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Entrevista com Andrew Feenberg

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Entrevista com Andrew Feenberg
scientiæ zudia, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 165-71, 2009
entrevista
scientiæ zudia, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 165-71, 2009
Entrevista com Andrew Feenberg*
por Pablo Rubén Mariconda & Fernando Tula Molina
Andrew Feenberg detém atualmente a Cátedra Canadense de Pesquisa em Filosofia da Tecno-
logia, da Escola de Comunicação da Universidade Simon Fraser, em Vancouver. No início da
década de 1980, na Califórnia, teve papel destacado na criação e desenvolvimento do primeiro
programa de educação on line, assunto ao qual dedicou ampla literatura, definindo os limites e
as possibilidades desse formato educacional enquanto lugar para a interação pedagógica por
meio da escrita. Na última década, destacou-se com a publicação de uma série de trabalhos
ligados à filosofia da tecnologia, dentre os quais Questioning technology (1999), onde argumen-
ta que o desenho tecnológico é central para as estruturas sociopolíticas democráticas, mos-
trando como a tecnologia se transforma no âmbito em que se desenrola a vida cotidiana,
Transforming technology (2002), no qual revê e atualiza sua “teoria crítica da tecnologia”, reexa-
minando as relações entre tecnologia, racionalidade e sociedade e, por fim, Heidegger and
Marcuse (2005), no qual estuda as conexões entre esses dois pensadores do século XX que de-
senvolveram concepções deterministas da racionalidade tecnológica.
A primeira questão é sobre sua relação com Marcuse. Você estudou com ele, poderia falar dessa época
e da influência dele sobre suas ideias?
Vim para a Universidade da Califórnia em 1965 e Marcuse havia acabado de chegar. A primeira
coisa que fiz foi pedir a ele que me ensinasse O ser e o tempo de Heidegger. Então, passamos a
nos encontrar toda semana para discutir Heidegger e tudo que lembro é que tínhamos grandes
debates sobre o significado desse livro tão obscuro. Depois, fiz outros cursos com ele e tive-
mos uma boa relação. Escrevi minha dissertação de PhD sobre Lukács com ele. Marcuse teve
uma grande influência sobre nós, da nova esquerda, mas foi uma influência paradoxal. Basica-
mente, o que ele estava dizendo em 1964, em One dimensional man [O homem unidimensional],
era que nenhuma oposição era possível, e nós lemos nenhuma oposição é possível com o sentido
de precisamos nos opor! Ele provocou a oposição ao dizer que ela não era mais possível. Esse é o
paradoxo do pensamento distópico.
* Entrevista realizada no Centro Cultural de Belém do Pará, em 27 de janeiro, durante o I Fórum Mundial Ciência
e Democracia, realizado como parte das atividades do Fórum Social Mundial 2009. Traduzida por Sylvia Gemigna-
ni Garcia.
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Em 1968, eu era estudante em Paris.
Marcuse chegou a Paris para a conferência da
Unesco sobre Marx, exatamente quando os
estudantes estavam começando a rebelar-se
e então ele estava lá no início dos eventos de
maio 68. Ele estava muito impressionado pelo
espírito utópico de maio. Lembre-se, a prin-
cipal palavra de ordem era l’imagination au
pouvoir, a imaginação no poder, todo poder à
imaginação, não todo poder aos soviets! Mar-
cuse escreveu um livro que depois veio a cha-
mar-se An essay on liberation [Um ensaio sobre
libertação], que é seu livro mais otimista e no
qual ele considera muito seriamente os mo-
vimentos da nova esquerda. O que penso que
aconteceu, mais tarde, foi que as pessoas da
nova esquerda tornaram-se desiludidas e,
assim, elas também desiludiram-se com
Marcuse e sua reputação caiu. Agora, estamos
tentando reviver seu pensamento porque
estamos novamente em um período de crise,
tal como o que inspirou suas ideias no final
de 1960 e na década de 1970. A tremenda po-
pularidade de Habermas, Adorno e outros
corresponde a um período de relações planas,
fechadas e congeladas na esfera política, mas
agora isso acabou e a contínua excitação em
relação a esses pensadores é realmente difí-
cil de entender, exceto, talvez, por algum tipo
de inércia. Eles realmente não têm muito a
nos dizer neste momento da história, pelo
menos em minha opinião, mas penso que
Marcuse tem. Acho que a principal questão
que Marcuse nos faz focalizar é a possibilida-
de da mudança tecnológica como base para
uma nova civilização. É isso que tento desen-
volver em meu próprio pensamento; não sou
marcuseano em sentido ortodoxo, nem estou
preocupado em simplesmente buscar a leitu-
ra correta de cada linha de seu texto. Estou
interessado em desenvolver a ideia de ciên-
cia e tecnologia alternativas, que ele foi uma
das principais pessoas a propor, nos anos
1960 e 1970.
Suas ideias são uma revitalização das de Marcuse,
mas existem algumas diferenças. Quais são elas?
Penso que estou tentando continuar a linha
de pensamento que ele começou, mas devem
existir grandes diferenças, porque estamos
em um tempo diferente. Uma das últimas fa-
las de Marcuse foi sobre ecologia; em outras
palavras, quando a ecologia tornou-se uma
grande questão ele já tinha mais de 70 anos.
Agora, experimentamos mais 30 anos de
atenção aos temas ecológicos e sabemos mui-
to mais sobre esse movimento. Houve tam-
bém grandes mudanças na sociologia e na
filosofia da tecnologia, grande desenvolvi-
mento no estudo empírico da mudança téc-
nica e da inovação. Portanto, temos que inte-
grar essas experiências e conhecimentos em
qualquer teoria da mudança tecnológica que
desenvolvermos hoje.
Que caminho o levou à filosofia e, sobretudo, à
filosofia da tecnologia?
É uma questão complicada. Eu sou ameri-
cano, nasci na cidade de Nova York, mas
estudei na França. Então, eu estava interessa-
do naquilo que chamamos na América “filo-
sofia continental”. Trata-se da filosofia tra-
dicional predominante fora do mundo de fala
inglesa, fenomenologia, marxismo... Eu não
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podia ver como ser um “filósofo continental”
vindo da América, mas estava especialmente
interessado nas teorias políticas desenvolvi-
das pela Escola de Frankfurt. Certas coisas
aconteceram em minha vida que abriram o
caminho. Nos fins de 1970 e início de 1980,
trabalhei em muitos institutos de pesquisa.
Um deles estava envolvido com pesquisa mé-
dica, com experimentação com seres huma-
nos; outro instituto de pesquisa desenvolvia
sistemas de educação on line. Essas experiên-
cias com tecnologias atuais intersectaram-se,
de algum modo, ao que eu havia aprendido
com Heidegger, Marcuse e outros pesquisa-
dores da tecnologia. Então, comecei a ver que
isso era algo que eu podia fazer, uma autên-
tica possibilidade para mim.
Você defende a teoria crítica para tratar da tec-
nologia em oposição ao determinismo e ao subs-
tantivismo. Quais suas razões para isso?
Quando eu trabalhava com computadores, ti-
nha muitos contatos de alto nível no mundo
dos negócios; conheci muitas pessoas impor-
tantes. Certa vez, o vice-presidente da segun-
da maior companhia de computadores do
mundo levou-me para almoçar e perguntou
qual era minha visão sobre o futuro da com-
putação pessoal. Eu disse para mim mesmo:
se eu, um estudante de Marcuse, sou um es-
pecialista no futuro da tecnologia falando com
esse vice-presidente, então ninguém sabe
nada! A tecnologia não pode ser determinista
se ninguém consegue prever o futuro. As teo-
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rias deterministas são simplesmente o que
chamamos em inglês “just so story” [“estória
de porque é assim”]. Rudyard Kipling escre-
ve essas estórias, todas se desenrolam assim:
‘por que as girafas têm pescoço comprido?
Porque elas se esticam em direção às folhas
mais altas e cada geração de girafas estica um
pouco mais seu pescoço e, assim, elas acaba-
ram como as vemos hoje’. Você pode criar
qualquer estória que quiser para mostrar por-
que as coisas têm que ser do modo como se
tornaram. O determinismo é somente uma
estória feita para mostrar porque as coisas
têm queser como são. Na realidade, há sem-
pre escolhas e alternativas.
Quanto ao substantivismo...
Essa é uma questão diferente, porque é um
argumento distópico vindo de Heidegger e
Marcuse. No pensamento deles, a tecnologia
domina tudo. O que vimos no final de 1970 e
no início de 1980 com a ecologia, os compu-
tadores, os avanços médicos foi que o siste-
ma era muito mais fraco do que eles tinham
pressuposto. Há um lugar para a agência hu-
mana que as teorias deterministas e substan-
tivistas eliminam. Elas fazem parecer que a
tecnologia tem sua própria lógica de desen-
volvimento, mas nós descobrimos que pode-
mos agir e mudar a tecnologia, portanto es-
sas teorias não podem ser verdadeiras.
Uma de suas principais ideias é a de ‘código téc-
nico’. Como você chegou a esse conceito?
A diferenciação das sociedades modernas
permite que as disciplinas técnicas existam ao
lado das disciplinas científicas, das ativida-
des artísticas e assim por diante; essa diferen-
ciação é a principal característica das socie-
dades modernas. Mas isso não está completo.
A sociologia funcionalista ortodoxa e as teo-
rias dos sistemas estão erradas em pensar que
essa diferenciação é total. Ao invés disso, há
muitos movimentos de interpenetração en-
tre pensamento, pressões sociais, forças po-
líticas e mudanças econômicas nas esferas
diferenciadas. Eu queria pensar sobre um
deles, a relação entre ações públicas na esfe-
ra técnica – movimentos e políticas etc. – e
disciplinas técnicas, que corporificam aque-
las intenções em divisas e sistemas. E preci-
samos um modo de pensar sobre isso: como,
por exemplo, a demanda das pessoas com ne-
cessidades especiais por vias adaptadas para
circular pela cidade em cadeiras de rodas é
representada em uma especificação técnica
para as calçadas. As traduções entre uma de-
manda pública, que é baseada em um interes-
se ou um conceito de direitos humanos, e uma
especificação técnica ocorrem frequente-
mente nas sociedades modernas. Eu desen-
volvi o conceito de ‘código técnico’ para falar
desse processo de tradução. Ele é o modelo
do conteúdo veiculado, de um lado, no dis-
curso dos movimentos sociais e, de outro, nas
especificações técnicas.
A teoria crítica depende da participação demo-
crática. Como você imagina essa participação
hoje em dia?
Bem, precisamos evitar esquemas formalis-
tas. Nós não vamos pedir à população que vote
no tipo de automóvel que deseja para o ano
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que vem. Penso que a maior parte da partici-
pação é informal. Parte dela é, com certeza,
legalista, para forçar as pessoas a obedecer a
lei ou a pagar pelos danos que fizeram. Há
outro âmbito de participação pública, que
toma a forma de movimentos de protesto e
controvérsias na esfera pública. Existem, ain-
da, consultas organizadas pelos governos, que
eles chamam ‘júris de cidadãos’ [‘citizens
juries’] em certos países. Na Holanda e na
Noruega, por exemplo, reúnem-se pequenos
grupos de cidadãos com especialistas, para
que eles sejam informados sobre tecnologias
específicas. Há muitas modalidades de inter-
venção e penso que todas juntas estão crian-
do uma esfera pública técnica, na qual a tec-
nologia torna-se mais um tema sobre o qual
as pessoas falam no discurso político. Não há
mais um Deus, a quem se deve obedecer.
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Qual a sua opinião sobre as discussões no Fórum
Mundial Ciência e Democracia?
Estou surpreso que tenha levado oito anos
para que se pensasse nisso, pois a única coisa
que todos os diferentes movimentos, de todas
as partes do mundo, têm em comum é a tec-
nologia. Portanto, eles deveriam ter falado
sobre isso desde o primeiro dia! Provavel-
mente, eles foram bloqueados por certos ti-
pos de oposição que são polêmicos, tais como
pensar na ciência e na tecnologia como com-
pletamente incorporadas às atividades neo-
liberais e imperialistas. De fato, como eu sei
por minha própria experiência, há muitas
coisas acontecendo; não é tudo um grande
bloco do mal. Espero que os organizadores
comecem agora a atrair pessoas das profis-
sões técnicas e científicas que adotam ati-
tudes contestatórias. Acho que seria de ex-
traordinária ajuda para conferir consistên-
cia e unidade às preocupações do Fórum So-
cial Mundial.
Você acredita que o problema da relação entre
tecnologia e democracia é diferente no Norte e no
Sul? Essas regiões estão discutindo os mesmos pro-
blemas quando tratam de ciência e democracia?
Não penso que seja fundamentalmente dife-
rente, mas, com certeza, o contexto político é
muito diferente. Todos os códigos técnicos
dominantes foram desenvolvidos nos países
avançados e, então, os países em desenvol-
vimento tratam de importar a tecnologia e
as disciplinas técnicas. Por certo, esse é um
enorme recurso, muito barato de adquirir, em
comparação a fazer sua própria descoberta do
modo como purificar a água, ou construir es-
tradas ou automóveis, ou encontrar antibió-
ticos. O custo da oportunidade de fazer coi-
sas de modo autóctone é muito mais alto,
então deve haver importação e transferência
de tecnologia e de conhecimento científico,
mas deve haver também adaptação local, e ali
onde não há, você terá problemas. O princi-
pal modo de corrigir tais problemas é por
meio de algum tipo de processo público. Se o
sistema político democrático é fraco, então os
problemas não poderão ser corrigidos. O caso
mais extremo é a Rússia, onde eles transferi-
ram a tecnologia sem as adaptações necessá-
rias e destruíram o país e a saúde da popula-
ção, porque se você protestasse... banido para
a Sibéria! Não havia feedback e um sistema
sem feedback vai perder a cabeça. A democra-
tização de muitos países, especialmente na
América Latina, abre possibilidades de mu-
dança e adaptação que são realmente essen-
ciais. Isso não aconteceu ainda na China. Eles
têm infinitos problemas. De fato, o feedback
político é expresso na China por agitações,
espancamento de policiais, ataque aos repre-
sentantes do partido e então exércitos poli-
ciais vêm para restaurar a ordem. É um siste-
ma terrível. O que estamos ouvindo nesta
conferência sobre a Índia é muito melhor.
Isto nos leva a nossa última pergunta. Você acre-
dita que a América Latina tem um papel especí-
fico a desempenhar nas alternativas atuais às
tendências dominantes?
A América Latina é provavelmente o último
lugar onde o marxismo é ainda uma tradição
viva. Isso é muito importante, porque penso
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que Marx ainda não perdeu a atualidade, ape-
sar de ser essa a opinião geral nos países de-
senvolvidos. Existe, ainda, um tremendo po-
tencial para entender a sociedade na tradição
marxista e isso é algo único que a América
Latina traz para a discussão. Eu gostaria que
houvesse mais traduções de textos do espa-
nhol e do português para o inglês e o francês.
Havia muito mais comunicação na década de
1960. Agora, a cultura da América Latina foi
posta no gueto, com exceção dos escritores –
todo mundo lê Garcia Marques e Borges –,
mas os debates intelectuais e políticos não
estão disponíveis. Penso que se eles se tor-
nassem disponíveis, teriam impacto nas dis-
cussões no Norte.
Pablo Rubén Mariconda
Professor Titular de Filosofia da Ciência
do Departamento de Filosofia
da Universidade de São Paulo, Brasil.
ariconda@usp.br
Fernando Tula Molina
Investigador Adjunto del Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet),
Profesor Asociado de la Universidad Nacional
de Quilmes, Argentina.
ftulamolina@gmail.com

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