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A Rainha Prometida

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SUMÁRIO
 
SUMÁRIO
NOTA DA AUTORA
CAPÍTULO I – A PUNIÇÃO
CAPÍTULO II – O ACORDO
CAPÍTULO III – O LABIRINTO
CAPÍTULO IV – A DAMA
CAPÍTULO V – O ELÍSIO
CAPÍTULO VI – A PRIMAVERA
CAPÍTULO VII – OS TITÃS
CAPÍTULO VIII – A COLHEITA
CAPÍTULO IX – A MARÉ
CAPÍTULO X – A FÚRIA DO DEUS
CAPÍTULO XI – O TESTE
CAPÍTULO XII – A NOITE
CAPÍTULO XIII – A FEITICEIRA
CAPÍTULO XIX – O MONTE ETNA
CAPÍTULO XX – SANGUE DIVINO
CAPÍTULO XXI – A PROFECIA
CAPÍTULO XXII – O POETA
CAPÍTULO XXIII – A AURORA
CAPÍTULO XXIV – O PASSADO
CAPÍTULO XXIV – O TRAIDOR
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
ÁRVORE GENEÁLOGICA DOS DEUSES GREGOS
 
A Rainha Prometida:
Hades & Perséfone.
 
Copyright December 2023 por Helena Lopes
 
Preparação de texto e edição: Helena Lopes
Capa: Ellen Ferreira
 
Todos os direitos reservados. Este livro ou qualquer parte dele não pode ser
reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por
escrito, do autor ou editor. Esta é uma obra de ficção. Todos os nomes,
títulos, lugares e situações ou são frutos da imaginação da autora e usados
de forma ficcional. Qualquer similaridade com pessoas, situações, nomes
ou fatos são mera coincidência.
 
PLÁGIO É CRIME.
 
NOTA DA AUTORA
 
Eu sempre quis escrever uma releitura do mito do Hades e da
Perséfone, já que é meu mito grego favorito. Seis meses atrás eu tinha o
esqueleto de uma história, mas esta não fluiu.
Então, absolutamente inspirada pelo romance A Touch of Darkness e
a história do musical Hadestown, a história deste livro veio a mim como
uma epifania. Escrito em 17 dias. 80 mil palavras, Hades e Perséfone me
encontraram.
Nesse livro você vai encontrar paixão, redenção e muito amor.
Amor meu, amor de Perséfone e amor de Hades.
Vocês vão perceber que os personagens desse livro se encontram
perdidos o tempo todo. Não é ao acaso.
Eu sou eternamente grata por ainda estar aqui, viva, para poder
contar histórias como essas. Escrever salvou minha vida incontáveis vezes.
Escrever me deu e dá a oportunidade de encontrar meu ar sempre que me
vejo perdida.
E é por isso que escrevi esse livro. Para me encontrar.
Espero que você também se encontre.
Aproveite a leitura e bem-vindos ao mundo dos deuses deliciosos ;)
 
 
Esta obra contém temas que podem ser gatilhos e sensíveis para algumas
pessoas, como: depressão, violência física, violência doméstica e sexual;
assédio sexual; descrições de morte; suicídio. Contém cenas eróticas
descritivas. Idade de leitura recomendada: 18 anos.
 
 
PLAYLIST SPOTIFY DE
A RAINHA PROMETIDA:
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para aqueles que abandonaram a esperança e entraram no inferno.
Bem-vindos ao mundo dos deuses.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“If i cannot move heaven, I will raise hell”
Virgil
 
“Quero fazer com você o que a primavera faz com as cerejeiras”
Pablo Neruda
 
 
 
O
CAPÍTULO I – A PUNIÇÃO
 
 sol se erguia sobre o vale
das almas, no horizonte do
submundo.
 Perséfone, mais uma vez, acordou ao ouvir uma voz que a chamava.
Uma cantiga antiga que ouvira certa vez em seus sonhos.
Muito daquele mundo ainda a surpreendia. Depois de quatro anos
ali, aquela parte do dia havia se tornado a sua favorita. E quando estava de
volta ao mundo dos vivos, ela se pegava querendo retornar, para escutar a
voz, para assistir o amanhecer acima daquilo que não tinha mais vida. 
Perséfone viu sua mãe pela última vez ao completar dezoito anos.
Sua mãe, Deméter, deusa da colheita, tinha lágrimas em seus olhos quando
partiu.
Ela lembrava-se do toque de sua mãe quando desapareceu no ar,
após mais uma vez lhe pedir perdão sem dizer uma só palavra. Em suas
mãos, Perséfone fora deixada uma flor. Uma flor que nunca tinha sido
permitida ser plantada nos palácios onde cresceu. Uma for de narciso.
A flor era amarela como o sol de primavera e significava seu
destino.
Seis meses no mundo dos mortos e seis meses no mundo dos vivos.
Aquela era a punição que sua mãe havia recebido, milênios antes,
após tentar assassinar um dos deuses mais poderosos do Olimpo. Sua
primeira e preferida filha teria de passar metade da existência no mundo
inferior.
Os primeiros anos não haviam sido fáceis. Perséfone estava
constantemente sozinha e as vozes vindas do vale das almas a assustavam.
Apesar de ser, assim como sua mãe, uma deusa, a deusa da primavera, ali,
naquele mundo que não era vivo, não era nada mais do que uma garota
perdida, servindo a sentença e a punição dada a sua mãe.
Quatro anos haviam se passado desde a última vez que vira sua mãe
e, agora, tudo estava diferente.
Quando o sol se posicionou sobre as permanentes nuvens de fumaça
que vinham do tártaro, Perséfone virou uma xícara de chá o mais rápido que
pôde e correu para seu pequeno jardim atrás de seu – ainda menor – chalé.
O chalé havia sido dado a ela pelo mensageiro dos deuses, Hermes,
assim que ele soube da punição de Deméter e o que Perséfone precisaria
fazer quando completasse dezoito anos. Ela o conhecia há alguns anos e ele
estava constantemente por ali, fazendo entregas e entregando mensagens ao
rei do submundo, Hades; um dos três deuses mais poderosos existentes – o
qual ela, após todos aqueles anos morando ali, jamais tinha visto.
Perséfone caminhou por entre as fileiras de girassóis, tulipas e suas
favoritas, dálias. O pequeno jardim a fazia se lembrar de seus palácios, onde
a primavera era presente durante os seis meses que ficava no mundo dos
vivos.
Mais a frente, uma gigante árvore com romãs maduras se erguia.
Aquela era apenas uma de um pequeno pomar que subia em direção oposta
ao mar, em direção aos campos e aos palácios de Hades, aonde ela nunca ia.
Com uma cesta nas mãos, Perséfone colheu todas as romãs que pôde
e seguiu em direção a pequena cidade de Asfódelos. Ela precisava cruzar os
campos e um dos cinco rios do submundo para chegar lá.
Asfódelos era a cidade que acolhia as almas que tiveram vidas e
mortes comuns. Essas almas eram presenteadas com a possibilidade de
viver em morte o que elas um dia tiveram em vida.
“Ei, Primavera!” Eurídice gritou de longe.
Erguendo a mão, Perséfone acenou para ela, que vinha correndo em
sua direção.
As duas tinham se conhecido no primeiro ano de Perséfone no
submundo. Ela tinha encontrado a deusa perdida nos campos que dividiam
os palácios de Hades e o Lete, o rio do esquecimento.
Desde então, as duas haviam se tornado inseparáveis.
Eurídice a alcançou e pegou uma das romãs da cesta, sem
cerimônia.
“Você já ouviu os sussurros?”
“Quais deles?” Perséfone perguntou, revirando os olhos.
Os vivos não eram seres naturais no mundo inferior, e era por isso
que Perséfone escutava vozes e os clamores de almas. Especialmente
aquelas que vinham dos vales distantes, pois eram almas recém-chegadas,
almas que não tinham sido julgadas e ainda tinham esperanças de voltar ao
mundo dos vivos, algo quase impossível de ser feito e um presente que só
poderia ser dado pelo rei, Hades.
Eurídice riu do comentário de Perséfone e bateu no ombro dela,
abrindo a romã entre os dedos.
“Ele voltou!”
“Quem?” Perséfone franziu o cenho. “Hermes?”
Ele tentava visitar Perséfone pelo menos uma vez durante os seis
meses que ela tinha que ficar ali. Geralmente, ele se recusava dormir na
única cama que havia no chalé e dormia sobre o tapete a frente da lareira,
na cozinha, o que impressionava Perséfone, pois no mundo dos vivos, os
palácios dele eram dez vezes maiores do que os dela.
“Não.” Eurídice revirou os olhos. Ela achava que Perséfone tinha
uma paixão escondida pelo mensageiro dos deuses. “Hades.”
Perséfone continuou caminhando como se nada tivesse mudado.
“Não tenho certeza como isso me impacta.”
“Você pode pedir uma audiência para ele...”
Perséfone parou onde estava e respirou fundo. Ela olhou para as
romãs e sentiu uma pressão no peito quando percebeu o que Eurídice queria
dizer.
“Você é uma deusa!” Ela disse rápido quando viu o olhar de
Perséfone. “Você está viva... e essa não é a sua punição. Você não precisa
estar aqui!”
Ela abriu um pequeno sorriso, que não alcançou seu olhar.“Eu sei. Mas eu a aceito mesmo assim”
Eurídice olhou para a amiga por alguns segundos e ofereceu a ela
um pedaço da fruta que tinha nas mãos. O assunto ficou para trás.
Perséfone jamais diria a amiga que tinha pensado naquilo todos os
dias dos seus primeiros meses no submundo. E que, na verdade, no dia em
que ela a encontrou perdida nos campos, era porque Perséfone estivera em
busca do salão de julgamentos, onde Hades oferecia essas raras audiências.
Mesmo se um dia conseguisse falar com o deus da morte, ela sabia
que não havia nada que ele poderia fazer, pois com o passar dos últimos
anos ela começou a sentir algo dentro de si, algo que a dizia claramente que
estar no submundo fazia parte do destino dela, o destino que tinha sido
bordado pelas próprias Moiras, três mulheres que criavam o fado de mortais
e deuses.
Asfódelos surgiu a frente e as duas continuaram pela ponte que
atravessava o rio Cócito.
A cidade não possuía grandes templos, palácios ou castelos. Esses
eram elementos que eram encontrados no mundo dos vivos. Ali, as almas
não precisavam de riquezas ou de venerar deuses, afinal, já estavam mortas.
Apenas uma vez ao ano, no início do inverno, sempre no primeiro
dia que Perséfone chegava de volta, as almas acendiam uma fogueira de
chamas mortas, que tinham cor azul, e queimavam cartas com pedidos ao
deus. Era dito que Hades, às vezes, atendia a esses pedidos.
O único ser capaz de levar algo do mundo dos mortos para o dos
vivos era Hermes, e esse era proibido de falar sobre a vida lá fora quando
estava ali.
A cidade, sem templos ou palácios, consistia em pequenos chalés
feitos de pedras vulcânicas, negras como a noite, mas que durante o dia, sob
os raios de sol, brilhavam quase como se fossem pedras preciosas.
Perséfone havia encontrado um lugar lá, junto ao um grupo de
meninas e jovens mulheres que tinham morrido muito novas, geralmente
pela fome ou febre. Ela as encontrava todos os dias e oferecia frutas que seu
jardim dava, ou até mesmo o que encontrava nos vales próximos ao chalé.
Muitas vezes, elas se sentavam ao redor da deusa e lhe contavam
suas histórias, ou cantavam, ou esperavam que Perséfone lhes falasse sobre
o mundo dos vivos e dos deuses.
Naquela manhã, o grupo já estava à espera das duas, com chá e
biscoitos de aveia e mel. Ainda impressionava Perséfone que a comida no
mundo inferior era tão real quanto no mundo acima.
A cesta de romãs foi passada ao redor. Naquele dia, era a vez de
Eurídice contar sua história. Muitas almas novas tinham chegado em
Asfódelos nas últimas semanas, e algumas ainda se sentiam amedrontadas
ao saber que não eram mais seres vivos. O sentimento não durava muito e,
geralmente, elas conseguiam encontrar consolo no grupo.
A verdade era que, toda vez que escutava as histórias das almas,
Perséfone se sentia menos viva. Uma parte dela ficava ali sempre que subia
ao mundo dos vivos e agora ela era incapaz de olhar para a vida de outra
forma.
Aquela não era a primeira vez que Eurídice contava sua história e,
mesmo assim, Perséfone viu a amiga respirar fundo e fechar os olhos.
 
O nome dele era Orfeu. Ele era um poeta e cantava em bares pela
noite. Foi assim que ela o conheceu. Eurídice era uma viajante, sempre
passando de lugar a lugar sem criar raízes.
Na noite mais fria de inverno, onde ninguém é feito amante, Orfeu
cantou uma canção que aqueceu não só o corpo de Eurídice, mas seu
coração.
Ela tinha dezessete anos. Orfeu, dezoito.
Ela era a filha das estradas e de deuses abandonados.
Ele, o filho de uma musa e o deus dos sonhos.
Os dois, juntos, viajaram pelos mundos dos deuses e dos mortais,
até o dia em que Eurídice adoeceu.
Conhecendo os deuses, Orfeu decidiu pedir ajuda de seus pais, os
quais disseram que não poderiam fazer nada contra a morte caso viesse
buscar sua amada, pois o único que poderia fazer isso era Hades ou as
moiras.
Sabendo que não conseguiria uma audiência com o rei dos mortos
no mundo dos vivos, ou as moiras, pois elas eram impossíveis de serem
encontradas, Orfeu foi atrás de Hermes, pois além de ser mensageiro dos
deuses, ele também era seu padrinho, e famoso por ser o deus da trapaça.
Orfeu tinha a esperança de que ele pudesse trapacear a morte.
Hermes não podia.
Orfeu então voltou de sua busca para encontrar Eurídice a beira da
morte.
Eles se casaram pela noite e quando a manhã chegou, ela tinha
sucumbido a doença.
 
“Ainda me lembro seus olhos” Eurídice disse. “Quando ele cantava,
era como se dissesse que me amava com cada som que sua voz emitia”
Perséfone olhou para a amiga e para os dedos dela. Ela tocava,
despercebida, a aliança feita de carvalho que Orfeu dera a ela no dia de seu
casamento. Eles não tinham dinheiro para ouro, então ele esculpiu a aliança.
Na aliança havia o relevo dos caminhos que, juntos, eles tinham
atravessado.
O amor deles havia sido puro, Perséfone sentia. Como uma clareira
antes da primavera, coberta por seiva. Eurídice ainda o amava. Ela tinha
morrido aos vinte e dois anos, a idade de Perséfone. E estava ali em
Asfódelos havia dez anos.
As almas ao redor bateram palma para ela e Eurídice foi até o
assento mais próximo da deusa.
Antes a próxima história se iniciar, um grupo de crianças que estava
por ali foi até Perséfone e lhe entregou uma coroa feita de narcisos. Essa era
a flor mais comum do submundo. Era dita ser a flor preferida de Hades, por
isso que crescia em todos os cantos.
Não era a flor preferida de Perséfone, pois a fazia lembrar do dia em
que sua mãe desaparecera.
Ela sorriu e deixou as garotas colocarem a coroa sobre sua cabeça.
Uma garota mais velha, de doze ou treze anos, começou a trançar os
cabelos dela, enfeitando seus fios com ainda mais narcisos.
Perséfone era amada no submundo. E, às vezes, ela se perguntava
por quê. Não havia muito que poderia oferecer aquelas almas, pois estava
quase tão presa quanto elas.
Ainda assim, as almas a respeitavam como uma dos seus.
“O que acha, milady?”
Todos em Asfódelos chamavam-na daquela forma. A única exceção
era Eurídice, que geralmente a chamava de Primavera ou Perse, mas sempre
fora das vistas das outras almas. Afinal, Perséfone era uma deusa. E
desrespeito contra deuses era algo considerado perigoso.
A garota entregou um espelho oval, pequeno, a ela e Perséfone
encarou seu reflexo.
Seus olhos eram como âmbar, mas hoje pareciam mais escuros,
como chamas.
Seus cabelos longos eram da cor do mel, agora presos na trança que
caia sobre sua cintura, cobertos por flores amarelas.
Sua face era bela e Perséfone não fingia desconhecer sua beleza. No
mundo mortal, sua beleza seria capaz de enfeitiçar mil homens, mortais ou
divinos. No entanto, perto de Afrodite ou de sua própria mãe, Deméter, ela
sempre se sentia uma garota perdida e em farrapos.
“Majestosa, como sempre” Uma voz chegou entre eles antes que
Perséfone pudesse responder.
Hermes.
Perséfone sorriu, agradeceu a garota e se ergueu para encontrar o
deus, que estava parado na porta do chalé onde o grupo se encontrava todos
os dias.
Ela correu até ele e o abraçou. Hermes recebeu o abraço dela e a
apertou com força entre os seus. Hermes tinha o cheiro de hidromel. E seu
abraço era sempre quente.
“O que está fazendo aqui?” ela quis saber, se afastando, tomando a
oportunidade de olhar para ele.
Ele vestia uma armadura leve feita de prata, com seus símbolos em
relevo de ouro sobre o ombro. Entre a armadura e a pele, ele vestia trajes de
algodão branco.
Seus cabelos, loiros, quase brancos, estavam jogados para trás e
caíam sobre os ombros. Os olhos azuis dele passearam pelo corpo dela,
também aproveitando a oportunidade para admirá-la.
Ali, no mundo inferior, Perséfone tinha que fazer suas próprias
roupas, pois era incapaz de trazer objetos dos mundos dos vivos. Sua sorte
era que tinha sido ensinada bordados quando criança e encontrava prazer
em fazer as roupas que vestia.
Naquela manhã, ela usava um de seus melhores vestidos. Feito de
uma seda antiga, cor azul, o vestido caia até abaixo de seus joelhos e tinha
mangas largas que iam até o pulso.Sobre o decote do pescoço, usava o
colar que havia sido lhe dado em seu primeiro ano ali.
Era um medalhão de âmbar, como seus olhos. Dentro do âmbar
havia uma pequena rosa vermelha.
Quando o olhar de Hermes encontrou o medalhão, os olhos dele se
distanciaram. Isso sempre acontecia, era como se aquele medalhão o
lembrasse de algo importante, algo ameaçador.
“Eu venho aqui com uma mensagem” ele a respondeu, de repente.
“Para mim?”
“Na verdade, não.” Ele se afastou dela e olhou ao redor do chalé.
As almas não tinham parado de contar as histórias delas por conta
do deus. Elas sabiam bem que ele não poderia fazer nada por elas e ignorá-
lo era a melhor coisa que faziam.
No entanto, o chalé ficou em silêncio quando ele encontrou a alma
que estava à procura.
“Eu venho com uma mensagem para Eurídice.”
“O quê?” Eurídice sussurrou.
Perséfone encarou Hermes. O que quer que ele estivesse prestes a
dizer não seria bom.
“O rei solicita sua presença no salão de julgamentos”
“Mas... eu já fui julgada” Ela se ergueu de onde se sentava, com os
olhos arregalados.
“Você está certa. O julgamento não é o seu, mas alguém que você
ama.”
Eurídice ficou em silêncio por aquilo que pareceram longos
minutos. Perséfone foi até ela.
“Não...” Ela balançou a cabeça, sentindo lágrimas caírem.
Se Orfeu estivesse no salão de julgamentos, significava que estava
morto.
“Antes de fazer qualquer suposição, por favor, venha comigo. O rei
solicita sua presença agora.”
Ele disse a última palavra em um tom que só deuses poderiam usar.
Resoluto. Final.
Eurídice encontrou o olhar de Perséfone e soube que precisava ir
com ele.
“Eu irei com você” A deusa disse.
“Não.” Hermes voltou-se para ela. “Hades me deu instruções
específicas. Somente Eurídice pode vir”.
Foi naquele momento que Perséfone percebeu que o deus dos
mortos sabia, afinal, que ela existia. Por todos aqueles anos, se perguntou se
ele sabia ou ao menos se importava que ela estava ali, caminhando, viva,
nos domínios de seu reino.
“Então, ele sabe que estou aqui?”
Hermes respirou fundo. Havia um tom de impaciência na voz dele.
“Hades sabe de tudo que acontece em seu reino, Perséfone. E ele me
pediu, especificamente, que a deusa da primavera não interferisse nessa
ocasião. Não é um pedido, é uma ordem”
Perséfone sentiu um calor subir pelas entranhas. Ela tinha aprendido
a não pensar em Hades e deixá-lo em um lugar bem profundo dentro de si.
Ela não o conhecia. No entanto, havia algumas razões que a fazia querer
odiá-lo, mesmo sem saber quem ele era. Balançando a cabeça, ela afastou
esses pensamentos.
“Sinto muito” disse a Eurídice.
Aquele era o reino dele e como deus resoluto Perséfone não podia
fazer nada.
Eurídice conhecia pouco sobre a autoridade dos deuses, mas o
suficiente para saber que ninguém confrontava Hades.
Caminhando até Hermes, Perséfone assistiu quando a amiga ergueu
a mão para o deus, e assim que os dedos deles se encontraram, os dois
desapareceram no ar, como se nunca tivessem estado ali.
 
 
 
O entardecer caiu sobre o submundo. Perséfone não conseguia ficar
parada, Eurídice ainda não tinha voltado, o que poderia significar notícias
ruins.
Descalça, ela foi até seu jardim e sentou-se entre as tulipas,
respirando o aroma das flores ao redor, tentando não pensar no que
acontecia no salão de julgamentos.
Hades era famoso por seus julgamentos duros e... justos. No entanto,
Perséfone conhecia o amor de Eurídice e seu coração doía em não poder
ajudá-la.
A morte de sua amiga havia sido um evento normal, algo que não
afetava outros além daqueles que a amava. Por isso havia sido enviada a
Asfódelos.
No entanto, Orfeu era filho de deuses e isso poderia alterar seu
destino no submundo, caso estivesse de fato morto e virado uma alma.
Havia outros lugares além da vila onde Hades poderia enviá-lo. O Elísio era
um, o lugar feito para heróis, para aqueles que vivem pela honra dos deuses
e reis... E o Tártaro era o outro, o lugar onde aqueles que fizeram outros
sofrerem iam.
Isso significava que até em morte os dois poderiam ser separados.
Perséfone abriu os olhos, determinada.
Ela se lembrava de quando Eurídice a fizera companhia, nas noites
mais solitárias do seu primeiro ano ali. Isolada de tudo que conhecia, de
seus poderes, de seus palácios e servos. Isolada de quem era. Ela havia sido
a única alma entre todas as outras que não só a respeitava, mas que a
considerava igual. Não uma deusa... uma amiga.
Ela havia cantado para Perséfone e a ajudado a encontrar seu
caminho ali, naquele lugar que era, literalmente, o inferno.
Se erguendo do chão, a deusa da primavera olhou para oeste, onde o
sol de punha. Era naquela direção onde o salão dos julgamentos estava.
Ainda descalça, ela seguiu o pôr-do-sol. Primeiro, lentamente,
saindo de seu jardim e adentrando a sombria floresta feita de árvores de
romã. E então, quando viu o largo campo que a separava de sua amiga,
começou a correr.
 
E
CAPÍTULO II – O ACORDO
 
la tinha se perdido uma vez,
por isso sabia qual caminho
evitar.
Perséfone tentou encontrar a aura de outros deuses. Eles podiam sentir um
ao outro, caso fizessem um esforço. E ela conseguia sentir a presença de
Hermes, fraca e distante, presente em algum lugar mais ao oeste do campo
por onde corria. Havia outra presença também. Uma, que ao contrário de
Hermes, era intensa.
Sombria como noites de inverno... como noites no inferno.
Ela correu e correu até o campo se erguer sobre uma colina. Ela viu
portas negras surgirem por entre um palácio de pedras escuras, com
vidraças azuis vibrantes.
Ao contrário do que estava esperando, o caminho de subida até lá
não possuía obstáculos.
Perséfone chegou até as portas enormes e respirou fundo. A trança
feita pela alma jovem mais cedo havia se desfeito e agora seu longo cabelo
cor de mel caia em ondas sobre os ombros, descendo até abaixo dos
quadris. Pouco da coroa de narcisos restava.
Ela respirou fundo, afastou fios rebeldes do rosto e colocou a mão
sobre as portas negras.
Dentro do salão, um alto estrondo ressoou por entre as paredes.
A porta se abriu carregando a deusa da primavera. Ela ainda vestia o
vestido feito por si mesma e tinha os pés descalços, agora machucados pela
corrida até ali.
Ela adentrou o salão e evitou olhar para trás quando as portas negras
se fecharam com um baque em suas costas. Perséfone ergueu o queixo
quando olhou ao redor.
O salão era feito de pedras nuas, escuras. Archotes iluminavam o
arredor e uma grande lareira se encontrava no exato centro, pois o salão era
um círculo perfeito. No teto, acima de todos, um domo de ouro se
encontrava, com um óculo que dava para as estrelas da noite do mundo
mortal – e ela sabia disso, pois as estrelas do submundo eram diferentes,
tinham outros nomes e outras histórias.
Do outro lado da fogueira, ela encontrou Eurídice. Sua amiga abriu
um sorriso quando a viu. Um homem um pouco mais velho que ela
segurava sua mão. Ele tinha a pele cor de terra molhada e lindos cachos
sobre a testa. Sobre suas costas havia um violão. Ele era Orfeu. O poeta.
Ao lado do casal estava Hermes.
Aquele era um julgamento incomum, Perséfone percebeu.
Geralmente, os três juízes dos mortos estariam presentes. Eles eram Éaco,
Radamanto e Minos. No entanto, no salão, só um juiz estava presente.
Aquele que geralmente preferia manter distância para permanecer
imparcial.
A frente deles, um imponente trono se elevava sobre as pedras
negras. Feito de ferro e ossos, era rústico e majestoso. Afinal, era o trono de
um rei.
Sobre este, ela o viu pela primeira vez.
Hades.
Ele, mesmo sentado, parecia ser um homem alto. Seus cabelos eram
negros, cortados como um soldado os cortaria.
Assim como Hermes, Hades portava uma armadura. A dele, no
entanto, era uma mistura de ferro em brasa e couro escuro. O completo
oposto do deus mensageiro.
O olhar dele encontrou o dela no instante em que entrou no salão.
Eles se entreolharam por um longo segundo. Seus olhos eram da cor
do trono, escuros, distantes como metal queimado.
Perséfone soube no instante que encontrouaqueles olhos frios que
tinha acabado de cometer um erro. No entanto, também soube que não
poderia voltar por onde tinha vindo.
Era tarde de mais.
Quebrando aquela conexão, caminhou até Hermes e o casal,
sentindo o coração bater como trotes de um cavalo dentro do peito e, de
repente, ficou sem ar.
Não sabia se era por causa da corrida até ali ou pelo fato de que
conseguia sentir o olhar agora quente... não, fervente, do rei dos mortos
sobre sua face.
Perséfone chegou até a frente do trono e fez uma mesura. Ela era
uma deusa, sim, mas Hades era um dos doze. E mais do que isso, ele fazia
parte da Trinidade de deuses mais poderosos. Aqueles filhos dos titãs,
aqueles que guardavam o mundo dos mortos e que lutavam pelo mundo dos
deuses.
Ela respirou fundo e tentou se preparar para encontrar a face dele
mais uma vez.
Nada poderia prepará-la. A intensidade do olhar dele era uma marca
em sua pele. O cenho dele se franziu assistindo a presença dela. Ele passeou
o olhar pelo corpo dela, se demorando em seu rosto e deixando-o cair nos
pés descalços e arranhados. Perse sentiu um toque de vergonha cobrir as
maçãs de seu rosto.
“Achei que tinha ordenado que...” A voz dele bradou entre eles,
rouca e grave.
“Eu venho para dar meu favor a Eurídice... e Orfeu.” Ela o
interrompeu, firme.
Hades apertou os olhos e suas mãos se fecharam em punhos.
Interromper o deus dos mortos não era uma boa ideia, ela pensou
imediatamente.
Ela nem mesmo sabia a razão do julgamento, e não importava.
“Eu já lhes dei minha decisão” Hades a respondeu, calmo e resoluto.
“O garoto voltará ao mundo dos vivos”
Perséfone voltou-se para Eurídice e Orfeu em choque. Ele não
estava morto. Então... como havia chegado até ali?
“Eu o ajudei” Hermes respondeu à pergunta silenciosa dela, um
tanto orgulhoso de si mesmo. “Eu o mostrei o caminho entre o mundo dos
vivos e dos mortos e disse a ele que lhe daria meu favor caso conseguisse
encontrar Hades.” 
Hades pareceu achar graça nesse comentário, mas não disse nada.
“Você está vivo”
“Sim, deusa. Eu vim pedir ao senhor do submundo para dar a vida
de volta a minha amada”
Oh.
O olhar de Eurídice caiu no chão quando ele disse isso. Os dois
apertaram o enlaço das mãos. Era por isso que os três juízes não estavam
ali. Eles só julgavam aqueles que haviam morrido, e não pedidos de vivos.
E a presença de Hermes havia sido a razão pela qual Hades havia voltado
ao reino, pois deuses precisavam atender a audiências solicitadas por outros
deuses, mesmo que menos poderosos. Era uma lei entre eles, algo que
tentava fazê-los iguais.
“Dê-a vida. Deixe-os sair do submundo juntos.” Perséfone voltou-se
para Hades.
Ele olhou para ela por um longo segundo e disse, simplesmente:
“Não.”
“Por quê?” Ela o questionou, sentindo borboletas se agitarem no
estômago.
O único deus que Perséfone havia enfrentado em sua vida havia sido
sua mãe. E sua mãe a amava demais para puni-la.
No entanto, Perséfone pensou, ela já estava no inferno sofrendo uma
punição. Não haveria muito que o senhor dos mortos pudesse fazer para
piorar isso.
Hades não a respondeu, no entanto. Ela deu outro passo em direção
ao trono.
A deusa tinha ouvido os sussurros, as histórias. O rei do mundo
inferior tinha um só vício. Ele fazia acordos e, às vezes, apostas.
“Faça um acordo comigo”
As palavras escaparam da boca dela antes que ela pudesse pensar
uma segunda vez.
“Perséfone!” Hermes gritou sobre seu ombro. Ele se aproximou e
pegou o braço dela com força, falando rápido em seu ouvido. “Nada vale a
pena fazer um acordo com ele!”
Hades apertou os olhos e se encostou ainda mais no trono, assistindo
a proximidade dos dois e a mão de Hermes sobre ela.
Perse puxou o braço e mais uma vez se aproximou do rei do
submundo.
“O que a deusa da primavera poderia me oferecer... que teria meu
interesse?” Hades disse, com um tom esnobe. Ele levou a mão até o queixo,
assistindo-a.
“O que você quer?” A mão de Hermes tentou alcançá-la mais uma
vez quando disse isso, mas ela se virou para ele e o fulminou com o olhar.
“Eurídice é uma das minhas. Eu preciso fazer isso por ela.”
O deus mensageiro respirou fundo e balançou a cabeça,
consternado, abaixando os braços.
“Você está disposta a me dar o que eu quiser?” Hades perguntou,
sombrio.
Perséfone se deu conta de que aquela era uma oferta muito ampla.
Rapidamente, disse:
“O meu bem mais precioso. É seu.”
“Hm” Hades suspirou, ainda não satisfeito. Mas, olhou para
Perséfone e para o casal. “Eu aceito seu acordo, deusa. No entanto, não
posso permitir que eles saiam de meu reino sem um teste, caso contrário
nenhuma alma permanecerá no submundo.”
“Mas...” Perséfone tentou dizer.
Hades fez um movimento com a mão e isso foi o bastante para
silenciá-la.
Ele se ergueu do trono, imponente e ainda mais alto do que ela
imaginava.
“Você poderá voltar ao mundo dos vivos...” disse em direção a
Eurídice. “No entanto, vocês não poderão caminhar mão em mão. Ele terá
que caminhar a frente e você terá que segui-lo.”
Os dois olharam um para o outro, assustados, mas confiantes.
Hades se aproximou dos dois.
“No entanto, poeta, se você olhar para trás ou se sucumbir às
dúvidas, e eu garanto a você que elas existirão... Sua amada voltará a
Asfódelos e tudo será como se nada tivesse acontecido. Vocês acham que
podem fazer isso?”
“Sim” Orfeu respondeu.
Hades ergueu uma sobrancelha, como se assistisse algo interessante
na face do poeta. Ele parou sobre os dois, alto e distante, por alguns
segundos. E, então, se virou para os deuses parados mais adiante.
“Hermes, seu trabalho aqui está feito”
Quando ele disse isso, o deus loiro olhou para Perséfone e, no
segundo seguinte, despareceu.
“Sigam em direção ao fogo no centro do salão. As chamas levarão
vocês ao caminho que devem seguir.” Disse aos dois. O olhar de Hades
então recaiu sobre Perséfone. Frio. “E você, deusa da primavera, faça suas
despedidas. Quando terminar, me encontre em meu palácio.”
E no segundo seguinte, ele já não estava mais ali.
Eurídice a abraçou forte e Orfeu beijou suas mãos.
“Eu te encontrarei no mundo dos vivos em alguns meses” Eurídice
disse.
Perséfone sorriu. De um jeito ou de outro, ela encontraria a amiga
mais uma vez e isso fazia aquela despedida algo quase doce.
Ela deixou os dois seguirem o caminho que precisavam seguir.
Com as mãos entrelaçadas, eles caminharam em direção ao fogo no
centro do salão e assim que suas silhuetas desapareceram, o fogo abrandou,
se tornando brasa.
 
 
Perséfone deixou a água morna correr pela pele. No chalé só havia
uma banheira pequena e não havia água corrente. Sempre que se banhava,
precisava aquecer dois baldes de água sobre o fogo da lareira, os quais
jogava acima da água fria que coletava, balde por balde, de um poço velho
em seu jardim. Era assim como também conseguia água para regar suas
flores.
Ela se esfregou o máximo que pôde e fez questão de escovar os pés
e as unhas dos dedos.
Quando saiu a banheira, passou na pele um óleo de narciso que as
almas a tinham dado de presente. Não era seu favorito, mas ali ela não
possuía o mar de opções de óleos de flores que tinha em seus palácios.
Perséfone não sabia exatamente o que o deus queria com ela, mas
sabia que precisava evitar o olhar de desprezo dele, quando olhou para seus
pés descalços mais cedo.
Encontrando um vestido verde de algodão que amarrava na cintura e
estava em boas condições, se vestiu e calçou meias grossas para
acompanhar o único par de sapatos que tinha, botas grossas de couro que
um dia tinham sido de Hermes, mas que serviam bem e eram confortáveis.
Ela deixou os cabelos soltos e decidiu que aquilo era o bastante.
Caminhando de volta através do pomar de romãs e o campo que
cobria uma vastidão, Perséfone seguiu em direção ao terceiro rio que cobria
aquele reino, Lete, o rio do esquecimento. Ela sabia que o palácio de Hades
ficava naquela direção, pois ouvira as almas falando sobre isso mais de uma
vez.
Quando encontrou o rio, seguiu, lentamente, pela praia de pedras,
tomando cuidado para não tocar na água. Era ditoque, deus ou mortal,
aquele que tocava a água daquele rio esqueceria o que mais amava.
Ela não precisou caminhar muito. De longe, foi capaz de ver as altas
torres do palácio de Hades.
As torres se erguiam por sobre o rio, como se fossem umas com as
águas. A escuridão da noite encobria parte do que ela podia ver. O palácio
era uma mistura de prata, vidro e sombras. Enorme, monumental.
O poder do deus dos mortos exalava em cada linha do palácio.
Ela caminhou até lá, encontrando escadas que davam para a
primeira parte do complexo e uma ponte. Ela não via portas, no entanto.
Apenas uma parede de pedras vulcânicas e vidro.
Ao colocar os pés sobre a ponte, Perséfone sentiu um poder antigo.
As sombras do castelo se moveram e, de repente, ela se sentiu puxada para
dentro do palácio.
Ela fechou os olhos, sabendo o que estava acontecendo.
Aquilo era magia de proteção, de engano. Ela sentiu ar quente no
rosto e um peso sobre os ombros, puxando-a para o chão.
Perséfone se sentiu cair e aterrizar com força, apoiando as mãos
sobre o chão que não era mais o mesmo que dois segundos atrás.
Abrindo os olhos, ela se ergueu. Magia dos deuses circulava o ar
que ela respirava.
A deusa agora estava dentro do palácio. O saguão de entrada não era
como esperava.
Ela estava no centro de um enorme salão em semicírculo, com
grandes escadarias que levavam para cima em confusos padrões. Ao redor
dela, janelas de vidraças de vinte metros se erguiam, trazendo a luz da noite
para dentro e exibindo uma densa floresta de pinheiros do lado de fora.
As paredes eram cobertas por folhagem e ornamentos em ouro.
Archotes se encaixavam entre os adornos, fazendo ainda mais luz e calor.
Talvez ela estivesse esperando algo sombrio e macabro, afinal ele
era o rei dos mortos, mas aquela parte do palácio era aberta, uma com a
natureza.
Ela percebeu que havia sido permitida dentro do palácio e essa era a
principal razão qual não havia portas. Algumas almas do submundo nunca
cansariam de tentar entrar ali, tentar encontrar o rei e tentar lhe pedir seu
favor.
Perséfone tinha visto almas contentes, almas que haviam deixado o
mundo dos vivos para trás. Assim como as que lamentavam tanto a vida que
havia sido interrompida que seriam capazes de fazer tudo para tê-la de
volta. E a angústia delas era a razão pela qual o rio Lete existia. Muitas
delas vinham até o palácio do deus sem conseguir uma audiência, e antes de
voltar a Asfódelos decidiam mergulhar nas águas e esquecer a vida que
abandonaram.
Esses pensamentos foram afastados da mente dela, quando, de
repente, ouviu os rugidos altos de um cachorro negro. O animal surgiu por
entre as sombras. Aquele era o maior cachorro que ela jamais vira na vida.
Os dentes dele eram afiados como os de um lobo e ele parecia faminto. O
rugido se intensificou.
Dando um passo adiante, sem medo, Perséfone agachou-se em
direção ao animal.
Este, lentamente, veio até ela com intensão de atacar, mas se deteve
em seguida. Devagar, ele parou de rosnar e começou a cheirá-la, como se
tivesse sentido seu cheiro antes.
Perséfone estava prestes a passar a mão na cabeça dele, prestes a
declarar vitória, quando ouviu a voz baixa e rouca do mestre do animal o
chamar:
“Cérbero!”
O cachorro se voltou à voz e saiu disparado em direção a Hades. O
olhar de Perséfone seguiu o cachorro.
Sobre o patamar mais alto das escadas elegantes que levavam para o
interior do palácio, ela o encontrou.
Alto, Hades não usava a armadura qual ela vira mais cedo.
Agora, ele vestia uma camisa de algodão e calças de couro,
completamente em preto. Os olhos dele eram sombrios.
O cachorro se juntou a ele, ficando ao seu lado. Ele repousou a mão
sobre a cabeça do animal, sério.
“Perséfone”
Uma eletricidade afiada subiu pela coluna dela.
“Lorde Hades.” Ela, mais uma vez, fez uma mesura.
De alguma forma, Perse ainda se via impressionada pelo fato de que
ele sabia quem ela era.
Punições entre os deuses eram tão comuns quanto o sol se erguer no
horizonte. E o mundo inferior estava repleto de deuses menores, semideuses
e até mesmo reis mortais que cumpriam sentenças. O primeiro que vinha a
mente dela era Sísifo, um rei que havia sido punido por Zeus, e que por
todos os dias, durante a eternidade, teria que rolar uma grande pedra
de mármore por uma colina.
Perséfone voltou-se ao presente, Hades ainda a encarava.
“Vejo que possui sapatos” falou.
Ela olhou para os pés, sem reação.
“Apenas um. Pertencia a Hermes.”
“Hm”
Hades continuou a olhar para ela, como se procurasse algo em sua
face. Perséfone sentiu suas bochechas ficarem quentes e evitou jogar seu
cabelo para trás da orelha. Não queria que ele percebesse que estava
nervosa.
“Por favor, me siga” disse ele, de repente. Com um movimento dos
dedos dele, o cachorro, Cérbero, desapareceu no ar.
O deus se virou e começou a subir o restante dos degraus, indo em
direção à ala oeste do palácio. Perséfone hesitou por um instante e depois o
seguiu.
Ela sabia que apesar de Hades ser um dos deuses mais poderosos,
ele era o mais privado e pouco falado em bailes dados.
A apesar de ser irmão de Zeus e Poseidon, a maioria dos deuses
escolhia fingir que ele não existia, então pouco se sabia dele, além de que,
como deus dos mortos, Hades era inescrupuloso em seus julgamentos, mas
sempre, sempre, justo. E que, mais recentemente, foi aquele que trouxera
vitória aos deuses na batalha contra os titãs. Ele era o mais poderoso
soldado do Olimpo.
Ela teve que apressar o passo para alcançá-lo, seguindo-o por um
longo corredor repleto de vidraças coloridas. A chama dos archotes se
acendia quando ele passava por elas.
Perséfone começou a perceber muito rapidamente o quão vazio o
palácio era.
“Você não tem servos?” ela quis saber, apressando-se um pouco
mais para perguntá-lo com voz baixa.
Hades parou ao ouvir a pergunta dela. De costas, ele pareceu
respirar fundo.
Perséfone ficou um bom metro de distância e esperou.
Ele se virou, encontrando a face dela mais uma vez.
Uma porta antiga feita de madeira de carvalho e decorada com ferro
entalhado se abriu a frente deles. Em silêncio, Hades ergueu a mão e
apontou para o salão agora visível. Perséfone se virou para o ambiente.
Ela sentiu o coração bater forte, se sentindo vulnerável, quase como
se estivesse prestes a entrar em uma armadilha.
Mesmo assim, deu um passo a frente e passou por ele, entrando no
salão.
Ela ouviu a porta se fechar com um baque atrás de si e sentiu a
presença de Hades, caminhando lentamente atrás dela, passando por seu
corpo com passos lentos.
Aquele era o lugar mais vivo que ela tinha visto naquele palácio até
agora. As pedras vulcânicas brilhavam ao calor da lareira enorme à parede
leste. As janelas que davam para a floresta de pinheiros estavam ali, caindo
do teto ao chão.
No centro da sala, havia duas grandes cadeiras feitas da mesma
madeira da porta. Elas eram esculpidas em detalhes, quais pareciam
imagens de uma batalha, e parte de uma das cadeiras estava queimada. Seu
olhar recaiu sobre a parte negra na madeira, ela pareceu ter visto algo que
lembrava a imagem de flores, mas não teve certeza.
“Sente-se” Ele sussurrou, rouco, perto demais.
Perséfone conseguia sentir a aura de Hades pesar sobre seus ombros,
sobre sua pele. Ele estava tão perto que ela parecia sentir o calor de sua voz
sobre a nuca. Arrepios cobriram-na.
Perséfone decidiu ficar em pé.
Ela tinha perguntas, mas naquele momento decidiu que as perguntas
não importavam. E mesmo se decidisse fazer as perguntas a ele, tinha a
impressão de que ele não as responderia.
Ela, de repente, levou a mão até o fecho do medalhão sobre o
pescoço.
Engolindo em seco, pegou o colar por entre os dedos e olhou para a
rosa entre o âmbar uma última vez.
Hades agora estava a sua frente.
“O que tenho de mais precioso” ela disse, em um murmúrio perdido.
Ele a encarou. Seus olhos recaíram sobre o medalhão. O deus ficou
calado por longos minutos, encarando a peça.
“Pegue-o, é seu” Sua respiração estava pesada e ela sentia uma dor
no âmago.
Hades acenou lentamente e buscouo olhar dela.
Os dois agora estavam parados perto demais e o calor do corpo dele
era presente ao redor do de Perséfone. Ela deu um passo a frente e viu a
mão dele se erguer para encontrar a sua.
Ela colocou o medalhão, lentamente, sobre a palma do deus e muito
brevemente seus dedos se encontraram.
Hades era quente. Como febre. Como o inferno.
Ela puxou a mão rapidamente, deixando-a cair sobre os lados do
corpo.
Ele percebeu isso. Seus olhos ônix se escureceram ainda mais.
“Você tem perguntas. Sente-se e jogue comigo”
De repente, entre as duas cadeiras de carvalho, uma pequena mesa
com um tabuleiro apareceu. Não era xadrez ou jogo de damas, pois esses
eram jogos para mortais.
Perséfone encarou o tabuleiro. As peças tinham diferentes cores e se
erguiam em pequenos degraus. Aquele era um jogo que ela tinha aprendido
quando criança, pois todos os deuses o jogavam.
O jogo se chamava Rainha Prometida.
“Quais são os riscos, se eu perder?”
Hades soltou uma pequena risada. Era grossa e rouca. Ele caminhou
até a cadeira queimada e colocou o medalhão dela sobre a mesa com o
tabuleiro.
“Você é sábia em fazer essa pergunta. Não são tantos aqueles que
sabem que perder um jogo para o deus do submundo significa perder algo
precioso.”
“Eu acabei de te entregar tudo o que tenho, milorde.”
Hades apoiou os braços na cadeira e respirou fundo, voltando a face
para ela.
“Eu não acredito em você, deusa...” ele parou por um instante. “Mas
hoje estou disposto a jogar pelo prazer de sua companhia”
Perséfone o encarou por um logo minuto. Ela não tinha certeza se
acreditava nele, mas lembrou-se de que apesar de ter fama de cruel, ele era
o mais justo dos deuses.
“Você promete?”
Hades balançou a cabeça, um tanto divertido pela desconfiança dela.
“Eu prometo.”
Ela soltou o ar que tinha prendido no peito e, lentamente, caminhou
até a outra cadeira. Ela se sentou e, apesar de ser de madeira, era
surpreendentemente confortável.
Hades levou seus longos dedos até as peças para organizá-las como
queria. Perséfone fez o mesmo.
Enquanto eles faziam isso, em silêncio, uma porta interior da sala
foi aberta e de lá um rapaz baixo e quieto veio trazendo uma bandeja de
prata, e sobre a mesa com o tabuleiro repousou dois cálices. Pelo aroma
doce, ela sabia ser hidromel. No segundo seguinte, o rapaz tinha
desaparecido pela porta.
“Até as almas precisam de descanso” Hades respondeu à pergunta
que Perséfone tinha feito. “Apenas poucos dos meus servos vagam pelo
meu palácio pela noite”
Ele pegou o cálice de hidromel entre os dedos e levou aos lábios.
Perséfone mordeu o lábio ao observá-lo e fez o mesmo. Ela já estava
no submundo há cinco meses, e durante esses cinco meses não tinha bebido
nada tão delicioso como hidromel. Em seus palácios, durante a primavera, a
bebida era sua favorita. Mas ali, como era uma bebida exclusiva para os
deuses, só Hades tinha acesso.
Ela fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o sabor doce, de mel,
sobre a língua.
Quando voltou a si, percebeu que ele a assistia com aqueles olhos
escuros, sombrios.
“Você não deveria ter ido ao salão de julgamentos hoje, deusa.” Ele
falou por fim, olhando para o tabuleiro e movendo sua primeira peça.
Perséfone apertou os olhos para ele e para o tabuleiro. Em silêncio,
moveu sua peça em resposta a dele. Ignorando o comentário, disse:
“Há quanto tempo você sabe que estou aqui... no submundo?”
Ele balançou a cabeça, como se aquela pergunta fosse estúpida. É
claro que ele sabia que ela estava ali desde o dia em que seus pés tocaram o
solo.
“Ok” ela suspirou, ignorando a expressão dele. “Onde você esteve
durante os últimos quatro anos?”
“Hm” ele grunhiu baixinho, movendo mais uma peça. “Por que
assume que eu não estive aqui? Afinal, esse é meu reino?”
“Mas... nenhuma alma viu você por quatro anos?”
Ele deu aquela pequena risada esnobe mais uma vez.
“Algumas almas estão em meu reino por milênios e jamais viram
minha face, deusa. Eu não sou um deus acessível.”
Perséfone moveu sua peça após ouvir a resposta dele, ficando
quieta. Estava tentando pensar na melhor pergunta possível. Enquanto isso,
o olhar dele recaiu no tabuleiro e ele ficou alguns segundos analisando as
peças.
Ela se pegou observando-o. A face dele. Seus cabelos eram bem
cortados e ele tinha longos cílios escuros que cobriam seus olhos sombrios
como uma cortina. O queixo dele era duro e seus lábios, firmes. Ela
percebeu que o nó da camisa dele estava desfeito, deixando alguns poucos
pelos sobre o peito musculoso a mostra. Os ombros dele eram enormes, e
ele era provavelmente duas vezes maior do que ela e pelo menos uma
cabeça mais alto.
Ela notou algo preto saindo por sobre o ombro e o peito dele, como
um risco, uma marca na pele, uma tatuagem.
“Sua vez” a voz rouca, baixa, do deus a assustou, pegando-a de
surpresa.
Perséfone tentou evitar o olhar dele e se voltou ao tabuleiro. A
jogada dele tinha sido boa, bem pensada. No entanto, ela tinha uma ideia da
estratégia dele. Demorando um pouco, fez sua jogada.
“Quem puniu minha mãe?” Perséfone perguntou, de uma vez.
Ela encostou-se na cadeira, esperando pela vez dele de jogar. Hades
estava olhando para o tabuleiro quando disse, calmo:
“O juiz da punição de sua mãe foi Zeus.”
“Por que ele a puniu?”
Hades suspirou alto.
“Você sabe a razão.”
“Eu quero que você me diga”
Ele moveu sua peça, tomando uma das dela.
“Temo que não seja assim que funciona.”
“Por que não?”
“Se desejar que o deus dos mortos responda a sua pergunta, você
deve oferecer algo em troca.” Ele sorveu mais um gole de hidromel.
“O que você quer?”
Hades parou ao ouvir essa pergunta novamente. Ele abaixou o cálice
nas mãos.
“É a segunda vez que você me pergunta isso, Perséfone. E pela
segunda vez eu vou fingir que essas palavras não saíram de seus lábios. Na
terceira vez, confie em mim, não haverá volta, pois o que eu quero custará a
você muito mais do que um medalhão.” A voz dele era pesada e resoluta. A
sombra de seu olhar se intensificou.
Perséfone engoliu em seco. Ela moveu sua peça sentindo seus dedos
tremerem.
“Onde ela está? Minha mãe?”
O jogo entre eles ficou suspenso.
“Não muito longe. Ela deve voltar para seus palácios nos próximos
meses.”
“Como sabe isso?”
“Porque ela me disse”
Perséfone perdeu o ar. Hades não era o tipo de deus que ia ao
encontro de outros deuses. E quando raramente visitava os irmãos ou o
conselho dos doze, era para ser juiz de alguma decisão importante.
Isso significava que Deméter, sua mãe, tinha visitado ele.
“Quando ela esteve aqui?” Perséfone sussurrou.
Hades viu o quanto aquela informação a impactou.
“Beba” ele falou rouco, entregando o cálice dela em suas mãos. O
calor dele a encontrou, levando ondas por seu corpo. “Deméter veio ao meu
encontro dois dias atrás”
Ela fechou os olhos. Por que sua mãe não tinha a visitado?
“Dê a tempo” Hades disse, o que a surpreendeu.
Perséfone conseguia entender o desaparecimento de sua mãe. Ela se
sentia culpada, mas ainda assim aquilo quebrava seu coração, pois sua mãe
sempre fora sua melhor amiga.
Ela moveu uma das peças sobre os pequenos degraus, tomando duas
peças de Hades. Ele se recostou na cadeira mais uma vez, encarando o jogo
com uma expressão curiosa.
“Minha vez” ele disse antes de fazer sua jogada. Mas, ele queria
dizer que era a vez dele de fazer perguntas: “Por que você vai a Asfódelos
todos os dias?”
Perséfone quis perguntar como ele sabia daquilo, mas afastou a
pergunta da cabeça. Ele sabe de tudo que acontece no submundo.
“Elas me fazem me sentir mais viva.”
“As almas?”
Perséfone balançou a cabeça e fez uma jogada logo que ele fez a
dele. Os dois agora tinham capturado umas dez peças cada. A dama e a
coroa permaneciam no centro do tabuleiro. O objetivo era capturar os dois
objetos, transformando a dama na rainha prometida.
“Me conte sobre isso” Hades apontou para o medalhão de âmbar a
frente dele.
“É o único objeto que posso levar daqui para o mundo dos mortais.”
Ela deu de ombros. “Você vê a rosa no centro? Está perfeita, mas quando o
medalhão sai do mundo inferior, arosa murcha, como se tivesse morrido... é
quase como se o medalhão fosse uma lembrança daquilo que terei que viver
pelo resto de minha existência.”
Os dois jogaram, Hades continuou em silêncio, olhando para ela.
“Eu não sei exatamente quem me entregou o medalhão...” Perséfone
se viu admitindo. “Eu só sei que tive um sonho, no primeiro ano que
cheguei aqui, e quando acordei o medalhão estava ao redor do meu
pescoço. Depois desse sonho, viver no mundo inferior começou a ser menos
insuportável.”
Ela se pegou observando o tabuleiro do jogo. Estava prestes a
capturar a coroa e já tinha a dama nas mãos. Ela iria ganhar o jogo. Iria
ganhar um jogo contra o deus das apostas. A deusa estava prestes a abrir um
sorriso, vitoriosa, quando ouviu:
“Isso foi um erro” Hades disse baixo.
Os olhos dela encontraram os dele de repente.
“O quê?” ela franziu o cenho.
Hades empurrou a cadeira com força sob si e abaixou sua última
peça do jogo, admitindo que tinha perdido. No segundo seguinte, ele
buscou o medalhão que ela o tinha dado entre os dedos.
Perséfone sentiu a gravidade se mover mais uma vez sobre seus pés.
Ela estava prestes a desaparecer dali.
“Hades...”
No segundo seguinte, se viu em seu chalé. A pequena sala coberta
por sombras, fria, parecia tão distante do salão quente em que estivera dois
segundos atrás.
O amanhecer, mais uma vez, se erguia no horizonte do vale das
almas. Perséfone percebeu dizer o nome dele a havia deixado com um gosto
agridoce na boca, quase como hidromel, mas permanente, perigoso.
E sabia que o sabor permaneceria, assim como a memória do olhar
dele, quando ouviu a palavra sair de seus lábios.
 
 
N
CAPÍTULO III – O
LABIRINTO
 
ovas almas tinham chegado
em Asfódelos. Algumas
delas não conseguiam ser
consoladas. O grupo de mulheres e Perséfone foram até os recém-chegados
e lhes entregaram chá, biscoitos e bolos. Os chalés deles estariam prontos
no fim do dia. Aqueles que eram uma família poderiam ficar juntos, mas
muitos deles vinham sozinhos, deixando tudo que amavam para trás e esses
eram os mais difíceis de reconfortar.
As crianças eram as mais fáceis. Elas não entendiam por que
estavam ali.
Elas ficavam juntas em um só chalé e almas voluntárias cuidavam
delas. Ocasionalmente, Perséfone também as visitavam para ensiná-las a ler
e escrever.
Uma das novas almas era uma garota chamada Ariadne. Assim que
Perséfone a viu, soube que no mundo dos vivos ela tinha sido uma princesa.
Diferentemente dos outros, ela vestia longos trajes de seda com
cabelos longos loiros, trançados em fio de ouro. Ela estava assustada. Sua
morte havia sido em seu sono, ela tinha sido assassinada pelo amante.
Perséfone foi até ela e a entregou uma caneca com chá.
A garota arregalou os olhos quando a viu.
“Deusa” ela sussurrou, fazendo uma mesura. É claro que ela sabia
quem Perséfone era. Era comum para a realeza mortal comparecer a bailes
dos deuses. E a deusa dava um baile todo Equinócio, no primeiro dia da
primavera... assim que retornava ao mundo dos vivos.
“Aqui eu sou só Perséfone” disse em resposta, buscando chá para si
mesma e se sentando ao lado da garota. “Você está bem?”
Ariadne respirou fundo, sentindo o aroma do chá de narciso. Fechou
os olhos e Perse sabia o que ela estava fazendo, tentando se lembrar de algo
que desse indicação ao que seu amante fizera. Mas não conseguia pensar
em nada. Ariadne tinha sido traída.
“Eu o amava”
“Eu consigo sentir isso” Perséfone respondeu.
“Meu pai me julgou.” Ariadne disse em um tom triste.
“Seu pai?”
“Minos. Ele foi rei no mundo dos vivos e agora é um dos juízes
daqui... Aparentemente Hades confia nele e em seu julgamento.” Ela deu
uma risada irônica. Minos poderia ter enviado Ariadne ao Elísio, onde a
vida em morte era perfeita, livre de qualquer angústia, no entanto, ali estava
ela, junto às almas medíocres. “Ele me avisou sobre Teseu, meu amante, ele
me disse que um dia ele me trairia...”
Perséfone sentiu a dor dela.
Ficando em silêncio, indicou para ela beber o chá.
A semana passou rápido. Com as novas almas sempre havia muito o
que fazer. O sol se punha lentamente quando a deusa decidiu finalmente
voltar para seu próprio chalé e mergulhar na banheira até a água esfriar.
Quanto mais o tempo passava, mais Perséfone esquecia que tinha um
mundo completamente diferente a sua espera, e a vida ali passava a ser
normal.
No entanto, depois de seu jogo com Hades, ela só conseguia pensar
nele. No toque de seus dedos, e do jeito como ele havia dito que aquilo
havia sido um erro. Ela se perguntava o que ele considerava um erro. O
jogo, o acordo ou ela...?
Ela acenou para o grupo de crianças quando os deixou, indo em
direção ao caminho que dava para seu chalé, mais acima da colina, perto
dos pomares de romã.
Perséfone não tinha caminhado nem cinco minutos quando ouviu o
primeiro grito de horror. Ela se virou para Asfódelos, a vila de chalés de
pedra reluzentes, e viu quando um grupo de almas saiu correndo para a
praça principal, fugindo de algo que era aterrorizante.
Almas não podiam morrer uma segunda vez, mas elas podiam sofrer
eternamente.
Foi então quando ela o viu.
Um monstro. Enorme, de três metros de altura, um ser metade
homem e metade touro, vindo em direção as almas com um passo rápido e
violento. Aquele era um Minotauro. Perséfone não teve tempo de pensar em
como raios ele tinha chegado ali.
O lugar de monstros como ele era no Tártaro.
Ela deu meia-volta e correu em direção a praça, gritando para as
almas fugirem em direção aos pomares.
No meio da confusão, ela viu Ariadne. Ela estava especialmente
assustada. A princesa, assim que viu Perséfone, a puxou pelos braços.
“Ele está a minha procura!”
“Por quê?”
“Eu o deixei preso em um labirinto anos atrás e ignorei o pedido de
socorro dele. Ele quer vingança.”
Perséfone respirou fundo, olhando ao redor a procura de uma saída,
algo que pudesse protegê-las. No entanto, não teve tempo. O monstro
correu em direção as duas e com um soco, jogou Perséfone através da
praça, fazendo-a bater na parede de um dos chalés com força.
Todo o ar de dentro de seus pulmões desapareceu quando sentiu as
pedras frias sobre suas costas. Por um segundo, ouviu um zunido forte e
piscou pesado, tentando entender onde estava. Adiante, no entanto, ela
voltou a vê-lo.
O Minotauro tinha pegado Ariadne pelo pescoço e a segurava no ar.
A princesa batalhava contra o monstro, mas ela não tinha chance.
Perséfone soube que precisava fazer algo. Ela não tinha poderes no
mundo inferior, por isso só tinha uma opção.
Pegando uma pedra do tamanho de um punho e com toda a força
que ainda lhe restava, arremessou-a na cabeça dele.
Aquilo foi o bastante. O monstro foi pego de surpresa e deixou
Ariadne cair no chão. Ele olhou ao redor e encontrou Perséfone que agora
sentia o aroma de ferrugem escorrer por sua pele. Levando sua mão atrás de
sua cabeça, seus dedos voltaram cobertos por sangue rubro, vibrante.
Através da praça, Ariadne não esperou um só segundo e já estava
longe, conseguindo alcançar o grupo de outras almas.
O Minotauro, vendo o que Perséfone tinha feito, a encarou com
fúria.
Perséfone se ergueu e apertou as mãos em punho, determinada. O
que quer que ele estivesse a fazer, ela estava pronta.
O monstro correu em direção a ela, mas a meio caminho, estancou,
de repente.
Seus olhos ficaram vazios e ele caiu no chão com um baque.
Atrás dele, segurando uma espada afiada coberta de sangue, estava
Hades.
Ele olhou para baixo, para o monstro, com um olhar colérico.
Perséfone sentiu a visão ficar turva e, no segundo seguinte, havia
dois Hades a sua frente. Ela encostou as costas na parede do chalé e
escorregou para o chão.
“Deusa...” Ela ouviu a voz dele. “Você está ferida?”
“Eu... não tenho certeza”
Hades foi até ela, colocando sua espada ensanguentada de volta na
bainha. Ele deu passos longos e se agachou para encontrar os olhos dela.
Ele viu o sangue em suas mãos.
“Olhe para mim” ele sussurrou, rouco. Suas sobrancelhas estavam
franzidas, ele parecia irritado.
“Eu estou bem” ela o ignorou, tentandose erguer, sem sucesso.
Hades pegou o braço dela e a puxou de volta para o chão.
“Perséfone, olhe para mim”
Ela resmungou, mas ele ainda continuava a ser dois a sua frente. E
dois Hades era definitivamente pior do que um só.
“Ok.”
Vozes começaram a surgir ao redor da praça. As almas que tinham
corrido em direção à colina estavam voltando lentamente e aquelas que
tinham se escondido em seus chalés agora vinham para fora para ver o que
estava acontecendo.
“Eu vou tocar em você” Ele falou baixo.
“Onde?” Perséfone quis saber.
Hades abriu um leve sorriso e balançou a cabeça, ignorando-a. As
mãos dele então encontraram sua nuca e ele aproximou o rosto do dela. Ele
estava tão perto que ela sentia o aroma de sua respiração.
Hades cheirava a amoras maduras e a fumaça, à fogueira no inverno
após uma nevasca. Ele era um com o fogo e a natureza selvagem.
Suas mãos quentes tocaram a pele dela, encontrando onde o
ferimento estava. Ele colocou a palma sobre ela por alguns segundos.
Perséfone sentiu sua pele formigar, e lentamente sua visão dupla começou a
voltar ao normal.
Em seguida, havia um só Hades a sua frente.
Os olhos sombrios, a pele quente, os ombros largos e imponentes.
Perséfone sentiu quando ele começou a se afastar, mas algo dentro
dela não queria que isso acontecesse, e imediatamente puxou a camisa dele,
trazendo-o mais para perto, como se precisasse daquele calor para
sobreviver o que quer que fosse.
Ele, no entanto, franziu as sobrancelhas e ela percebeu seu erro no
exato momento. Sua mão deixou-o ir e ela sentiu um toque de
constrangimento cobrir a face.
“Obrigada, milorde”
Hades respondeu com um piscar de olhos.
Ele se levantou e ofereceu a mão para ela. Perséfone não disse nada
e não aceitou a oferta dele, se erguendo sozinha.
“A situação está sob controle” Ele falou, alto.
Ela então notou a multidão de almas ao redor.
As almas pareciam acreditar nele, pois uma explosão de aplausos se
ergueu sobre eles.
“Como um Minotauro conseguiu escapar do tártaro?” Perse quis
saber, falando em voz baixa para que outros não escutassem. Ele a ignorou.
Hades jogou sua espada para as costas e começou a caminhar para longe
dela.
As almas correram atrás dele, falando seu nome, agradecendo-o por
tê-los livrados do monstro.
Perséfone ficou para trás, olhando as costas musculosas dele
começarem a desaparecer de vista. Ela sentiu Ariadne se aproximar.
O deus continuou a caminhar a meio da multidão.
Então, para a surpresa dela, ele olhou para trás. Em seu olhar havia
uma pergunta... um convite, talvez.
Eles se encararam por um longo segundo. Um arrepio subiu pela
espinha dela.
No segundo seguinte, ele já não estava mais lá.
 
 
Ariadne dormiu com Perséfone naquela noite. Ela estava assustada
demais para dormir sozinha no chalé que agora era dela.
Só havia uma cama pequena dentro do quarto minúsculo do chalé e
quando a lareira da sala de estar estava acesa conseguia aquecer todo o
ambiente, por isso, a princesa dormiu no tapete grosso, no chão.
Durante o sono, ela falava. Ela repetia o nome de seu amante, Teseu.
Perséfone não conseguiu pegar no sono. O toque dele ainda
permeava sua pele e ela se sentia insuportavelmente quente.
Chutando as cobertas, se ergueu da cama e, nas pontas dos dedos,
conseguiu sair do quarto, deixando Ariadne ali, ainda adormecida. Ela foi
até a cozinha e abriu a pequena janela que dava para os campos da colina.
Uma névoa densa cobria o horizonte. A noites no mundo inferior eram
sempre assim, frias e desoladas. Ela ficou ali por um tempo, ouvindo o
crepitar do fogo e a respiração pesada da princesa que acolhia.
Nos seus primeiros meses ali, o sussurro das almas e da noite havia
sido assustador. Ela se lembrava daqueles dias com um toque de amargor.
Ela havia chegado sozinha ali e permanecido sozinha por um longo
tempo até encontrar Eurídice. Seu pensamento foi nela, mas se dissipou no
ar em seguida quando viu uma sombra aparecer por entre a densa névoa a
frente.
Ele caminhava em direção ao chalé, sem pressa. No início, era só
sua silhueta, mas conforme se aproximava, Perséfone pode vê-lo por
inteiro.
Hades vestia um longo robe negro que caia sobre seus pés, calças
pretas e botas que iam até o joelho. O robe cobria seu peito largo, mas ela
conseguia ver que ele não vestia nada por baixo.
Quando o olhar dos dois se encontraram, a deusa soube que ele
estava ali por ela.
Ela respirou fundo e pegou o único casaco que possuía, saindo pela
porta da cozinha e através do pomar de romã para encontrá-lo.
Hades observou os dedos dela moverem-se rapidamente nos botões
do casaco para proteger-se do frio. Ela enfiou as mãos nos bolsos quando
caminhou em direção a ele, tremendo levemente em reação à brisa gelada.
Ele apertou os olhos, parando para encontrá-la.
“O que faz aqui?” ela sussurrou, olhando para ele de cima a baixo.
Perse notou que os riscos negros que ela acreditava ser uma
tatuagem também se espalhavam pela parte superior do torso dele.
Ele piscou para ela.
“Esse é meu reino” disse, como se fosse óbvio que ele pudesse fazer
o que quisesse.
Ela suspirou. Aquela não era uma resposta aceitável.
“Por que você tem uma princesa dormindo em seus aposentos?”
Hades quis saber, rouco. “Você está viva, ela não está. Você não deveria se
envolver com almas”
“Ela está assustada” Perséfone ignorou o sermão dele e caminhou ao
leste.
Hades a seguiu, alcançando-a facilmente em passos longos.
Ela tremeu mais uma vez, pois o frio da névoa entrava por entre os
buracos daquele casaco surrado. Hades, apesar de apenas vestir calças e o
robe, parecia intocado pela temperatura baixa.
“A maioria delas estão assustadas. Isso não significa que...” Hades
continuou.
Ela parou de repente e apertou os olhos, tendo de erguer a cabeça
para encarar o rosto dele.
“O que faz aqui?” perguntou novamente, fazendo questão de
pontuar cada palavra.
“Hm” ele grunhiu baixo, assistindo o rosto dela.
Era a segunda vez que o interrompia.
Perséfone pôde jurar que o olhar dele parou em seus lábios, mas
Hades teve cuidado de quebrar a conexão no segundo seguinte.
“O que você fez foi corajoso, mas ser uma deusa não tem
importância para um Minotauro..., principalmente uma deusa sem poderes.
Não tente lutar contra monstros novamente, você pode não ter a sorte de me
ter por perto”
Perséfone o encarou com uma expressão de incredulidade.
“O quê?” Ele questionou ao assistir à face dela.
A deusa não acreditava no que ele havia dito.
“Deuses... Vocês são todos os mesmos.”
Hades pegou o braço dela, puxando-a para si.
“O que quer dizer com isso?”
Ela bufou e puxou o braço da mão dele.
“Você acha que é o primeiro deus que fala isso para mim? Eu
também sou uma deusa e não uma ninfa que se impressiona facilmente com
espadas e pequenos heroísmos. Eu sou capaz de lutar minhas próprias
batalhas.”
Hades esticou os dedos e os fechou em punho ao ouvi-la dizer
aquilo.
“Então, o que faz aqui, no submundo? Essa não é sua batalha.”
A voz dele foi afiada. Perséfone engoliu em seco e deu de costas
para ele mais uma vez.
Hades respirou fundo.
A deusa conseguia senti-lo ao seu ombro, pairando sobre suas
costas. O calor dele agora era tudo o que ela era capaz de sentir. O frio tinha
se dissipado como tinta em água.
“Eu tenho esperado você solicitar uma audiência. Pedir que essa
punição seja anulada. Pedir para voltar para o mundo dos vivos, para seus
palácios, para a primavera. Por que você está demorando tanto para me
pedir esse favor?”
A respiração dela pesou.
“Diga-me” o calor do murmúrio dele agora estava a centímetros de
seu ouvido.
Perséfone fechou os olhos e mordeu o lábio inferior. Ela não sabia o
que dizer.
“Eu pensei nisso por muitos meses, anos...”
“Então por que não veio até mim antes? Por que fazer um acordo
para outros... para almas e não para si mesma?”
“Estou esperando...”
Silêncio cobriu os dois quando ela disse aquilo. A respiração dele
tocava a pele do pescoço dela. Perséfone estava tentando fazer seu coração
bater mais lentamente, mas sem sucesso. Ela se sentia tonta.
“Pelo sonho” ele adivinhou.Afinal, ela tinha lhe entregue o que
possuía de mais precioso, o qual tinha vindo de um sonho.
A única certeza que a deusa tinha era que o medalhão havia sido o
presente de alguém que um dia invadira seus sonhos. Ela não se lembrava
quem ele era, mas sabia que ele estava por ali, em algum lugar. Todo o
inverno, quando seus seis meses se iniciavam no mundo inferior
novamente, ela tinha a esperança de encontrá-lo mais uma vez. Talvez,
dessa vez, ela se lembraria. Se lembraria dele.
Perséfone se virou para encontrar Hades.
“E eu sei que você não pode me livrar dessa punição, milorde.”
Hades continuou em silêncio e deu um passo para trás. Eles estavam
perto de mais um do outro. Ele enfiou as mãos nos bolsos, como estivesse
tentando evitar tocar naquilo que queria.
“Você está certa”
Ela balançou a cabeça, ouvindo aquilo pela primeira vez. Sempre
teve a desconfiança de que essa era uma punição prevista pelas moiras, o
que significava que era imutável por qualquer outro deus que não tivesse
sido o juiz da decisão, Zeus. E poucos eram aqueles que conseguiam falar
com o rei do Olimpo.
“Você sabia?” Perséfone afastou seus cabelos do rosto, e os dois
continuaram a caminhar lado a lado. Hades com as mãos nos bolsos.
“Da punição? Sim, eu estava lá, no julgamento.”
“Eu nunca consegui entender... minha mãe, a deusa da colheita, é
um ser generoso. Eu não consigo vê-la tentando tirar a vida de outro deus.”
Hades limpou a garganta e olhou para o horizonte, firme.
“Você se impressionaria com aquilo que deuses ou mortais são
capazes de fazer por amor”
“Por amor?” Perséfone parou mais uma vez, encarando o deus dos
mortos. Os olhos sombrios dele lhe alcançaram e ele colocou a mão firme e
quente sobre sua coluna baixa.
“Caminhe comigo” ele soltou um murmúrio, fazendo-a colocar um
pé a frente do outro. No entanto, o olhar dela não saia da face dele.
“Deméter deveria ter te dito a verdade. Talvez ela não seja tão generosa
quanto você acredita que ela é.”
“Por amor? Quem ela poderia amar tanto que...”
E então a ficha caiu e apesar de querer parar mais uma vez, a mão
quente e forte de Hades a guiou consigo, obrigando-a continuar
caminhando.
“Essa não é minha história para contar, mas sim, sua mãe fez o que
fez por você.”
“Por quê?”
“Uma profecia foi lida pelos oráculos” Hades disse, sua voz
distante. “Você precisa ouvir a verdade dos lábios de sua mãe, deusa. Isso é
tudo o que posso te dizer”
Perséfone engoliu em seco. Talvez fosse por isso que sua mãe
estivesse se escondendo e estivesse não só se sentindo culpada, mas não
quisesse que ela descobrisse essa versão dos acontecimentos.
Os dois deuses continuaram a caminhar, trespassando a névoa fria,
seguindo pelos campos que agora davam em direção ao vale das almas.
O vale das almas era como o mar no mundo dos vivos. Ele era
chamado de vale, pois as ondas eram baixas e, à distância, parecia
realmente um vale. 
No entanto, era sobre a água onde o grande barco navegava,
trazendo novas almas todas as semanas. O capitão desse barco era chamado
de Caronte. Muitas almas chegavam em Asfódelos contando histórias sobre
ele e o mais curioso dessas histórias era que nenhuma das almas tinha a
mesma descrição de como ele era. Algumas almas o viam com um homem
velho, de cabelos brancos, outras, um homem jovem de cabelos cacheados e
longos.
Perséfone não percebeu quando pararam e ficaram assistindo às
águas silenciosas e calmas do vale a frente, coberto por névoa e um céu sem
estrelas. A mão de Hades ainda repousava sobre a cintura dela, quase como
se quisesse mantê-la ali, perto dele. O toque irradiava calor e agora Perse
sentia que não precisava daquele casaco velho.
“Quando verei você novamente?” Ela se pegou dizendo, assistindo o
rosto severo, selvagem e belo dele ser pego de surpresa.
Ele, em nem um milênio, esperaria que ela fosse fazer aquela
pergunta.
“Por que você iria querer isso?”
A voz dele era grave, suas sobrancelhas franzidas.
“Seria interessante descobrir que você não é aquele deus vil e
tedioso que todos os outros acham que você é.”
Ele soltou uma risada deliciosa. Perséfone estava começando a
apreciar as risadas dele quase tanto apreciava hidromel. Eram grossas,
doces e ricas.
“Eu sou vil.” Ele disse, divertido.
Perséfone deu de ombros.
“Isso quer dizer que você não é tedioso?”
“Hm”
Ele deixou a mão cair lentamente de sobre a cintura dela. Perséfone
sentiu o calor ir embora e não gostou muito da ausência daquele toque.
“Eu posso satisfazer esse pedido, mas... com uma condição.” Ela
esperou. Um pequeno sorriso plantou-se nos lábios dele, quando disse: “Eu
preciso de sua ajuda”
 
 
A
CAPÍTULO IV – A DAMA
 
s almas chamavam-na de
dama. E ela estava morrendo.
Dama era uma árvore antiga,
de centenas de metros, que ficava no coração dos jardins do palácio de
Hades. Ela havia sido plantada, segundo as almas, quando Hades fora
coroado rei do mundo inferior, milênios antes, em uma era onde titãs ainda
caminhavam entre eles.
Hades não estava no palácio. Antes de desaparecer na noite anterior,
ele dissera a ela para ir ao palácio ao meio-dia e as almas a mostrariam
aquilo qual ele precisava de ajuda.
Dessa vez, agora sobre a luz do dia, o palácio do deus estava
agitado, com almas indo de um lado para outro. Umas trabalhavam nos
jardins e na horta, outras limpavam as longas janelas de vidro e algumas
simplesmente passeavam, conversando umas com as outras.
As almas dali vestiam roupas estranhas, mais antigas, outras usavam
coroas e espadas.
“Eles nos chamam de almas perdidas” O mesmo rapaz que havia
servido hidromel naquela primeira noite disse a Perséfone. “Meu nome é
Hipno, milady.”
Hipno então deixou-a só.
Perséfone olhou ou redor e notou que algumas almas a assistiam,
como se ela estar ali fosse algo curioso.
Ela encarou a árvore a sua frente. Por ser deusa da primavera, ela
tinha uma relação com plantas e árvores que era diferente de qualquer outro
deus da natureza. Ela era capaz de senti-las e, às vezes, até ouvi-las.
Era óbvio que a árvore estava morrendo. As folhas estavam secas e
caiam sobre o chão. O tronco estava descascado e fraco. Caminhando até lá,
colocou suas mãos na superfície e fechou os olhos.
Nada.
Seus poderes não funcionavam ali. Ela se perguntava por que Hades
havia pedido sua ajuda se ela não podia usar poderes para curar a árvore.
No entanto, ela conseguia sentir uma aura vindo dela. Assim como
sentia quando algum deus estava por perto. Era leve, mas estava lá,
irradiante.
Se afastando do tronco, Perséfone bufou. Já que seus poderes não
estavam funcionando, ela teria que fazer aquilo de outro jeito. Do jeito
manual.
Ela olhou para cima, para os enormes galhos e a aglomeração de
folhagem morta. Ela iria precisar de ferramentas e um ajudante.
“Posso ajudar, milady?” Hipno disse, surgindo lado dela, mais uma
vez, de repente.
Perséfone levou uma mão no peito, levemente assustada. Abriu um
sorriso e disse a ele:
“Sim”.
 
A noite caiu sobre o palácio de Hades muito rapidamente. Perséfone
se sentava no chão com as costas apoiadas no tronco da árvore. Ao redor,
Hipno e uma meia dúzia de almas colhiam e limpavam galhos e folhas
caídas no chão. Ela tinha passado boa parte da tarde sobre os galhos,
cortando-os, podando-os e limpando tudo que estava morto.
Havia sido um trabalho árduo e não estava nem perto de ser
finalizado, pois a árvore era imensa. Hipno havia chamado algumas outras
almas para ajudar na limpeza e se recusou deixá-la fazer mais do que já
havia feito.
Ele, de repente, veio até ela trazendo a mesma bandeja de prata do
outro dia e a entregou um cálice de hidromel sem dizer nada, apenas com
um sorriso no rosto.
Hipno tinha uma aparência interessante. Seus cabelos longos eram
presos em uma trança e ele tinha olhos distantes e olheiras escuras, como se
estivesse com sono o tempo todo.
Perséfone percebeu, ao assistir o rosto dele, que estava cansada.
Todo aquele trabalho tinha deixado seu corpo pesado.
O pôr-do-sol caia sobre o jardim do palácio, cobrindo as rosas
negras que floresciam sobrea superfície das paredes, aqui e ali. A presença
de Hades era evidente naquele lugar. Como se sua sombra ocupasse cada
fresta, cada molécula do ar, mesmo estando ausente.
Perséfone não tivera tempo de se questionar o que ele estivera
fazendo ou por que não esteve ali para recebê-la mais cedo, no entanto, se
pegou perguntando por que aquela árvore era tão importante para ele.
E o pior, se questionou o porquê estava disposta a ajudá-lo. Para vê-
lo novamente?
Ele era o deus dos mortos. O deus mais sombrio que existia. Até
uma semana atrás ele tinha ignorado sua presença, uma deusa como ele, em
seus domínios. Dias atrás ela ainda pensava nele como aquele que torturava
almas no tártaro.
Agora, Perséfone só pensava nele como... Hades. Em seus olhos
escuros, ônix, vibrantes como fogo. Na beleza proibida e selvagem dele.
E foi pensando nele que se viu mergulhando no sono, levada pelo
cansaço do dia. A taça de hidromel escorregou de seus dedos e desabou no
chão.
No segundo seguinte ela estava em um sonho que não se lembraria
quando acordasse.
 
 
Perséfone sentiu o calor do peito dele e seus braços ao redor do
corpo. Ele cheirava a fumaça de velas de rum antigas, e pinheiro após
chuva. A deusa se sentia estranhamente cansada. Mesmo assim, tentou lutar
o sono para abrir os olhos e ver quem a carregava no colo. Ela ouvia as
batidas rítmicas do coração dele e o leve sacolejo dos passos que ele dava. 
Os lábios de Hades tocaram o ouvido dela, quentes, doces como
ambrosia.
“Durma” a voz rouca disse, baixinho.
Sem conseguir lutar mais contra aquele sono estranho, ela o
obedeceu.
O sol crepitava lá fora quando ela acordou.
Perséfone piscou pesado, olhando ao redor e percebendo que estava,
de fato, deitada em sua cama, em seu chalé.
Ela deu um pulo da cama ao perceber que tinha sido de fato
carregada até ali. Parte dela achava que a sensação da pele dele na sua havia
sido apenas um sonho. Passando os dedos sobre o rosto, ele ainda parecia
presente ali. Como o sol de verão.
Hades.
Um estrondo de panelas e risadas interrompeu o pensamento dela. O
barulho vinha da cozinha. Será que ele estaria ali... esperando-a acordar?
Perséfone tirou o vestido do dia anterior, feito de algodão de alguns
bordados simples cor amarela e se trocou rapidamente. Perséfone tinha uma
seleção limitada de vestidos e sabia que se fosse continuar se encontrando
com o rei daquele reino iria precisar de alguns novos, o que significava que
teria que encontrar tecido em algum lugar e costurá-los a mão. Ela bufou e
abandonou o pensamento. Em seus palácios ela tinha salões de vestidos,
feitos por ninfas e costureiras mortais experientes e tudo era mais fácil do
que ali.
Ela passou a mão nas saias do pior vestido que tinha, marrom sem
nenhum detalhe interessante apesar de ter mangas curtas e um decote até
bonito, mas agora que ela não tinha mais seu medalhão, seu colo parecia
vazio.
Dando uma olhada ao redor, Perséfone também notou que hoje seria
o dia de lavar roupas. Ignorando esse pensamento, abriu a porta do quarto e
foi em direção à cozinha.
Seu peito estava apertado na expectativa de encontrá-lo.
No entanto, não era Hades que estava ali.
Com os cabelos loiros jogados para trás, Hermes se virou para ela e
abriu um sorriso grande.
“Estávamos esperando por você!”
Ariadne parou do lado do deus e abriu uma bandeja com um
entusiasmo inesperado.
Perséfone riu da expressão dos dois. Parecia que eles eram duas
crianças que tinham acabado de fazer algo muito travesso.
O olhar dela pairou naquilo que havia sobre a bandeja.
Pequenos bolos cor de rosa cobertos por açúcar.
“Manjar dos deuses” ela sussurrou, dando um pulo até eles e
pegando um nas mãos. Aqueles, assim como hidromel, eram exclusivos a
deuses e, ocasionalmente, realezas e semideuses que tinham a sorte de
participar de festas dadas por divindades. Por isso, Ariadne os conhecia
bem. “Eu achei que você não podia trazer objetos do mundo dos vivos para
cá”
“E não posso” Hermes disse, enfiando um na boca e pegando a
cintura de Perséfone para uma dança rápida de alegria. Ela deu uma risada.
“Então, como conseguiu esses manjares?” ela continuou rindo.
“Roubou de Hades?”
“Sim”
Ariadne e Perséfone estancaram onde estavam. Ariadne tinha
metade de um manjar na boca. Ela parou de mastigar.
“O quê?” ela disse em um sussurro bloqueado pelo bolo.
Hermes deu de ombro, comendo outro.
“Confie em mim, ele não se importa”
“Eu vou para o tártaro... por causa de um bolo” Ariadne resmungou,
batendo a mão na testa.
Perséfone olhou para ela e não conseguiu segurar uma risada. A
princesa parecia completamente aparvalhada. Hermes seguiu a deusa em
uma gargalhada alta e Ariadne também não conseguiu se segurar, pegando
outro manjar e enfiando na boca como se dissesse: Eu já estou no inferno,
não tem como piorar muito do que isso.
 
 
Hermes passou o dia com as duas.
Ariadne o conhecia por Teseu, o amante que a matara. Eles não
tocaram no assunto, mas era claro que ela gostaria de saber o que estava
acontecendo no mundo dos vivos. Juntos, eles fizeram uma caminhada por
Asfódelos.
Perséfone e o deus mensageiro então seguiram caminhando
sozinhos pelos campos próximos ao pomar de romãs. Ariadne acenou para
os dois, dando-os privacidade, e disse que a encontraria no chalé mais tarde.
“Você tem notícias de Eurídice?” Perséfone quis saber.
Hermes ergueu o braço para tocar em uma romã que estava acima de
seu alcance.
“A viagem de volta para o mundo dos vivos é longa...” ele disse.
“Não ficaria surpreso se eles ainda tivessem a meio caminho de volta”
A deusa suspirou. Eles pararam sob a sombra e olharam para acima
da colina. Dali, o palácio de Hades era quase visível, distante e frio.
“Por que você está aqui?”
Hermes encarou Perséfone.
“É raro essa pergunta sair de seus lábios, deusa.” Ele disse.
E era verdade. Perséfone havia aprendido muito cedo que, com
deuses, saber pouco ou nada era o bastante. Mas ele estar ali significava que
tinha trazido uma mensagem a Hades.
“É o Olimpo?”
Hermes concordou. Eles continuaram a caminhar, voltando pelo
caminho do campo até o chalé.
“Zeus ou Poseidon?”
“Zeus... mais uma vez”
O deus tinha a fama de terrível e não era sem razão. Apesar de ser
aquele que liderava os doze deuses mais poderosos, todos sabiam que quem
mantinha Olimpo em ordem era Poseidon e... Hades. Todos reconheciam
isso, mas não podiam jamais dizer as palavras.
Zeus estava constantemente embriagado e se envolvendo em
situações horrendas com deusas menores, ninfas e até mesmo mulheres
mortais. Perséfone, naqueles quatro anos vivendo por ali, tinha conhecido
ao menos duas mulheres mortais que haviam sido enviadas a Asfódelos
após terem se envolvido com Zeus. O interessante era que elas não haviam
permanecido na vila. Perséfone tinha a suspeita de que Hades levara elas
para outro lugar, na tentativa de evitar boatos vergonhosos.
“Você vai convidar os doze, mais uma vez? Para seu baile?” Hermes
quis saber, de repente.
Perséfone pensou naquilo, lembrando-se que em alguns dias estaria
de volta ao mundo dos vivos. No primeiro dia de primavera, ela dava um
baile e sempre convidava os doze deuses mais poderosos, membros do
conselho divino, como praxe.
No entanto, como não era uma deusa tão importante, eles raramente
apareciam. Nem mesmo Hermes, quem ela considerava um amigo, havia
comparecido mais do que uma vez e havia sido por alguns poucos minutos.
Aquela seria a quinta vez que daria o baile com o início da
primavera e duvidava que receberia um dos doze. O convite era mais um
reconhecimento do poder deles, do que uma expectativa de que eles
comparecessem.
“Você virá por mais de dez minutos dessa vez?”
O deus riu.
“Depende...”
“Eu sei o que você vai dizer” ela riu.
Ele puxou a mão dela e a fez rodopiar ao redor do vento e do campo
a frente deles, coberto por narcisos. Hermes a puxou para si.
“Talvez uma dança com música alegre, manjares não roubados e
hidromel não seja tão ruim assim” ele falou.
Perséfone percebeu que Hermes estava perto de mais dela. A mão
dele a puxou

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