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c© dos autores, 1994,1995,1996. c© Éd. de l’Association Freudienne, 1995. c© Ágalma para a ĺıngua portuguesa, 1997. 1a edição: agosto de 1997 2a edição: maio de 2003 Projeto gráfico da capa e primeiras páginas Homem de Melo & Troia Design Editores Angela B. do Rio Teixeira Marcus do Rio Teixeira Direção desta Coleção Daniele de Brito Wanderley Organização deste volume Daniele de Brito Wanderley Traduções a cargo da organizadora Revisões a cargo dos editores Depósito legal Impresso no Brasil/Printed in Brazil Todos os direitos reservados Rua Agnelo de Brito, 187 Centro Odontomédico Henri Dunant, sala 309 40.170-100 Salvador - Bahia, Brasil Telefax: 0 xx (71) 245-7883 Tel: 0 xx (71) 332-8776 e-mail: agalma@agalma.com.br site: www.agalma.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. P181 Palavras em torno do berço : intervenções precoces bebê e famı́lia / Daniele de Brito Wanderley, org. [e tradução] - Salvador, BA. Ágalma, 1997. - - (De Calças Curtas, 1) Inclui bibliografia ISBN 85-85458-10-0 1. Psicopatologia infantil, 2. Psicanálise infantil. I. Wanderley, Daniele de Brito, 1969-. II. Série. 97-1163 CDD 618.928917 CDU 159.964.2-053.2 SUMÁRIO Apresentação da coleção, 07 Daniele de Brito Wanderley Prefácio ao volume, 15 Daniele de Brito Wanderley Introdução Palavras em torno do berço, 21 Graciela Cabassu Prevenção Podeŕıamos pensar numa prevenção da śındrome aut́ıstica?, 35 Marie Christine Laznik Por que uma prevenção precoce dos distúrbios pśıquicos?, 52 José R. de A. Correia Uma tentativa de intervenção precoce ou De como introduzir a questão do sujeito no corpo de um hospital universitário, 58 Telma Queiróz, Márcio Allain, Maria do Socorro Amorim, José Roberto Correia, Icléia P. Diniz Pai, mãe, bebê A interação mãe-bebê: primeiros passos, 77 Śılvia Ferreira A cĺınica do holding, 89 Florence Benavides e Claude Boukobza Observação terapêutica de um bebê de pais psicóticos, 107 Maria do Carmo Camarotti O lugar do pai e o trabalho psicanaĺıtico com bebês ou Três dimensões da exclusão, 119 Cláudia F. Rohenkohl Bebês de risco Prática anaĺıtica em neonatologia, 129 Catherine Mathelin Em busca do trono perdido, 143 Daniele de Brito Wanderley TÍTULOS ORIGINAIS E LOCAIS DE PUBLICAÇÃO “Paroles autour du berceau”. Inédito, 1996. “Pourrait-on penser à une prévention du syndrome autisti- que?” In Revue Contraste Enfance et Handicap no 05. Paris: Autismes, 1996. “Por que uma prevenção precoce dos distúrbios pśıquicos?” In Revista Pediátrica de Pernambuco, Recife, 1994, p. 47-48. “Uma tentativa de intervenção precoce ou De como intro- duzir a questão do sujeito no corpo de um hospital univer- sitário”. Inédito, 1996. “De l’interaction mère-bébé, au dialogue mère et bébé: le premier pas”. In La Psychanalyse de l’Enfant no 16. Paris: Éd. de l’Association Freudienne, 1995, p. 69-83. “La clinique du holding”. In Une relation precoce et les vicissitudes mères-enfants. St-Denis: Association de Santé Mental et Culture, 1995. “Observação terapêutica de um bebê de pais psicóticos”. Inédito, 1996. “O lugar do pai e o trabalho psicanaĺıtico com bebês ou Três dimensões da exclusão”. Inédito, 1996. “Pratique analytique en service de Néonatogie”. In Une relation precoce..., op. cit., pp. 23-35. “Em busca do trono perdido”. Inédito, 1996. APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO Daniele de Brito Wanderley A coleção De Calças Curtas, nome dado por Aurélio Sou- za ao infante, “o sujeitinho de calças curtas”, surgiu do in- teresse de algumas pessoas pela abordagem precoce da psi- copatologia da criança. Trata-se de uma longa gestação que se iniciou, para mim, com o contato que tive com crianças e adolescentes psicóticos, autistas, portadores de alguma defi- ciência — de causa conhecida ou não — e do caminhar junto a estas crianças, suas famı́lias e os muitos profissionais en- volvidos desde cedo com suas crenças, posturas e motivações tão diversas. Uma certa inquietude, para não dizer uma enorme insa- tisfação, começava a apontar nessa prática que começou há quase quinze anos. Durante este tempo testemunhei muitos modelos e abordagens. Se as posições téoricas podem ser di- vergentes, as práticas, mesmo as mais diferentes, têm pontos comuns e é em torno destes pontos que decidimos caminhar. O que se percebe de comum em todas estas pessoas que se dedicam à psicopatologia na infância? Um desejo, é certo, anima a todos. Desejo e esperança. Esperança de que algo se faça, se inscreva, se constitua naquilo que foi, de ińıcio ou em algum momento da vida da criança, posto em dúvida. Um projeto “duvidoso”, onde paradoxalmente não se pode tudo esperar, como num nascimento ordinário, mas sobretudo não 7 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO se pode a tudo renunciar, como se fazia na Antiguidade, quando crianças diferentes eram abandonadas ou mortas. E foi rastreando esse desejo nos profissionais que pude em 1992 ir para Paris, onde encontrei algo que respondia em parte aos meus questionamentos. Eu me perguntava o que acontece antes das crianças chegarem até os profis- sionais. Dei ińıcio então a uma viagem que continua tão surpreendente e desafiadora quanto no momento em que dei o primeiro passo. Seguindo minhas motivações, iniciei dois cursos de especialização, um em psicopatologia do bebê e ou- tro em psiquiatria infantil. A partir dáı segui meu interesse sempre vivo pela prática institucional, e mais amplamente pelo que se chama na França de ação médico-psicossocial precoce, com sua complexa rede de atendimentos à primeira infância, exigindo constante reflexão do trabalho realizado. Então, em 1996, surge um convite, feito pela editora Ágalma, para que eu dirigisse a coleção De Calças Curtas, originalmente pensada para se dedicar a temas de puericul- tura, endereçada aos pais. Nesta ocasião pude colocar mi- nhas restrições, senão meu desinteresse para embarcar neste projeto, por algumas razões: primeiro em função dos se- minários, cursos e consultoria que venho ministrando sobre o tema da psicopatologia do bebê em hospitais e creches e o contato freqüente com diferentes profissionais, eles mesmos pais, que na ocasião da discussão dos mais variados temas reportam inevitavelmente suas histórias pessoais e particu- larmente aquelas ligadas à filiação, maternidade e paternida- de. O que se torna evidente nesses seminários é a percepção de que eles não têm caráter terapêutico para esses pais de- mandantes. Dito de outra forma, não é estudando as difi- culdades de sono, alimentação, os problemas digestivos ou respiratórios das crianças pequenas, sua intŕınseca relação com a interação pais-bebê e os conflitos subjacentes a es- 8 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO ta dinâmica que alguns destes profissionais-pais poderão se “prevenir” contra tais manifestações nos filhos, numa busca de melhor preparo para a maternidade e paternidade. Em suma, não há curso ou livro, ou mesmo terapeuta, que “en- sine” a boa forma de cuidar de um bebê. Neste sentido e apenas neste sentido, a meu ver, a abordagem psicanaĺıtica não pode ser vista como preventiva. Entretanto falava com Angela do Rio Teixeira,que me fez o convite, que há muito o que se fazer no campo da atuação dos profissionais. Há demanda, dúvidas e interesse numa leitura psicanaĺıtica no que ela pode trazer de reflexão em torno da subjetividade. Muitos de nós estamos interessa- dos em discutir nossas práticas tão isoladas. Surgiu então a idéia de dedicar esta coleção não mais aos pais mas aos profissionais da primeira infância, com um enfoque psica- naĺıtico, porém voltado para a interdisciplinaridade e com o objetivo de trilharmos juntos um caminho naquele momen- to ainda inexistente no Brasil — o campo da intervenção médico-psicossocial precoce. Ou seja, modos de atendimen-to interdisciplinares aos bebês e crianças pequenas e seus pais em dificuldades e/ou sofrimento, estejam eles com de- mandas formuladas ou não. Falar em intervenção precoce ou até em prevenção em psicopatologia infantil não é ter a pretensão de “erradicar”, como a medicina erradica uma doença, os sintomas infan- tis. Esta é uma visão contraditória à psicanalise e à própria realidade subjetiva, desde quando o sintoma faz parte do sujeito. A que se propõe então esta atuação? Falando com Marie Christine Laznik sobre as resistências e dificuldades no campo da intervenção precoce no Brasil e particularmente em Salvador — resistência que se faz sentir 9 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO tanto do lado da medicina quanto da própria psicanálise — e lendo um dos seus textos∗ escrito para pediatras, pude ler seu voto de que a formulação de Winnicott (de que os pedia- tras pudessem prevenir doenças mentais), fosse concretizada no próximo decênio. Eu dizia a ela o quanto esta palavra “prevenção” podia ser mal ouvida ou mesmo violentamente rejeitada do vocabulário dos psicanalistas; sem falar, é claro, na v́ıvida preferência que a comunidade médica e a socieda- de como um todo refletem, na sua atuação, pela remediação em detrimento da prevenção∗∗. Ela respondeu perguntando- me como os profissionais poderiam então chamar uma inter- venção que, situando-se cedo na vida da criança, possibilita- ria a sua constituição subjetiva anteriormente dificultada ou inexistente — como é o caso das crianças com sinais precoces de isolamento aut́ıstico —, senão de prevenção. Este é então o ponto em torno do qual nos dispomos a trabalhar: Prevenir o quê? Como? Com quem? Aonde? Nossos impasses, limites, contribuições, nossas diferenças e nosso eixo central — o bebê, a criança, o sujeito que não pode mais ser concebido como uma entidade de domı́nio de cada profissional de forma tão isolada, sem que isto comporte riscos quanto à sua subjetivação. A exemplo desta atuação “despedaçada”, e uso esta pa- lavra pensando na noção de vivência de corpo despedaçado na psicose, temos a situação atual dos bebês considerados ∗ O texto acima referido não foi publicado, mas Marie Christine retoma estas idéias no texto “Poderamos pensar numa prevenção da śındrome aut́ıstica?” que aparece publicado no nosso primeiro volume Palavras em torno do berço. ∗∗ Haja visto o número crescente de projetos comunitários, ações do governo e entidades não governamentais pela questão do menor aban- donado, as crianças de rua etc, e a ausência flagrante de uma ação mais precoce em creches, em orfanatos e lugares de acolhimento na faixa de zero a seis anos. 10 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO de risco. Desde a concepção, geralmente dif́ıcil, os futuros pais são “acompanhados” por médicos que podem quase tu- do: fazer ovular, fazer conceber (com ou sem necessidade do ato sexual, como é o caso do bebê de proveta), fazer parir uma criança de outro casal (no caso de útero emprestado ou de aluguel), fazer uma mulher que não pariu amamentar (com uso de medicamentos), etc. No nascimento, as UTIs neonatais estão muito bem equipadas e seus médicos são verdadeiros experts na reanimação. Atualmente salvam cri- anças no 5o mês de gestação, com até 500 gramas de peso. E, quando há risco ou mesmo seqüelas detectadas, há todo um aparato médico que se encarrega de “consertar o estra- go”. Somos todos chamados áı: neuropediatra em primeiro lugar, oftalmologista, otorrino, gastroenterologista, fisiote- rapeuta, fonoaudiólogo e, quando a coisa está muito “feia” e os médicos não sabem como consertar, chegam os psicólogos e psicanalistas, muitos anos depois desta longa história. Não se trata de fazer uma apologia da anti-medicina ou de tentar dar um passo para trás, para um tempo anteri- or ao progresso da ciência ou da tecnologia utilizada atual- mente; afinal sabemos o quanto ganhamos com tudo isto (e não foi pouco!). Mas como cada profissional pode lidar com questões que não são apenas orgânicas? A exemplo da medicina da procriação, alguns ginecolo- gistas que trabalham com fertilização assistida trazem re- velações surpreendentes da sua prática: dando grande im- portância à complexidade da problemática da reprodução humana e seus avatares e levando em consideração o valor preponderante do desejo inconsciente nesta dinâmica, o Dr. Jean Reboul, estudando sua clientela, pôde afirmar que “em quase 5.000 casos de mulheres inférteis cuja infertilidade era considerada de ordem médica, mais de dois terços destas pa- cientes engravidaram sem tratamento ou com ajuda de um 11 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO tratamento menor, já utilizado sem efeito”. A Dra. An- ne Cabau, também seguindo a mesma ótica de reflexão, diz que “ em mais de 200 mulheres com infertilidade funcional, o ı́ndice de gravidez é sensivelmente o mesmo com ou sem tratamento”1. Outros profissionais, questionando um certo não-saber ao qual são confrontados pela cĺınica, tentaram levantar fa- tores de risco a ńıvel psicológico que pudesssem intervir no parto prematuro. Encontraram nestas mulheres acompa- nhadas um maior ı́ndice de antecedentes de abortos, morte súbita ou prematuridade, assim como problemas de fertilida- de. Também eram mais freqüentes dificuldades psicológicas atuais, como conflitos conjugais, rupturas com a famı́lia ou luto e dificuldades psicológicas antigas relativas a lutos e separações2. Não só o campo da obstetŕıcia se vê atravessado por questionamentos na sua prática cotidiana. Alguns pediatras têm se perguntado sobre aqueles sintomas que revelam um lado emocional evidente: as crises de perda de fôlego, os vômitos psicogênicos, as anorexias infantis, problemas como encoprese e enurese persistentes, asmas e problemas psicos- somáticos diversos que apontam para uma abordagem mais ampla destes sintomas de manifestação somática. Outros se vêem sós diante de mães que se encontram deprimidas, percebendo um impacto desta depressão nos bebês, seja da ordem de um atraso no desenvolvimento, se- ja de uma maior ocorrência de sintomas psicossomáticos ou uma apatia inquietante. Até hoje muitos pediatras hesi- tam em fazer encaminhamentos precoces, apostando no ru- mo “natural” do desenvolvimento — “tudo entrará em or- dem, com o tempo tudo se arranja”. E assim, transtornos de linguagem ou quadros de lesão neurológica são tardiamen- te acompanhados pelos psicólogos e analistas que recebem 12 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO estas famı́lias depois de terem passado por diferentes tra- tamentos; estão descrentes, cansados e a criança algumas vezes subjetivamente muito mal. Dessa forma, crianças com autismo, com déficits sensoriais ou mentais, ficam cada vez mais fechadas nas suas famı́lias desesperadas, sem um acom- panhamento mais interligado entre os vários profissionais. São estas, dentre muitas outras, as questões que a coleção De Calças Curtas tentará abordar, com a colaboração de todos os profissionais que atuam junto à primeira infância. Nosso primeiro volume, Palavras em torno do berço — inter- venções precoces bebê e famı́lia, trata de forma mais ampla do atendimento ao bebês e seus pais, na cĺınica, no hospital e outras instituições. O segundo volume, intitulado Agora eu era o rei — incidências subjetivas da prematuridade, trata especificamente do bebê que nascendo prematuro, vivencia desde muito cedo uma separação dos pais e uma hospita- lização que comporta sempre maiores ou menores riscos de vida ou de seqüelas neurológicas. Visamos abordar o percur- so dos diferentes profissionais áı envolvidos e especificamente as questões relativas ao olhar dos pais, a constituição da ima- gem do corpo da criança. Enquanto o futuro não vem – A psicanálise na cĺınica interdisciplinar com bebês, de Julieta Jerusalinsky enfoca o trabalho de intervenção precoce com bebês portadoresde transtornos do desenvolvimento. Ou- tros volumes estão em preparo, como Espelho, espelho meu – O autismo e os impasses na constituição do sujeito (t́ıtulo provisório), de Marie-Christine Laznik e o O cravo e rosa – O pediatra e o psicanalista, um encontro posśıvel?, por mim organizado, enfocando temas como psicossomática, trans- tornos do desenvolvimento, efeitos da depressão materna no bebê, entre outros. Pretendemos expor a visão do pediatra e a do psicanalista acerca do sofrimento do bebê. Boi da cara preta – Crianças no hospital, organizado por Marluce 13 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO Leitgel-Gille, com artigos de médicos, psiquiatras infantis e psicanalistas acerca do acompanhamento da criança hospi- talizada, está no prelo. Alguns volumes muito desejados, porém de gestação dif́ı- cil, já foram anunciados aos leitores desde a primeira edição deste volume mas ainda não foram conclúıdos. São eles: Pra quê essa boca tão grande?, acerca de transtornos alimenta- res, e Se esta casa fosse minha, sobre cuidados maternos substitutivos em espaços coletivos como creches e orfanatos. Esta coleção, com o intuito de ser escrita por muitas mãos, e de servir a uma maior comunicação entre os profis- sionais, se coloca à disposição daqueles que se interessarem em colaborar, enviando sugestões de temas ou trabalhos nes- te campo ainda tão árido da intervenção precoce. Será um enorme prazer participar deste novo tempo tomando conhe- cimento a cada dia de novos modos de atuação, de vivências institucionais, da análise de um trabalho que se desenvolve em cada canto do páıs, pois se o que nos restringe por um lado é a falta de recursos, de uma ação poĺıtica governamen- tal em torno da primeira infância que sustente um projeto de ação social mais amplo, o que nos desafia é perceber que há muito a se construir, e, todos sabemos, o brasileiro sabe criar e não teme a aridez das nossas terras. Bibliografia: 1. CHATEL, M. M. Malaise dans la procréation et la médicine de l’enfantement. Paris: Albin Michel, 1993, p.109 (ed. bras.: Mal estar na procriação. RJ: Cia de Freud). 2. ALEXANDRE, B. Prevention de la prematurité et dé- tresse maternelle. UFR de médicine de Bobigny, cahier no 48, tome I, p. 2 14 PREFÁCIO Daniele de Brito Wanderley “Nos pequenos rituais cotidianos, tais como o banho do recém- nascido, é freqüente que a avó, uma velha tia, a parteira, mes- mo procedimento, declamando diante do bebê os nomes da sua linhagem, talvez simplesmente para falar com ele, contar-lhe histórias. Diz-se que estas evocações podem acalmar a criança e conduzi-la ao sono. A saudação do bebê, a identificação expĺıcita dos seus ancestrais, é considerada como um dever do adulto; por isso é indispensável procedê-lo diante de uma assembléia... A saudação resta entretanto indispensável, debulhando os laços de sangue, regando a criança com sua pertença. Identificar o outro, nomeá-lo, nomear seus pais, não consiste somente em definir sua natureza, trata-se também de defini- lo como estrangeiro a si, reconhecê-lo outro, logo acordar-lhe existência”1. Tobie Nathan e Lucien Hounkpatin. Palavras em torno do berço é o t́ıtulo de um seminário de formação e reflexão da prática profissional coordenado por Graciela Cabassu em Paris, endereçado a pediatras. De- pois de ouv́ı-lo tive uma enorme dificuldade em encontrar outro nome que expressasse tão bem nossos objetivos para este volume. Ele me pareceu um excelente modo de nomear o nosso debate para a reflexão, escuta e troca das nossas experiências, marcada por uma especificidade é certo, mas permeada por uma leitura psicanaĺıtica que abre o espaço para o questionamento da subjetividade implicada em ca- da criança, que com seu sintoma e sua dor nos convoca a atuar... E com palavras! 15 PREFÁCIO O objetivo deste primeiro volume é abordar a cĺınica com bebês e crianças bem pequenas do modo mais abrangente posśıvel, para que se possa ter uma idéia de quão ampla pode ser nossa atuação, e por outro lado atingir diferen- tes profissionais: pediatras, psicanalistas, obstetras, psiqui- atras, enfermeiras, assistentes sociais, professores, etc. Palavras em torno do berço é também o t́ıtulo do texto especialmente escrito por Graciela Cabassu para este volu- me, em que ela discute a questão das palavras proferidas em torno do nascimento das crianças e o seu efeito na cons- tituição subjetiva. Ela aborda a cĺınica psicanaĺıtica com bebês, a partir de casos cĺınicos de sintomatologia diversa: a insônia de um garotinho e a significação deste bebê para sua mãe; a privação afetiva de uma menininha vivendo num orfanato, o trabalho feito com sua “maternante” e o efeito desta intervenção na criança. Seguindo nossa idéia central de uma interlocução com diferentes profissionais, Marie-Christine Laznik escreve um texto polêmico, em que aborda com simplicidade o tema da prevenção da psicopatologia, centrando-se mais particu- larmente na necessidade de intervenção precoce no autismo infantil como forma de promover a instauração de estrutu- ras pśıquicas, visando prevenir os déficits cognitivos mais graves. José Roberto Correia traz um pequeno texto a propósito da intervenção precoce e seu percurso de tentar institucio- nalizar uma prática preventiva em Recife, texto que, espero, influencie as práticas médicas atuais no que se refere aos sintomas pśıquicos na primeira infância. O trabalho institucional desenvolvido no Brasil é também representado por Telma Queiróz, Márcio Allain, M. Do So- corro Amorim, José Roberto Correia e Icléa Diniz, que escre- vem juntos um artigo apresentando o trabalho com a equipe 16 PREFÁCIO de um hospital universitário em torno da escuta dos sintomas dos pequenos pacientes e de uma intervenção psicanaĺıtica precoce a partir dáı. Śılvia Ferreira traz o relato de uma observação mãe-bebê a partir da sua tese de mestrado em lingǘıstica, em que ela observa especialmente o “diálogo” entre eles, diálogo marca- do pelas interpretações maternas acerca das vocalizações do bebê, que passam a significar o gesto da criança, a dar-lhe sentido. O lugar do grande Outro materno é áı destacado. O trabalho institucional também ganha destaque com as intervenções de Claude Boukobza e Florence Benavides num hospital-dia para mães e seus bebês, uma unidade de aco- lhimento mãe-criança que recebe pais em dificuldades com seus filhos. As autoras apresentam o modelo institucional e discutem também casos e questões pertinentes a esta cĺınica, especialmente a dinâmica com mães psicóticas e seus bebês. Maria do Carmo Camarotti traz um texto sobre a ob- servação terapêutica de um bebê e sua interação com a mãe psicótica, apontando por um lado as questões concernentes ao trabalho de observação do bebê em famı́lia — método bas- tante empregado na Europa — e por outro as peculiaridades da interação mãe-bebê e as incidências no desenvolvimento deste quando a maternagem se vê atravessada pela psicose. Cláudia Fernandes Rohenkohl aborda a questão da pa- ternidade na cĺınica com bebês, ponto fundamental e tantas vezes negligenciado, sendo justamente a checagem do que estaria em jogo nessa negligência uma das molas mestras do percurso da autora. Catherine Mathelin reflete acerca de questões em torno do bebê dito de risco abordando a prática anaĺıtica em neo- natologia, a especificidade da escuta, o trabalho em equipe, o acolhimento aos pais e o acompanhamento dos bebês. 17 PREFÁCIO Finalizando o volume escrevo sobre o atendimento pais- bebê, situando a questão da prematuridade com um caso cĺınico e discutindo algumas questões acerca da prática da estimulação precoce e as incidências subjetivas no chamado bebê de risco. Nota: 1. NATHAN, Tobie e HOUNKPATIN, Lucien (1996). La parole de la fôret initiale. Paris: Éditions Odile Jacob, p.23. Os autores sãoambos terapeutas em etnopsi- quiatria em Paris. Nesse livro os ritos africanos são retomados particularmente em relação à filiação. Sobre a Organizadora Psicanalista, especialização em psicopatologia do bebê (Universidade Paris XIII) e psiquiatria infantil (Universida- de Paris V). Atende bebês e suas famı́lias no Imepp (Inter- venção médico-psicossocial precoce) e presta consultoria a hospitais e creches. Dirige a coleção De Calças Curtas na editora Ágalma. 18 Introdução PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO Graciela Cabassu “Palavras em torno do berço” é o t́ıtulo que nós de- mos a um dos nossos seminários endereçados aos pediatras, psicólogos, puericultores e outros profissionais da pequena infância no intuito de sensibilizá-los para este poder singu- lar, para esta dimensão de oráculo que reveste a palavra proferida em torno de um bebê. Este t́ıtulo, foi inspirado na seguinte passagem de B. This: “Tudo então se esclarecia na vida deste homem que tomava consciência dos efeitos da palavra, seu destino, à sua revelia, estando determinado por estas palavras: ‘Ele não deveria viver’. Ele podia até começar, mas tudo deveria parar. Ele podia empreender, mas era incapaz de ir até o fim para concretizar. Era preciso que tudo se desarranjas- se, se destrúısse, parasse. Como viver em tais condições? O médico havia profetizado o futuro. Esta palavra pode- ria ter tanta importância? As fadas, é o que se diz, boas ou más, se curvam sobre os berços para cobrir de dons os recém-nascidos ou destrúı-los, lançando-lhes uma sorte, uma palavra depreciativa”1. Esta passagem me veio espontaneamente à cabeça num dia em que me esforçava para transmitir a uma equipe de reanimadores até que ponto essas conversas de bastidores, por detrás do bebê e dos seus pais, a estes quase não dirigi- das, podiam se mostrar determinantes no futuro, chegando 21 INTRODUÇÃO algumas vezes ao ponto de nos dar a sensação de que podiam fixar o destino. Neste dia tentava avançar na metáfora, e descobri como esta fábula — como a maioria dos contos, fruto das antigas tradições orais —, era cheia de ensinamentos para nós: de fato ela nos diz: doze fadas benevolentes foram convidadas a fazer seus dons à princesa, uma décima terceira foi esque- cida. Despeitada, a fada esquecida irrompe entre a décima primeira e a décima segunda fada e prediz a morte da cri- ança. A décima segunda fada surge de um canto da sala, adianta-se para dizer de sua impotência em anular este des- tino, e que está em seu poder apenas amenizá-lo: “a criança sobreviverá, mas ao preço de um longo sono”. Não creio ser necessário ir mais adiante para compre- ender como freqüentemente, sem o saber, nós profissionais encarregados do dizer dos pais e da criança, somos confron- tados ao dilema de estar no lugar desta décima segunda fada ou da décima terceira fada esquecida: de fixar ou, ao con- trário, de inflectir o destino de uma criança, tal qual pode- mos perceber no que se passa entre ela e sua mãe desde o ińıcio da vida, ou antes mesmo do seu nascimento. Mas teŕıamos o direito de nos perguntar, com B. This, porque, e sobretudo como uma palavra pode tomar tal im- portância na história de alguém. Os trabalhos de Winnicott e Lacan, deste em particular o do estádio do espelho e o do esquema óptico, assim como a retomada que M.C. Laznik fez deles, me permitiram perce- ber mais de perto como, no curso da instauração precoce do aparelho pśıquico, o impacto do discurso sobre a represen- tação inconsciente que a mãe tem do bebê pode modificar de maneira significativa o curso dos acontecimentos. 22 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO Vejamos como. “O especular é o limiar do mundo viśıvel” “O especular é o limiar do mundo viśıvel” nos diz Lacan2. Nós podemos tomá-lo ao pé da letra, mas também podemos interrogar: por quê? Por que o fenômeno especular ganha uma tal importância, não somente no funcionamento mas também e sobretudo nas instaurações precoces e fundamen- tais do psiquismo humano? No que diz respeito ao que convencionou-se chamar de prematuridade da raça — para distingúı-la da prematurida- de cĺınica, que suscita tratamentos espećıficos de neonatolo- gia — o recém-nascido humano atravessa um longo peŕıodo de dependência absoluta: o risco de vida ou de morte não é uma metáfora, é real. A função do “próximo-que-socorre”, o Nebensmench de Freud, lugar habitual da mãe, assegura através dos cuidados indispensáveis à sobrevida, não somen- te a satisfação das necessidades, mas também e sobretudo a emergência pśıquica do sujeito, ou seja, seu acesso à lingua- gem. Devemos a esta prematuridade da raça, segundo uma hipótese antropológica muito interessante, a aparição das funções ditas superiores no lugar do instinto. Do instinto de- finido como um comportamento geneticamente programado próprio à uma espécie. Desprovida de uma tal programação genética, a espécie humana se apóia, para se construir, num processo de identi- ficação onde o outro, no transitivismo primordial, serve-lhe ao mesmo tempo de suporte de si mesmo e de alteridade. O sujeito infans vai de fato se projetar na imagem to- talizante de si mesmo que a ele vem do campo do Outro. 23 INTRODUÇÃO A jubilação que Lacan descreve no estádio do espelho tra- duz um domı́nio antecipado que se paga com uma dimensão alienante: pois a imagem especular, i(a), cadinho do eu e da imagem do corpo do futuro sujeito, se constitui em um tempo princeps, no olhar do outro, sustentando o lugar do Outro, do qual ele tira seu poder. “O precursor do espelho é o rosto da mãe” É o que nos afirma Winnicott no “Papel do espelho da mãe e da famı́lia no desenvolvimento da criança” e prosse- gue: “o que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe? Sugiro que, normalmente, o que o bebê vê é ele mesmo”3. Num trabalho notável4, M.C. Laznik desmonta para nós a mecânica do espelho: ela nos mostra como a imagem à qual o sujeito estará um dia em posição de se identificar, assim como Lacan postula no estádio do espelho, é a prinćıpio a montagem de um real (o corpo da criança) e de uma imagem (a projeção do desejo da mãe), que se opera no inconsciente materno. É a ńıvel desta imagem, a imagem real na montagem do espelho, que o impacto do discurso se define fundamental: com efeito esta projeção, feito que ela se traduz clinicamente pelo que Freud designa como ilusão antecipadora materna, tem o poder de transformar em linguagem o que não é, senão num primeiro tempo, puro real, pura descarga no bebê. Entretanto a noção de especular não deveria induzir em nós a idéia de que a dinâmica do espelho se reduz a um puro jogo de imagens visuais: seria esquecer que toda percepção humana resulta de uma montagem complexa entre um fun- cionamento orgânico e uma aparelhagem significante, que a imagem só surge de um enodamento do simbólico e do real. 24 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO Ninguém melhor que G. Balbo, quando nos fala do oro- lho5∗, órgão mı́tico que atribui ao recém-nascido, para nos lembrar até que ponto “no estofo tecido do ouvido e do visto” é o significante que opera o corte, que organiza o mundo perceptivo. A cĺınica 1. As patologias severas: a “cegueira especular” e a “surdez significante” O funcionamento da ilusão antecipadora materna sus- tentada por esta imagem que deve se articular ao real do corpo da criança, mostra-se muito senśıvel ao discurso: por volta do nascimento e nos primeiros meses de vida, durante os quais tem lugar esta montagem precursora do especular, as representações do bebê que a mãe carrega à sua revelia serão determinantes. As patologias severas são as que nos fornecem os melho- res exemplos, a céu aberto, se posso assim dizer, deste tipo de processo e suas armadilhas. Assim, no meu trabalho sobre “A boneca sem rosto”6, re- tomei a teorização de M.C. Laznik a partir do modelo óptico,para mostrar como a representação que esta mãe tinha de um bebê que não a via e que ela não via, havia provocado es- ta “cegueira” que eu chamo de especular, no sentido em que aquilo que é visto não obedece ao funcionamento do espe- lho e não produz a instauração do registro imaginário. Este parâmetro foi sem dúvida atuante no quadro do autismo primário desenvolvido por esta criança desde o nascimento. ∗ Orolho traduziria talvez a montagem áı expressa de oeil (olho) com oreille (orelha) (N. da T.) 25 INTRODUÇÃO Um outro exemplo tirado deste tipo de cĺınica é o do meu primeiro trabalho sobre Maxime7, que eu havia intitulado “Entre escutar e ouvir”, para propor uma distinção análoga àquela que Lacan estabelece entre olhar e visão. Eu destaco nesta criança, que apresentava uma śındrome aut́ıstica se- cundária, o fato de que a linguagem só foi posśıvel para ela a partir do momento em que uma interpretação, no curso do tratamento, fez com que sua mãe pudesse escutá-la: a singular “surdez significante” desta mãe, que só ouvia baru- lho no real, a impedia de retomar as vocalizações do bebê e colocá-las numa cadeia significante. Mas hoje eu gostaria de demorar-me em duas breves vi- nhetas cĺınicas, que me permitirão ilustrar como o bebê que apresenta outros tipos de problemas, desde problemáticas “cotidianas”, que enchem diariamente os consultórios pe- diátricos, até problemáticas de tipo carencial, apresentam também este tipo de funcionamento. 2. A cĺınica do cotidiano: Clément Clément tem 5 meses quando sua mãe me consulta por causa de problemas do sono. De fato, desde o nascimen- to, Clément não somente não dorme a noite inteira, como também luta permanentemente contra o sono, só conseguin- do depois de um exaustivo estado de viǵılia, adormecer por breves instantes, antes de acordar berrando. Duas entrevistas serão suficientes para esclarecer que Clément, um maravilhoso garotinho nascido à termo após uma gravidez sem antecedentes, foi concebido para “agra- dar” ao pai que deseja um filho, enquanto que a jovem mãe não deseja. Com efeito, Clément é para a mãe aquele que por sua existência mesma, vem colocar em risco o equiĺıbrio recente- 26 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO mente conquistado pela jovem mulher através do casamento, que a permitiu fugir do que ela chama “a famı́lia”. Ora, a chegada de Clément recriou “a famı́lia”. Este significante a reenvia massivamente a uma vivência de sufocamento, da qual ela só pode sair por um voto de morte dirigido ao bebê, fantasia que ela evoca com enorme culpabilidade. Na segunda entrevista, a tomada de consciência de que uma famı́lia não teria forçosamente que ser “a famı́lia”, des- cola Clément deste lugar persecutório e permite-lhe reencon- trar o sono, metáfora da morte que era insuportável para a mãe. Vemos neste exemplo muito simples, cotidiano e freqüen- te, como os problemas que estavam quase a provocar na jovem mãe reações de violência que a assustavam, tinham a ver com a representação que este bebê tinha no inconsciente materno. 3. As problemáticas de tipo carencial: Christelle “que fuça as lixeiras”. Christelle é uma menininha de 17 meses colocada em lar de acolhimento para crianças, com a idade de um ano, após ter sofrido negligências graves da parte de uma mãe paranóica, que tinha episódios delirantes freqüentes, no cur- so dos quais a fechava durante horas numa caixa sobre um balcão. Christelle inquieta as “maternantes” (auxiliares de pue- ricultura da instituição) pois lhes parece ausente, o olhar fu- gidio; para adormecer se balança violentamente, assim como em muitos momentos do dia, só parando de fazê-lo quando é colocada no colo, momento onde começa “explorações” do rosto da pessoa que a carrega, introduzindo os dedos dela na boca, o que provoca a rejeição das “maternantes”. 27 INTRODUÇÃO Christelle, de vez em quando, resmunga para pedir o que quer e grita muito, mas só emite poucos sons, nos quais podemos reconhecer algumas palavras. Contudo, o sintoma que promove a consulta, é que após ser alimentada de maneira aparentemente suficiente, Chris- telle, assim que é colocada no chão, começa a mexer com- pulsivamente nas lixeiras comendo tudo o que áı encontra. Eu a recebo pela primeira vez com sua maternante, que me fala da sua perplexidade e do seu desespero por não poder ajudá-la: tudo foi tentado, da doçura à reclamação, passando pela vigilância permanente, sem que nada pare- cesse poder desviar Christelle deste comportamento que os adultos referentes vivenciam como particularmente ingrato, haja visto os esforços consideráveis feitos para atenuar as carências precoces sofridas por esta criança. Minha primeira observação de Christelle nos braços de sua maternante induzem em mim a idéia de que, apesar dos seus 17 meses de idade cronológica, Christelle está “suspen- sa” nos primeiros meses de sua vida, lá onde seu Outro a “abandonou”. Com efeito, tanto a especularidade como a oralidade pa- recem esboçadas, porém imobilizadas nos primeiros tempos lógicos de suas evoluções. Do ponto de vista especular, a exploração que Christelle faz do rosto do outro, tão mal suportada por suas mater- nantes, corresponde de fato ao comportamento habitual e anódino do bebê do primeiro semestre, quando se dedica através do olhar e do tato à exploração do rosto e em par- ticular de seus orif́ıcios, ligados à instauração da imagem especular. Do ponto de vista da oralidade, Christelle parece “desli- gada” de todo investimento libidinal da alimentação: ela não 28 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO recusa nada, mas parece não encontrar mais prazer quando passivamente se preenche até a saciedade — e continua a se preencher além da conta, num automatismo que parece não poder parar. O conjunto do espaço oral parece desabitado. Se nós retomamos o que Freud nos ensina sobre a expe- riência primordial de satisfação, sabemos que no momento da alimentação, o bebê absorve, ao mesmo tempo que o leite indispensável para a sobrevivência, um conjunto complexo de sinais da presença materna, presença no sentido em que ela implica o desejo da mãe: seu olhar, sua voz, sua capaci- dade de reagir à postura do bebê atribuindo-lhe um sentido, de entrar em comunicação com ele. Assim como, quando acontece a completude gástrica, se produz igualmente o re- gistro simultâneo no bebê da noção de que ele é alguém que conta para um outro, ou seja, a base mesma da existência no sentido pśıquico do termo. Depois de uma carência precoce tal como a que Christel- le pôde vivenciar, uma instituição pode estar perpetuando a mesma carência, apesar da qualidade e quantidade de comi- da e de cuidados que dispensa, em conseqüência do anonima- to no qual as crianças são deixadas. No caso de Christelle, os cuidados “adaptados para uma criança de 17 meses”, são inapropriados, pois Christelle apesar da idade não os tem. Assim, punha-se a mexer nas lixeiras com a barriga cheia, ind́ıcio de completude, puro real, não enviando a nenhuma “completude simbólica”, a nenhum registro da existência. Por força destas observações, limitei-me a dizer às suas maternantes que Christelle, apesar da idade, era só um be- bezinho e que por causa disto era preciso tratá-la sem levar em conta sua autonomia, e assim tudo se arranjaria. 29 INTRODUÇÃO Com efeito, aconselhei que ela não comesse mais na mesa com as outras crianças, mas no colo, numa relação atenta e próxima com sua maternante, que colocaria palavras em tudo o que Christelle “dissesse” durante a refeição. E no final desta, ela só seria colocada no chão caso expressasse este desejo. Subentendido: ela ficaria “farta” de troca e de presença. Por outro lado, pedi que se mostrassem mais tolerantes em relação ao seu comportamento de exploração do rosto, como se ela fosse um bebezinho: era preciso deixá-la fazer, explicando-lheque ela também tinha uma boca, olhos, etc, acompanhando-a diante do espelho. Depois de ter explicado a Christelle que nós iŕıamos nos ocupar dela como sua mamãe teria gostado de fazer se sua doença não a tivesse impedido, eu as deixei sair. Christelle fez progressos estupendos e em alguns meses recuperou seu ńıvel de desenvolvimento, assim como uma razoável alegria de viver. Ainda uma vez, parece-me que posso dizer que minha intervenção visou modificar a representação que as mater- nantes tinham de Christelle, de maneira a colocá-las numa posição suscet́ıvel de reenviar-lhe uma imagem que a permi- tisse retomar sua evolução. Para concluir Um melhor conhecimento das primeiras instaurações pśı- quicas nos permite apreender a relação existente entre as representações maternas inconscientes e as respostas que, muito precocemente, o bebê elabora, assim como o estreito determinismo que dáı resulta. 30 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO Mas ela nos deixa também entrever o campo imenso que se abre à nossa intervenção. A metáfora das fadas visa somente sublinhar a importân- cia da posição subjetiva do profissional que escuta e enuncia, pois em seu discurso haverá um impacto sobre a represen- tação da criança no inconsciente materno, peça-mestra na construção do psiquismo do sujeito. Com efeito, se diante do sintoma da criança estamos vivenciando um fracasso de nossa onipotência terapêutica, atravessando o quanto há de compreenśıvel de nosso nar- cisismo profissional, nós provavelmente iremos “deixar ao acaso” para nos livrarmos do fracasso, redobrando assim a dificuldade que já vivem os pais para investir a criança. Se, por outro lado, nos vemos capazes de suportar a in- completude que o mesmo sintoma nos inflige, poderemos formular um voto — que aceite um lugar posśıvel para a criança. Bibliografia: 1. THIS, B. Le père, acte de naissance. Paris: Seuil, 1980. 2. LACAN, J. Le stade du mirroir. In Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 95. 3. WINNICOTT, D. W. Le rôle du mirroir de la mère et de la famille dans le devellopement de l’enfant. Paris: Gallimard, 1990, p. 155. Ed. bras.: “O papel de espe- lho da mãe e da famı́lia no desenvolvimento infantil”. In O Brincar e a Realidade. RJ: Imago, 1975, p. 153. 4. LAZNIK, M. C. Il n’y a pas d’absence s’il n’y a pas déjà présence-Du rôle fondateur du regard de l’autre. 31 INTRODUÇÃO In La Psychanalyse de l’enfant no 10. Paris: Ed. de l’AF, 1991. 5. BALBO, G. La langue nous cause. In Psychanalyse de l’enfant n. 10. Paris: Ed de l’AF, 1991. 6. CABASSU, G. La poupée sans visage. In La clinique de l’autisme. Paris: Hors ligne, 1993. Ed. bras.: A boneca sem rosto. In M. C. Laznik, (org.) O que a cĺınica do autismo pode ensinar aos psicanalistas, Salvador: Ágalma, 1994. 7. CABASSU, G. Maxime: Entre entendre et ouir. In La Psychanalyse de l’enfant no 10. Paris: Ed. de l’AF, 1991. Sobre a Autora Psicanalista, membro da Association Lacanienne Inter- nationale (Paris), trabalha com crianças e bebês em con- sultório além de atuar junto à uma creche pública e um orfanato. Fundou a Harppe, centro de formação e reflexão da prá- tica profissional em torno da pequena infância. Ágalma publicou o seu artigo “A boneca sem rosto”, no volume O que a cĺınica do autismo pode ensinar aos psica- nalistas, da coleção Psicanálise da Criança, organizado por M.C. Laznik em 1994, reeditado em 1998. 32 Prevenção PODERÍAMOS PENSAR NUMA PREVENÇÃO DA SÍNDROME AUTÍSTICA? Marie Christine Laznik Uma concepção do autismo que permite aos cĺınicos conti- nuarem inventivos Do ponto de vista psicanaĺıtico, a plena manifestação de uma śındrome aut́ıstica pode ser considerada como tra- dução cĺınica da não-instauração de um certo número de estruturas pśıquicas que, por sua ausência, só podem de- sencadear déficits de tipo cognitivo, entre outros. Quando estes déficits de tipo cognitivo se instalam de maneira irre- verśıvel, podemos falar de deficiência. Esta deficiência seria então a conseqüência de uma não instauração das estrutu- ras pśıquicas, e não o contrário. E podemos sustentar uma semelhante concepção, admitindo uma multifatorialidade e deixando de lado o debate, quase estéril, entre psicogênese e organogênese. É deste registro propriamente pśıquico que vou tratar, pois é o único no qual podemos intervir. É áı que po- demos falar de uma prevenção posśıvel da organização da śındrome aut́ıstica. Intervir para que se instaurem as estru- turas mesmas que suportam o funcionamento dos processos de pensamento inconsciente. Intervir do alto da organização dos déficits cognitivos, pois há verdadeiramente uma psi- cossomática do autismo: a não-instauração das estruturas pśıquicas lesa rapidamente o órgão que as suporta1. 35 PREVENÇÃO O diálogo incontornável entre psicanalistas e médicos da pri- meira infância As crianças para as quais tememos uma evolução aut́ısti- ca, geralmente nos são encaminhadas em torno dos dois, três anos, às vezes até mesmo mais tarde. A prática cĺınica nos ensina como as instaurações do aparelho pśıquico se fazem cedo, o que nos faz lamentar não tê-las encontrado mais cedo, quando o jogo ainda não estava decidido. A partir do meu interesse pelo que se instaura muito precocemente no aparelho pśıquico, fui naturalmente conduzida a me in- teressar pelo diálogo com os médicos da primeira infância (pediatras e médicos da P.M.I.)∗. Penso que é sobre este diálogo que devem ser calcados os nossos esforços no próximo decênio, se queremos avançar na prevenção de doenças tais como o autismo. Winnicott não estava errado quando dizia, da forma provocadora e paradoxal que era a sua: “o papel essencial do pediatra é de prevenir as doenças mentais, se ao menos ele o soubesse”. Consagro, há mais de dois anos, uma parcela do meu tempo a um trabalho de formação de médicos de P.M.I.∗, para a detecção de problemas precoces graves, estes que apa- recem nos primeiros meses da vida do bebê2. Juntos discuti- mos também os modos posśıveis de abordagens terapêuticas. O que me surpreendeu inicialmente foi a receptividade de- les para este trabalho. Contaram-me o mal-estar que lhes colocava a detecção precoce do autismo. Um deles resume a situação nestes termos: “Há vinte anos, os simpatizan- tes de Bettelheim nos tinham explicado que o autismo era unicamente psicogênico, e que era preciso encontrar a cau- sa nos desejos mort́ıferos inconscientes dos pais, assim como ∗ Proteção materno infantil (N. da T.). 36 SÍNDROME AUTÍSTICA nas condutas que dáı derivavam. Nós conhećıamos alguns destes pais, os t́ınhamos visto conduzirem-se muito conve- nientemente com outras crianças da fratria. Não pod́ıamos considerá-los culpados, então nos calamos. Depois, dez anos mais tarde, nos explicaram que tratava-se de uma doença orgânica e que não havia nada a fazer, senão tentar reedu- car. Nos calamos de novo; ou ainda quisemos tranquilizar, encontrar para a famı́lia um tempo de ilusão suplementar. Você nos apresenta uma terceira via: ela permite reintrodu- zir uma dinâmica de prevenção e isto nos interessa”. Fazer a prevenção quer dizer intervir no laço pais-criança. Eu considero que a śındrome aut́ıstica clássica é uma con- seqüência de uma falha no estabelecimento deste laço, sem o qual nenhum sujeito pode advir. Para afirmar isto não é necessário supor uma psicogênese na origem dos problemas. O falso debate entre os partidários de um organicismo e os partidários de uma psicogênese As pesquisas genéticas em curso ainda não colocaram em evidência a anomalia suscept́ıvel de dar conta do autismo enquanto doença hereditária3. A partir de novas pesquisas, isolemos talvez, em certos casos de autismo, fatores ditos de susceptibilidade ou de vulnerabilidade de origem genética. Mas, atenção! Dizer que um fator de sensibilidade existe numa criança,novamente sublinha que a aparição ou não da śındrome dependerá mais ainda das caracteŕısticas do ambiente. Um ambiente mais favorável permite que as ins- taurações estruturais possam ao menos acontecer, ou ainda que a plasticidade cerebral possa encontrar o caminho de novos enodamentos e de novas articulações. Mas lutamos contra o relógio, pois certas instaurações estruturais se efe- tuam mais facilmente em momentos senśıveis4. Esperar para 37 PREVENÇÃO intervir pode então equivaler a uma não-assistência à pessoa em perigo. Elementos cĺınico-teóricos para uma detecção precoce — Que sinais privilegiar no diagnóstico precoce do autismo? Um certo número de sinais cĺınicos, que permitem pensar na eventualidade de um prognóstico de evolução aut́ıstica, foram repertoriados por diversos autores5. No meu trabalho com médicos de P.M.I, privilegio a detecção de dois sinais maiores: inicialmente o não-olhar entre o bebê e sua mãe, sobretudo se esta mãe não parece se dar conta disto; e de outra parte o que eu chamo de fracasso do circuito pulsi- onal completo. Estes dois sinais são relativamente simples de se observar durante o exame médico, apresentando como interesse maior o fato de serem a expressão cĺınica destas instaurações estruturais que fundam o funcionamento mes- mo do aparelho pśıquico. Ora, são estas instaurações que falham, penso eu, no futuro autista. 1. O olhar do Outro primordial como constitutivo do eu e da imagem do corpo O não-olhar entre uma mãe e seu filho, sobretudo se a mãe não se apercebe disto, constitui um dos sinais que permitem pensar, durante os primeiros meses de vida, na hipótese de um autismo — as estereotipias e automutilações só aparecem no segundo ano. Se este não-olhar mais tarde não evolui necessariamente para uma śındrome aut́ıstica caracterizada, é sinal, em todo caso, de uma dificuldade maior no ńıvel da relação especular com o outro. Se não intervimos então, o estádio do espelho 38 SÍNDROME AUTÍSTICA não se constituirá, pelo menos não convenientemente. Nós todos conhecemos a importância dada por Jacques Lacan a este tempo particular de reconhecimento pelo Outro da ima- gem especular, este momento onde a criança se vira para o adulto que a sustenta, que a carrega e pede-lhe uma confir- mação, pelo olhar, do que ele percebe no espelho como uma assunção de uma imagem, de um domı́nio ainda não con- quistado. Se este momento da relação jubilatória à imagem no espelho é crucial, é porque é ela que vai dar ao bebê seu sentimento de unidade, sua imagem corporal, base de sua relação com os outros, seus semelhantes. Com efeito, o que vem constituir para o bebê mais tarde a vivência de seu corpo, supõe uma articulação complexa entre sua realidade orgânica e o que eu chamo a erolhar∗ dos pais. Este olhar não se confunde com a visão. Trata-se sobretudo de uma forma particular de investimento libidi- nal, que permite aos pais uma ilusão antecipadora onde eles percebem o real orgânico do bebê, aureolado pelo que áı se representa, áı ele poderá advir. É a ilusão antecipadora, o His magesty the baby de que Freud falava em 19156. Mas o que chamo aqui olhar, é também o que permite à mãe escutar de ińıcio nos balbucios do bebê, mensagens significantes que ele fará suas mais tarde. Ver e escutar o que ainda não está para que um dia possa advir, é o que Winnicott chamava a loucura necessária das mães. Descrevi em outros artigos7, certos modelos que permi- tem representar como este olhar é o que funda a possibilida- de mesma da constituição da imagem do corpo e da relação com o semelhante, não posso desenvolvê-los de novo aqui. Certo, eu disse que o não-olhar entre uma criança e sua mãe(sobretudo quando ela não se apercebe disto) assinala ∗ Èregard no original. Era e olhar: a era do olhar (N. dos E.). 39 PREVENÇÃO o perigo de problemas precoces na relação com o Outro. O estádio do espelho corre o risco de não se constituir ou então de se constituir mal. Mesmo que este sinal possa alertar o cĺınico, ele só não basta para dar a segurança de que é pre- ciso intervir, se desejamos prevenir um grave problema do funcionamento mental. Um segundo sinal, observável cli- nicamente desde os primeiros meses de vida e simples de ser detectado, permite fazer um prognóstico com uma maior segurança do perigo de um tal problema, e então acionar a urgência da intervenção. Trata-se do que vou chamar a não-instauração do circuito pulsional completo. Um segundo sinal cĺınico: a não-instauração do circuito pul- sional completo Este sinal cĺınico é razoavelmente simples de ser identifi- cado se, por exemplo, conduzirmos um pouco a consulta de P.M.I. Mas ele só ganha toda a sua importância no esṕırito do médico, se este último compreender em que este sinal, banal em si mesmo, pode constituir o ind́ıcio do fracasso da instauração de uma estrutura, que é totalmente central para o próprio funcionamento do aparelho pśıquico. Para que possamos falar de fracasso do circuito pulsio- nal completo como sinal cĺınico de uma não-instauração es- trutural decisiva em uma criança, é indispensável separar a satisfação da pulsão da satisfação das necessidades. Quan- do nos ocupamos da cĺınica do autismo, uma contribuição interessante de J. Lacan reside na sua leitura do conceito de pulsão em Freud. Face a um organismo que parece perfei- tamente capaz de se manter vivo, esta concepção de pulsão como não diretamente concernente à sobrevivência enquanto tal só pode me interessar8 40 SÍNDROME AUTÍSTICA Separar a pulsão da necessidade Sabemos que Freud considera a pulsão como um concei- to limı́trofe entre o pśıquico e o somático, já que ela é o representante pśıquico das excitações vindas do interior do corpo. Ele diz, por sinal, nomeando que a fome e a sede dela são exemplos9. A leitura de Lacan visa mostrar que são vacilações, mas que o fio que conduz Freud a inventar este conceito é outro. Para Lacan, a fome e a sede reenviam à questão da necessidade. Por outro lado, ele ressalta que quando Freud fala de Trieb (da pulsão), não se trata do orga- nismo na sua totalidade: “É o vivo que é concernido aqui?”, pergunta ele, para responder negativamente10. Para Lacan, o que se refere à pulsão não é do registro do orgânico11. E ele reserva o termo pulsão, unicamente para as pulsões se- xuais parciais. Dáı todo o registro da necessidade, o registro freudiano do Ich Triebe, cair fora do campo das verdadeiras pulsões12. Desta vez, a noção de satisfação pulsional vai ser radi- calmente separada de toda satisfação de uma necessidade orgânica. Lacan diz literalmente: “A pulsão alcançando seu objeto, percebe de algum modo que não é por áı que ela se satisfaz (...), porque nenhum objeto (...) da necessidade po- de satisfazer a pulsão (...). Essa bôca que se abre no registro da pulsão — não é pelo alimento que ela se satisfaz” (p. 153; Ed. bras.: p. 159). Mas o que constituiria então a satisfação da pulsão? Vamos ver aqui, clinicamente, como esta satisfação vai corresponder a uma finalização de um trajeto em forma de circuito, trajeto que vem se fechar sobre o seu ponto de partida. Mesmo se este circuito se apoia sobre a satisfação orgânica, a satisfação pulsional é de um outro registro. No seu texto de 191513, Freud descreve o circuito pulsional par- 41 PREVENÇÃO tindo da pulsão escópica e do sadismo-masoquismo. Entre- tanto, não se trata áı, para Freud, de estudar as estruturas das perversões, mas unicamente de identificar as condições gerais de todo fechamento da pulsão, ou seja, as condições da satisfação pulsional. Os três tempos do circuito pulsional Freud descreve um trajeto pulsional em três tempos. Ire- mos seguir este trajeto, partindo da pulsão oral, que é a mais fácil de ser identificada nos primeiros meses de vida. Num primeirotempo — que Freud chama de ativo — o bebê vai em busca do objeto oral (o seio ou a mamadei- ra) para dele apoderar-se. Este primeiro tempo pulsional é sempre bem identificado pelos médicos e pelas puericultoras. Saber se um bebê mama convenientemente é um elemento central no exame cĺınico da P.M.I. O segundo tempo do circuito pulsional é também objeto da atenção particular de um médico já advertido. Ver se o bebê tem uma boa capacidade auto-erótica, se ele é capaz em particular de chupar sua mão,seu dedo ou então uma chu- peta, faz parte nos nossos dias do exame cĺınico habitual. A maioria dos médicos de PMI que eu encontrei sabem da im- portância daquilo que chamamos de experiência alucinatória de satisfação, intimamente relacionada com o auto-erotismo. Por outro lado, o que praticamente ninguém pensa, mes- mo entre os psicanalistas, é que há, dentro da descrição de Freud, um terceiro tempo necessário ao fechamento do cir- cuito pulsional, e ao que podemos propriamente chamar de satisfação pulsional. Neste terceiro tempo a criança vai se fazer objeto de um novo sujeito. São estes mesmos os termos de Freud. Quer dizer que a criança se assujeita a um outro14 que vai se tornar o sujeito da pulsão do bebê. Haveria áı, 42 SÍNDROME AUTÍSTICA no nascimento mesmo da questão do sujeito no ser humano a forma radical de uma necessária alienação. Mas antes de tomar a justa medida do alcance reversor de uma tal afirmação, vejamos como este terceiro tempo se apresenta clinicamente. No registro da pulsão oral, este terceiro tempo, no qual ninguém pensa, é todavia encontrado na nossa experiência cotidiana com os bebês e as mães; aliás, não escapou do olhar de certos publicitários, que nos propõem imagens sur- preedentes: nelas vemos um bebê estender um pé apetitoso em direção à boca de sua mãe que se deleita. Salta aos olhos o prazer partilhado. Se tal imagem permite vender melhor as fraldas, ela nos permite também ter uma representação deste terceiro tempo do circuito pulsional. É o momento onde o bebê coloca seu dedo (do pé ou da mão) na boca da mãe, que vai fingir comê- lo de maneira muito prazerosa. Este momento particular de jogo — não se trata áı de saciar uma necessidade qualquer — é pontuado pelos risos maternos, enquanto ela comen- ta o valor gustativo do que lhe é oferecido pela atribuição de diversas metáforas gastronômicas onde o açúcar tem um lugar privilegiado. Tudo isto desperta em geral sorrisos na criança, o que nos indica que ela buscava justamente se ligar no gozo deste Outro materno15. Vemos áı como a passividade do bebê neste terceiro tem- po do circuito pulsional é apenas aparente. É muito ativa- mente que ele vai se fazer comer por este outro sujeito, para o qual ele se faz, ele próprio, objeto. E nós vimos como este assujeitamento visa se ligar ao gozo neste Outro. É volun- tariamente que o inscrevemos aqui com letra maiúscula. O bebê vai à caça do gozo na sua mãe, enquanto que ela re- presenta para ele o grande Outro primordial, provedor dos significantes. 43 PREVENÇÃO A pulsão não é a necessidade, dissemos. Ela conhece um aumento constante e não as flutuações próprias da fisiologia do organismo. A pulsão se satisfaz pelo fato de que este circuito gira e de que cada um dos tempos tornará a passar um infinito número de vezes. Nós só podemos estar cer- tos do caráter verdadeiramente pulsional dos dois primeiros tempos, na medida em que tivermos constatado o terceiro. O segundo tempo, em particular, pode ser completamente enganador. Face a um bebê que, num procedimento auto- calmante, suga o dedo ou a chupeta, só podemos afirmar a dimensão auto-erótica se soubermos que o terceiro tempo do circuito pulsional nele está presente em outros momentos. Senão, podemos muito bem estar diante de um procedimen- to no qual a ligação erótica ao Outro está ausente. Se nós retiramos o termo eros de auto-erotismo, nos encontramos face ao autismo! Só podemos falar de um verdadeiro auto- erotismo se a dimensão de representação do Outro, e mesmo do seu gozo, se inscreveu sob a forma de traço mnêmico no aparelho pśıquico da criança16. Muitos outros elementos do quadro aut́ıstico têm áı sua fonte. Citemos em particular as falhas na instauração dos processos de condensação e deslocamento próprios ao pen- samento inconsciente. Ora, este último apresenta não so- mente formidáveis possibilidades de ligação da excitação pśı- quica mas, além disso, é capaz de criar novas ligações, de criar a complexidade. Sabemos como nas crianças autis- tas a descarga de excitação se faz no corpo por estereoti- pias e auto-mutilações, por falta da possibilidade de uma ligação pśıquica conveniente. Somos, por sinal, incessante- mente confrontados a discursos concernentes a déficits ditos cognitivos, próprios às crianças autistas. É indubitável que uma não-instauração conveniente da estrutura do pensamen- to inconsciente leve a este tipo de déficit. 44 SÍNDROME AUTÍSTICA Mas que relação há entre tais déficits e a falha no circui- to pulsional completo? Seria necessário um enquadre mais abrangente que este artigo para tentar responder convenien- temente17. Observemos aqui simplesmente que, nos primei- ros encontros com crianças que apresentam uma śındrome aut́ıstica primária, constatamos no plano cĺınico que este ter- ceiro tempo do circuito pulsional está ausente. O movimento se fazendo somente de um vai-e-vem entre um ir em direção à comida, e um vir em direção a uma parte do próprio cor- po ou em direção a um objeto tendo uma função de pedaço de corpo18. Este vai-e-vem não constitui então nenhum fe- chamento que sobre seu percurso se ligaria a qualquer que seja de um outro, grande ou pequeno. Como se, justamen- te, o sistema de defesa consistisse em elidir todos os lugares pśıquicos onde os traços mnêmicos das representações do Outro poderiam ser registrados. O interesse deste traço cĺınico, sendo identificável des- de os primeiros meses de vida, bem antes da instalação da śındrome aut́ıstica enquanto tal, é permitir um diagnóstico precoce. Pouco importa aqui que a causa da não instauração deste terceiro tempo do circuito pulsional, provenha de uma certa dificuldade constitutiva da criança que não procura ativa- mente a ação do Outro (tentar se fazer comer, no caso), ou então de uma falta de resposta da parte daquele que ocu- pa o lugar de Outro primordial. Há falha nos dois casos. Nos dois casos — com uma certa contribuição libidinal da parte de um psicanalista que saiba trabalhar com a relação pais-bebê — o circuito pulsional completo pode se restabe- lecer. Mesmo nas crianças autistas de três ou quatro anos conseguimos geralmente estabelecer (ou restabelecer), mas o peŕıodo senśıvel onde a criança entra com uma grande na- turalidade no campo dos significantes do Outro e pode deles 45 PREVENÇÃO se apropriar, já passou. A criança poderá ainda começar a falar, mas é preciso remar muito mais. No plano cĺınico, é a ausência da palavra que se percebe mais facilmente, enquan- to que o fracasso na instauração da estrutura do pensamento inconsciente pode passar despercebido. Ela se revelará mais tarde sob a forma do que chamamos comumente de déficits cognitivos; razão pela qual a querela entre doença mental ou déficit cognitivo19 a propósito do autismo me parece um falso debate. Mesmo que a plasticidade do aparelho pśıquico permita que suplências possam se fazer, a idade na qual in- tervimos é um dado central. Contudo, não é a mesma coisa intervir com uma criança para tentar atenuar as conseqüências de um déficit cognitivo já instalado (ou em vias de ser) e intervir para (r)estabelecer o circuito pulsional completo, cujo não funcionamento causa este déficit. Volto a lembrar que não se trata de tomarmos o partido de uma causalidade puramente ambiental para oautismo. Podem haver fatores congênitos que tornam o bebê menos apto a se ligar ao gozo do seu Outro primordial. Nos casos de fracasso da instauração do circuito pulsional com- pleto, não estamos sempre diante de uma mãe muito absor- vida por um luto não vivido, ou por uma depressão desco- nhecida, incapaz de realizar sua tarefa de fazer o papel de sujeito da pulsão oral do seu filho. Há outras situações, mas em todo caso a não-resposta de um bebê pode desorganizar sua mãe. Se as origens do problema podem ser múltiplas, elas levam a este fracasso da instauração do olhar e da ins- tauração do circuito pulsional. Estamos áı num registro propriamente pśıquico e é ape- nas neste registro que podemos intervir. É o que proponho chamar de prevenção posśıvel da organização da śındrome aut́ıstica. Intervir para que se instaurem as estruturas mes- mas que dão suporte ao funcionamento dos processos de pen- 46 SÍNDROME AUTÍSTICA samento inconsciente. Intervir diante da organização de uma futura deficiência. O segundo traço cĺınico proposto — o fracasso do circuito pulsional completo — permite de fato pensar no diagnóstico diferencial entre psicose e autismo. Com efeito, este terceiro tempo do circuito pulsional se encontra sempre presente no bebê que apresentará mais tarde uma psicose infantil. Este bebê se assujeita facilmente a uma mãe que, em geral, não resmunga para gozar do objeto que lhe é assim oferecido. O que é mais problemático para ela é perceber o limite disto. A alienação real da criança a este Outro primordial assim se instala muito bem. O que fracassa é sobretudo o outro pólo da subjetivação do sujeito: a função separadora produzida pela metáfora paterna. É ela que, na psicose infantil, se encontraria fora do jogo, foraclúıda. Em caso de perigo de evolução aut́ıstica, não é disto que se trata, mas do fracasso no tempo da própria alienação. Notas: 1. Ouvi esta idéia de que haveria uma psicossomática do autismo, sendo proposta por psicanalistas com ori- entações teóricas muito diferentes, como o Dr. Jean Bergès e o Dr. René Diatkine. 2. Este trabalho se faz na HARPPE, organismo de forma- ção voltado para médicos e outros interventores da pe- quena infância. A Harppe foi criada por Annette Yaker e Graciela Cabassu. Esta última, por sua prática de analista com crianças autistas, compartilha há muito tempo meu desejo de poder formar os médicos no dia- gnóstico precoce, para estarem aptos a intervir o mais cedo posśıvel. 47 PREVENÇÃO 3. As pesquisas dos últimos anos parecem entretanto con- firmar um correlação importante entre o cromossomo Xq frágil, e a debilidade mental. Um quadro aut́ıstico pode certamente vir a se implantar sobre esta debili- dade, como às vezes acontece em outros quadros defi- citários. 4. É por exemplo o caso da aquisição da palavra. 5. HOUZEL, D. Peut-on endiguer les psychoses infanti- les? In M. Soulé (dir), Des Utopies aux Realisations. Paris: ESF, 1993. 6. FREUD, S. (1914) Pour introduire le narcissisme. tr. Fr. Denise Berger et Jean Laplanche. Paris: PUF, 1969. Ed. bras.: Sobre o narcisismo, uma introdução. In E.S.B. vol. XIV. RJ: Imago, 1974. 7. LAZNIK, M. C. (1993): Du ratage de la mise en place de l’image du corps au ratage de la mise en place du circuit pulsionnel; quand l’alienation fait défaut. In La Clinique de L’autisme, son enseignement psycha- nalitique. Paris: Point Hors Ligne, 1993. Ed. bras.: Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fra- casso da instauração do circuito pulsional — Quando a alienação faz falta. In O que a cĺınica do autismo pode ensinar aos psicanalistas, Col. Psicanálise da Criança no 6. Salvador: Ágalma, 1994. (2a edição: 1998) 8. Geneviève Haag, partindo do universo conceitual klei- niano, chega a conclusões concernentes ao fracasso da criança autista com relação à pulsão que não estão desconectadas com as que vou trazer aqui. Isto indica que nas nossas tentativas rećıprocas é bem a cĺınica que conduz a teoria. 48 SÍNDROME AUTÍSTICA 9. FREUD, S. (1915) Pulsion et destin des pulsions. Oeu- vres completes, vol xiii tr. Fr. dir. A. Bourguignon, P. Cotet, J. Laplanche. Paris: PUF, 1988. Ed. bras.: Os instintos e suas vicissitudes. In E.S.B. vol. XIV. RJ: Imago, 1974. 10. LACAN, J. (1964) Le Seminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, p.150. Ed. bras.: O seminário, livro XI, Os qua- tro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: J.Z.E., 1979, p. 156. 11. Id, Le Seminaire, op. cit., p. 148. Ed. bras.: O Seminário..., op. cit., p. 154. 12. Id, Le Seminaire, op. cit., p. 174. Ed. bras.: O Seminário..., op. cit., p. 181. 13. FREUD, S. (1915) Pulsion et destin des pulsions. Oeu- vres completes, vol.xiii tr. fr. dir. A. Bourguignon, P. Cotet, J. Laplanche. Paris: PUF, 1988. Ed. bras.: Os instintos e suas vicissitudes. In E.S.B., vol. XIV. RJ: Imago, 1974. 14. Este outro é alguém de carne e osso, com quem a cri- ança estabelece uma relação da realidade, e ao mesmo tempo alguém que vai sustentar para a criança o lugar de grande Outro primordial, este que fala no seu lu- gar, que fornece-lhe os significantes nos quais ela falará mais tarde. 15. O gozo levanta uma grande desconfiança nos meios lacanianos onde sua dimensão estruturante é freqüen- temente desconhecida. É entretanto exatamente o que Lacan diz no Seminário XI: Os quatro conceitos fun- damentais de psicanálise, p. 167 (versão francesa). Ed. bras.: O Seminário..., op. cit., pp 175-176. 49 PREVENÇÃO 16. Aqui só faço retomar o que Freud enuncia desde 1895 no Projeto. Ele áı afirma a necessidade de registro dos traços mnêmicos de representação de desejo ligadas di- retamente às experiências vividas com aquele que ele chama de o próximo assegurador, o que tem a ver com o que aqui chamamos de Outro primordial. É ver- dade que mais tarde Freud falará em auto-erotismo primário, mas esta idéia me parece insustentável à luz de uma leitura que seja um pouco consistente com sua própria teoria da pulsão. Mas sobretudo uma tal con- cepção de auto-erotismo impediria de criar os modelos operantes para dar conta dos impasses da cĺınica do autismo. 17. Há hipóteses metapsicológicas que dão conta da li- gação entre a instauração da estrutura do pensamento inconsciente e a estruturação do circuito pulsional. Pa- ra esboçar uma resposta digamos que este circuito pul- sional, tal como nós podemos identificá-lo clinicamen- te, suporta o trajeto das representações inconscientes no aparelho pśıquico. Para poder circular, a função de representação deve passar pelo pólo alucinatório de satisfação de desejo, lá onde o bebê encontra inscri- tos os traços mnêmicos de suas primeiras experiências com este gozo do Outro. Para aqueles que se inte- ressam pelos fracassos das representações inconscien- tes, ver Laznik, M.C.: Défenses autistiques et échec de la mise en place de la fonction de representation. In La psychanalyse de l’enfant, no 19. Paris: Ed. de l’Association Freudienne, 1996. 18. Trata-se áı do que a escola inglesa denomina de objetos aut́ısticos, que não são justamente objetos no sentido psicanaĺıtico do termo pois, tendo passado por uma incorporação, eles são vivenciados como partes do eu 50 SÍNDROME AUTÍSTICA primitivo. Freud chama de um eu-prazer, no sentido em que só é regido pelo sistema de fuga do desprazer, um sistema próximo da homeostase, o que é contrário ao sistema pulsional. 19. A deficiência não sendo nada mais que um déficit que torna-se irreverśıvel e para o qual nenhuma suplência eficaz se estabelece. Sobre a Autora Psicanalista, membro da Association Lacanienne Inter- nationale (Paris). Trabalha com crianças autistas em con- sultório e atua no Centre Alfred Binet, no atendimento a bebês. É autora do livro Vers la parole. Paris: Danöel, 1995. Ed. bras.: SP: Escuta, 1997. Ágalmapublicou os seus seguintes artigos: O patrońımico de uma criança como puro traço diferencial. In Desenho: por que não? (1992) (esgotado, reedição em preparo); Os “nãos” do pai. In Do Pai e da Mãe (1993) reeditado em O sujeito, o real do cor- po e o casal parental (1998); Por uma teoria lacaniana das pulsões. In Dicionário de Psicanálise — Freud & Lacan, vol. 1 (1994, 2a edição: 1997); Do fracasso de instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circui- to pulsional, no volume O que a cĺınica do autismo pode ensinar aos psicanalistas (1994, 2a edição: 1998), do qual também é organizadora; Os efeitos da palavra sobre o olhar dos pais, fundador do corpo da criança. In Agora eu era o rei – Os entraves da prematuridade, nesta mesma coleção. Uma coletânea intitulada Espelho, espelho meu – O autismo e os impasses na constituição do sujeito, reunindo alguns destes e vários outros artigos da autora, dispersos em di- versas publicações ou inéditos, está em preparo, organizada pela diretora desta coleção, Daniele de Brito Wanderley. 51 POR QUE UMA PREVENÇÃO PRECOCE DOS DISTÚRBIOS PSÍQUICOS? José Roberto de Almeida Correia Em agosto de 1991 o Centro Médico Psicopedagógico Infantil do Hospital Geral Otávio de Freitas (CEMPI) foi inaugurado para tratar de crianças psicóticas e autistas com até 12 anos de idade. Neste peŕıodo observamos em primeiro lugar a dificuldade de lidar com estas crianças. A equipe, de um modo geral muito concernida com o tratamento, teve de reconsiderar o próprio conceito de resultado, mesmo cons- tatando que há efeitos em todos os casos, sejam eles mais facilmente identificáveis ou não. Mas notamos também que o trabalho é muito diferente dependendo da idade da criança: quanto mais cedo come- çarmos, maiores são as chances de uma evolução favorável. Por outro lado, nos chamou a atenção nas versões da anamnese que ouv́ıamos, sobretudo de algumas mães, a re- ferência a um mal-estar muito precoce, algumas vezes até mesmo após o parto: “Senti uma coisa estranha quando o vi pela primeira vez”, sic. Em alguns casos, o que é igualmente preocupante é que tentativas de buscar ajuda precocemente não tiveram êxito: “Falei com o médico, mas ele me disse que o bebê era perfeito, depois procurei uma terapia mas me disseram que ele era muito pequeno, mais tarde me disseram para esperar que falasse...”. É bem verdade que trata-se de versões da história cĺınica a posteriori, possivelmente com 52 PSICANÁLISE E PEDIATRIA reelaborações diversas. Mas podemos admitir que, infeliz- mente, nossas faculdades ainda não dispensam a necessária formação e informação sobre o ińıcio do desenvolvimento da criança e seus posśıveis distúrbios. Quanto aos pediatras, se é verdade que tranquilizar os pais nunca faz mal, é posśıvel também que alertar quando for o caso, dignosticar, encami- nhar, exija uma série de condições que falta muito para ser preenchida. Podeŕıamos desejar que o profissional que presta assis- tência à criança: 1. Além de detectar uma dificuldade pśıquica precoce nas relações do bebê — acreditamos que a sensibilidade da maioria dos pediatras pode fazer isso —, seria ne- cessário estar apto a reconhecer com uma certa segu- rança o distúrbio em causa (importância de uma for- mação espećıfica das equipes de pediatria). 2. Para os casos com indicação de um acompanhamento especializado, que se possa dirigir essas crianças com confiança. A importância da criação de serviços de prevenção pre- coce dos distúrbios pśıquicos deve ser reconhecida. Entre- tanto não se pode omitir a dificuldade deste trabalho e os obstáculos institucionais e familiares que se opõem à sua realização. É posśıvel prevenir precocemente? Foi a pergunta que nos fizemos. Constatamos, para citar o exemplo da França, que este é um ponto em que todos os especialistas estão de acordo: M. Mannoni, Lebovici, Diati- kine, Soulé e G. Ribas, etc, pensam que “se uma mãe e uma 53 PREVENÇÃO criança estão em disfuncionamento relacional há possibili- dades, intervindo com uma ação que permita que as coisas comecem a caminhar, que a relação volte a ser estabeleci- da”. Citaremos apenas dois dos mais importantes traba- lhos fundamentais neste campo. Eles se desenvolveram in- dependentemente mas curiosamente apresentam pontos em comum: “O método de observação de bebês”, desenvolvido por Esther Bick na Tavistock Clinic, aplicado desde 1948, cuja importânia na formação de profissionais, na pesquisa e na cĺınica é cada vez mais reconhecida; e o conceito de “Eu-pele”, de Didier Anzieu (1974), de grande impacto no meio cient́ıfico. Como organizar esta ação? Garantir uma formação nesse campo e congregar os po- fissionais concernidos são pontos essenciais. Os cursos de julho e dezembro de 93 e de novembro de 94, promovidos pelo CEMPI e pela Secretaria de Saúde do Estado sobre a prevenção precoce tentam alcançar o primeiro objetivo. Quanto aos profissionais em questão, para começar pro- curamos os pediatras para falar de nossa preocupação e en- contramos grande interesse. Tivemos apoio tanto a ńıvel institucional quanto aos próprios profissionais. Alguns deles já se dedicavam há muito à questão, mas sofriam com o isola- mento e a falta de suporte teórico e prático para desenvolver uma ação mais sistematizada. O que dizer da ação desenvolvida? Nossa reflexão comum, já aponta para algumas questões que resumimos: 54 PSICANÁLISE E PEDIATRIA 1. A multidisciplinariedade. Além do que se ouve: “O pediatra só pensa na criança, o obstetra, na mãe”, a situação mãe-bebê-famı́lia mobiliza profundamente. Em caso de sofrimento, é necessário ter a compreensão adequada para que as transferências maciças da equipe ou de membros da equipe não levem a esquecer nem a supervalorizar o lugar do bebê, da mãe e o do pai. 2. O profissional de perinatologia que teve ou tem acesso a um novo conhecimento às vezes traduz a situação di- zendo que é como ver o que não se via antes. Mas esta ampliação do que é percebido no terreno da cĺınica não deixa de trazer algumas questões: algumas vezes, di- ficuldades na própria instituição levam a formulações aparentemente paradoxais: “Considerar o pśıquico le- va a mudanças, as mudanças que estou vendo são ver- dade?” Por outro lado, como continuar seu trabalho, levando em conta o conhecimento adquirido sobre a psique, continuando a ser neonatologista? A que au- toriza aquilo que se vê de novo quando não se escolheu a área “psi” (psiquiatra, psicanalista, psicólogo...), es- tando claro que tampouco se trata de mudar de pro- fissão? Em outras palavras, o que fazer com esse novo conhecimento? (vemos que se estabelece uma reflexão suplementar relacionada com papel, lugar e função na instituição, que merece desenvolvimento particular). 3. O profissional “psi”, além do enriquecimento originado nesta reflexão comum, pode pensar que esta interro- gação, “o que fazer?”, que possivelmente ocupou lugar em sua própria formação, leva a distinguir entre ação e atuação — esta última designando o fato de agir no lu- gar de colocar em palavras. Procurará levar a conside- rar em conjunto: a quem é dirigida a demanda? A que 55 PREVENÇÃO é dirigida ao perinatologista não se articula da mesma forma da que é dirigida ao “psi”. Também nem sem- pre as pessoas estão prontas para uma consulta com o “psi”, mesmo se este encontro é idealizado por outros profissionais. Em oposição, dirigir ao “psi” pode ser vivido como sanção e rejeição. Ou, pode tratar-se de uma demanda inviável (situação imposśıvel). É necessário que mais equipes de perinatologia possam conhecer a importância do pśıquico, o que traz respaldo aos profissionais que já enfrentam resistências importantes e dif́ıceis de serem mobilizadas. Conclusões O sentido que quisemos dar a nossa ação é
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