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1 CLÍNICA ESCOLA DE PSICOLGIA Estagiária: Valéria Góes Carvalho Data: 26/03/2024 Estudo de Caso: Recordar, repetir, elaborar: estudo de um caso de depressão à luz das teorias de Freud e outros psicanalistas. O presente estudo objetiva relatar um caso clínico através de um recorte de observações de duas sessões de psicoterapia de orientação psicanalítica. As observações foram realizadas em laboratório, específico para fins didáticos, em uma instituição de ensino superior da região metropolitana de Porto Alegre. O objetivo principal do trabalho foi de construir uma visão geral do quadro clínico da paciente e analisar os seus sintomas à luz da teoria psicanalítica. A paciente foi informada que a sessão seria observada e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Nas observações das sessões de psicoterapia com a paciente buscou-se compreender suas angústias e frustrações através de um olhar psicanalítico que, segundo Freud (1912), é um campo clínico que investiga a psique humana através do inconsciente. Dessa forma, em um processo terapêutico o paciente passa por momentos de transições e descobertas, entretanto, às vezes os fatos descobertos sempre estiveram presentes sem que a pessoa fosse consciente dos mesmos. Isso vai de encontro à teoria de Bollas (1992), denominada como o conhecido não pensado, o autor refere que o indivíduo coloca em palavras pela primeira vez algo que lhe é familiar, algo que ele já sentiu ou viveu, mas que não havia sido pensado e nomeado anteriormente. Cabe ressaltar a importância da fase de desenvolvimento do indivíduo em um processo terapêutico, pois existem estágios a serem desenvolvidos para se passar por um novo ciclo, este momento pode ter ligação direta com seu desejo inconsciente de liberdade e autonomia, no qual o paciente tenta se mostrar forte o suficiente para não precisar de ninguém, podendo vir a sentir-se diante de incertezas (WINNICOTT, 1983). O fato dessas incertezas e questionamentos existirem, entre outras questões, pode fazer com que o paciente apresente sintomas depressivos. A depressão é uma doença cujos sintomas podem ser intensos, prolongados e seus efeitos causam interferência direta na vida do indivíduo, 2 fazendo com que o mesmo mude hábitos e costumes que possuía antes (RIVERO, 2009). Este momento pode ter relação com perdas e acontecimentos que não vieram ao consciente para serem solucionados, causando assim um luto mal elaborado. É válido lembrar que quando o indivíduo não possui os recursos necessários para lidar com determinadas situações, ou seja, quando a integridade do ego é colocada em risco ele pode utilizar mecanismos de defesa (ANNA FREUD, 1946) que lhe deem recursos para encarar os fatos de uma forma mais suave. No seu importante trabalho, “recordar, repetir e elaborar”, Freud (1914) postulou que alguns comportamentos dos sujeitos nada mais são do que compulsões a repetições, que no final passam a ser entendidas como a forma que o mesmo lança mão para recordar situações já vividas. Podemos dizer ainda que por vezes o paciente se comporta de modo que parece não ter nascido psicologicamente, fato este explicado por não terem sido sanadas suas necessidades nos primeiros meses de vida (WINNICOTT, 1983). Dessa forma, tende a transferir seus sentimos, emoções e frustrações ao terapeuta o que, naturalmente leva a sentimentos contratransferências do mesmo (ZIMERMAN, 1999). Nesse trabalho, busca-se a compreensão do funcionamento psíquico da paciente, na tentativa de entender a depressão como um sentimento de falta e vazio que necessita ser reelaborado. Chamaremos a paciente de F., ela tem 40 anos, é casada, possui três filhos. Trabalha em um negócio próprio que envolve atendimento de crianças, a mesma participou de dois atendimentos psicológicos em uma Clínica Escola. No primeiro encontro F. relatou não ter vontade de fazer nada, nem ir à igreja, trabalhar, não enxergava saída para o momento de sua vida, estava triste, desanimada e chorou bastante ao longo da sessão. Disse que não costumava chorar durante o dia, somente quando estava sozinha. Tinha alteração no sono, durante o dia sentia vontade de dormir e a noite só conseguia dormir com a luz ligada. Relatou que tinha alteração no apetite e já havia adquirido 6 kg em poucos meses, pensou em se matar, mas não queria fazer os outros sofrerem, principalmente seu filho mais novo. Não sabia explicar o que estava acontecendo, disse que sempre quis as coisas e agora não queria mais e que iria passar por um procedimento cirúrgico, pois tinha cólicas fortes, sangramento e na cirurgia iria retirar o útero. Em relação a sua infância referiu que foi tranquila, 3 contou que seu pai casou com sua mãe quando ela já estava grávida dela, foi um pai maravilhoso e que nunca conheceu seu pai biológico. Tinha dois irmãos e brincava muito na infância, sentia saudade desse tempo, e lamentava não poder voltar. Seus pais tiveram separações rápidas, mas ainda estavam casados. Relatou que a mãe tinha alterações de humor, tomava medicação psiquiátrica e já havia passado por uma internação, mas ela era criança e não recordava direito. Engravidou num momento não planejado, se sentiu sem chão, "virada do avesso", o pai ficou triste, mas não brigou com ela, porém lhe disse que sua mãe não queria ver sua barriga crescer, então teve que sair de casa. A paciente e seu namorado na época foram morar na casa de um parente. O relacionamento com o pai do bebê durou até seis meses após o nascimento do filho. Após contar sua história de abandonos e do quanto ficou só a terapeuta referiu que: “A impressão que eu tenho é que tu se sente solta no ar”, com o que a paciente concordou. F. contou que sua mãe sempre foi superficial, nunca teve uma conversa franca com ela, quando seu filho tinha um ano e meio, relatou ter começado o relacionamento com o seu atual marido e que seus pais pararam de falar com ela por não aprovarem a relação. Com o novo marido teve um filho que faleceu, pois nasceu com problemas cardíacos, foi operado, mas morreu no dia seguinte, F. perdeu o chão novamente. Referiu que esta gravidez havia sido planejada e muito desejada. Nessa fase o seu pai começou a se relacionar novamente com ela. Engravidou pela terceira gravidez e durante a gestação teve que tomar fluoxetina, porque se descontrolava demais, tinha medo que algo acontecesse ao bebê. Quando ainda bebê, seu filho não queria mamar, mais uma frustração para F., "aquilo era muito ruim". Quando ele nasceu F. voltou a estudar e fez magistério. Sobre o filho mais velho fala que ele já havia saído de casa para morar com seu pai, F. se sentia culpada, pois não conseguiu harmonizar as brigas de seu marido com seu filho. Há alguns anos abriu um negócio próprio que envolvia o atendimento de crianças. F disse não se sentia bem e que e tomou a decisão de fechar seu negócio. A terapeuta perguntou se em algum momento teve medo de agredir as crianças, F. respondeu que sim. Próximo ao final da sessão a terapeuta questiona: “Fiquei pensando que tua tristeza e depressão tem relação com as perdas da tua vida, ganhar o bebê e perder a tua família, ao longo dos anos tu ficastes muito desamparada, sozinha, 4 até encontrar o teu marido e ter a tua família”. No entanto F. não vê sentido nesta interpretação da terapeuta. No segundo atendimento a terapeuta perguntou como havia sido a semana, F. respondeu que tinha sido melhor, porém estava com problemas com seu filho mais velho, ele estava incomodando demais. A terapeuta questiona se algo abordado na sessão anterior tinha feito sentido pra ela, F. responde que “fez, por que realmente é o que acontece, o acúmulo vai enchendo o copoe uma hora transborda”. F. também diz: “fiquei pensando no que tu me disse que isso não caiu do céu, sabe lembrei que eu não consegui tirar minha carteira de habilitação, isso me frustrou”. F. relatou crises de choro durante a semana, que não havia conseguido ir trabalhar naquele dia, pois não tinha condições, “imagina, chorar na frente das crianças”, afirmou ela. A terapeuta questionou a possibilidade de alguém substituí-la, F. fala que não conseguia confiar em ninguém e que recebia cobranças do marido para que voltasse a trabalhar. Logo acrescentou que sempre teve sonhos, mas nunca tinha se deixado abater, que existiam momentos de desânimo, mas nunca havia se sentido assim, tinha um sentimento de como se fosse o último dia de vida. A terapeuta perguntou se F. pensava em suicídio, ela falou que não pensava como iria fazer, mas que apenas gostaria que acontecesse, pois só tinha machucado os outros. F. começou a chorar, demonstrou muita tristeza, parecia carregar um fardo, suas emoções estavam à flor da pele, seu corpo parecia estar imobilizado, exausto e sem ânimo. Relatou não gostar da própria história, com fala embargada e lágrimas escorrendo no rosto, demonstrou estar desapontada com o filho mais velho que estava tendo comportamentos que ela não aprovava. F. disse que sua vida era uma sequência de coisas erradas, quando olhava pra sua história não via nada, a terapeuta disse que ela precisava ser ajudada, cuidada, e expõe que a ansiedade e a depressão estavam ocorrendo juntas e que ela realmente não estava bem, mas que existia tratamento para depressão e para a ansiedade. A terapeuta perguntou se ela conseguiu trabalhar durante a semana, F. contou que foi só pelas manhãs que estava totalmente desanimada, ansiosa, não conseguia mais atender as crianças, pois se irritava facilmente. Relatou estar com insônia, disse que dormia com a luz ligada, demonstrou estar sem perspectivas de futuro e já não se preocupava com questões financeiras. No final da sessão a terapeuta afirmou que ninguém escolhe estar doente e F. relatou 5 que não sabia o que falar para as suas clientes e, logo a terapeuta explicou que apenas ela e sua família precisavam compreender o que ela tinha para que pudessem ajudá-la. F. relatou sentimento de culpa, a terapeuta comentou sobre a possibilidade dela se afastar por um tempo do trabalho, porém F. referiu que havia se comprometido com seus clientes de trabalhar mais alguns meses e não queria faltar com sua palavra. A terapeuta lembrou-se da tia que lhe ajudou quando adolescente F. contou que a tia até já tinha se oferecido para ajudar ela no trabalho, mas que ela acabou negando sua ajuda, a terapeuta salientou o fato que ela precisava aceitar ajuda, seja da tia ou de outra pessoa. A terapeuta disse para F. que ela se encontrava em um quadro depressivo, visto que amadureceu cedo demais e que dentro dela ainda havia uma criança pequenininha, desamparada, assustada que precisava de colo e atenção e de ser cuidada. F. estava inconformada, não conseguia se aceitar deprimida, pois sempre havia sido forte, disse que não se aprovava, não se aceitava. A terapeuta lhe disse que não existia certo ou errado para o que ela estava vivendo, por que a depressão era maior do que ela. Posteriormente F. relatou que sempre se agarrou a algo e hoje não tinha mais chão, em seguida a terapeuta falou que na situação dela era normal não ter esperança, mas que ela iria ser ajudada e tinha recursos para ficar boa logo. A paciente seguiu em atendimento na Clínica Escola e foi encaminhada para atendimento psiquiátrico. A fala da paciente transmitiu a ideia de que ela sofria de um luto mal elaborado, ocasionado por sucessivas perdas e abandonos (FREUD, 1914), os conflitos com a mãe, o fato de o seu pai ter a mandado ir embora de casa quando engravidou, o abandono do pai do seu primeiro filho, a saída de casa do filho mais velho, que foi morar com seu ex marido, o filho que faleceu ainda bebê e agora a perda da própria saúde. A paciente disse que era agressiva em casa, esse comportamento poderia ser uma repetição inconsciente do comportamento da mãe, tal atitude de repetição seria uma forma de colocar o inimigo em cena, pois de acordo com Freud (1914) não é possível lutar contra um inimigo invisível. A paciente também disse não querer a ajuda de outras pessoas, como a tia, esta atitude pode estar demonstrando um desejo de ser independente e não necessitar de mais ninguém, no entanto, segundo Winnicott (1983), a independência total é uma ilusão, sempre dependemos emocionalmente de 6 alguém. Também sobre o fato da paciente dizer que sua mãe sofria de distúrbios psiquiátricos, pode-se pensar que a mãe não desenvolveu a preocupação materna primária (WINNICOTT, 1956) e essa falta da unidade dual com a mãe poderia ter ocasionado na paciente a criação de um falso self (WINNICOTT, 1983), isto se evidenciou em muitos momentos da sessão, pois a paciente demonstrou ser totalmente inconsciente das origens de seus conflitos. Embora esta inconsciência estivesse o tempo todo presente, houve um momento, na primeira sessão, que a terapeuta utilizou de sua contratransferência (ZIMERMAN, 1999) objetivando um insight na paciente (ZIMERMAN, 1999): “A impressão que eu tenho é que tu te sente solta no ar” e a paciente pareceu ter se deparado com o conhecido não pensado (BOLLAS, 1992), pois a mesma afirmou: “Ah, mas é isso mesmo que eu sinto”. A paciente evidenciava sofrer de depressão grave, com ideação suicida, contudo, sem planejamento. O diagnóstico de quadro depressivo justificou-se pelo fato do decorrente desânimo incapacitante para sua atividade laboral, além de distúrbio do sono, choro frequente, desesperança, grande tristeza e a ideação suicida (DSM-V). Ficou nítida a utilização de alguns mecanismos de defesa do ego (ANNA FREUD, 1946) principalmente o recalque e a negação quando percebemos que F. discordou da interpretação da terapeuta ao final da primeira sessão não conseguindo associar que a causa de sua depressão poderiam ser sequências de fatos tristes que viveu com sua mãe, seu pai, seu filho mais velhos, ex-marido, e o filho (recém-nascido e morto). E ao início da segunda sessão a mesma recobrou o pensamento da terapeuta, mas dessa vez concordou, tendo um insight reflexivo (ZIMERMAN, 1999) e isto representou um grande progresso o fato que a paciente começou a se dar conta da origem dos seus problemas e trouxe para a consciência os seus conflitos mal elaborados a fim de obter a sua cura (FREUD, 1914). Compreendemos através da análise do caso e com auxílio da literatura que a paciente F. encontrava-se em um momento de crise, na medida em que seu falso self falhou (WINNNICOTT, 1960), não conseguindo elaborar e resolver seus conflitos internos e assim os sentimentos e frustrações se acumularam, a paciente estava fragilizada, sobrecarregada devido às sucessivas perdas que sofreu ao longo do seu desenvolvimento. A terapeuta procurou utilizar de sua 7 contratransferência, a fim de ajudar a paciente a mudar, melhorar e elaborar seus conflitos, procurou entrar em contato com o verdadeiro self da paciente para que ela pudesse nascer psicologicamente (WINNNICOTT, 1960) e reconstruir sua história. Por fim, embora a paciente estivesse vivenciando um momento delicado, apresentando um quadro depressivo com ideação suicida e ansiedade, mostrou possuir recursos cognitivos necessários para evoluir o seu estado atual, trabalhando suas angústias juntamente com a terapeuta em um processo terapêutico contínuo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOLLAS, Cristhopher . O conhecido não-pensado: primeiras considerações. In: ______. A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não-pensado.Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 335-342. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-V: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.. Porto Alegre: Artmed, 2014. FREUD, Anna. O ego e os mecanismos de defesa. Porto Alegre: Artmed, 2006. (Texto original publicado em 1946). FREUD, Sigmund. Recordar, Repetir e elaborar. In: _____. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980 (Texto original publicado em 1914). RIVERO, Catarina. Depressão: um desafio as emoções. p.1-5, 2009. ______. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. _______. Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In: ______. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. _______. Preocupação Materna Primária. In: _______. Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1956. p.399-405. ZIMERMAN, David. Fundamentos Psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 8