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O BOM E O MAU VIVIDOS PELA CRIANÇA; O BEM E O MAL IMPOSTOS PELO ADULTO: REFLEXÕES SOBRE UM TEXTO DE FRANÇOISE DOLTO THE GOOD AND THE BAD EXPERIENCED BY THE CHILD; THE GOOD AND THE BAD IMPOSED BY THE ADULT: REFLECTIONS ON A TEXT OF FRANÇOISE DOLTO Laerthe de Moraes Abreu Junior* Resumo O objetivo deste trabalho é reapresentar um texto de 1947, de Françoise Dolto, e discutir sua importância nos tempos atuais para o campo da educação. O texto da psicanalista francesa trata do nascimento das sensações de bem-estar ou mal-estar e o correspondente sentimento de culpa, a partir do entendimento da criança do que é bom e do que é mau para ela mesma. Nesta época em que as crianças entram cada vez mais cedo na escola, é de suma importância que a psicologia da educação ofereça contribuições para que os profissionais da educação possam considerar questões que, até algum tempo atrás, relacionavam-se mais ao âmbito da família, mas que hoje têm uma repercussão direta no desenvolvimento e na aprendizagem escolar. Palavras-chave: Psicologia da Educação, Psicanálise, História da Educação, Desenvolvimento e Aprendizagem. Abstract The main purpose of this work is to present a text by Françoise Dolto (1947) and discuss its importance in the present time for the area of education. The text of the French psychoanalyst brings to our knowledge the origin of sensations like well-being and uneasiness and the consequent feeling of guilt felt by the child on the basis of his/her knowledge of what is good or bad for her. At the present time, in which children are enrolled in school earlier and earlier, it is very important that psychology of education offer contributions in order that the professionals in education may deal with matters that up to some time ago were only dealt with within the family, but which today have a bearing on school development and learning. Key words: Psychology of Education, Psychoanalysis, History of Education, Development and Learning. 1 Introdução Este texto parte de duas indagações. A primeira remete ao plano da temporalidade: que valor tem estudar, no contexto atual, um trabalho produzido há mais de quarenta anos e analisá-lo não como um "documento" histórico, mas como um fundamento epistemológico essencial para o campo da pedagogia? E a segunda indagação: que importância há na inclusão de um tema psicanalítico no âmbito da psicologia da educação, entendendo-se que a psicanálise não pode colaborar diretamente com a melhoria de processos educativos, visto que não há "como estabelecer um método pedagógico a partir dos princípios psicanalíticos sobre o inconsciente" (Assunção, 2005, p. 31)? Logo de início, é preciso deixar claro que se adota aqui a visão da "psicologia da educação" como uma área de estudos caracterizada como uma "disciplina-ponte" (Coll, 1996, p. 18), por não pertencer nem ao campo da psicologia, nem ao da pedagogia, mas por estabelecer um meio de ligação entre questões pertinentes a essas duas áreas de conhecimento. Assim, a psicologia da educação tem como objeto de estudo "os processos de mudança comportamental provocados ou induzidos nas pessoas, como resultado de sua participação em atividades educativas" (Coll, 1996, p. 18), englobando as práticas educativas não-escolares, tais como as familiares. No contexto deste trabalho, a psicanálise oferece à psicologia da educação uma contribuição fundamental: a compreensão de que as relações sociais entre sujeitos não se fazem somente a partir de suas identidades adquiridas e firmadas na escola. Como a escola recebe, de forma cada vez mais efetiva e determinada, a delegação, dada pela família e consentida pelo Estado, de cuidados específicos para o desenvolvimento de crianças desde tenra idade, aumenta, por isso mesmo, a responsabilidade dos educadores sobre suas ações e palavras dirigidas a esses sujeitos. É precisamente neste campo - o das ações e das palavras dirigidas às crianças pelos adultos - que as produções de base psicanalítica e, mais particularmente, esse texto escrito em 1947, por Françoise Dolto, têm muito a contribuir para a busca de relações saudáveis nas instituições e nos processos educativos. 2 Sobre Françoise Dolto (1908-1988) Como este artigo destina-se, particularmente, a educadores, é preciso fornecer algumas informações básicas sobre a autora aqui referenciada, pois, se Françoise Dolto é conhecida e respeitada no campo da psicanálise, talvez seja pouco conhecida na pedagogia. É comum, nos cursos de ensino superior, autores serem citados como meros objetos de estudo, desvinculados de seu contexto social e político e de sua história. Com sinceridade: saberão os estudantes universitá-rios contextualizar Durkheim, Marx, Freud e Foulcault, entre outros, sem que seus professores tenham tido, de antemão, esse cuidado? Françoise Dolto era médica, mais especificamente pediatra. A partir de seu contato com o psicanalista René Laforgue, passou a integrar a Sociedade Psicanalítica de Paris na década de 1930. Junto com seu amigo Jacques Lacan, fundou em 1953 a Sociedade Francesa de Psicanálise e, em 1963, entrou para a Escola Freudiana de Paris, de tendência lacaniana. Neste ponto, é preciso esclarecer que Jacques Lacan é, ainda hoje, um dos comentadores e intérpretes mais famosos (e para alguns mais radicais) das teorias freudianas. Não só destaca a linguagem e sua relação com a formação do inconsciente como ponto-chave em sua obra (na qual afirma que o inconsciente é estruturado como uma linguagem), como a partir das concepções estruturalistas de Saussure estabelece, entre outras elaborações conceituais, a interpretação das manifestações da linguagem do sujeito a partir dos eixos da similaridade/condensação (metáfora) e da contigüidade/deslocamento (metonímia): ... Lacan assimila os processos metafóricos e metonímicos da linguagem, respectivamente à condensação e ao deslocamento: estes dois mecanismos característicos do funcionamento do inconsciente em suas formações (Lemaire, 1982, p. 85). Nesse sentido, a atenção para a dinâmica da linguagem da criança, e não apenas para sua capacidade lógica de expressão, e para o jogo das manifestações do desejo que se movem por processos inconscientes, é imprescindível para a compreensão do desenvolvimento e da aprendizagem do sujeito humano. Dolto se apropria das contribuições de Lacan à psicanálise freudiana e o faz de forma autônoma e criativa, a ponto de ser considerada uma das duas intérpretes mais claras (a outra é Maud Mannoni 1923-1989) do que pode ser a clínica psicanalítica de base lacaniana. Como grande parte de sua obra é dirigida ao trabalho terapêutico com crianças e adolescentes, estão fortemente presentes questões que envolvem a aprendizagem e a escolaridade, esta última vista de maneira crítica. Quase sempre a escola é analisada por Dolto de forma desalentadora, pois, ao invés de cumprir seu papel profilático no desenvolvimento saudável do sujeito, acaba por contribuir nocivamente para a criação de uma vida escolar patogênica (Dolto, 2004, p. 26). 3 O Contexto A preocupação com o desenvolvimento infantil e sua repercussão na vida adulta é uma constante na obra de Dolto. Sobre esta questão - situações de conflito e de traumas psíquicos vividos pelas crianças às quais os adultos não dão muita importância –, ela afirma em outra obra, Psicanálise e pediatria, publicada pela primeira vez em 1939: A natureza, dir-se-á, pode fazer ela própria o trabalho, donde o "com o tempo passa", o "tenha paciência", que se diz aos pacientes funcionais. Sim, mas a supuração será demorada e a cicatriz será feia. O abscesso também poderá enquistar e, aparentemente debelado, o foco infeccioso reativar-se num momento de menor resistência geral ou por ocasião de um traumatismo no ponto sensível: angústias, depressões, insônias, perturbações cardíacas oudigestivas, aparecem bruscamente num adulto, a propósito de uma emoção ou de um acontecimento infeliz a que teria podido reagir se ele não tivesse esse foco neurótico infantil pronto a despertar de novo (Dolto, 1980, p. 13-14). O tratamento psicanalítico de crianças só se justifica naqueles casos graves, quando a criança passa por um sofrimento tão grande em que as situações cotidianas e o desenvolvimento da personalidade ficam seriamente comprometidos a ponto de os genitores ou adultos responsáveis não servirem de referência nem de ajuda para a criança lidar com seu mundo. Em muitas passagens de sua vasta obra, Dolto aponta para o papel profilático que a escola pode (ou poderia) ter no desenvolvimento da personalidade infantil, papel até maior, nessa fase da vida da criança, que o da própria psicanálise. Isso implica numa atuação bem clara dos educadores não só como complemento da formação, mas também como substitutos dos pais naquelas situações em que os genitores estão tão enredados em seus próprios dramas a ponto de arrastarem junto os filhos para o beco das situações sem saída. Assim, quando os pais não podem abordar determinados temas e problemas subjetivos sem desencadear conflitos graves em seus filhos, os educadores podem ter um importante papel social e, por decorrência, familiar a cumprir com as crianças. Em grande parte de sua obra, Dolto insiste na função profilática da escola, como se lê neste texto publicado originalmente em 1984: Se falo do papel da escola na informação e da educação sobre a genitura e a sexualidade das crianças, é porque as crianças entram cada vez mais cedo na vida social, na creche, depois na escola, e que, ali, tudo o que não se pôde fazer em família pode ser aliviado. Ora, vemos pobres pequenos chegarem sem nem mesmo saber de quem eles são filhos, sem nem mesmo saber como, por quem e para quem sua vida e sua sobrevivência têm sentido, sem conhecer o sentido das palavras que eles empregam: avô, avó, mãe, pai, titio, titia, irmão, irmã, etc. É papel da escola lhes dar o sentido do vocabulário, e a educação sexual consiste finalmente em explicitar o vocabulário do parentesco (Dolto, 1992, p.151). Infelizmente, não é o que se vê no cotidiano escolar atual. E isso sem contar o desvirtuamento que a escola promove nas questões ditas especificamente como de aprendizagem, quando a manifestação do eu está totalmente voltada para o cumprimento de lições e deveres, que, de forma burocrática, se apresentam desvinculados dos verdadeiros interesses dos alunos: Quantas energias sufocadas ou desperdiçadas inutilmente e que poderiam ser deixadas em liberdade, com um sistema escolar que confirmasse em vez de infirmar o livre acesso às iniciativas e às curiosidades inteligentes dos futuros cidadãos, que os formasse para um domínio para eles mesmos, em cada instante carregado de sentido, das suas capacidades, a uma ordenação por e para eles mesmos de conhecimentos e técnicas adquiridos por desejo e não por obrigação ou por submissão perversa ao medo das sanções e a imperativos impessoais (Dolto, 2004, p. 27). Em síntese, este é o contexto em que se movem as contribuições de Dolto; na compreensão de como se forma o sujeito humano e como as palavras do adulto se tornam significantes de referência nesse processo de formação, processo que ultrapassa e ao mesmo tempo embaralha as instâncias familiares e sociais (escolares, principalmente). 4 O Texto O texto "As sensações cenestésicas de bem-estar ou mal-estar, origens de sentimentos de culpa" foi publicado na revista francesa Psyché, nº 18-19, 3º ano, em Paris, abril-maio de 1948. Trata-se da transcrição de uma comunicação proferida em uma série de jornadas sobre o tema "estudo da culpa", realizado em Royaumont (um centro cultural a 30 km de Paris), em janeiro de 1948. No Brasil, foi publicado com esse mesmo título como capítulo do livro No jogo do desejo: ensaios clínicos, com tradução de Vera Ribeiro (vide referências bibliográficas ao final deste artigo). Nos dias atuais, quando apresentado em sala de aula (na disciplina psicologia da educação oferecida no curso de graduação em pedagogia), o texto ainda causa estranheza e perplexidade, principalmente, graças às situações que envolvem crianças e seus responsáveis (quase sempre a mãe é a protagonista dos casos relatados, além, é claro, da própria criança), pois os comentários e análises feitos por Dolto estão bem distantes do senso-comum e dos estereótipos sobre o bom comportamento dos pais, segundo livros de auto-ajuda ou programas de televisão tipo Super Nanny. Como se trata de um texto pouco conhecido, pertencente a um livro cuja tradução em português se encontra fora de catálogo - é raro até encontrá-lo em sebos -, os casos apresentados, bem como as considerações e análises feitos por Françoise Dolto, merecem a atenção dos educadores contemporâneos e de todos aqueles que cuidam ou se interessam pelo universo infantil. Dessa forma, são transcritas, neste artigo, muitas passagens do texto original da psicanalista francesa para mostrar claramente sua visão de mundo. Escrita e transmitida no pós-guerra, a comunicação de Dolto se utiliza de exemplos de sua época. Ela se refere a situações que vivenciou como médica - como a morte de quase mil recém-nascidos numa mesma noite em dezembro de 1944 - e a sua experiência como jovem mãe, utilizando os próprios filhos como protagonistas da maioria dos casos relatados. O intento da psicanalista francesa é o de relacionar o sentimento inconsciente de culpa com os mecanismos do fracasso e os sentimentos dos complexos de inferioridade que se desenvolverão ao longo da infância, e não só da infância, mas até a vida adulta. O grande mérito do texto "As sensações cenestésicas de bem-estar ou mal-estar, origens de sentimentos de culpa" é o de desvelar esta relação bem-estar / mal-estar, ou melhor, o jogo de relações em cadeia: inconsciente / culpa / fracasso / complexo de inferioridade. Tanto para a clínica psicanalítica quanto para a pediátrica e também para a pedagogia das crianças pequenas, os desdobramentos dessa cadeia de relações são cruciais para a compreensão das manifestações infantis, principalmente daquelas denominadas como distúrbios de aprendizagem ou de comportamento. Enaltecer o texto de Dolto não significa um elogio desprovido de crítica ou a mera defesa de um modo de pensar contra outras correntes de pensamento. O fundamental é que Dolto nos apresenta a chave para a abertura de uma porta quase sempre muito bem trancada: o universo das primeiras manifestações infantis. É a partir do nascimento do bebê que devemos nos atentar seriamente para a sua linguagem, linguagem essa que se expressa por meio das mímicas de calma ou de tensão, assim como do choro e, principalmente, do grito: "A criança sadia grita por necessidade, carência, desejo, alegria e, às vezes dor, mas sem crispação" (Dolto, 1984, p. 26). A manifestação pelas palavras só aparecerá muito mais tarde "com a ajuda das palavras dos outros, mas não antes dos dois anos e meio a três anos" (p. 21). Se o universo das primeiras manifestações infantis é o das manifestações dos sentimentos, a chave é a compreensão de "que a escala de valores 'bem-mal' não depende, no psiquismo, das mesmas normas de elaboração das escalas de valores 'bom-mau', 'agradável-desagradável' e 'bonito-feio'" (p. 20). Isso quer dizer que a criança não pede a opinião do adulto para decretar que alguma coisa é boa ou má, ou seja, para gostar de algo: No que concerne às percepções gustativas, elas são percepções diretas, ligadas a nossas singularidades individuais, e que, em vista disso, sentimos como absolutas, isto é, sem referência a outrem. Os biólogos chegam mesmo a afirmar que certos gostos são atávicos (Dolto, 1984, p. 20). Como justificativa, ela usa como exemplo uma experiência realizada nos Estados Unidos em que eraapresentado a crianças de dez a onze meses um alimento por um adulto que, mesmo tentando disfarçar sua repulsa por aquele tipo de produto (fígado de vitelo), não conseguia fazer a criança gostar do referido alimento: A experiência demonstra que a criança que tiver descoberto um alimento com uma pessoa que goste dele passará a aceitá-lo, em seguida, mesmo que ele lhe seja oferecido por uma pessoa que não o aprecie (Dolto, 1984, p. 20). Fica claro que Dolto não sugere que a criança aprende a gostar sozinha, pois tudo depende das interações pessoais e sociais que se desenvolvem na companhia dos adultos. O que ela afirma é que a escala de valores bom-mau se dá num plano em que as escolhas são feitas pela criança, mesmo que contrariem a "opinião" do adulto. No entanto, é justamente neste ponto, ao contrariar o adulto, que começa a se construir a escala de valores bem-mal, esta, sim, totalmente dependente do julgamento dos adultos, principalmente dos entes mais próximos com os quais ela tem uma ligação afetiva intensa e profunda: O que é bom para a criança torna-se mau para ela a partir de então, por causa dos adultos, e é por ela ligado ao sentimento de um perigo. (...) Estando as exigências instintivas em conflito com as exigências da "moral" do comportamento imposto pelo adulto, isso leva a criança a regredir, ou seja, a exprimir-se de modo mais infantil (Dolto, 1984, p. 20). Para não ficarmos apenas no plano conceitual e percebermos a gênese do jogo dessas relações em cadeia: inconsciente / culpa / fracasso / complexo de inferioridade, que transformam o bom e o mau em bem e mal, vejamos de forma resumida casos e situações vivenciadas pela autora, sendo os dois primeiros extraídos de sua atuação profissional e seis outros de sua própria experiência como mãe. 4.1 Dois Exemplos de Atuação Profissional Nestes dois exemplos, Dolto aborda uma das fases do desenvolvimento libidinal, o estágio anal, quando a criança, por volta dos dois anos e meio, começa a perceber seu autodomínio muscular. É um período em que a criança fala muito, grita, corre, salta, deseja fazer tudo sozinha e evita ser ajudada pelo adulto. No entanto, esse desejo de autonomia não é contínuo, mas intercalado por momentos de passividade e de pedidos de ajuda ao adulto. E muitas vezes o adulto, que não está atento a este processo descontínuo, entende o pedido de ajuda como um capricho. Avaliando a criança a partir de sua lógica, pronuncia palavras com ironia que ferem a sensibilidade da criança: "Para que você quer agora minha ajuda? Você não disse outro dia que já é grande e sabe fazer tudo sozinho(a)?" A criança, que nessa faixa etária não tem noção precisa de tempo - mal sabe distinguir ontem de hoje, e muito menos o que é (ou foi) outro dia -, entende que seu pedido (e sua vontade de autonomia) desgostou o adulto provedor, aquele a quem ela procura agradar a qualquer custo, mesmo que de uma forma incompreensível para a lógica desse mesmo adulto. 4.1.1 Comer Sozinho e Adequadamente O surgimento da vontade de comer sozinho dá-se no contexto do estágio anal. O adulto deve atentar para a prioridade dessa conquista antes de exigir um comportamento adequado às regras de conduta social. Assim, mesmo que a criança manifeste seu desejo de comer sozinha, dificilmente ela poderá fazer sua refeição no meio dos adultos, pois ela não só não domina os instrumentos que a cultura humana normatizou como adequados e corretos para comer, como tem necessidade de colocar as mãos nos alimentos para sentir sua textura, aproximar do nariz para perceber o cheiro, ou colocar grandes porções na boca e devolvê-las em seguida, pois não sabe como lidar com essa quantidade. Quando ela "deve" comer corretamente e "comportar-se bem", sem que esse momento tenha chegado, receberá as repreensões ou a retirada da mesa como punições. A falta de destreza infantil, o enfado, o "não ter fome", não são bons nem maus. Não suportar uma contenção prolongada, não ser capaz de coordenação motora aplicada por um longo período - isso faz parte do estatuto natural da infância (Dolto, 1984, p. 31). 4.1.2 A Autonomia da Criança para suas Necessidades Excrementícias Neste item, Dolto aborda uma das situações cotidianas mais geradoras de tensão na relação adulto/criança. Também relacionado à fase anal do desenvolvimento infantil, o controle por parte do adulto da micção e da defecação da criança, se for uma preocupação anterior à capacidade de domínio dessa parte do sistema nervoso, que se dá por volta dos dois anos de idade, poderá causar até danos irreversíveis: Nesse momento do estágio anal podem nascer neuroses obsessivas, caso o adulto, em vez de orientar a destreza manual e gestual da criança - ou sua destreza no falar e no cantar - imponha um ritmo artificial à defecção e à micção (Dolto, 1984, p. 32). O caso relatado por Dolto é de uma família em que a mãe, por orientação médica, diga-se de passagem, exigia de seus bebês, já nos primeiros dias de vida, a eliminação das fezes e das urinas em horários regulares, "chegando até mesmo a dar alguns tapas no recém-nascido recalcitrante, e festejava a expulsão obediente" (Dolto, 1984, p. 32). Dos três filhos assim criados, a filha mais velha, após manter o controle esfincteriano até os cinco meses, recusou continuar sob esse controle e em meio a desavenças com a mãe, só voltou a conter suas necessidades fisiológicas após os três anos de idade. O segundo filho manteve a continência até um ano e três meses e em seguida perdeu esse controle, só voltando a adquiri-lo com cinco anos e meio ao entrar na escola. Já o terceiro filho, um menino de oito anos, paciente de Dolto, adquirira o controle aos sete dias: ... e, desde então, jamais havia sujado ou molhado suas fraldas; contudo, aos quatorze ou quinze meses, pouco após a descoberta do andar, bastante tardio nele, tornou-se bizarro. Lastimavelmente para o menino, nunca voltou a sujar novamente as calças ou a cama. Aos dezoito meses, mostrava-se obcecado pelo voeyrismo: espiava sob a saia das mulheres e apalpava os fundilhos dos homens, o que muito inquietava a família, que o repreendia continuamente. Aos oito anos, era esquizofrênico; não falava, e sim cantarolava com a boca fechada; ouvia discos, e nada nem ninguém lhe interessava (Dolto, 1984, p. 32-33). Chamam a atenção nesse caso dois pontos: o primeiro é que nem todas as crianças da mesma família, criadas dentro de idênticos princípios e ordens, terão atitudes e manifestações iguais. O texto aponta para o cuidado que devemos ter em perceber as singularidades do desenvolvimento de cada criança. O segundo ponto é a confirmação da nocividade conseqüente de programas de adestramento, e o mais grave, sob orientação médica. Nesse caso, a intenção da mãe é o "bem" da criança, ou seja, que ela adquira hábitos civilizados que caracterizam a espécie humana. Entretanto, ao exigir o controle da criança tão precocemente, o problema aparecerá no decorrer do desenvolvimento, prejudicando ou impedindo certas aquisições, estas, sim, características da vida infantil: 1- a destreza nos gestos e na movimentação; 2 – a graça na expressão, características essas indispensáveis à autonomia na vida adulta. A interferência dos pais, até mesmo sob orientação médica ou científica, deve ser feita com muito cuidado – o que, no entanto, não significa omissão dos pais quanto ao seu papel de autoridade e de modelo – para não provocar traumas e seqüelas para o resto da vida, podendo chegar a psicoses para as quais a psicanálise pode pouco ou mesmo nada fazer: As crianças submetidas a um treinamento precoce não apresentam desembaraço nem graça em seus movimentos. São apáticas ou instáveis e não dão demonstração de nenhuma destreza acrobática ou manual delicada. Falam mal e têm um vocabulário pobre; silenciosas ou choronas, desajeitadas em tudo, caracterizam-se até mesmo por uma ausência de modulação davoz e por uma inexpressividade mímica relativa do rosto. São uma espécie de robôs cujas mães mostram-se às vezes encantadas, manipulando-as pelo gesto e pela voz, sem terem intercâmbios com elas, e cujo desenvolvimento posterior permanece problemático, pois apresentam um retardo simultâneo do desenvolvimento afetivo, da fala e psicomotor (Dolto, 1984, p. 34). 4.2 Seis Relatos de Vivência Pessoal Após os dois primeiros casos relativos a complicações geradas no desenvolvimento infantil por inabilidade dos adultos durante o estágio anal, Dolto relata como lidou com situações em que ela própria, no papel de mãe, precisou agir de acordo com a singularidade de atenção exigida em cada caso. 4.2.1 O Perigo do Fogo Neste item, ela compara as reações de seus três filhos diante do fogo. Dois deles, mesmo atraídos pela curiosidade e o encantamento que o fogo causa, contentaram-se com as explicações da mãe: Nas duas vezes, com ambas as crianças, falou-se (que aquilo era perigoso e que não se deveria tocar o metal cada vez mais quente – tratava-se da chapa de um fogão elétrico – pois poderia correr o risco de queimar-se) e se observou, e nem Jean (com nove meses), nem Catherine (com quatorze meses) se queimaram (Dolto, 1984, p. 37). Já com outro filho, Grégoire, que quando chegou aos dez meses sentiu-se atraído pelo fogo, os fatos aconteceram de maneira diferente. Ao aproximar a mão da chapa do fogão que se incandescia e ouvir a explicação da mãe que ela esquentava e poderia queimar, o menino repetia: "Isso quema (sic!), isso quema...", mas aproximava cada vez mais a mão, a ponto de tocar a chapa uma vez sem se queimar. Repetindo a advertência materna "isso quema", voltou a tocar a chapa agora quente e queimou-se um pouco. Quando a sensação de dor diminuiu, Grégoire voltou a aproximar a mão da chapa, mas, mesmo advertido verbalmente pela mãe, acabou por colocar a palma da mão inteira sobre a chapa até queimar-se bem e a chorar e a se afligir. A mãe fez-lhe um curativo, que ele exibia orgulhoso, e, mesmo alguns dias após a retirada do curativo, o menino não usava a mão acidentada, agora já curada. Só passou a usar a mão novamente quando Dolto relembrou-lhe o incidente com o fogo. E ele não mais voltou a tocar a chapa. Comenta a mãe psicanalista: É psicologicamente importante deixar a criança livre (naturalmente, supervisionando-a sempre), falar com ela e, caso se fira, cuidar dela com compaixão e sem repreendê-la; mas é também inteiramente essencial deixar que ela corra seus riscos e sinta por si mesma os efeitos da experiência que fez (Dolto, 1984, p. 38). Quantos adultos, pais e educadores, conseguem compreender o alcance dessa orientação de Dolto? Muitas vezes, estamos tão envolvidos em nossas próprias fantasias sobre nossa capacidade de proteger as crianças de todos os perigos que podemos até considerar que houve negligência ou irresponsabilidade dela, como mãe, ao deixar a criança se queimar. Será? Vejamos o que Dolto tem a dizer sobre isso: Não é mal queimar-se – isso faz mal, o que é bem diferente. Certamente não é preciso que o adulto impeça a criança de correr riscos reais (com a ressalva de que não deve provocá-los e de que as conseqüências não devem ser demasiadamente brutais), pois os riscos reais (...) fazem parte do mundo; e o risco fantasiado, previsto, confrontado com a realidade, conformando-se em seus efeitos ao que se disse dele, é formador (Dolto, 1984, p. 39). 4.2.2 O Perigo do Desnivelamento Este relato é de uma experiência de seu filho Jean, que, aos sete meses, subiu de gatinhas até o décimo degrau de uma escada do prédio. Primeiramente radiante, com um ar de triunfo estampado em seu rosto, torna-se angustiado ao notar a presença da mãe abaixo de onde estava. Foi muito sábia a atitude de Dolto: Apressei-me então em subir, tomei-o nos braços e cumprimentei-o, abracei-o e lhe disse que ele poderia refazer essa subida. Fiquei perto dele, dando-lhe assistência e colocando palavras em todos os gestos que ele fazia para subir a escada. Assim, a lembrança do perigo permaneceria na mente da criança associada a um esforço árduo, mas bom; a alguma coisa nova, porém passível de ser dominada (Dolto, 1984, p. 40). Ela comenta, ainda, que o medo manifesto pelo adulto pode agravar o mal-estar inicial desencadeado na criança ao se ver em situações inesperadas, como perceber-se num plano espacial acima de onde se encontra o adulto (que sabe ser maior que ela), podendo até mesmo impedir novas acrobacias. E conclui: "Foi uma criança que se desenvolveu muito rapidamente" (Dolto, 1984, p. 40). 4.2.3 O Perigo dos Contatos Sociais Aqui se aborda uma questão relacionada diretamente à entrada da criança na escola. Trata-se da primeira grande experiência social de Jean, que, com dois anos e meio, precisou enfrentar uma criança mais velha, de sete anos, mas que estava na mesma classe que o menino, por apresentar um retardo intelectual e motor decorrente de um traumatismo obstétrico, o que lhe causou também uma hemiplegia. Essa menina, Bernadette, tinha o hábito de tratar os recém-chegados com golpes de bastão desferidos por seu braço sadio. Ela passou os três primeiros dias de escola de Jean a persegui-lo com o bastão no horário de recreio. Ele só corria da menina sem outra reação. Comenta Dolto: A diretora do jardim de infância, adepta de métodos novos, gostava de deixar que as crianças se desembaraçassem sozinhas umas das outras, não interferindo para separá-los senão quando houvesse um perigo real. (...) A professora me falou sobre a situação: deveria ela proibir os ataques de Bernadette, fazer cessar aquela manobra, incitar Jean a responder à violência com violência, ou a vir refugiar-se junto aos adultos, já que não fazia espontaneamente nem uma coisa nem outra? (Dolto, 1984, p. 40-41). A mãe decidiu por continuar a levar o pequenino à escola, apesar de suas lágrimas, pois durante o horário das aulas ele ficava bem. Dolto avaliou que "era seu contato posterior com a sociedade das crianças o que estava em questão" (Dolto, 1984, p. 41). No entanto, continuar a levar o filho à escola não foi uma decisão fácil. No quarto dia, apesar dos protestos, ela deixou o filho na porta da escola e disse que traria um bombom para ele na hora da saída. Um tanto aflita com a situação, ao voltar à escola no fim da manhã para apanhá-lo, ao contrário dos dias anteriores, encontrou um Jean alegre e sorridente que, ao receber o bombom, pergunta se a mãe não teria outro para dar à sua amiga. E entrou novamente radiante na escola. No trajeto (de volta para casa), Jean declarou, entusiasmado: "Ah, eu adoro minha escola! Puxa, foi bom eu ir hoje de manhã!... Ah, que bom que é a escola! E também gosto de todas as namoradas!... E também, cê sabe... a Bernadette não queria acreditar que o bombom era para ela!" Pois muito bem. Eis que Bernadette se tornara sua amiga. Ele não disse mais nada. E, desde então, ficava sempre contente por ir à escola (Dolto, 1984, p. 41). O modo como Jean lidou com a situação foi contado posteriormente à mãe pela professora: antes de entrar em sala, Jean fez barulho na porta, mas não apareceu. Com isso, a atenção das crianças se voltou para a entrada. Dolto narra assim o episódio: Foi então que, após um momento, meu Jean apareceu através da abertura, com as pernas afastadas, os braços balançando, o tronco muito ereto e a cabeça erguida, dizendo com firmeza à platéia; "Atenção, hoje eu estou nervoso, por isso, cuidado!" E feita essa declaração, foi sentar-se em seu lugar. A criançada estava atônita. E as crianças repetiam uma às outras: "Cuidado, o bom Jean Dolto está nervoso!" (...) De qualquer modo, o resultado foi que, durante o recreio, Bernadette não se arriscou a persegui-lo com seu bastão e, a partir desse dia, Jean ficou tranqüilo (Dolto, 1984, p. 42). A atitude de Dolto sobre o importante episódio vivenciado por seu filho refere-se a respeitar e permitira reação singular de cada criança. Mesmo colocada em situação de inferioridade real, saberá agir a partir de seus próprios recursos. O episódio fez com que Jean até desenvolvesse uma compreensão da atitude da menina: "Ela é chata, a Bernadette, batendo assim nos outros, mas, sabe, ela não é má; ela tem um braço e uma perna que não funcionam direito" (Dolto, 1984, p. 43). 4.2.4 Os Perigos de Amar Neste item, o tema abordado são os ciúmes de um irmão mais novo. A partir do conceito de que amar significa estabelecer uma identificação de si com o objeto do amor, no nascimento de um bebê, quando este passa a ser o centro das atenções da família, para a criança mais velha, identificar-se com o recém-nascido é uma regressão. Comenta Dolto: Assim, será necessário ao mais velho recusar o amor pelo recém-chegado e atacá-lo, a fim de defender-se do risco incluído a priori nesse sentimento de amor. O amar lhe causa um dano subjetivo energético. Até então, era- lhe bom ter o desejo de identificar-se amando, pois a criança nunca vira em casa alguém menor que ela, mas sim, ao contrário, imagens humanas mais evoluídas (...). É preciso que ele se defenda do outro, que o agrida ou despreze, ou, pelo menos que o ignore (Dolto, 1984, p. 43). No primeiro caso de ciúmes, Jean, com três anos e dez meses, ao admirar sua irmãzinha de três meses, propõe à mãe comê-la quando chegar a Páscoa. Segundo a mãe o raciocínio do filho era: se uma coisa é boa, ela é boa de comer também. E Jean, durante dois ou três dias seguidos, voltou ao assunto: "É verdade? A gente vai comer ela na Páscoa? É, mamãe? Ela é tão boa, tão boa!". E contemplava a irmã com ar enternecido. Eu retrucava: "Talvez... vamos ver" (...) Duas semanas depois, Jean me disse: "Lembra mamãe, que quando eu era pequeno (duas semanas haviam transcorrido) eu dizia que queria comer ela? Mas ela é boa demais, a Catherine. Se a gente comesse ela, não tinha mais ela para amar e abraçar, não é?" E Jean dava risadas de ter podido dizer "quando era pequeno"! (Dolto, 1984, p. 44). Já com Grégoire, que tinha 20 meses na época do nascimento da irmãzinha, o episódio de ciúmes teve outro desdobramento. Estava a mãe a amamentar a neném com a mamadeira, que fazia um gesto característico dos recém-nascidos de esticar e tocar com os dedos os objetos de forma involuntária. Grégoire aproximou-se e mordeu o dedo da irmã que, imediatamente, largou a mamadeira e pôs-se a chorar. Dolto, mesmo preocupada com o choro da menina, notou a expressão de transtorno e angústia do filho e falou para ele: "Veja, olhe como sua irmãzinha está contente por ter um irmão tão forte. Agora que você já é forte assim, poderá defendê-la se algum dia alguém a atacar" (Dolto, 1984, p. 45). O menino relaxou e comentou: "Ká (Catherine) dói, chola". Fez um beicinho e começou a chorar também. A mãe prosseguiu: "É claro que ela está sofrendo, porque você é muito forte para ela, mas ela sabe muito bem que foi porque você a acha tão boa que queria comê-la". Ele me olhou, surpreso, e me respondeu: "É!" Continuei: "Mas isso não é possível; ela está viva, e a gente não come as pessoas. E ele: "Tem de consolar!" E começou a esforçar-se por fazer isso, pronunciando pequenas palavras delicadas, e bem depressa o conseguiu. Mesmo assim, o dedo do neném levou três ou quatro dias para sarar por completo. Depois disso, o menino nunca mais mordeu sua irmãzinha nem qualquer outra pessoa (Dolto, 1984, p. 44-45). Dolto comenta ainda que fora ela a culpada pela situação ao amamentar o neném muito próximo do alcance do irmão mais velho e que ela mesma deveria ter mais cuidado na próxima vez que fosse amamentar. Esse episódio é o que mais causa controvérsia quando apresentado e discutido em sala de aula. Muitos opinam que a mãe foi insensível com o choro do bebê, priorizando conversar com o irmão maior e alguns falam da impossibilidade de a criança (Grégoire) compreender as palavras que a mãe usou para interpretar a ação. Há também os que dizem que o desenrolar dos fatos da maneira como foram relatados só foi possível porque a mãe era psicanalista. Dolto comenta esse caso comparando-o com aquele em que o mesmo filho, Grégoire, teve que colocar a mão no fogo. O que está em jogo nesse processo é o desenvolvimento da criança a partir de características singulares. Há crianças que se contentam com as palavras, mas há outras que precisam vivenciar as situações de forma bem concreta. A ação de morder não é boa, nem má (em termos de valores bem-mal), pois a criança interpreta que se algo é bom é bom para comer (e a criança sabe que precisa morder bastante o alimento até desfazê-lo antes de engolir). O problema está no tratamento das palavras do adulto frente ao ciúme inconsciente da criança. É nesse momento que pode aflorar o sentimento de culpa se o adulto confirmar que a criança mordeu porque é má. As palavras ditas por Dolto tiveram o mérito de ajudar Grégoire na elaboração de seus sentimentos conflitantes de exibir sua força, seu amor e seu ciúme, sentimentos ambíguos que precisam do apaziguamento das palavras do adulto saudável para impedir a formação do jogo de relações em cadeia: inconsciente / culpa / fracasso / complexo de inferioridade. 4.2.5 Outro Exemplo da Dificuldade de Amar Este episódio se passou com Jean, que, com pouco mais de três anos, usou a palavra "vagabunda" para a moça que começara a trabalhar em sua casa e que quis ajudá-lo a subir na cadeira para comer. É claro que a mulher ficou magoada e Dolto, ao conversar com o menino, perguntou se sabia o significado da palavra. "Ele não respondeu. Mais tarde, soube que ele tinha ouvido a palavra ao escutar a própria recém-chegada falar de uma outra pessoa com a arrumadeira" (Dolto, 1984, p. 46). Ao saber o sentido da palavra, Jean disse que ela não era uma vagabunda, mas, para ele, como a palavra fora pronunciada pela própria pessoa que criticava uma outra, entendeu que também poderia usar essa palavra da mesma forma que ela usara. Assim, para ele, vagabunda significava alguém que estava interferindo em sua atividade vital. Jean era uma criança de três anos e encontrava-se em plena descoberta do domínio de seus movimentos; daí a irritação por ter sido "ajudado" a fazer algo que já sabia fazer sozinho. 4.2.6 Experiência da Perda de uma Coisa Amada: o teu e o meu O último caso relatado por Dolto é ainda sobre Jean, que, com dezenove meses, ganhou um fuzil de brinquedo. Era a época do fim da guerra e da libertação da França da ocupação nazista. "Esse fuzil era, para ele, a possibilidade de identificar-se com o general de Gaulle, como ele dizia" (Dolto, 1984, p. 48). Ao ser levado pela avó a uma pracinha para brincar, Jean largou o fuzil no chão para andar no cavalinho de madeira e acabou por perdê-lo, pois a arma de brinquedo era um objeto raro na ocasião, muito cobiçado por todos os meninos. A avó ficou aborrecida com o ocorrido e mais ainda com a atitude de Jean, que parecia não se importar: "Não faz mal, tem alguém que achou e que deve estar muito contente!". "Quanto a mim", comentei (entrementes, Jean tinha chegado e assistia ao diálogo com minha mãe), "não vejo por que ficar mais aborrecida do que Jean; o fuzil era dele; já que nós o tínhamos dado a ele. E, se Jean está contente, eu estou contente. É verdade que existe, sem dúvida, um menino muito contente por ter agora um belo fuzil". E não se falou mais no fuzil (Dolto, 1984, p. 48). Somente quinze dias depois é que Jean pareceu ter se dado conta da importância que o brinquedo tinha para ele e pôs-se a lamentar tê-lo deixado no chão. Mais uma vez, as palavras do adulto vêm ajudar a criança a elaborar a situação que ela está vivendo. Diz a mãe: "'Numa outra vez, quando você gostar muito de alguma coisa, você prestará atenção para não perdê-la'. 'Ah, sim!', respondeu-me" (Dolto, 1984, p. 48-49). E Dolto conclui sua análise de forma lúcida:O incidente do fuzil estava encerrado e tinha trazido uma experiência. A criança havia adquirido, por identificação com aquele que o encontrara, o verdadeiro sentido do valor de um objeto seu; se, ao contrário, tivesse sido repreendida por ter perdido seu brinquedo, sem ter ainda podido sentir a privação (e é fato que, até então, ainda não a tinha sentido), teria tido somente um sentimento de culpa imposto pelo adulto: um sentimento artificialmente enxertado, sem nenhum valor moral para ela, sem relação com qualquer falha, pois nada tem a ver com moral deixar ou não que outra pessoa carregue suas coisas; e não há falha alguma, quando gostamos muito de algo, em tê-lo perdido. Através dessa experiência, Jean teve a oportunidade de adquirir a aprendizagem do sentido da responsabilidade por seus atos e também a aprendizagem do valor de um bem possuído, e depois perdido, que lamentamos por ele mesmo. Se numerosas crianças têm tanta dificuldade em aprender o sentido do teu e do meu, é porque o desejamos inculcar cedo demais (Dolto, 1984, p. 49). Quantos pais e quantas mães, ao invés de refletirem dessa forma, não chamam o filho que perdeu ou quebrou um brinquedo valioso de bobo, burro, tonto? Colocam palavras de pesado valor negativo e cobram uma responsabilidade acima da que a criança pode assumir, podendo até gerar sentimento de culpa num ato que ocasionou uma perda, sim, mas que precisa apenas ser sentida e elaborada, pois todas as crianças passarão por muitas perdas ao longo de sua vida e não poderão responsabilizar-se, nem sentir-se culpadas por isso. 5 Conclusão: implicações psicoafetivas na educação Quando pensamos nas questões que afetam diretamente a aprendizagem, tomamos como referência basicamente os aspectos cognitivos e os cuidados que os educadores devem ter para propiciar um ambiente rico para a realização de operações essenciais ao desenvolvimento da inteligência por meio dos processos lógicos tão bem estudados por Piaget e debatidos por muitos críticos de sua obra (Pain, 1987). No entanto, há que se considerar que as relações psicoafetivas estão presentes de forma indissolúvel nos processos cognitivos. Nesse sentido, Françoise Dolto, no texto "As sensações cenestésicas de bem-estar ou mal-estar, origens de sentimentos de culpa", oferece três contribuições essenciais: a primeira é esta vinculação entre a saúde mental e os processos de interação, principalmente com o adulto, processos estes banhados por palavras asseguradoras dessa saúde, ou, ao contrário, desencadeadoras do jogo de relações inconsciente / culpa / fracasso / complexo de inferioridade, que interferirá gravemente nos processos cognitivos. A segunda contribuição está no tratamento estabelecido por Dolto para abordar o tema. Ao invés de criar categorias e estabelecer um padrão de conduta, hoje muito em voga, principalmente quando se pretende uma base científica rigorosa para a psicologia da educação, a psicanalista francesa vai buscar "as fontes do sentimento de culpa nas primeiras sensações fisiológicas pré-verbais do mal-estar de viver" (Dolto, 1984, p. 49). E, para isso, faz uso de suas observações pessoais (e profissionais) sem a pretensão de classificar e ordenar esses processos, sempre tão singulares, que precisam mais ser compreendidos que rotulados em uma nosografia qualquer. Esta é a terceira e, talvez, a mais importante contribuição: compreender a singularidade das manifestações do sujeito humano. Mesmo que condicionado pela cultura e pelos hábitos sociais e familiares, a formação humana é sempre diferenciada. O texto de Dolto traz essa peculiaridade e serve não como um modelo em que se procuram encaixar (para explicar) as situações da vida, mas como um ponto de inflexão sobre como devem ser empreendidas as ações e as palavras do adulto no meio infantil. Referências ASSUNÇÃO, Maria Madalena Silva de. Freud e a história da educação: aproximações possíveis. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de (Org.). Pensadores sociais e história da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 27-46. COLL, César. Psicologia e educação: aproximação aos objetivos e conteúdos da psicologia da educação. In: COLL, César; PALACIOS, Jesus; MARCHESI, Álvaro. Desenvolvimento psicológico e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. v. 2, p. 7-21. DOLTO, Françoise. Psicanálise e pediatria. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. DOLTO, Françoise. As sensações cenestésicas de bem-estar ou mal-estar, origens de sentimentos de culpa. In: DOLTO, Françoise. No jogo do desejo: ensaios clínicos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. p. 19-51. ______. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva, 1992. ______. A sociedade (a escola). Seu papel patogênico ou profilático. In: MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. 27. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 7-33. LEMAIRE, Anika. Jacques Lacan: uma introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1982. PAIN, Sara. A função da ignorância. As estruturas inconscientes do pensamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. v. 1. *Dados do autor: Laerthe de Moraes Abreu Junior Doutor em Educação – Universidade Metodista de Piracicaba - Pós-doutor em Educação – Universidade do Minho/Portugal – e Professor do Departamento de Ciências da Educação – UFSJ Endereço para contato: Universidade Federal de São João del-Rei Campus Dom Bosco Praça Dom Helvécio, 74 - Dom Bosco 36301-160 São João del-Rei, MG – Brasil Endereço eletrônico: laerthejr@yahoo.com.br Data de recebimento: 23 jan. 2007 Data de aprovação: 11 jun. 2007