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Eric Auerbach. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. Trad. Georg Bernard Sperber. Na Mansão De La Mole: Fundamentos do capítulo: delimitação da tese geral da obra sobre a concretização, no século XIX, da representação séria e trágica do cotidiano, antes matéria do cômico: Stendhal, O vermelho e o negro (1830). Trad. Raquel Prado. SP, Cosac & Naify, 2001; Balzac, O pai Goriot; Flaubert, Madame Bovary. Traços do Realismo de Stendhal. Cena do cap. V, Livro IV do romance O vermelho e o negro : Preparação do interesse de Mathilde por Julien, para a paixão da moça pelo domestique do marquês. Julien Sorel: jovem ambicioso e apaixonado. Filho de um pequeno-burguês, dono de uma serraria na pequena província de Verrières. Curso de Teologia, seminário eclesiástico de Besançon. Paris, secretário do marquês de La Mole. Mathilde: 19 anos, filha do marquês. Espirituosa, mimada, fantasiosa, excesso de altivez, se aborrece com a sua própria situação e com o ambiente da nobreza. Cena do Diálogo na Biblioteca do Marquês: Uma manhã em que o abade trabalhava com Julien, na biblioteca do marquês, no eterno processo de Frilair: – Senhor, disse Julien de repente, jantar todos os dias com a senhora marquesa é um de meus deveres ou é uma cortesia que fazem para mim? – É uma grande honra!, respondeu o abade, escandalizado. Nunca o sr. N..., o acadêmico, que, desde há quinze anos faz uma corte assídua, pôde obter esse favor para seu sobrinho, o senhor Tanbeau. – É para mim, senhor, a parte mais penosa de meu emprego. Entediava-me menos no seminário. Vejo bocejar às vezes até a senhorita de La Mole que, no entanto, deve estar acostumada às amabilidades dos amigos da casa. Tenho medo de adormecer. Por favor, obtenha-me a permissão de ir jantar por quarenta vinténs em algum albergue qualquer. O abade, verdadeiro arrivista, era muito sensível à honra de jantar com um grande senhor. Enquanto se esforçava em fazer Julien compreender esse sentimento, um ligeiro ruído os fez voltar a cabeça. Julien viu a senhorita de La Mole, que escutava. Enrubesceu. Ela havia vindo buscar um livro e tinha ouvido tudo; teve então alguma consideração por Julien; Esse não nasceu ajoelhado, pensou, como esse velho abade. Santo Deus, como ele é feio! Durante o jantar, Julien não ousava olhar para a senhorita de La Mole, mas ela teve a bondade de lhe dirigir a palavra. Nesse dia, em que esperavam muita gente, ela o incitou para que ficasse. As moças de Paris não gostam muito das pessoas de certa idade, sobretudo quando se vestem sem cuidado. Julien não precisou de muita sagacidade para perceber que os colegas do sr. Le Bourguignon, que ficaram no salão, eram o objeto ordinário dos gracejos da senhorita de La Mole. Naquele dia, houvesse ou não fingimento da parte dela, ela foi cruel com os enfadonhos. Traços Singulares da Cena: O Enfado Cena compreensível pelo conhecimento exato e detalhado da estratificação social, das condições econômicas e do momento histórico. O Subtítulo do livro: Crônica de 1830. Revolução de Julho de 1830: caráter liberal e popular, liderada pela burguesia. Deposição do rei Charles X (antes tinha dissolvido o Parlamento, censurado a imprensa e tentado recuperar o Absolutismo). Governo bourbônico: com meios insuficientes, quis restaurar condições sociais já superadas e liquidadas há muito pelos acontecimentos. Ascensão Luis Filipe Orleans e o liberalismo econômico. O Enfado no Salão do Marquês: É mais do que fenômeno político, histórico-social da Restauração. Salões literários do século XVIII: sociabilidade entre nobres, intelectuais, homens e mulheres. Nada aborrecidos. Marcados pela ousadia espiritual. Seus frequentadores nem sonhavam com os perigos futuros contra a sua própria existência. Enfado do salão do Marquês, no XIX, nada casual, não provém da estupidez pessoal dos que lá estão. Anfitrião amável, inteligente. Convivas instruídos, espirituosas, prestigiados; outras nem tanto. Conversações nos salões: não se pode tratar de problemas políticos e religiosos; de temas literários sobre a atualidade ou do passado imediato. Preferem-se frases feitas oficiais e mentirosas, evitadas por um ser humano de gosto e de tato. Já se conhecem os perigos, a vida já está dominada pelo temor de que 1793 se repita. Consciência de que não mais se acredita na causa política que os frequentadores do salão do marquês representam, qualquer discussão sobre ela será vencida. Melhor falar do tempo, de música, dos mexericos da corte. Houve a obrigação de admitir como aliados os esnobes e corruptos dos círculos da burguesia enriquecida. Receio de deterioração cultural do ambiente: desavergonhada baixeza dos anseios pecuniários da burguesia e medo da má procedência de suas riquezas. Reações de Julien e do Abade Pirard: Compreensíveis por meio das constelações políticas e social do instante histórico contemporâneo (França de 1830, pouco antes da Revolução de Julho). a) De Julien Julien, natureza entusiasmada e fantasiosa, apaixonado por Rousseau (na juventude), pelas grandes ideias da Revolução e pelos grandes acontecimentos da época napoleônica. Alimenta repugnância e desprezo pela mesquinha hipocrisia e pela corrupção mentirosa das classes dominantes desde a queda de Napoleão. Ambicioso, fantasioso e sequioso de domínio. Não se satisfaz com uma existência medíocre no seio da burguesia. Mas é homem de origem pequeno-burguesa, só pode atingir uma posição de domínio através da Igreja, quase onipotente. Torna-se hipócrita, de plena consciência. Crê que seu grande talento lhe asseguraria uma brilhante carreira eclesiástica, se os seus verdadeiros sentimentos pessoais e políticos, e se o caráter passional de sua natureza não irrompessem em momentos decisivos. Cena da biblioteca, instante de autodelação: confiou ao abade, mestre e protetor seus sentimentos pelo salão da marquesa Julien trai sua liberdade espiritual, inconcebível sem uma mistura de altivez e de sentimento interno de superioridade. Comportamento inadequado a um jovem clérigo protegido da casa de origem pobre. Daí o abade lhe dizer que é uma honra jantar com a marquesa. A sinceridade só não lhe é prejudicial porque o abade é seu amigo. Em Mathilde causa impressão totalmente diferente do que se espera. b) Reação do Abade Homem bem sucedido. Aprecia a honra de jantar junto a um grande senhor. Censura a Julien por portar a submissão isenta de crítica do mal desse mundo. Atitude do abade é típica de um jansenista. Besançon: diretor do seminário. Por ser jansenista, suportou perseguições e arbitrariedade do clero jesuíta de sua província. Poderoso rival: o abade Frilair que moveu um processo contra La Mole. O marquês torna Pirard homem de confiança e o protege. Traços Característicos de O vermelho e o negro Caracteres, as atitudes e as relações das personagens atuantes no romance estão estreitamente ligados às circunstâncias da história do período da Restauração. As condições políticas e sociais da história contemporânea estão enredadas na ação de uma forma tão exata e real, como jamais ocorrera anteriormente em nenhum romance ou qualquer obra literária, a não ser naquelas que se apresentavam como escritos políticos satíricos. O romance encaixa de forma tão fundamental e consequente a existência tragicamente concebida de um ser humano de baixa extração social, como a de Julien Sorel, na mais concreta história da época. O desenvolvimento desse tipo de história é fenômeno totalmente novo. Todos os demais círculos sociais do romance nos quais Julien se movimenta: são sociologicamente determinados: A família do pai de Julien A casa de M. de Renal em Verrières. O seminário de Besançon. Em O vermelho e o negro, toda personagem secundária é concebidadentro da situação histórica específica da Restauração. Todos os romances de Stendhal apresentam fundamentação histórica, ainda que de modo imperfeito e estreito: Amance, Cartuxa de Parma, os escritos autobiográficos. A história grande e real penetrou em Stendhal de forma muito diferente que em Rousseau ou Goethe, Rousseau já não vivia quando estourou a Revolução, Goethe tirou dela o corpo fora e talvez o espírito também. Por quê? Razões Históricas do Advento do Realismo na França/ Stendhal Em Stendhal, diversas circunstâncias despertaram naquele instante, naquele homem naquela época o realismo moderno, trágico e historicamente fundamentado. Razões Históricas: a) Revolução Francesa, 1789/ Primeira República Francesa, 1792/ Golpe de Estado por Napoleão Bonaparte e sua coroação como imperador, 1799-1815./ Restauração, 1815-1830./ Revolução de Julho (burguesa), 1830-1848. Revolução Francesa foi o primeiro dos grandes movimentos dos tempos modernos com a participação consciente das grandes massas humanas. Movimento da Reforma: também violento, também agitou as massas. b) Progressos técnicos alcançados simultaneamente no campo dos transportes e da transmissão de informações e difusão do ensino elementar, resultante das tendências da própria Revolução, se espalharam muito mais rapidamente pela Europa. Possibilitaram uma mobilização dos povos relativamente muito mais rápida e uniforme no seu sentido. Propiciaram mudanças práticas da vida num espaço relativamente amplo. Todos foram atingidos muito mais consciente e uniformemente pelos mesmos pensamentos e acontecimentos. Começava, para a Europa, aquele processo de concentração temporal, tanto dos acontecimentos históricos em si, como do conhecimento deles por todos. Trata-se de um processo que fez enormes progressos e permitiu profetizar uma uniformização da vida dos seres humanos sobre a Terra, hoje atingida. c) O Processo de Concentração Temporal Essa transformação estremeceu ou enfraqueceu todas as ordens e classificações da vida vigentes até então. Tempo das modificações: exigia e exige um esforço constante e extremamente difícil para que haja uma adaptação interna. Provoca violentas crises de adaptação. De agora em diante, quem pretender dar a si próprio razão da sua vida real, da sua posição dentro da sociedade humana, é obrigado a fazê-lo sobre uma base prática muito mais ampla e dentro de um contexto temporal muito maior do que outrora, para manter a consciência constante de que o chão social sobre o qual se vive não está em repouso em nenhum instante, mas é modificado incessantemente pelos mais múltiplos estremecimentos. d) Razões Individuais do Advento do Realismo em Stendhal Por que a moderna consciência da realidade histórica se personificou em forma literária em Stendhal (Henri Beyle)? Traços estilísticos característicos de seu narrador: espirituoso, vivaz interiormente independente e corajoso, mas não propriamente uma grande figura. Pensamentos enérgicos e geniais, mas também erráticos e arbitrariamente apresentados. Ostenta audácia, mas sem segurança nem coesão internas, como se todo seu ser tivesse algo de fragmentário. Algo frágil em seu ser Alternância entre franqueza realista no conjunto, e tolo jogo de encobrir em relação aos detalhes; frio domínio de si mesmo, ardoroso abandono aos prazeres dos sentidos e insegura, por vezes, sentimental vaidade. Mas apresenta formulação linguística muito impressionante e inconfundivelmente original. Tem fôlego curto, mas é desigual nos seus êxitos, raramente apreende e retém o objeto de forma total. Mas se entregou ao momento. As circunstâncias pegaram Stendhal, o jogaram de um lado para outro e confiaram-lhe um destino inesperado e singular. Formaram-no de tal modo que se viu obrigado a se entender com a realidade de uma forma que ninguém antes conhecera. Biografia de Stendhal a) Primeira parte de sua vida 6 anos de idade, em Grenoble: Revolução Francesa (1789) 16 anos: abandona sua cidade natal, a família solidamente burguesa, abastada e reacionária 18 Brumário (segundo mês do calendário republicano, outubro-novembro): chegada em Paris em 10/11/1799. Pierre Daru, parente de Stendhal, influente colaborador do primeiro-cônsul: ingressou o futuro escritor no exército de Napoleão. Stendhal viu a Europa pela campanha napoleônica. Torna-se homem do mundo “muito elegante”. Carreira brilhante na administração napoleônica: funcionário administrativo muito apto e um organizador de confiança, sangue-frio, sem perder a calma nem nos momentos de perigo. 1815, batalha de Waterloo (Bélgica): queda de Napoleão e de Stendhal com 32 anos de idade. Primeira parte da sua carreira ativa, bem sucedida e brilhante, tinha passado. b) Segunda Parte da Vida de Stendhal Vida futura sem qualquer profissão, nem qualquer lugar ao qual pertencer. Pode ir para onde quiser, enquanto tiver dinheiro o suficiente, e enquanto as desconfiadas autoridades da época pós-napoleônica nada tenham a objetar contra a sua permanência. Mas as suas condições econômicas pioram gradativamente. 1821: expulso pelo governo da polícia contrarrevolucionária da cidade de Milão, onde se havia instalado num primeiro momento; Volta para Paris e ali vive durante nove anos, sem profissão, sozinho, com meios muito parcos. Depois da Revolução de Julho: amigos lhe conseguem um posto no serviço diplomático. Austríacos lhe negaram autorização para Stendhal ir para Trieste. Parte como cônsul a Civitá Vecchia, uma cidadezinha portuária, em uma residência triste. Por vezes intrigaram-no quando estendia demais suas visitas a Roma. Passa alguns anos de férias em Paris, onde morre em 1842, acometido por um ataque de apoplexia, no meio da rua, com menos de 60 anos de idade. O Prestígio de Stendhal na Segunda Parte da Vida Adquire fama de um homem espirituoso, excêntrico, política e moralmente indigno de confiança. Começa a escrever: a) Sobre música, sobre a Itália e a arte italiana, sobre o amor b) Em Paris, 43, florescimento do movimento romântico (no qual interveio a seu modo), Stendhal publica o seu primeiro romance (Amance). Balanço da Vida de Sthendal por Auerbach Dedicação ao ofício de escritor: já era quarentão, a carreira brilhante ficou para trás. Stendhal toma consciência de si mesmo, “náufrago num barquinho”, à procura de um porto seguro, descobre que não havia mais porto apropriado para ele. Anotações de que se sentia rigorosamente sem pertencimento a lugar algum. Sentimento orgulhoso de ser diferente dos demais. Só então mundo social torna-se para ele um problema e tema de sua atividade artística. A literatura realista de Stendhal brotou de seu mal-estar no mundo pós- napoleônico, assim como da consciência de não pertencer ou mesmo de não ter nele um lugar certo. ROUSSEAU Elementos rousseaunianos e românticos: o mal estar no mundo dado e a incapacidade de se incorporar a ele. Motivos e as motivações do isolamento de Stendhal são diferentes das de Rousseau: Stendhal possuía inclinação e também capacidade para a vida prática. Busca do gozo sensível da vida como tal. Não se afastou de antemão da realidade prática, não a condenou em seu todo. Tentou dominá- la e o consegue no começo. Desejo de sucesso e do prazer de modo materialista. Admira a energia e o domínio da vida. Mesmo o “silêncio da felicidade” (le silence du bonheur, tema de Rousseau) em Stendhal é mais sensual, mais plástico, mais dependente da sociedade humana e das obras humanas do que as de Rousseau. Rousseau: Pouco à vontade em seu mundo social que não se modificou grandemente durante sua vida. Ascendeu dentro dele, sem se tornar mais feliz, sem melhorar as suas relações com o mesmo, que parecia permanecer inamovível.Stendhal Somente quando o prazer e o êxito começaram a escapar a Stendhal, quando as circunstâncias práticas ameaçaram tirar-lhe o chão de sua vida, a sociedade de seu tempo tornou-se para ele problema e assunto. Stendhal viveu enquanto um terremoto atrás do outro sacudiu os fundamentos sociais. Um destes tremores desligou-o do andamento cotidiano da sua vida, que estava predeterminado para homens da sua classe. Como muitos dos seus semelhantes, o mundo o jogou em meio a aventuras atrás da outra, anteriormente inconcebíveis, vivências, responsabilidades, autoprovações, experiências de liberdade e de domínio. Outro estremecimento jogou-o de volta para um cotidiano que lhe pareceu mais carente de atrativos do que o primeiro. Nada era mais durável, novos tremores estavam no ar e eclodiam aqui e ali, ainda que não tão violentamente quanto os primeiros. Interesse de Stendhal pela literatura: dirigiu-se para as experiências de sua existência própria, não para a estrutura de uma sociedade possível, para as modificações da sociedade realmente existente. Consequências: A Perspectiva Dinâmica da História em Stendhal Presença constante em sua obra da perspectiva dinâmica dos tempos. Domina seu pensamento a imagem das formas e modos de vida que se modificam incessantemente. Nutre esperanças de que em 1880 ou 1930 encontrará leitores que o entendam: Ex.: ´ O espírito [de uma época], tão delicioso para quem o sente, não dura. Como a pesca passa em poucos dias, o espírito passa em duzentos anos, e muito mais rapidamente, se há uma revolução nas relações que as classes de uma sociedade têm entre si. Como um pecado passa em alguns dias, o espírito passa em duzentos anos, e bem mais rápido, se houver revolução nas relações que as classes têm entre elas. (A vida de Henri Brulard) Capitulo 7, de Souvenirs d’égotisme: “no tempo em que esse palavreado for lido”, ter-se á convertido em lugar comum responsabilizar as classes dominantes pelos crimes de ladrões e de assassinos. Se eu colocar vinte (anos), todas as tonalidades e nuances da vida estarão mudadas, o leitor verá apenas as massas. E onde, diabo, estão as massas nesses jogos de minha pena? “Massas”: grandes linhas. Teme que em vinte anos após a sua morte todas as nuanças se tornem incompreensíveis, o leitor só verá as grandes linhas de sua representação. Método de Composição A perspectiva temporal atravessa a representação de Stendhal que trata da realidade com que se defronta: “Recolho ao acaso aquilo que está em meu caminho”. Esse era também o método de Montaigne, eficiente por excluir a arbitrariedade das construções pessoais e para se entregar à realidade dada. Mas a realidade com que Stendhal se defrontava: não podia ser representada sem uma referência constante às violentas mudanças do passado imediato e sem um tatear premonitório das mudanças futuras. Escritores realistas do século XVIII pré-revolucionário: Goldschmidt, Prévost, Fielding, Voltaire, Rousseau, Schiller da juventude. Stendhal penetra de modo mais profundo nas condições sociais da época que esses escritores. Todas as figuras humanas e todos os acontecimentos humanos apresentam-se, na sua obra, sobre uma base política e social movimentada. O realismo moderno sério só pode representar o ser humano por meio de seu enraizamento na realidade concreta enquanto totalidade social, política econômica e em constante transformação. Modo de Stendhal Apreender e Interligar os acontecimentos históricos e sociais Perspectivismo da história em sua obra, com uma constante consciência das mudanças e abalos. Mas a sua compreensão das mudanças e transformações do tempo histórico não guarda semelhança com o historicismo que irrompeu na França em sua época, com atenção empática à origem e evolução dos povos. Capta cada uma das nuances de seu tempo e constrói com exatidão a estrutura individual de cada ambiente. Mas não possui qualquer sistema racionalista preconcebido sobre os fatores gerais que determinam a vida e a história social. Também não é utópico, não possui um modelo de como a sociedade deveria ser. Nos pormenores e na sua representação dos acontecimentos absorve a psicologia moral clássica. Dedica-se antes a uma análise do coração humano. Não realiza uma pesquisa nem pressente as forças históricas gerais que impulsionam os acontecimentos. Motivos que regem o encadeamento dos episódios de sua ficção e de seus caracteres: racionalistas, empíricos, sensualistas, mas não romântico-históricos. Mathilde de La Mole e sua família: orgulhosa da sua origem, ela rende um culto fantástico a um antepassado executado no século XVI por uma conjuração. Esse orgulho é narrado por Stendhal de acordo com critérios sociológicos e psicológicos importantes. Mas fica distante de tentar procurar compreender a gênese, a essência e a função da aristocracia, tal como fazia o historicismo romântico. Stendhal observa o Absolutismo, a religião e a Igreja, os privilégios de classe tal como um iluminista, isto é, como uma rede de superstições, embuste e intrigas. Elementos do Setecentismo Francês em Stendhal A paixão, a intriga astuciosamente urdida desempenha um papel decisivo na sua estrutura da ação. Já as forças históricas que lhe servem de base mal aparecem. Isso pode ser explicado a partir de sua ideologia política, que era democrático- republicana, o que o torna imune ao historicismo romântico, preso à gênese do passado. Mas Stendhal também trata das classes da sociedade, segundo seus ideais republicanos, de forma extremamente crítica, sem qualquer traço dos valores sentimentais que o romantismo ligava à palavra povo. Causa- lhe horror e enfado a vida ativa da burguesia que ganha decentemente o seu dinheiro. Tem horror à virtude republicana dos Estados Unidos. Desagradava-lhe o caráter enfático dos estilos de Chateaubriand (e também de Rousseau a quem amara na juventude e do qual se afastou posteriormente) Stendhal como Homem da Cultura da Corte do Século XVIII Apesar de toda a sua objetividade e republicanismo juvenil, lamenta a ruína da cultura social do Antigo Regime: “Por meu modo de ver, falta o espírito, cada um reserva todas as suas forças por uma profissão que lhe dê uma posição no mundo” (Capítulo 30, de Henri Brulard, livro de memórias da juventude de Stendhal). Para Stendhal, deixaram de ser decisivos o nascimento, o cultivo do espírito ou a autoformação como honnête homme em favor da destreza no ofício. Pode-se, certamente, como seus heróis, trabalhar e ser ativo em caso de necessidade. Mas como seria possível levar a sério algo como um prosaico trabalho profissional? Amor, música, paixão, intriga e heroísmo são coisas pelas quais vale a pena viver. Stendhal é filho da grande burguesia do Antigo Regime, não quer nem por tornar-se um burguês do século XIX. Ele mesmo diz que suas opiniões foram republicanas na juventude, mas que sua família legou- lhe instintos aristocráticos. Lamenta que depois da Revolução, o público do teatro se embruteceu e acredita que os liberais são escandalosamente tolos: “A conversa com um grande comerciante da província me deixa embotado e infeliz pelo resto do dia”. Stendhal às vezes tem acessos pronunciadamente socialistas. Mas não estiliza as “massas”. Por mais realista que sua obra seja, não há nela povo, no sentido “romântico-nacional”, nem no sentido socialista. Só há pequeno-burgueses e figuras decorativas como soldado, criados e garçonetes. Trata de peculiaridades paisagísticas e nacionais, por exemplo, das diferenças entre Paris e a província, mas a partir de sua própria experiência, não levando em conta a forma romântica da gênese histórica, mas como uma espécie de “psicologia nacional”. Modo de Stendhal Representar o Indivíduo Stendhal enxerga o indivíduo menos como produtode uma situação histórica e como coadjuvante da mesma, e mais como um átomo dela. É como se ele o jogasse quase fortuitamente no ambiente em que vive. O mundo para seus heróis é um obstáculo com o qual se pode dar bem ou mal, mas não um solo nutriz no qual estivesse unido organicamente. Concepção stendhaliana do ser humano: materialista e sensualista. “Chamo de caráter de um homem sua maneira habitual de ir à caça de felicidade, em termos mais e menos qualificativos, o conjunto de seus hábitos morais” (Henri Brulard). Para ele, a felicidade só pode ser encontrada no cultivo do espírito, na paixão ou na fama. Sua aversão pela eficiência da burguesia provinciana, contra o tipo burguês, poderia ser romântica. Mas um romântico dificilmente teria aversão por atividades lucrativas. Sua concepção de “espírito” e de liberdade é a do século XVIII pré- revolucionário. Deve-se, para ele, pagar a liberdade com pobreza, com solidão interior e exterior. Seu esprit se torna paradoxal, amargo e mordaz, sem a autoconfiança da época de Voltaire, não domina com a maestria de um grande senhor do Antigo Regime nem sua existência social. Sempre sente e vivencia a realidade de seu tempo como obstáculo. Assim, embora seu realismo não tenha surgido de uma compreensão genética amorosa dos processos históricos, está tão energicamente ligado à sua existência. Seu realismo é produto de sua luta pela sua autoafirmação. Devido a isso, seu realismo pode explicar porque o nível estilístico de seus grandes romances realistas se aproxima muito mais do antigo conceito grande e heroico do trágico : Julien Sorel é muito mais heroico do que as figuras de Balzac ou Flaubert. Mas Stendhal está próximo de seus contemporâneos românticos, e até lhes sobrepuja, na luta contra as fronteiras estilísticas entre o realista e o trágico. A Regra Estilística Antiga Ela excluía todo e qualquer realismo material das obras trágico-sérias, mas se afrouxa já no século XVIII. Diderot propagou esse afrouxamento. Formulou um nível estilístico médio, sem ultrapassar o burguês-comovente. Romance, Sobrinho de Rameau: personagens da classe média, quando não baixa, representados com certa seriedade. Mas essa seriedade lembra mais o moralista e o satírico do Iluminismo do que o realismo do XIX. O legado estilístico de Rousseau: Rousseau não penetrou no pensamento totalmente histórico, mas ajudou a despertar o novo senso do individual por meio do desvendamento de sua própria e incomparável individualidade. Trata seus temas e sua própria vida com um interesse fortemente apologético e crítico moral. Seus juízos sobre os acontecimentos estão marcados mais por seus princípios de direito natural do que pela realidade do mundo social que não se torna um objeto imediato para ele. Exceção são as Confissões: representam a própria existência numa situação real e com respeito à vida contemporânea. Isso serviu de modelo estilístico para os escritores seguinte com maior senso de realidade. Com o conceito de “homem primitivo ou natural”, Rousseau politizou o conceito idílico da natureza. Criou uma imagem modelar da vida com grande força sugestiva. Acreditou que esse ideal poderia ser imediatamente realizado. Esse conceito estava em contraste com a realidade existente. Mas claramente se evidenciava também que essa concepção idílica de vida estava fadada ao fracasso. Por isso, a realidade histórica, prática converteu-se em problema de uma maneira antes desconhecida, mais concreta e mais próxima. Rousseau entre os Românticos: Primeiros decênios após a morte de Rousseau, “pré-romantismo” francês: o fracasso do ideal de Rousseau teve um efeito de terrível desilusão. Levou os escritores a se evadirem da realidade. O período da Revolução, do Império napoleônico e da Restauração é pobre em obras literárias realistas. Heróis de autores do pré-romantismo têm aversão quase mórbida a entrar em contato com a vida contemporânea. Em Rousseau, a contradição entre o natural desejado e o real historicamente fundamentado tornou-se trágica. Ele não mais vivia quando a Revolução e Napoleão criaram uma situação não natural, como queria Rousseau, mas totalmente nova, enredada na história. Mas a geração seguinte viveu a resistência vitoriosa do histórico-real. Esse mundo novo destruiu suas esperanças e não lhe deixavam à vontade. Opôs-se a ele e dele se afastou. De Rousseau guardaram apenas a cisão interna, a tendência a evadir-se da sociedade, a necessidade de se isolar e de ficar sozinho. Contribuíram para isso as circunstâncias externas que destruíram a unidade da vida espiritual e a influência dominadora da literatura na França. Mas devido mesmo a esse caráter negativo da relação dos pré-românticos com a realidade social de seu tempo, essa relação tornou-se muito mais problemática do que a de um iluminista com seu tempo. A contraposição de Rousseau entre estado natural da humanidade versus a realidade existente da vida historicamente determinada converteu essa última em problema prático. Desde então, desvalorizou-se a representação da vida ao estilo do século XVIII, isto é, imóvel e sem problematização histórica. Iniciado na Alemanha e na Inglaterra, com tendências históricas e individualistas na França há tempos, o romantismo se desenvolve por completo em 1820 com Victor Hugo. Mas em Victor Hugo se manifesta por completo o contraste entre o tratamento clássico dos temas e com a linguagem clássica. A formulação desse contraste é demasiadamente antitética na obra de Hugo: os polos da mistura estilística entre o sublime e grotesco não tomam em consideração o real. Antes ressalta, nos temas históricos ou contemporâneos, os polos estilísticos do sublime e do grotesco, mas com tanto vigor que eles se entrechocam com violência. Dessa forma, embora com efeitos fortes, são inverossímeis, e como reprodução da vida humana, inverossímeis. Balzac, O pai Goriot (1835). Tradução de Marina Appenzeler. São Paulo: Editora Liberdade, 2002. Esse cômodo está em todo o seu esplendor quando, perto das sete horas da manhã, o gato da senhora Vauquer precede sua dona, salta sobre os aparadores para farejar o leite contido em várias tigelas cobertas por pratos e faz ouvir seu ronrom matinal. Logo a viúva aparece, ataviada com sua touca de tule, sob a qual pende uma mecha de cabelo postiço mal colocada; ela anda arrastando seus chinelos tortos. O rosto velhusco, rechonchudo, do meio da qual surge um nariz de bico de papagaio; as pequenas mãos roliças, sua pessoa redonda como um rato de igreja, seu corpete muito apertado e desalinhado estão em harmonia com essa sala onde ressuma a desdita, onde se esconde a especulação, e cujo ar mornamente fétido a senhora Vauquer respira sem sentir repugnância. Sua figura, fresca como uma primeira geada de outono, os olhos enrugados, cuja expressão passa do sorriso prescrito às dançarinas à amarga carranca do agiota, enfim toda a sua pessoa explica a pensão, assim como a pensão implica a sua pessoa. Não existem os condenados a trabalhos forçados sem os sentenciadores, não pensaríeis um sem o outro. A gordura macilenta dessa pequena mulher é produto dessa vida, assim como o tifo é consequência das exalações de um hospital. Sua anágua de lã tricotada, que fica aparecendo sob sua primeira saia feita com um vestido velho, e cujo forro escapa pelas brechas do tecido rasgado, resume a sala de estar, a sala de jantar, o jardinzinho, anuncia a cozinha e faz pressentir os pensionistas. Quando ela está ali, o espetáculo está completo. Com cerca de cinquenta anos, a senhora Vauquer se parece com todas as mulheres que tiveram desgraças. Tem os olhos vítreos, o ar inocente de uma alcoviteira que vai intimidar para cobrar mais, mas que, antes de mais nada, está disposta a tudo para amenizar seu destino, a entregar Georges ou Pichegru, se Georges ou Pichegru* ainda estivessemsendo procurados. No entanto, no fundo é uma boa pessoa, dizem os pensionistas, que a julgam sem recursos ao ouvi-la gemer e tossir como eles. Quem havia sido o senhor Vauquer? Ela jamais falava sobre o falecido. Como ele perdera sua fortuna? Nas desgraças, respondia sempre a velhota. Ele não se portara bem com relação à sua esposa, só lhe deixara os olhos para chorar, aquela casa para viver e o direito de não se condoer com nenhuma desgraça, porque, dizia, sofrera tudo o que é possível sofrer. *Charles Pichegru (1761-1804) antigo general revolucionário. Georges Cadoudal (1771-1804), célebre chefe da insurreição da Vendeia (insurreição contra a Convenção Nacional da Primeira República, 1793). Conspiraram contra o primeiro-cônsul e foram detidos após longas buscas pela polícia. A recompensa para quem os entregasse era enorme. Traços Peculiares da Descrição do Ambiente e de Mme. Vauquer: Retrato da dona da pensão interliga-se a sua aparição na sala de jantar. Ele surge em meio a essa atividade. Introduzida à maneira das bruxas pelo gato Motivo central da descrição pormenorizada de Vauquer é a tese da harmonia entre a personagem, a vida que leva e o ambiente. Trata-se da harmonia entre sua pessoa e o que chamamos de meio (milieu). A harmonia é sugerida por meio de: No aspecto gasto, gordo, caloroso, da forma suja e sexualmente repulsiva de seu corpo e suas roupas. Na comparação com os sentenciados Na associação entre a gordura macilenta como produto da vida de Vauquer ao tifo como resultado das exalações do hospital. Anágua: síntese das diferentes especialidades da pensão, como antegosto dos produtos da cozinha e como prenúncio dos hóspedes da pensão. Símbolo do ambiente e do conjunto todo. Descrição sem ordem lógica, arbitrária e desconexa, sem plano sistemático no retrato da aparência de Vauquer: a) Primeira sequência da descrição não contém indicação de separação entre roupa e corpo, descrição física e descrição moral: cobertura da cabeça, penteado, chinelos, rostos, mãos, corpo, novamente rosto, olhos, corpulência, anágua. O alvo da descrição é a fantasia mimética do leitor remetido às lembranças de pessoas semelhantes e de ambientes semelhantes que possa ter conhecido. Tese de unidade de estilo entre o meio e a personagem: não é demonstrada, não é fundamentada racionalmente, mas sugerida. A harmonia é apresentada como um estado de coisas imediatamente apreensíveis, de maneira puramente sugestivas, sem provas. As frases pressupõe a tese da harmonia: “as pequenas mãos roliças, sua pessoa redonda como um rato de igreja,” e “ar mornamente fétido a senhora Vauquer respira sem sentir repugnância”. As frases implicam uma significação sociológico-moral dos móveis e das peças do vestuário; e a possibilidade de determinar os elementos ainda não visíveis do ambiente. Mas é só uma sugestão, como é a menção ao tifo. Não são provas nem tentativas disso. b) Segunda sequência da descrição: complementa o baixo demonismo da primeira descrição. Primeira parte, faz uma síntese da unidade vital do espaço dominada por Vauquer, a segunda sequência aprofunda a baixeza do seu ser: Não se menciona mais o motivo da harmonia O princípio proposital da segunda sequência é a história pregressa de Vauquer. Mas não realiza uma separação entre a aparência e essa história pregressa a segunda sequência também realiza composição dos traços físicos e uma de elementos físicos, históricos e morais de um retrato. A abordagem da história pregressa não tem a capacidade de realizar esclarecimento algum posta sob um lusco-fusco. Baixo demonismo no retrato de Vauquer: ela se assemelha a tantas mulheres cinquentonas que sofreram desgraças. Se parece no fundo com uma boa mulher, mas possui, como se dirá mais tarde, uma bela fortuninha; é capaz de qualquer baixeza para melhorar de vida; A limitação baixa e vulgar das metas desse egoísmo, mistura de tolice, astúcia e força vital escondida dá a impressão de algo repulsivamente fantasmagórico. Razões da Falta de Ordem e do Desleixo em Balzac: Pressa com que Balzac escrevia. Mas a desordem e o desleixo não são casuais. São resultado de sua obsessão por imagens sugestivas. O retrato de Mme Vauquer se adéqua em desgosto ao quadro inteiro. O motivo da unidade do ambiente se apossa de Balzac com tanto ímpeto que objetos e pessoas ganham com frequência um segundo significado, diferente do significado cognoscível, mas essencial: um significado definido por “demoníaco”. A sala de jantar, seus móveis, seus apetrechos gastos e mesquinhos podem ser tranquilos e inofensivos para uma mente não influenciada pela fantasia. Mas nela também “ressuma a desgraça, esconde-se a especulação”. Nessa cotidianidade trivial ocultam-se bruxas alegóricas. No lugar da velha rechonchuda e desordenadamente vestida vê-se surgir por instantes uma ratazana. A unidade do espaço vital determinado é sentida como uma visão de conjunto demoníaco-orgânico, descrita com meios extremamente sugestivos. Representação dos Ambientes como Unidades Orgânicas e Demoníacas em Balzac: Frequentemente, a descrição dos ambientes em Balzac estabelece uma atmosfera moral. Em sua maneira de representar a realidade, o escritor sente todos os meios, por mais diferentes que sejam, como unidades orgânicas e tenta transmiti- los ao leitor, por mais desagradáveis que sejam. Localiza os seres cujo destino contava seriamente na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada. Considera esta relação como necessária. Todo espaço vital torna-se para ele uma atmosfera moral e física: a paisagem, habitação, móveis, acessórios, vestuário, corpo, caráter, trato, ideologia, atividades e destino, tudo permeia o ser humano. Ao mesmo tempo, a situação histórica geral aparece, novamente, como atmosfera que abrange todos os espaços vitais individuais. Essa associação é mais feliz em Balzac quando se trata de representar os círculos da burguesia média e pequena de Paris e da provincial. Mas menos feliz e mais melodramática, às vezes até inverossímil, quando representa a nobreza. Não é capaz de criar uma atmosfera certa para as zonas mais elevadas da vida, inclusive para intelectuais. O Historicismo Romântico em Balzac O realismo atmosférico de Balzac é também produto de sua época, sendo ele próprio parte e produto de uma atmosfera. Trata-se do mesmo historicismo romântico que percebeu com tanta intensidade a unidade atmosférica do estilo das épocas anteriores, que descobriu a Idade Média, o Renascimento e as culturas estrangeiras (Espanha e Oriente): determinadas pelo clima, meio, paisagem, hábitos e costumes de suas diferentes épocas e espaços. Balzac transfere o historicismo romântico para a representação da história das camadas sociais da França, sejam elas provincianas ou citadinas. Essa mesma forma espiritual desenvolveu uma compreensão orgânica da peculiaridade atmosférica da própria época, em todas as suas variadas formas. Historicismo e realismo atmosférico estão em estreita conexão. Michelet e Balzac são arrastados pela mesma corrente. Os acontecimentos ocorridos na França entre 1789 e 1815 e suas consequências trouxeram o fato de ser precisamente na França onde o realismo moderno contemporâneo chegou mais cedo e mais fortemente se desenvolveu. A unidade político-cultural do país lhe proporcionou um importante avanço, maior que na Alemanha, por exemplo. A realidade francesa podia ser abrangida, em toda a sua variedade, como um todo. Ao lado da simpatia romântica pela totalidade atmosférica dos espaços vitais, outra corrente que contribuiu em equivalente grau para o desenvolvimento do realismo moderno foi o da mistura de estilos. Ela permitiu que personagens de qualquer classe social, com todos os seus entrelaçamentos vitais prático-cotidianos se tornassemobjetos da representação literária séria. Balzac representa o mundo prático, feio e vulgar de modo trágico, como nunca antes. A Junção de Elementos Biológicos, Sociológicos, Históricos e Morais em Balzac Introdução de Balzac à Comédia Humana (1842): explica a própria obra por meio de uma comparação entre o reino animal e a sociedade humana. Inspira-se no biólogo Geoffroy Sainte-Hilaire: afirma o princípio de unidade típica na organização das plantas e dos animais: o criador teria se servido de um só modelo para todos os seres orgânicos. O animal seria um princípio que assume sua forma exterior e assume as diferenças de sua forma nos ambientes onde se desenvolve. Balzac transfere esse sentido para a sociedade humana: ela faria do humano, segundo os ambientes onde se desenvolve, tantos homens diferentes quantas são as variedades zoológicas. Balzac fundamenta suas opiniões acerca da sociedade humana (tipo humano diferenciado pelo meio) mediante analogias biológicas. A palavra meio (milieu) aparece pela primeira vez em sentido sociológico teve um grande destino posterior em Taine. Mas o biologismo balzaquiano é especulativo, místico e vitalista. Sua representação ideal, “animal” ou “homem” é concebido como uma ideia platônica, não em sentido imanente. As diferentes espécies e gêneros são apenas formas exteriores. São vistas não como se fossem mutantes, mas fixas (um soldado, um trabalhador etc. assim como um leão, um burro etc.). A palavra “ambiente” já existia em Montesquieu que considera muito mais as condições naturais (clima, solo) do que, como em Balzac, as condições que surgem da histó ria da humanidade. Balzac constrói os diferentes meios como representações modelares inamovíveis às quais é preciso explicar, caso por caso, o modelo de constituição e legislação apropriado para elas. Ele fica, na prática, inteiramente sob o sortilégio dos elementos estruturais históricos e constantemente mutante s segundo os meios. Interessa- lhe o tipo “ser humano”, isto é, tipos específicos: “soldado”, “comerciante”. Como os meios variam, vê-se a figura individual, concreta, internamente corpórea e histórica, surgida da imanência da situação histórica, social, física etc. e em constante mutação, não o “soldado”, mas aquele soldado específico, daquelas condições históricas especificas. Balzac foi responsável pela criação de personagens concebidos como tipos sociais: dessas analogias biológicas resulta, em sua obra, a compreensão de que há diferenças entre um trabalhador, um soldado, um funcionário público, um marinheiro, um sábio, um sacerdote, um pobre etc. são comparados ao leão, lobo, burro, corvo, tubarão e assim por diante. Mas mudando o ambiente, cada soldado, funcionário, marinheiro etc. se modifica. As diferentes espécies e gêneros são apenas formas externas. Outros Princípios Estéticos da Introdução à Comédia Humana. a) A Psicologia Moralista Na Introdução, Balzac concebe o romance de costumes como história filosófica sustentada energicamente. Sua atividade deve ser considerada como historiografia. Concebe o conjunto de seus romances como representação global da sociedade francesa do século XIX, designada como obra histórica. Quer traçar pormenorizadamente a razão dos efeitos sociais, meditar sobre os princípios naturais e ver em que as sociedades se aproxima ou se distancia da regra eterna do belo e do verdadeiro. Não lhe basta a filosofia “imanente” de seus romances de costumes. Emprega também imagens modelares clássicas: a regra eterna, o verdadeiro, o bem. Todos esses motivos encontram-se esparsos em sua obra: biológico, histórico, classicamente morais. Chega a falar em anatomia do coração humano, à maneira clássica. Elementos biológicos e historicistas reúnem-se na obra de Balzac, apesar de algumas obscuridades e muito exagero. Ambos se encaixam no seu caráter romântico-dinâmico que por vezes transbordam no romântico-mágico e demoníaco. Sente-se a ação aí de “forças” irracionais. b) O Narrador Intrometido. Em contraste, o elemento clássico-moralista age frequentemente como um corpo estranho. Esse elemento se manifesta na propensão de Balzac para formular sentenças morais de caráter generalizador. Às vezes são sentenças engenhosas, mas sofrem de generalização desmedida. Quando as sentenças morais crescem até se converterem em análises mais prolongadas surge o que vulgarmente se chama de “palavrório”. Assim Balzac pode representar todas as camadas sociais da França, seus diferentes hábitos e costumes como uma enciclopédia. Diante da vida, múltipla, embebida de história, representada sem rebuços, com tudo o que tiver de cotidiano, prático feio e comum, sua obra possui uma posição semelhante a Stendhal: leva-a a sério e até a considera tragicamente, nesta forma real, quotidiana e intra-histórica. Sua invenção não haure da livre força imaginativa, mas da vida real, tal como se apresenta em toda parte. A representação real, quotidiana e intra-histórica não havia existido em parte alguma na época posterior ao surgimento do gosto clássico. No setecentismo francês e imediatamente após a queda do Absolutismo, não somente o tratamento do quotidiano- real havia se tornado muito mais limitado e decoroso, mas também a atitude que se tinha diante dele privava-se fundamentalmente do trágico e do problemático. O objeto da realidade prática podia ser tratado de forma cômica, satírica ou didático- moralizante, certos objetos de campos bem determinados do contemporâneo e do quotidiano atingiam até o nível estilístico médio ou comovente, mas não se ia além. A irrupção da seriedade trágica e existencial no realismo, como se vê em Balzac e Stendhal, apresenta estreita conexão com o movimento romântico de mistura de estilos, designada pela fórmula Shakespeare contra Racine. Essa mistura do sério com a realidade cotidiana é muito mais decisiva em Stendhal e Balzac a de Victor Hugo sobre o sublime e o grotesco. A novidade da atitude e a nova espécie de temas que eram tratados séria, problemática e tragicamente tiveram como efeito o desenvolvimento progressivo de uma espécie totalmente nova de estilo sério ou se se quiser, elevado; nenhum dos níveis de percepção e expressão do passado, desde a Antiguidade, o cristão, o shakespereano, raciniano, podiam ser transferido sem mais para os novos temas. Stendhal: o realismo resulta de sua atitude contra um presente que lhe era desprezível. Mas seus heróis ainda estão embebidos da memória de figuras como Romeu, Don Juan, Valmont. Vive nele a figura de Napoleão. Seus heróis pensam e sentem contra o tempo. Rebaixam-se com desprezo às intrigas e maquinações do presente pós-napoleônico. Neles prevalece o conceito de que uma figura, pela qual se sente empatia trágica, deve ser um herói autêntico, grande e audacioso em pensamento e paixões. A liberdade do coração grande, a liberdade da paixão ainda tem, em Stendhal, muito daquela postura aristocrática e do jogo com a vida própria do Antigo Regime. Balzac submerge seus heróis bem mais profundamente nas águas dos tempos. Mas ao mesmo tempo ainda não possui aquela seriedade objetiva e neutra que seria em seguida desenvolvida. Qualquer enredo, por mais trivial ou corriqueiro que seja, é por ele tratado com grandiloquência, como se fosse trágico. Com isto perdem-se a medida e os limites daquilo que anteriormente era considerado trágico. Qualquer mania é por ele vista como paixão. Está sempre disposto a marcar qualquer infeliz com selo de herói ou de santo. Se se trata de uma mulher, compara-a a um anjo ou madona. Demoniza todo e qualquer malvado vigoroso, ou qualquer figura sombria. Isso correspondia ao temperamento agitado de Balzac, cálido e carente de crítica. Mas também correspondia à moda estilística romântica de buscar por toda parte forças demoníacas secretas e exacerbar a expressão até o melodramático. Somente na geração seguinte, nosanos de 1850, desaparece qualquer reação no sentido de o narrador formular juízos morais sobre a ação e o caráter das personagens. Somente com Flaubert o realismo torna-se impessoal e objetivo.