação política mais do que a dimensão individual -, a liberdade alemã, que se materializa na realização do ser. Esses são detalhes para introduzir a conceituação do Merquior. Fato é que Merquior deriva este liberalismo clássico do que ele chama de whiggismo, que seria o protoliberalismo. Dentro do partido Whig, na batalha política britânica, desenvolve-se essa tradição de um liberalismo que era necessariamente, pelo contexto, um liberalismo aristocrático, um liberalismo de representação restritiva, nós não estamos tratando, ainda, de uma democracia de massa, mas se estabelece ali essa consciência. Há uma herança histórica por trás disso, da Inglaterra propriamente, mas essa consciência se desenvolve em uma sociedade que já tinha o histórico da Carta Magna e de uma série de realizações que levam em direção a essa restrição do poder absoluto do monarca. O liberalismo é o resultado de um desenvolvimento de ideias, de posturas e de atitudes, que se enraízam na cultura cristã-ocidental. Merquior explica que há o movimento na direção do liberalismo social, o qual concede um maior papel ao Estado, aproximando-se mais do que convencionamos chamar de esquerda. Entre os brasileiros, Merquior e Miguel Reale se declaram sociais-liberais. Merquior, em sua obra, inclusive faz uma distinção entre liberalismo e liberismo. Para Merquior, liberalismo é a liberdade econômica, o liberalismo econômico. Então, nem todos os liberais são liberalistas, pois há os liberais-sociais que não são liberalistas. Além dessas posições, existe o liberal conservador. Muitos afirmam que essa expressão é um oxímoro, que não faz qualquer sentido, tal qual liberalismo social. O liberal conservador é aquele que abraça a tradição Whig, a tradição de Edmund Burke. Edmund Burke era considerado um liberal inclusive por Hayek, expoente da Escola Austríaca, que se afirmava como um velho Whig Burkeano. Com base em toda essa exposição, é possível perceber que há um panorama extremamente plural dentro do que Merquior denominava liberalismo. O conceito é esse: retração do Estado, expansão do indivíduo. A chegada do liberalismo No primeiro momento em que o liberalismo aparece historicamente, manifesta- se através do constitucionalismo. São estabelecidas regras precisas para delimitar o poder do Estado, as quais precisam ser respeitadas e obedecidas à revelia de quem você seja dentro da sociedade. Esta ideia aparece, introduz-se na sociedade, dando origem às constituições modernas. Liberalismo, na sua origem histórica, assimila-se muito com a ideia do constitucionalismo. E é assim, também, em boa medida, que será introduzido no Brasil. Nossa história começa ainda em tempos de colônia, em que Brasil e Portugal formavam uma única unidade, uma única nacionalidade, um único Estado. As ideias liberais já começam a se introduzir aí. Temos, primeiro, como prólogo disso,o movimento do Marquês de Pombal, na Universidade de Coimbra, em que ele absorve as ideias científicas, sobretudo britânicas, mas não absorve ou se interessa pela parte política, institucional, que vai se desenvolvendo entre os britânicos. Como a elite brasileira e a portuguesa estudavam na Universidade de Coimbra, essa absorção de ideias modernizantes, científicas, participa da formação de toda uma elite política e intelectual brasileira, que foi decisiva no processo de emancipação, de independência. Dentre estas ideias, está presente a noção de que é preciso desenvolver a técnica econômica, de que é preciso absorver a ciência econômica. E com esse ponto de vista, este tecido e essa preparação, que aparecem as ideias liberais no Brasil. O ingresso do liberalismo, no Brasil, é importante, mas difícil e delicado. Por isso, antes de entrar propriamente no histórico, é interessante fazer um pequeno inventário de quais são os desafios que o Brasil oferece às ideias liberais. Sociólogos e cientistas sociais apontam um punhado de empecilhos. No Raimundo Faoro, encontramos a ideia do Estamento Burocrático, do patrimonialismo, que também foi desenvolvida por Schwartzman e Antonio Paim. Esses autores trazem a ideia do Estamento Burocrático, que se desenvolve na sociedade e no Estado brasileiros, que atrai e absorve as suas vantagens, os seus privilégios, que são sumamente antiliberais tanto no sentido econômico quanto no sentido político. Há o que DaMatta denomina sociedade relacional, uma sociedade que não consegue entronizar a impessoalidade, a qual é muito importante no pensamento liberal. E as regras se aplicam a todos indivíduos, independente de características específicas destes. Temos uma certa dificuldade com isso. A velha história do jeitinho e do “você sabe com quem você está falando?”. Isto é um substrato cultural que dificulta e é avesso às ideias liberais no que tange à impessoalidade, fundamental para que estas se firmem. Essa cultura relacional também atrapalha. Além disso, temos uma sociedade que começou e se desenvolveu em uma circunstância de grande decantação, uma sociedade alicerçada na escravidão, em que havia grandes porções de terra em que os senhores eram autoridade. Havia aquela divisão profunda entre os indivíduos que a escravidão necessariamente estabelece, muito embora, no Brasil, tenha sido bem diferente dos Estados Unidos, pois havia uma miscigenação muito mais forte no Brasil. De qualquer modo, a sociedade se constrói de uma maneira um tanto quanto decantada. Há autores, como Oliveira Viana, que afirmam que isso favorece um certo nível de insolidarismo no espírito público. Enfim, são uma série de desafios. O que foi feito, de fato, a despeito desses desafios? Retornamos ao período colonial, em que houve três nomes importantes, os quais estavam embebidos nessa formação da elite coimbrana. Hipólito José da Costa e o Liberalismo Britânico Na entrada do século 19, há a figura de Hipólito José da Costa, que era jornalista, publicava o Correio Braziliense, à época joanina. Vale frisar que D. João VI é, em muitos aspectos, foi um fundador desta unidade do país, estabeleceu bases para um Estado, no Brasil, mais sofisticado. Em torno de sua corte e do seu período, essas ideias liberais ganharam certa importância. Com a publicação do Correio Braziliense, diretamente de Londres, Hipólito José da Costa tinha por meta expor, aos brasileiros, aquilo que Pombal não havia exposto, quando fez um recorte nas conquistas britânicas, apropriando-se dos aspectos científico e técnico. Hipólito da Costa aborda igualmente estes dois aspectos, defendendo, dentre outras medidas, a importância do fomento à indústria e a melhoria da agricultura. A diferença é que Hipólito da Costa também introduz a dimensão institucional e política. Ele defende que os brasileiros precisam ter representação nas Cortes. Defende que haja constituição, regras explícitas na sociedade brasileira. O liberalismo inglês era difundido no Correio Braziliense. Existia uma relação ambígua com o governo brasileiro, que era o governo português. O Correio Braziliense não era legal. Por isso, Hipólito da Costa às vezes criticava veementemente às autoridades, às vezes fazia textos elogiosos. Por outro lado, a visão britânica, de um liberalismo inglês, era defendida ininterruptamente, e inspirava os rumos da política brasileira. Ao contrário de Visconde de Cairu, do qual falaremos mais adiante, quando a Revolução do Porto eclode em 1920, Hipólito José da Costa a defende, pois acredita que poderia resultar na elaboração de uma Constituição afinada com seu posicionamento político. Entretanto, ao perceber que os liberais portugueses, que eram muito liberais consigo próprios, mas nem tanto com o Brasil, queriam impor medidas de esfacelamento da unidade que o reino do Brasil já havia construído, impor novas sanções e retomar algumas limitações que a Colônia tinha anteriormente, Hipólito da Costa retifica seu posicionamento e passa a defender a independência do Brasil. Com a concretização da Independência brasileira, o Correio Braziliense é encerrado. Hipólito da Costa morre no ano seguinte. Visconde de Cairu Outro nome a ser citado, já mencionado, é o Visconde de Cairu, que era um estadista ligado à Corte de D. João VI. Visconde de Cairu era um homem que tinha os amálgamas do seu tempo, com as ideias complexificadas e mescladas. Um exemplo disso é que ele chegou a ser simpático, em algum momento da sua trajetória, às corporações de ofício da Idade Média, o que não é uma ideia muito liberal. Além disso, chegou a ser simpático à censura governamental, tendo trabalhado nessa atividade no período joanino. Posteriormente, Visconde de Cairu evoluiu em uma direção britânica do seu pensamento em enaltecer a liberdade de imprensa no Reino Unido. Esse homem é fundamental para esse pensamento liberal conservador, conforme denominação de Merquior, no contexto brasileiro, por ter trazido a obra de Adam Smith e por ter atuado na defesa da implementação dessa visão científica e técnica da economia, no Brasil, baseada nas teses deste teórico. Visconde de Cairu também influenciou, embora exista uma discussão para determinar em que grau isso ocorreu, a Abertura dos Portos às Nações Amigas implantada por D. João VI - uma medida que os liberais devem comemorar como marco histórico. Ademais, Visconde de Cairu também trouxe para o Brasil, e traduziu para o português, as obras de Edmund Burke. Com isso, inoculou no Brasil as ideias do velho Whiggismo defendidas por Burke, as quais são transcritas como liberalismo conservador por Merquior. Visconde de Cairu era contra a Revolução do Porto de 1920 justamente por entender o risco de nesta se verificar algo semelhante ao terror de todos os estadistas daquele tempo, a Revolução Francesa. As chacinas, as guilhotinas, a ideia de uma política abstrata e revolucionária, que saqueia a cultura, e que só ficará satisfeita quando o último rei e o último padre forem enforcados e mortos. Porque a Revolução Francesa teve início com esse anseio pela constituição, ele teve medo que a Revolução do Porto tomasse rumos similares. Se a Revolução do Porto transplantou o liberalismo para Portugal, despertou, no Brasil, posições indesejadas pelos portugueses. Estes tinham ficados abandonados em meio a uma situação complicada após as invasões napoleônicas, e sentiram inveja dos avanços conquistados pelo Brasil. Por isso, Visconde de Cairu era contrário à Revolução do Porto, mas defendeu, no final, a Independência do Brasil. Silvestre Pinheiro Ferreira e a representação de interesses O terceiro e último nome que precisamos citar deste período foi, na verdade, mais importante no meio do século 19, no império propriamente dito. Neste momento, no entanto, ele já compunha a equipe do governo de D. João VI. Essafigura é muito recuperada e enaltecida pelo professor Antonio Paim, que o considera uma chave para interpretar o período. Esse homem é Silvestre Pinheiro Ferreira, que naquele tempo era tido como uma figura mais liberal e antenada com as ditas ideias novas, ou seja, essas ideias de retração do Estado, o qual era delimitado em prol do indivíduo. Em seu “Manual do Cidadão no Governo Representativo”, Silvestre Pinheiro Ferreira defende exatamente um sistema representativo estabelecido em torno de interesses. Em sua perspectiva, portanto, é preciso que haja interesses distintos se representando. Essa é uma informação que vale guardar, pois exerce peso na análise que Antonio Paim faz da República. Além disso, inspirado em Benjamin Constant, defende que haja, na sociedade, o que denomina de poder conservador. O poder conservador era um poder diluído nas instituições e nos outros poderes, que realizaria e promoveria a fiscalização entre esses poderes, o controle da ordem social. No Brasil, isso foi transformado em um poder exercido pelo monarca, especificamente, que é o poder moderador. Para Antonio Paim, as ideias liberais de representação do Silvestre Pinheiro Ferreira são decisivas para a elite política que construiu a monarquia brasileira. Foi inspirando-se nessas ideias que a monarquia construiu, em boa parte, sua solidez e perenidade, principalmente, do Segundo Reinado, que durou cerca de cinco décadas. Escravidão e Constituição: sim ou não? Passado esse período, chegamos à independência propriamente dita. São dois os personagens necessários para entender o cenário então estabelecido. O primeiro deles é José Bonifácio, o qual dispensa apresentação. Embora este também estivesse sob influências das ideias novas, das ideias modernas, tinha receio que a elaboração de uma constituição de imediato despertasse despenhadeiros demagógicos. José Bonifácio preocupava-se mais com a sociedade do que com as instituições e com o sistema político. Do seu ponto de vista, erguer uma constituição liberal, naquele exato momento, não produziria tantos efeitos com o quadro social existente. Para ele, antes, era preciso acabar primeiro com a escravidão. Assim como Hipólito da Costa, que considerava a escravidão ineficiente, um desastre para a economia brasileira, e Cairu, o qual, ainda que mais contido em suas críticas, também era contra a forma como a escravidão funcionava e a lógica econômica que se enraizava em cima dela, para Bonifácio, a escravidão era uma mancha absurda no Brasil. Suas concepções eram extremamente radicais quanto a essa questão. Ele as defendeu à frente, diga-se de passagem, de muitos e dos pais fundadores dos Estados Unidos, para os quais a escravidão não era uma preocupação tão grande, até porque tinham seus escravos. O segundo personagem, do outro lado, era Gonçalves Ledo, que representava a maçonaria fluminense. Ao seu lado estavam Clemente Pereira e outros maçons fluminenses. Eles também defenderam a independência. Contudo, almejavam uma constituição imediata. Isso gerou disputas políticas de menor significados, em termos de pensamento, gerou disputas temporais e uma tensão entre Bonifácio e Ledo, entre Bonifácio e a maçonaria fluminense, durante o processo de emancipação do Brasil. Bonifácio apresentava uma preocupação social e uma preocupação elevada com a união nacional, com a manutenção da unidade nacional. Ledo e os maçons fluminenses, pelo contrário, não se afligiam com a escravidão. Prova disso está constante nos manifestos de agosto. Em 1822, foram escritos dois textos manifestos da nossa independência, um do dia 1º e outro do dia 6 de agosto. Um deles foi atribuído a Bonifácio. O outro, a Ledo. Ambos foram assinados por D. Pedro. Um detalhezinho faz toda a diferença: em seu manifesto, Bonifácio aborda a importância que o processo de independência brasileiro não conduzida o país ao caos, à anarquia, tal como havia acontecido no Haiti. O manifesto de Ledo, por sua vez, elenca como uma das razões para a indignação que os brasileiros sentiam em relação aos portugueses, o fato de estes, naquele processo, em meio a todas as injustiças que verdadeiramente estavam cometendo como o Reino do Brasil, questionarem a propriedade dos brasileiros sobre seus escravos. Para Ledo, era um absurdo querer interferir nesta propriedade. Conquanto fosse liberal, Ledo portava a contradição brasileira de assentar o liberalismo sob a escravidão. A Revolução Liberal de 7 de abril Por último, há o próprio D. Pedro. D. Pedro era um imperador formado na cultura portuguesa, na monarquia tradicional, que estava muito afastada de uma monarquia liberal-constitucional. Além disso, como Otávio Tarquínio de Sousa destaca, Pedro queria participar e estar envolvido nas questões, era um homem voluntarioso, algo que, de certa forma, em algumas circunstâncias, colocava obstáculos à limitação do seu poder. Ao mesmo tempo, porém, D. Pedro era reconhecido no seu tempo como um campeão das ideias novas. Entre os imperadores e os monarcas do mundo, ele era a referência do liberalismo, referência de alguém que propõe um sistema liberal, para o próprio Benjamin Constant, um liberal francês. Isso revela a importância de analisar todos os aspectos de acordo com a circunstância da época. Entretanto, o imperador D. Pedro, em seu sistema liberal, firmado na Constituição de 1824 com a participação do Marquês de Caravela, acrescentou o poder moderador. A adição do poder moderador foi a principal diferença em relação à Constituição elaborada pela constituinte de 1823, a qual foi dissolvida pelo imperador. Embora, para compor o poder moderador, D. Pedro tenha se afastado ligeiramente das propostas presentes no livro de Benjamin Constant, que não concediam todo esse poder para o monarca, D. Pedro se inspirou nas ideias deste para forjar o poder moderador. Tanto é que essa expressão está em sua obra. D. Pedro era leitor de Constant e desse liberalismo moderado, que prezava a ordem e a continuidade. Essas ideias influenciaram na formação das instituições monárquicas brasileiras. Após a independência, essa personalidade voluntariosa de D. Pedro gerou embates com os políticos, com os estadistas, muitos deles já influenciados pelas ideias liberais. Neste contexto, aparecem Bernardo Pereira de Vasconcelos e Evaristo da Veiga, homens que estão lendo o liberalismo e estão sendo particularmente influenciados pelo liberalismo inglês. Ambos querem implementar essas concepções no Brasil. Por isso, enfrentam certos choques com D. Pedro, os quais foram exacerbados pela hostilidade que se criou, no Brasil, em relação à nacionalidade portuguesa de D. Pedro. Havia um sentimento nativista e uma rejeição aos portugueses. A Corte permaneceu, assim como o estamento ao redor de D. Pedro. Isso incomodava os brasileiros, que queriam que nacionais assumissem esses postos. Isso gerou uma má vontade que, em alguns aspectos, o imperador colaborou para provocar. Essa tensão alcançou um extremo, um ponto limite, e eclodiu o que muitos chamaram, naquele momento, de a Revolução Liberal de 7 de abril, quando D. Pedro abdica em 1831. Tal abdicação não resultou de uma decisão tomada espontaneamente por D. Pedro. Havia uma mobilização para sua abdicação, a qual apresentava até mesmo um componente militar. Face a uma tensão de que haveria ruptura, D. Pedro abdica em favor de seu filho. Na época, aqueles homens consideraram esta uma revolução liberal. Como eu mencionei, aquela geração falava da Revolução de 7 de abril de inspirações liberais contra o imperador absoluto que quer mandar e passar por cima de tudo. Era esse, ao mesmo, o discurso deles. Com isso, o liberalismo já está marcando presença forte no pensamento dessa elite política brasileira. Centralizar ou descentralizar? Com a abdicação de D. Pedro I, estabelece-se a regência, uma vez que D.Pedro II ainda não apresentava idade constitucional para ser coroado como monarquia. A regência foi um período extremamente conturbado, em que havia calorosas discussões em torno da centralização ou descentralização administrativa e política. Na época, esse debate se tornou ainda mais ardente devido à eclosão de revoltas separatistas. Havia três grupos políticos que protagonizam essa contenda. Em primeiro lugar, o liberalismo radical, que tinha em Frei Caneca um de seus representantes. O liberalismo radical abarcava todo manual abstrato do liberalismo e queria impô-lo a qualquer custa. Além disso, eventualmente, confundia-se com aquilo a que o professor Paim chama de democratismo, de inspiração rousseauniana. Portanto, não existia uma preocupação com a representação dos interesses. A retórica adotada proclamava que seria o povo atuando, participando, da política. Os interesses, as divisões, que desembocam mais modernamente nos partidos, os quais propiciam solidez a esse sistema liberal democrático, não são tão mencionadas por esses liberais radicais que queriam o federalismo imediato e a descentralização absoluta. Os liberais radicais foram protagonistas de várias rebeliões que ocorreram durante a regência. O segundo grupo político eram os caramurus, que lutavam pela restauração da Coroa de D. Pedro. Com a morte deste, os caramurus desaparecem, uma vez que já não possuíam razão de ser. O último grupo político é precisamente aquele que vence essa batalha e que construiu o Segundo Reinado. São os intitulados liberais moderados. Novamente, o papel do liberalismo é enfatizado, frisado e evidenciado como construtor das instituições do Brasil do século 19. Os liberais moderados pleiteavam as mesmas demandas que os liberais doutrinários da França1, como Benjamin Constant e François Guizot. Estes estavam associados com a filosofia ecletista de Victor Cousin, uma das ortodoxias filosóficas da França daquele tempo, a qual defendia a junção entre a ordem e a liberdade. Ao mesmo tempo em que propugnavam o retorno da França ao Antigo Regime, ao que existia antes do caos revolucionário, defendiam o respeito à ideia liberal da constituição, da limitação dos poderes, e queriam instituições sólidas e ordem, a fim de socorrer a França do caos absoluto em que se encontrava. A Revolução havia levado a França a um caminho incerto e ninguém encontrava uma maneira de reorganizar o país. Essa foi a história da França no século 19. Os liberais doutrinários estavam preocupados com essa questão, bem como outras correntes políticas, caso dos positivistas. Essas ideias dos liberais doutrinários influenciou os liberais moderados brasileiros a também tentarem conseguir, no Brasil, a junção entre ordem - tudo que o Brasil queria, pois desejava findar as revoltas separatistas - e constituição, representação, parlamento, tudo aquilo que o figurino liberal significava. Esse grupo prevaleceu e, quando a regência chegou ao fim, com o golpe da maioridade e a coroação de D. Pedro II como imperador, seus partícipes se tornaram elementos-chave do governo. O Segundo Reinado Após a coroação de D. Pedro II, ao longo do tempo, criou-se uma divisão política entre saquaremas e luzias que caracterizou o Segundo Reinado. Um detalhe que precisa ficar claro é que tanto os saquaremas quanto os luzias, popularmente, conservadores e liberais, eram liberais, porque eram originários do grupo regencial do liberalismo moderado. Dentre eles, inclusive, Bernardo Pereira de Vasconcelos que, como mencionei anteriormente, confrontava diretamente D. Pedro I para construir um ambiente parlamentar no Brasil, um ambiente em que a força da opinião prevalecesse sobre o voluntarismo do imperador. Embora fosse escravocrata, lembremos que Bernardo era campeão liberal da representação. A bem da verdade, Bernardo oscilou um pouco seu pensamento acerca da escravidão, mas, na maioria das vezes, e na maior parte do tempo, foi a favor desta. É esse mesmo Bernardo que participa da fundação dos 1 Os liberais doutrinários da França são muito estudados pelo professor Vélez Rodríguez. saquaremas. Fundação entendendo-se o que isso significaria no século 19, porque inexistiam as agremiações partidárias como as temos hoje. Esses grupos eram blocos parlamentares que tinham os seus jornais, suas lideranças, e que ganhavam identidade espontaneamente em cima dessas particularidades. Uma identidade que, simultaneamente, convivia com uma grande semelhança entre essas figuras, a ponto de existir o ditado que “Nada se assemelha mais a um ‘saquarema’ do que um ‘luzia’ no poder”. Na prática, era uma elite muito parecida em vários aspectos. Apesar de tal parecença, há motivos que justificam entender que existia uma diferença entre os dois partidos. Observa-se, portanto, que, na elite política, predominava os grupos que eram mais parecidos e mais moderados. Conquanto houvesse outras diferenças, como estamos tratando do liberalismo no Brasil, grosso modo, a distinção fundamental era que os saquaremas queriam e depositavam mais relevância no Conselho de Estado, no poder moderador, na importância do monarca. Eles perseguiam a centralização político-administrativa e queriam que as forças armadas locais permanecessem sob comando central. Por sua vez, os luzias, os liberais, aspiravam aos modelos americano e britânico. Eles desejavam o federalismo. Contudo, os saquaremas, os conservadores, justificavam a sua perspectiva, o seu pensamento em defesa de um Estado maior, com mais poder central, embasados em um argumento liberal, no sentido de visar à liberdade e à representação de interesses, consonantes com Silvestre Pinheiro Ferreira. Paulino José Soares de Sousa, um dos principais pensadores dentre os saquaremas, desenvolve o argumento de que, na configuração social do Brasil naquela época, de uma sociedade civil fraca, decantada pela escravidão, em que os juízes eram eletivos e respondiam às oligarquias das províncias, despejar franquias descentralizadoras para as províncias e colocar as armas nas mãos das elites oligárquicas, significaria criar ditaduras dos oligarcas regionais e impedir a rotação do poder. Os desafios eleitorais para haver uma eleição com lisura eram tremendos no império, pois as eleições já eram fraudadas. Isso preocupava tanto o monarca quanto os estadistas da monarquia. Prova disso é que foram realizadas várias reformas eleitorais durante esse período. Assim, essa preocupação e o problema existiam. Era muito fácil controlar o encaminhamento das eleições e se perpetuar no poder. Uma vez alcançada a direção da província, o partido indicava os comandantes das províncias e o conselho de gabinetes2. Deste modo, a máquina toda estava submetida a ele. Os saquaremas entendiam que era preciso imperar, naquele momento de construção nacional, um Estado central mais forte, capaz de impedir a perpetuação dessa máquina das oligarquias no poder. Além disso, que fosse também capaz de evitar que a rotatividade, a alternância do poder, se desse através das armas, o que acontecerá durante a República Velha. Os saquaremas acreditavam nessa necessidade e construíram o Estado brasileiro e uma lógica de sociedade que funcionaram praticamente sem distúrbios institucionais até 1889. Essa ordem social e essa constituição, o Segundo Reinado, tiveram o período mais longevo da história do Brasil. Ambos estavam alicerçados na teoria da representação do Silvestre Pinheiro Ferreira, de uma representação por interesses que organizasse os núcleos de pensamentos, as ideias, as correntes, dentro do parlamento imperial. O Movimento Abolicionista No final do Segundo Reinado, formou-se o movimento abolicionista, um movimento liberal por excelência. A liberdade não veio antes, embora José Bonifácio pugnasse para que viesse, porque o liberalismo brasileiro dessas elites políticas doimpério, contraditoriamente, mantinha-se e se harmonizava com a escravidão, tal como nos Estados Unidos. Não temos esse nefasto privilégio. Era uma questão da época, o que não é desculpa, porque não faltou quem a contestasse. José Bonifácio foi muito claro quando enviou à Assembleia Constituinte o seu manifesto pela libertação dos escravos, declarando que a escravidão era absolutamente inaceitável, anticristã e contra as bases da civilização a que o Brasil queria se integrar. A verdade é que existia um trabalho de construção de uma elite política, de um país jurídico, um país institucional, que, de certa forma, pairava sob uma realidade de muitas limitações. Havia uma elite de iluminados, de esclarecidos, de juristas, de fazendeiros, etc., sob um imenso torrão de terra com escravos. A realidade era essa. Os obstáculos eram muito grandes. 2 Na década de 1840, constituiu-se, com participação e estímulo do imperador, o conselho de gabinetes, que é outra evolução liberal. O imperador transferia algumas prerrogativas para um Conselho de Ministros. Este figurino, do que seria equivalente ao Primeiro-Ministro britânico, intencionalmente aumentava a parecença do modelo brasileiro com o inglês. Contudo, José Bonifácio já falava sobre a escravidão. Essa questão vai ter culminância e ganhar abrangência popular, vasta abrangência social, no processo abolicionista, do qual participam os saquaremas e os luzias, todos esses herdeiros do liberalismo moderado que venceu no período da regência. Portanto, é um movimento suprapartidário. O abolicionismo não era exclusividade nem dos luzias nem dos saquaremas. Joaquim Nabuco, grande luzia, grande liberal abolicionista, que tinha tendências e aderências whigs, aderências inglesas, e que depois se insurgiu contra o movimento republicano e a república, afirmava isso muito claramente. O presidente do Conselho de Ministros que levou adiante a lei áurea, a qual deu fim a essa mácula trevosa de nossa história, era João Alfredo Corrêa, um conservador, um saquarema, rival eleitoral de Joaquim Nabuco em Pernambuco. Aliás, a maioria das leis abolicionistas foram aprovadas em gabinetes saquaremas. A última, fatal, também. Isso demonstra uma capacidade daquela elite política de superar as diferenças eleitorais que tinham, de interesses eleitorais, para construir uma unidade em torno de um propósito tão nobre quanto esse, que restaurava a dignidade dos homens escravizados. Há um passagem lindíssima de “Minha Formação”3, em que Joaquim Nabuco diz: “Qualquer que seja a verdade teológica, acredito que Deus nos levará de algum modo em conta a utilidade prática de nossa existência, e, enquanto o cativeiro existisse, estou convencido de que eu não poderia dar melhor emprego à minha do que combatendo-o. Essa vida exterior, eu sei bem, não pode substituir a vida interior, mesmo quando o espírito de caridade, o amor humano, nos animasse sempre em nosso trabalho. A satisfação de realizar, por mais humilde que seja a esfera de cada um, uma parcela de bem para outrem, de ajudar a iluminar com um raio, quando não fosse senão de esperança, vidas escuras e subterrâneas como eram as dos escravos [...]”. A abolição, um grande feito liberal, foi questionada devido à ausência de indenização para os senhores de escravos. De certo modo, esse também é um argumento liberal, porque protesta que o direito de propriedade, disposto na Constituição de 1824, não foi respeitado. A retirada súbita de uma propriedade, declaravam, deveria ser indenizada. Em certos aspectos, isso também é um 3 O texto completo está disponível gratuitamente em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1019/192204.pdf?sequence=4&isAll owed=y https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1019/192204.pdf?sequence=4&isAllowed=y https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1019/192204.pdf?sequence=4&isAllowed=y argumento liberal, mas a favor da escravidão. É curioso como funcionavam as contradições da época. Aliás, voltemos no tempo para mencionar Diogo Feijó, regente uno durante o período da regência. Feijó, defensor do liberalismo e da libertação dos escravos, participou da revolução liberal de 1842 contra o governo. No entanto, não tinha qualquer interesse no parlamento e no sistema representativo. Pelo contrário, defendia um líder com mais poderes. Ele tinha um temperamento presidencialista em pleno império. Bernardo Pereira de Vasconcelos, por outro lado, era o oposto. Ele tinha a Inglaterra como modelo e defendia a existência de deputados, a representação, a opinião forte. Ao mesmo tempo, apoiava a continuidade da escravidão. São as contradições que existiam na época. A Crise Monárquica e a questão militar O regime entra em crise. Não nos alongaremos nos meandros da crise da monarquia, mas é importante destacar a questão militar. Sobretudo a partir da guerra do paraguai, surge uma insatisfação militar com o governo, que, em alguma medida, talvez possa ser justificada. É possível que os militares merecessem ter tido uma atenção maior do governo monárquico. Esse foi apenas um dos vários tiros nos próprios pés que a monarquia deu para acabar. Insatisfeitos, os militares começaram a querer militar e interferir na política, uma característica que marcou a república, o século 20. Até porque, diante de subsequentes ditaduras, estados de sítio e autoritarismos determinados pela própria elite política, as instituições frágeis acabaram se apoiando e se sustentando nas forças armadas. Sustentando, inclusive, as suas rotações e suas transições de regime e de governo nas forças armadas. Isso, que veremos na República, tem início aí. No final do Império, essa questão ganhou peso. A proclamação da República, o feriado de 15 de novembro, foi um golpe militar. Foi um fenômeno antiliberal, um dos caminhos errados que nossa nação tomou. Visconde de Ouro Preto, Presidente do Conselho de Ministros, liberal, tinha montado um projeto para aumentar a descentralização, pois a monarquia já havia entendido que essa era a via a ser seguida a partir de então. O movimento neste sentido já existia, no entanto, a atmosfera política e social não permitiu sua concretização. Sobreveio o golpe militar, que depôs Visconde de Ouro Preto. Originalmente, a ideia era somente mudar o gabinete. Contudo, os republicanos, que eram variados, cujas diferenças abordaremos, acabaram conseguindo a destruição do regime e da ordem constitucional como um todo, para fazer um novo país, um novo sistema, a república tão sonhada. Até mesmo Assis Brasil, um importante liberal do Rio Grande do Sul, participou desse momento militando pela república, afirmando que seria um governo maravilhoso, que iria sanear os atrasos e levar o país até a grandeza com que todos sonhavam. Para ele, era uma fatalidade histórica que a república existisse. Essa mentalidade era um indício de uma certa influência, nos liberais, do positivismo, em voga nessa época. O positivismo, que ganhou peso na sociedade brasileira e na filosofia de Augusto Comte, é marcado por uma ideia cientificista, por uma ideia de previsão muito categórica do que são as etapas do desenvolvimento da sociedade. Além disso, essencialmente, o positivismo tem desconfianças e receios em relação à opinião e ao parlamento, porque ciência é ciência. Não há contrariedades. Por isso, opiniões e interesses, no sentido de Silvestre Pinheiro Ferreira, não eram relevantes. Os positivistas queriam saber dos fatos científicos. A sociedade poderia ser regida também com base em programas científicos plenamente esquematizados, tornando desnecessárias discussões sobre divergências e dissensões. De certa forma, esse é um cacoete do pensamento positivista, que chega no Brasil e ganha fôlego sobretudo entre os militares, muitos dos quais participam do golpe que depôs a monarquia. Os diferentes grupos republicanosComo mencionei, os republicanos também se diferenciavam entre si. Havia um grupo, o qual nasce na Convenção de Itu, em 1870, que ganhou alguma importância ainda no período monárquico e organizou o partido republicano em São Paulo. Eles eram os republicanos mais liberais. Além de pleitearam uma constituição, defendiam a implementação do liberalismo. Esses republicanos liberais desenvolvem uma narrativa, presente em autores anteriores, de que a monarquia brasileira fora um embuste criado no processo de independência, quando a vocação brasileira era republicana. Deste modo, o Brasil deveria ter sido uma república desde 1822. Isso somente não aconteceu porque os monarquistas impuseram a instituição monárquica. Com isso, constroem a narrativa de que corrigiriam os rumos do país, colocando no caminho que tinha que estar seguindo pela sua vocação natural. Ademais, afirmam que os anseios republicanos foram suprimidos. Isso é uma bobagem, porque mesmo no período de declínio da monarquia, a sociedade em geral continuava respeitando o imperador D. Pedro II. D. Pedro II apanhava muito da imprensa porque existia ampla liberdade para esta. Por isso, era possível vilipendiar o imperador à vontade. Na República, a situação foi diferente. Além disso, havia muito pouca adesão ao pensamento e ao partido republicano. A descrença no regime, a descrença no sistema estabelecido, a descrença no poder moderador, o fato de a monarquia já não mais poder existir naquela funcionalidade, naquelas condições e caracteres que tinha, ganhou fôlego na reta final da monarquia. Todas essas descrenças, no entanto, não significavam uma crença na república. Diga-se de passagem, a maioria daqueles que tensionavam fazer mudanças nesses aspectos, queriam esperar a morte do imperador para proclamar a república. O golpe, de certa forma, foi uma precipitação. A adesão ao movimento republicano era muito escassa, muito limitada, era uma defesa de alguns. Foram esses alguns que impuseram ao país a República, o qual, conforme Aristídes Lobo, assistiu, bestializado, àquela transição. Este movimento mais liberal, mais federalista e mais constitucionalista, enraíza-se em São Paulo. São esses republicanos que começam a desenvolver essa narrativa e essa visão de um Brasil pujante, das riquezas locais, do qual São Paulo é a grande locomotiva. Os positivistas puros, por outro lado, queriam a ditadura republicana. A república sonhada por eles é esse governo científico, sem parlamento, baseado na ciência da sociedade, em que o governante impõe o que é melhor a todos independentemente do que pensem. Havia os jacobinos, expressão inspirada nos feitores do terror jacobino da França revolucionária, que eram alas radicais, militares, nacionalistas, populistas, daquele movimento republicano que exerceu peso na sustentação de Floriano Peixoto, que criou o florianismo. O florianismo era um movimento em torno da imagem de Floriano Peixoto, de sua personalidade como líder nacional. Esses ingredientes personalistas são essencialmente antiliberais e são o berço e a introdução de muitos aspectos que aparecem mais à frente, na república. O golpe republicano mata a narrativa de representação dos interesses construída por Silvestre Pinheiro Ferreira. Com isso, os republicanos extinguem a preocupação com a representação de interesses, existente na monarquia, e adotam uma retórica do povo. Como a república representa o povo, os partidos conservador e liberal não são necessários. É o povo quem está ali decidindo. Nós, o governo, somos o povo. Isso dificulta a organização da sociedade. O professor Antonio Paim, afirma que, embora tecnicamente não seja exatamente isso, a República Velha é um regime de partido único praticamente, porque há o partido republicano fluminense, o partido republicano rio-grandense é o partido republicano. Comentário de aluno: o João Camilo de Oliveira Torres diz que é um unipartidarismo de base estadual. Portanto, perde-se essa preocupação com os partidos e tem-se, praticamente, um regime de partido único. Era simplesmente uma elite, uma oligarquia política, que queria canais de expressão e os tinha nos partidos republicanos regionais e locais. Não havia, essencialmente, substância de pensamento a entrar em choque, a divergir, a discutir, no parlamento brasileiro. Este era muito mais uma oligarquia procurando canais de se expressar. A República da Espada Esse sistema político tem início com um autoritarismo militar. A República da Espada, de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, era um governo militar, repressor, que perseguia a oposição, que praticava censura. A República nasce, portanto, com contornos essencialmente antiliberais. No entanto, a Constituinte de 1891 apresentava um componente liberal constitucionalista, o qual ganhou força na elaboração inicial da república, pelo simples fato de ter prevalecido a ideia de haver uma constituição. Rui Barbosa participou dessa constituição, estabelecendo delimitações constitucionais. Um dos exemplos que se destaca nesta constituinte é a liberdade religiosa. Um detalhe interessante é que o espiritismo chegou ao Brasil durante o período do império e D. Pedro II era extremamente tolerante com as sociedades espíritas. Entretanto, no início da década de 1890, na República, teoricamente um Estado laico, em que a liberdade religiosa era garantida a todos, o espiritismo foi proibido via código penal. Ou seja, a liberdade religiosa, nesta circunstância, era mais um discurso do que uma realidade. Houve uma luta tremenda para legalização das práticas espíritas. Essa contradição entre prática e discurso é inerente, não tem jeito. Por isso, temos que entender, a despeito das contradições e das limitações que são inevitáveis, a força que essas ideias liberais, presentes ao longo de todo esse tempo, construindo-se e estimulando um imaginário, uma atitude política, um pensamento na sociedade brasileira, tem. Temos que reconhecer que o liberalismo tem presença e atravessou a nossa história muito mais do que, por exemplo, a da Rússia. A influência do liberalismo no Brasil, construindo as nossas instituições e o imaginário da nossa elite política, é muito maior do que a influência do liberalismo na Rússia. Nesse ponto, nós temos vantagem. E precisamos conhecer essa vantagem, conhecer esses nomes, conhecer esse processo, para apoiar, nessa experiência, no que eles têm para oferecer para o nosso imaginário, para o nosso enriquecimento intelectual. Além disso, também conhecer no que eles erraram, em que pecaram, onde as limitações do tempo prevaleceram, para não repetirmos esses erros. A implantação da República com o golpe militar de 15 de novembro de 1889 foi a ruptura institucional mais radical, inaugural de todas as outras radicais que o Brasil viria a ter século 20 a dentro. Recapitulando brevemente: formou-se uma elite republicana que combinava: estadistas egressos do império, os quais concedem alguma substância liberal com fôlego a ponto de impor a existência de uma constituição, que é a Constituição de 1891; liberais como Rui Barbosa e constitucionalistas egressos do movimento republicano de Itu de 1870 e as alas mais militaristas e centralizadoras em que havia uma presença muito forte do positivismo que, sem converter os liberais à sua visão política ou às suas consequências políticas integralmente, influenciou o pensamento de alguns desses liberais que participavam dessa república, o que fez com que, por exemplo, a retórica dele seja essa do povo em vez dos interesses. Isso justifica a existência desse regime de partido único da república velha. Do outro lado, havia os positivistas puros, os chamados jacobinos, que construíram aquela visão nacionalistas, militarista, radical, que desembocou no culto ao florianismo, culto à personalidade de Floriano Peixoto. Os governos de Deodoro da Fonsecae de Floriano Peixoto são marcados por essa característica, por essa consistência militar. Não à toa, foram batizados de República da Espada, devido à repressão, à censura, à perseguição ao divergente, inclusive, por óbvio, aos monarquistas. A República Velha Quando Prudente de Moraes ocupa o cargo da presidência, consegue-se que um civil assuma o poder, ainda em um momento de conturbações e brigas entre esses grupos. Apesar das tentativas de atentado e de subtraí-lo da presidência, Prudente de Moraes sustentou sua posição presidencial e teve o mérito de manter e estabelecer uma linhagem civil e constitucional, evitando o regresso à República da Espada. Em sequência a Prudente de Moraes, Campos Sales assumiu a presidência, sendo um dos elementos-chave para compreender esse período. Campos Sales é importante porque consagrou o grande pacto que construiu o sistema político daquele momento. Face à ausência do poder moderador e das intervenções do monarca para equilibrar o sistema político, estabeleceu-se um pacto com as oligarquias locais, assentado em um discurso federalista, que era o discurso republicano por excelência. No regime republicano, as províncias passaram a se chamar estados e a usufruir de maior autonomia. Tal autonomia era concedida às elites e às oligarquias dos estados em troca de apoio ao presidente e ao poder central. Na prática, era uma autonomia que colocava essas elites na dependência do presidente e vice-versa. Havia estruturas de apoio, como a Comissão Verificadora dos Eleitos, a qual incumbia julgar a validade ou invalidade das eleições. Essa comissão, obviamente, favorecia os interesses da situação que, na prática, era uma situação única. Na República Velha, era muito difícil conseguir uma rotação de poder. A Oligarquia definia qual seria seu candidato e, basicamente, passava ritualmente o poder para o sucessor. Não é verdade que essa estrutura permaneceu monolítica e perfeita durante todo tempo. Há, eventualmente, um Pinheiro Machado na história. Pinheiro Machado era um senador que tentou, de todas as formas, inclusive manipulando as oligarquias, eleger seu candidato, Hermes da Fonseca, provocando o rompimento de uma sequência de sucessões daqueles que eram indicados fielmente pelas elites mineira e paulista. Hermes da Fonseca era um militar e trazia consigo essa dimensão militarista de volta para a presidência. No entanto, grosso modo, o que se verifica nesse período é uma rotação dos presidentes através de acordos entre as oligarquias e as elites. A institucionalidade existente impunha que a rotação de poder se desse pelas armas. Há uma impressão muito errada de que este foi um período de calmaria, de marasmo, em que os fazendeiros, sentados, decidiam quem assumiria o poder. Essa não é uma percepção precisa, pois a República Velha foi marcada por guerras e revoltas. Houve a guerra de canudos, a revolta do contestado, duas revoltas federalistas no Rio Grande do Sul. A revolta federalista de Gaspar Silveira Martins, um homem que, de início, era simpático à monarquia, confrontou-se, assim como Assis Brasil, mais recentemente, com o castilhismo na sua nascença. O castilhismo é um sistema de pensamento político que surge com Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, sendo uma adaptação do pensamento político positivista à atmosfera gaúcha. O castilhismo também encampa as ideias do reforço à autoridade e da política dos grandes homens. Ao mesmo tempo, apresenta uma desconfiança no liberalismo e no parlamentarismo igualmente presentes no positivismo, mas elevadas à enésima potência. O castilhismo nasce como cultura política, como tradição política, no Rio Grande do Sul. É a proposta de autoritarismo mais coerente, mais bem formada, mais bem estabelecida que surge na República Velha. O castilhismo foi decisivo para o que aconteceu nas décadas seguintes, quando da Revolução de 1930 e da ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Nesse período, ainda vigora o sistema de Campos Sales, a política dos governadores, acompanhada de sucessões presidenciais estipuladas pelas oligarquias, somente com algumas interrupções na base da maquinação, como foi o caso do Hermes da Fonseca por Pinheiro Machado. A eleição de Hermes da Fonseca redundou na política das salvações, que nada mais é do que o uso da violência, o uso da intervenção militar, nos estados, para corrigir os desentendimentos entre Hermes da Fonseca e as oligarquias e elites estaduais. Há, também, uma sucessão de estados de sítio sendo declarados justamente por aqueles que se diziam os liberais constitucionalistas, os liberais bacharéis, da República Velha. Chama-se, inclusive, a política desse período de bacharelismo liberal. Conquanto o nome, a prática política era de recursos constantes à censura e ao estado de sítio, diante das revoltas que começam a aparecer no início da década de 1920, principalmente as revoltas tenentistas, as quais tumultuam o governo de Artur Bernardes. No mandato de Epitácio Pessoa, ocorre a Greve Geral de 1917, e há a introdução do anarquismo e do comunismo no Brasil. É nesse período que as ideias que reconhecemos como sendo as ideias da esquerda moderna, da ideia contemporânea, ganham fôlego e penetram no Brasil. Alguns autores menciona que, na época imperial, já havia registros de socialismo utópico. Nas revoluções de Pernambuco, estavam presentes os pensamentos de Fourier, Saint-Simon, do socialismo utópico pré-marxista. Mas, grosso modo, no Império, a esquerda mais radical e transgressora era o democratismo rousseauniano, ou seja, as ideias de Rousseau. Na República Velha, por outro lado, os comunistas e os anarquistas, que conhecemos bem hoje e no século 20, começam a se organizar. Em um primeiro momento, por incrível que pareça, os anarquistas apresentavam vantagem em relação aos comunistas, pois usufruíam de maior presença entre o operariado. Nessa época, cria-se o partido comunista, que se torna uma força política relevante. Na minha modesta avaliação, nunca a ponto de justificar um golpe de Estado para evitar um perigo comunista, como alegou Getúlio Vargas na década de 1930. Mas houve, verdadeiramente, a Intentona Comunista em 1935, e o comunismo começava a ganhar corpo e substância no Brasil. O panorama era o seguinte: no sul, havia o castilhismo. O comunismo, de fonte marxista, avolumava-se. Havia alternativas autoritárias conquistando espaço. No poder, o liberalismo se contrazia e era incapaz de recuperar a força do sistema de representação por interesses que a monarquia havia absorvido no século 20. Portanto, era um liberalismo que se enfraquecia e se sabotava, mas estava ali. Os contestadores Havia quem questionasse a maneira como o liberalismo se conduzia. Um dos principais dentre esses personagens era Rui Barbosa. Rui Barbosa era um dos bacharéis, intelectuais, da política da época. Por sua maior preocupação ser com a federação, ele aderiu à república. Rui Barbosa possuía discordância com Campos Sales em relação ao presidencialismo. Enquanto Campos Sales acreditava que o presidencialismo era necessário, inevitável, o único caminho compatível com a federação, Rui Barbosa entendia que o parlamentarismo não era necessariamente incompatível com o sistema político brasileiro. Em sua concepção, seu funcionamento era uma possibilidade. Além disso, Rui Barbosa preconizava uma importância maior para o poder judiciário. Como ministro do governo militar do Deodoro da Fonseca, um liberal no governo militar - eram os arranjos da época - ele é encantado com a ideia de industrialização, de levar o país a um caminho industrial. Para fazer isso, Rui Barbosa emitiu moeda. Até hoje, discute-se até que ponto teve responsabilidade pelo desastre do encilhamento ou se a crise decorreu de algo anterior, tendo em vista que, no último mandato imperial, Visconde de Ouro Preto também estava gerenciandoa moeda. De qualquer forma, politicamente, intelectualmente, institucionalmente, Rui Barbosa se destaca por sua briga contra o regime vigente na República Velha. Ele dizia, com todas as letras, que havia uma oligarquia comandando o país. Para combatê-la, lançava-se como anticandidato, propondo reformas eleitorais, reformas institucionais, jurídicas, as quais concretizariam um sistema liberal de fato e não meramente na ficção, na aparência, sem recorrer ao estado de sítio e aos militares. Em 1910, Rui Barbosa se sobressaia devido à campanha civilista, que defendia o afastamento do grupo jacobino, militarista, da condução dos fatos, evitando que o Brasil seguisse o caminho de nações militarizadas, e direcionando para o caminho do Reino Unido, o caminho britânico. Rui Barbosa lutou usando as armas à disposição. Isso significa que, para ser candidato e abater o sistema estabelecido, também se juntou com alguns oligarcas, sem nunca vencer. Simultaneamente, no sul, Assis Brasil, também um liberal, participa da Revolta Federalista contra os castilhistas, desafiando essa proposta autoritária, teórica, desenvolvida no Rio Grande do Sul. Assis Brasil era um presidencialista, uma vez que dava importância ao presidente, mas, ao mesmo tempo, defendia a federação e a descentralização. Nenhum dos dois, segundo o professor Antonio Paim, com todas as qualidades que têm, recupera a perdida representação por interesses, a organização de partidos. Ressalta-se, no entanto, que o Rio Grande do Sul, com a atuação de figuras como Assis Brasil, Gaspar Silveira Martins e companhia, é o único estado que realmente criou, naquela época, partidos, ao contrário do resto do Brasil. De fato, havia uma divisão no Rio Grande do Sul, que o castilhismo provoca e essa reação liberal corporifica. Fato é que nem Rui Barbosa nem Assis Brasil contribuem para recuperação da representação por interesses e para que se organize a discussão em termos da formação de partidos, de núcleos partidários, de mobilizações do eleitorado e da sociedade civil. Outro aspecto a ser mencionado é que Rui Barbosa fazia excursões pelo país, em que falava diretamente ao povo, criando uma cultura do diálogo direto, uma cultura do comício, praticamente inexistente antes dele. Rui Barbosa constrói essa atmosfera crescente falando ao público, às pessoas, defendendo a sua campanha civilista. Na reta final da República Velha, um terceiro nome, pouco conhecido, vem compor essa lista: João Arruda. João Arruda é um liberal de São Paulo, da área do direito, que usa a expressão ultraliberal para se definir. Ultraliberal não tem o mesmo sentido que os libertários de hoje, que defendem anarquismo, abolição do Estado, privatização de ruas, nada disso. João Arruda apoiava o sistema representativo e todas as franquias liberais. Além disso, acreditava na diluição da figura do presidente através da instituição de um Conselho de gestores, pois era contra a existência de uma pessoa concentrando tanto poder. João Arruda foi responsável por introduzir, na literatura liberal brasileira, uma sentença que, futuramente, foi encampada como lema pela UDN, cuja autoria titubeia entre Thomas Jefferson e Patrick Henry: “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Sentença mais liberal que essa não pode haver, porque a atividade liberal, por excelência, é a oposição, é a fiscalização do poder. O poder liberal, por excelência, é o legislativo, é ter força no legislativo, para fiscalizar, para controlar, para acompanhar e para conter os extravasamentos e exageros do poder executivo. Essa sentença entrou no imaginário liberal brasileiro através de João Arruda e foi absorvida na primeira tentativa de se organizar um partido, a União Democrática Brasileira, com base nessas ideias de Rui Barbosa, de rompimento com o sistema oligárquico, de uma reforma eleitoral e de acabar com a Comissão Verificadora. Armando de Sales Oliveira fez uma experiência de governo em São Paulo baseada nessas ideias, que são ideias economicamente as mais liberais do momento no país, mas que enfatizavam a presença do Estado em muitas atividades. A consciência da necessidade de haver uma institucionalidade liberal contendo o autoritarismo castilhista, o qual dispensava tudo isso, tinha ali ainda o seu fôlego. Esse fôlego foi totalmente eclipsado com a revolução de 1930 e com o Estado Novo. Isso é interessante porque, ao mesmo tempo, o movimento tenentista, formado de baixas patentes militares, era um movimento que se insurgia contra essas oligarquias dominantes da República Velha. Esse movimento trazia, no bojo, pregações e ideias que, de alguma sorte, ecoavam a pregação do Rui Barbosa. O voto secreto a fim de acabar com o voto de cabresto e a luta por encerrar a comissão dos eleitos são exemplos de bandeiras que se vão no sentido de dar mais transparência ao sistema, de densificar, enraizar o sistema transparente do ponto de vista liberal, político, da democracia liberal. Claro, dependendo da acepção de democracia que se utilize. No berço aristotélico, a democracia, uma forma de governo, degenera-se na demagogia, nessa crença absoluta na vontade da maioria, na vontade do povo. Contudo, no final do século 19 e no século 20, um esforço para casar o aumento da participação popular no processo decisório, a criação da democracia de massa, com a manutenção de pesos e contrapesos, de regras e de instituições que colocassem e mantivessem isso nos eixos. Ou seja, a fim de que se mantivesse uma continuidade institucional sem incorrer naquilo que Aristóteles chamava de demagogia. Na verdade, a pólis, a república, era o sistema que tentava combinar características de participação, de autoridade, de legalidade, de maneira virtuosa. Era o que esses liberais tentavam fazer, desconfiando da demagogia, da tirania que, no caso brasileiro, segundo os liberais da UDN, os quais apareceram posteriormente, sequestrou essa penetração da massa no processo para fins autoritários, populistas, porque identificou-se essa massa com o pai dos pobres, o salvador, o grande líder. Nesse momento, portanto, o tenentismo apresenta essas bandeiras rui barbosianas, de moralização do sistema. Ao mesmo tempo, contudo, existia uma vagueza em suas propostas que abria margem para soluções consideradas centralizadoras e de força para remexer esse sistema. A vitória da Revolução de 1930 A Revolução de 1930 levou os tenentistas ao poder e, em um primeiro momento, também essas bandeiras. Foram estas que concorreram nas eleições com o rótulo de Aliança Liberal, através de Getúlio Vargas, contra Júlio Prestes, o indicado de Washington Luís, este o último presidente da República Velha. A Aliança Liberal se apresentava como a personificação desse anseio por acabar com essa oligarquia. Entretanto, na verdade, era um movimento capitaneado por oligarquias descontentes, que queriam eleger Getúlio em um voto de protesto contra a situação estabelecida. Eles não conseguem e Júlio Prestes é eleito. Partem, então, para a reação armada, para a Revolução de 1930, com apoio da sociedade. Houve manifestações e um público que comemorou o feito, porque as pessoas queriam abolir aquele sistema fictício, aquela ficção jurídica que era a República Velha. O componente centralizador, para o qual havia margem, rapidamente passa a prevalecer sobre as bandeiras genuínas, que eram realmente desejadas. Prevalece, vale dizer, em um momento em que o liberalismo sofre os seus períodos mais dramáticos. O liberalismo leva as suas maiores surras no mundo, não só no Brasil, com a ascensão de forças totalitárias na Europa, como o fascismo, o nazismo e, na União Soviética, o stalinismo. A onda do momento eram essas ideologias autoritárias que apostavam no Estado, neste trazendo para si a massa, personificando-a no líder, que devia ser cultuado. A retórica de Hitler, de Mussolini, de GetúlioVargas, era de que o parlamento, as discussões, só enfraquecem o regime, o sistema, e dividem a sociedade. Vargas chegou a declarar que os partidos políticos eram um problema porque dividiam a sociedade, o contrário do que pensava a elite imperial na questão da representação por interesses. A independência e a autonomia dos estados, para Getúlio, eram forças dispersivas. Por isso, um de seus primeiros atos foi mandar queimar as bandeiras estaduais. Passou a vigorar somente uma bandeira, a do Brasil, a bandeira do ordem e progresso. Fabricar-se-ia uma unidade baseada na força, na autoridade de Vargas, e no regime por ele estabelecido. Os líderes autoritários e totalitários daquela época, quaisquer que fossem as cores ideológicas de que revestissem sua retórica, adotavam uma retórica por excelência antiliberal. Na Constituinte de 1934, existia um certo tradicionalismo antiliberal, com uma representação católica relevante. Na constituinte, o deputado Luiz Sucupira afirmou que o Brasil deveria evoluir em direção ao estado corporativo, ao estado totalitário. Ele usava expressa a palavra totalitário. Temos portanto um parlamentar falando, no parlamento, que o caminho certo é o totalitarismo. Sucupira também afirma que o parlamento é temporário, que o mundo já provou que o caminho não é o liberalismo, que é preciso dar mais um passo e ir para o totalitarismo, para o estado corporativo. Obviamente, houve críticas. Isso prova que o trabalho realizado por João Arruda e de Armando Sales Oliveira produziu resultados, pois havia grupos baseados em suas pregações insurgindo-se contra a defesa do autoritarismo no parlamento. No entanto, o trabalho de cooptação das massas, do operariado, do povo, toda a máquina que Vargas construiu prevaleceu sobre as tentativas de manter as coisas nos seus devidos lugares. A Revolução de 1930 ficou dois anos sem nenhuma constituição. É comum afirmar que a ditadura do Vargas começa em 1937, com a implementação do Estado Novo. Contudo, esse momento inicial é pior, porque na ditadura do Estado Novo, há a constituição de 1937, do Francisco de Campos. Ainda que estabeleça o presidente como grande mandatário, há um texto, uma regra, uma limitação, em tese, estabelecida por escrito, de como será o funcionamento daquele regime. Em 1930, não havia sequer isso. Houve o rompimento com a República Velha, com o sistema antecessor, que foi substituído pelo governo provisório. “Provisório”, pois Vargas se manteve durante 15 anos no poder, sob a justificativa de preparar a nação. A Revolução Constitucionalista de 1932 A constituição foi feita muito em função de uma reação liberal. Muitas pessoas falam que a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, foi simplesmente um movimento dos descontentes da República Velha, dos oligarcas, contra a ditadura da Revolução de 1930, a ditadura do Vargas, do governo provisório. Encaram a Revolução de 1932 como uma reação da parcela da população que queria que tudo ficasse como estava. No entanto, a Revolução Constitucionalista contou com a participação dos membros do Partido Paulista, que inicialmente haviam apoiado a revolução de 1930. Assim, não eram indivíduos que queriam manter as coisas como estavam. Na realidade, a Revolução de 1932 foi realizada por uma amálgama de forças paulistas contra a perpetuação daquele governo provisório. Eles exigiam uma constituição e afirmavam que não haviam pleiteado para substituir a República Velha, uma república de oligarcas que manipulavam a constituição, por uma ditadura de oligarcas sem nenhuma constituição. Apesar de ser derrotada, a Revolução de 1932, a meu ver, é um marco da luta pela liberdade, pela constituição, pela legalidade, no Brasil, que deve ser reconhecida nessa sua substância, nessa sua natureza, a despeito das prevenções e dos preconceitos que se lançam contra ela. Constrói-se, com certo apoio de Assis Brasil, uma conciliação em torno da perspectiva de uma constituição em 1934. Vargas conseguiu manipulá-la, colocando seus pelegos para votar, o que lhe garantiu a continuidade como primeiro presidente após a promulgação e o prolongamento do governo provisório. No período próximo às eleições, era perceptível a ascensão do pensamento centralizador e autoritário no universo político brasileiro. A ideologia da revolução de 1930 que prevaleceu com Vargas, inspirada no castilhismo, que transportou este para âmbito nacional, era centralizadora. O comunismo já estava presente no país, manifestando-se. Por fim, neste contexto, houve a emergência do integralismo. Os candidatos da eleição de 1937, que não ocorreu, eram: Plínio Salgado, integralista; José Américo, representando o governo, ou seja, representando a situação existente, centralizadora, ainda que fosse mais liberal que Vargas e; Armando Sales de Oliveira, pela UDN, solitário, com uma bandeira de democracia liberal, com a meta de colocar as coisas nos eixos e não desembocar apaixonadamente para o Estado totalitário. O golpe do Estado Novo Essa disputa não foi posta à prova pois Vargas surgiu com o Plano Cohen, declarando que havia uma grande armação comunista para tomar o poder. Existissem ou não tais planos, Vargas daria um jeito de permanecer no poder, pois era sua índole, sua personalidade, como enfatizamos, pelos discursos que desenvolveu. Em sua concepção, o Brasil precisava da unidade absoluta, com a destruição da rica diversidade das regiões dando lugar à construção de uma cultura nacional estabelecida. A meu ver, isso é um absurdo, uma contradição em si mesmo, porque a nossa riqueza vem justamente das diferenças que temos, das riquezas que temos regionalmente, das pluralidades. Isso engrandece a nossa pátria. Mas Getúlio não pensava assim. Ele dá o golpe do Estado Novo e implantando um regime com o mesmo nome do regime português do Salazar. Um regime que tem essa vocação por fechar o congresso e estabelecer, de fato, o antiliberalismo completo. Esse é o momento mais trevoso e de mais absoluta supressão do liberalismo no Brasil. O liberalismo está calado, morto, banido, sufocado. Friso que esta não foi a única ditadura que o Brasil teve, mas foi a mais completa, a que mais merece que esse rótulo seja estampado em letras garrafais, a ditadura do Vargas, alicerçada em sua autoridade pessoal. Vargas governava muito pela acomodação e ócio das forças políticas, que permitiram que ele perpetuasse seu regime opressor, violento, que apresentava um departamento de imprensa e propaganda e que construiu uma máquina de propaganda sofisticadíssima, uma réplica do que vinha sendo feito na Europa. Houve trocas de informações, de experiência, e até uma afinidade notória com a Alemanha nazista e com o fascismo. A CLT buscou inspiração na Carta del Lavoro. Dutra, um dos militares que participaram do golpe, era um germanófolo, admirava o regime nacional-socialista alemão. Havia uma aproximação desses líderes e homens de mentalidade antiliberal e parecia que esse era o caminho. Mussolini, na doutrina do fascismo, afirma justamente que este é o caminho, o futuro, que o liberalismo acabou e que o totalitarismo é a resposta que o mundo precisa. O século 20 será o século do totalitarismo. Essa era a substância da ditadura varguista. Uma ditadura anticomunista, que perseguiu os comunistas, os quais, posteriormente, em 1950, aliaram-se a Vargas, por uma orientação do Comintern. O Comintern ordenava que, onde os comunistas não tivessem condições de estabelecer a revolução para impor a ditadura do proletariado, apoiassem os governos nacional-populistas, que promoveriam, no linguajar marxista, revoluções burguesas contra as oligarquias liberais, encaminhando os países em uma direção que, depois, cavalgando esses regimes nacionais-populistas, os comunistas poderiam tomar a frente, assumindo o protagonismo. É exatamente isso que os comunistas vãopensar em 1964, com João Goulart e Brizola. Os comunistas eram e continuam sendo os mestres em estratégia. Embora, agora, estejam levemente perdidos. A ditadura de Vargas foi um momento de total eclipse do liberalismo. É preciso enaltecer que a sociedade brasileira não tinha o pensamento do Eixo, ao contrário de seus líderes. Houve manifestações, sobretudo quando a Alemanha atacou o navio brasileiro. Existia características do espírito ocidental incompatíveis com esse delírio totalitário, tanto que nossos pracinhas vão à Itália lutar pela liberdade de homens que nunca viram, que nunca conheceram, uma outra realidade da qual nunca participaram, arriscando dar suas vidas por essa liberdade. É uma luta brasileira pela liberdade, embora não se insira no contexto de um liberalismo teórico, do pensamento doutrinário liberal, esse sacrifício dos pracinhas é uma demonstração do anseio do brasileiro, de identificação do brasileiro, com as liberdades, algo que merece ser enaltecido. Os pracinhas arriscaram suas vidas pela liberdade de quem nem conheciam, de outra nação que não a sua própria, de um continente que não o seu próprio. Quando esses pracinhas regressam, o liberalismo volta a ter algum vigor e a se insurgir contra o estado de coisas estabelecido. Naquele cenário, começa a fazer pouco sentido nosso exército lutar em uma guerra contra os fascistas, contra a ditadura, pelos aliados, pelo Ocidente, e ser uma ditadura. Essa falta de sentido desperta algumas vozes, como a dos mineiros, em 1943. Os mineiros assinaram um manifesto, um texto histórico importante do liberalismo brasileiro, no qual expressam que o desenvolvimento econômico e social brasileiros não depende da ditadura do Getúlio Vargas. Os mineiros publicaram: nós não precisamos do totalitarismo. Nós não precisamos do autoritarismo. Nós não precisamos do corporativismo e do justicialismo4. Esse caráter ditatorial de Vargas, sem substância ideológica doutrinária estabelecida, muito embora houvesse influência do castilhismo, ia na direção do antiamericanismo e decorria de sua própria natureza a ideia de um Estado forte, interventor, de uma industrialização forçada pelo Estado. Neste ponto, estabelece-se um debate, marcante no liberalismo brasileiro, entre o professor Eugênio Gudin com o Roberto Simonsen, defendendo o liberalismo econômico. O professor Eugênio Gudin, embora tenha apoiado o ato institucional n.º 2, era o grande campeão do 4 O justicialismo é a expressão técnica usada para se referir ao regime peronista, que apresentava semelhanças com o regime de Vargas. Eram os regimes populistas latino- americanos impostos por ditadores que tentaram cooptar as bases operárias e da elite, simultaneamente, com um discurso quimérico. A lei do país sai da cabeça do ditador. liberalismo econômico naquele momento, e permaneceu neste posto durante quase todo o século 20, sendo mais liberal economicamente do que o Roberto Campos. Muitos descredenciam o liberalismo de Roberto Campos devido a iniciativas que adotou quando estava no Ministério do Planejamento do Castelo Branco. Contudo, se consideradas as limitações da época, Roberto Campos era um dos mais liberais do Brasil. Ele já falava, por exemplo, em voucher para ensino. Por isso, descredenciar seu liberalismo por limitações que tinha, como todos tinham, parece-me uma grande injustiça. O fim do Estado Novo Com a volta dos pracinhas e o manifesto dos mineiros, estabelece-se uma pressão para que Getúlio Vargas abra o regime, que acaba acontecendo. No entanto, às vésperas da transição do regime, Vargas começa a arquitetar certos movimentos a fim de favorecer a sua máquina. Isso faz com que seja necessário, e é preciso entender isso sobre o período, a existência de um golpe militar na ditadura, uma ação armada para depor o Vargas, em outubro de 1945, a fim de realizar as eleições. Isso é muito interessante. Contudo, a reforma eleitoral que havia sido feita foi comandada por Agamenon Magalhães, ministro do Vargas, um apoiador da ditadura de longa data. Vargas, o ditador, foi passar férias em São Borja, para voltar, cinco anos depois, com a bênção de toda máquina autoritária que havia montado. Então, é uma reintrodução democrática que também tem profundas deficiências. Neste momento, cabe enfatizar o que foi a UDN. A UDN se organiza, em um primeiro momento, para representar o anteparo antivarguista no sistema político que se estabelece, porque dois dos três grandes partidos são egressos da máquina varguista. Diz-se que o PSD é o partido conservador, o PTB é o partido trabalhista e a UDN é o partido liberal. Mas, conservador do quê? O PSD era o partido conservador do Estado Novo, era um partido que não se preocupava com a substância histórica brasileira, com o legado histórico brasileiro, e com a construção dessa unidade histórico-conceitual que diz respeito à maioria dos partidos conservadores no mundo. Nada disso. Era um partido que abrigava os egressos da máquina de poder da ditadura, os interventores, aqueles que mandaram nos estados sem constituição, sem lei, e que passaram a ser políticos. A máquina do PSD era a base elitista de apoio do governo do Vargas. O PTB, por outro lado, era a base trabalhista, a base dos pelegos. Vargas introduziu, nos dois partidos, homens de sua confiança. Nesse momento, Amaral Peixoto é presidente do PSD, e o Lutero Vargas presidente do PTB, partido através do qual Getúlio Vargas se candidata. Ele se candidata em vários estados simultaneamente, para puxar voto com o objetivo de fazer com que pessoas de sua confiança ocupassem o poder. Nada é feito quanto a isso. Vargas se elege como senador do Rio Grande do Sul pelo PTB. Com a revolução de 1930, instaurou-se erroneamente, no Brasil, esse sistema eleitoral deturpado, proporcional, de puxar votos, que não é na lista fechada do partido. Isso estimula alianças que não tinham consistência em princípios. Há estados em que o PTB e a UDN se coligam. Não há coerência ou coesão. Esses partidos deveriam ser grandes adversários, coligando-se para puxar votos. Lacerda fica horrorizado com isso. Nessa senda de puxar votos, com a máquina da ditadura toda montada e intocada, com a legislação eleitoral decorrendo do regime varguista, o varguismo, nas suas vertentes psedista e petebista, sempre prevalece, com a única exceção do Jânio Quadros. A UDN começa com uma frente de organização de todas as forças políticas que reagiam a essa máquina, indivíduos que queriam enfrentar o legado do Vargas, inclusive socialistas. Com o tempo, os socialistas desfiliam-se para criar o Partido Socialista Brasileiro, do Miguel Arraes. Com isso, a UDN se torna o reduto, ao mesmo tempo, de diferentes espectros. Havia uma substância liberal conduzindo a UDN, que abrigava liberais históricos, figuras como Milton Campos, Afonso Arinos de Melo Franco, Carlos Lacerda, o qual preferia enfatizar a sua simpatia pela democracia cristã, mas realçava sua inspiração na economia social de mercado, do ordoliberalismo alemão. Havia, igualmente, uma ala udenista à bossa nova, mais populista e pró-Estado. Havia, também, uma ala oligárquica, no nordeste, que não diferia muito das antigas oligarquias. A UDN era um partido que também estava poluído pelo sistema, inclusive, pelo sistema de puxar votos. Havia, no entanto, um liberalismo consistente dentro da UDN, real, que desafiava o legado varguista. Porém, muito ligado também aos grupos militares, o que levava a UDN a apoiar intervenções militares, em determinadas ocasiões. No final desse período, há uma polarização incensada da sociedade brasileira, pelas iniciativas do presidente João Goulart de colocar as instituições em uma posição de serem achacadas pelos sindicatos, que eram tomados de comunistas, os quais dominavam as diretorias dos sindicatos, com o apoio de seu governo. As Forças Armadas já estão
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