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QUESTÕES EM FOCO O Estado liberal e a neutralidade John Locke deu as bases para algo novo na história das ideias políticas: o Estado de Direito, fundado no respeito aos direitos naturais de todos os cidadãos, com atuação limitada por leis formuladas por seus repre- sentantes. Os interesses do povo estavam acima da vontade do soberano. Foi uma conquista importante, embora a prática excluísse grande parte da população dessa definição de cidadão. No século XX, muitos pensadores questionaram a ideia de que o Estado seria imparcial e atuaria com base em valores universais, mesmo depois de os direitos terem sido formalmente estendidos a toda a população. Leia, a esse respeito, um trecho de um texto da cientista política estadunidense Iris Marion Young (1949-2006) e, depois, faça as atividades propostas. […] Locke, por exemplo, usa explicitamente a metáfora de um árbitro para descrever a função do governo. O Estado toma decisões imparciais sobre as atividades da economia acumulativa e com- petitiva, e os cidadãos devem fidelidade e obediência a esse Estado, precisamente porque ele está supostamente numa posição imparcial, afastada de quaisquer interesses particulares. De acordo com essa imagem do Estado, gestores públicos, juízes e burocratas deveriam ser os especialistas em tomar decisões imparciais. […] A transferência das decisões a uma assembleia popular de pessoas discutindo seus vários interesses e necessidades é certamente uma má ideia, pois criaria conflitos insolúveis. A ideia do Estado neutro, acima dos inte- resses e dos conflitos particulares da so- ciedade civil é, no entanto, um mito. […] Se existem diferenças significativas de poder, recursos, acesso a informações e assim por diante entre diferentes classes, grupos ou interesses, os procedimentos de tomada de decisão que são imparciais, no sentido de permitir igual oportunidade formal para que todos pressionem por seus interesses, geralmente produzirão resultados no inte- resse dos mais poderosos. […] Legisladores, gestores públicos e ou- tros funcionários de governo também de- senvolvem, costumeiramente, uma visão parcial da vida social e um conjunto de interesses particulares que derivam de seu contexto no governo; na verdade, o gover- no não transcende a sociedade civil para vê-la em sua totalidade. YOUNG, Iris Marion. O ideal da imparcialidade e o público cívico. Revista Brasileira de Ci•ncia Pol’tica, Brasília, n. 9, p. 189-192, set.-dez. 2012. 1 Em dupla com um colega de sala, responda às seguintes questões: a) Por que a autora questiona a possibilidade de neutralidade do Estado? b) Quais seriam os riscos e os benefícios de delegar todas as decisões a assembleias populares, consi- derando as posições do liberalismo e da autora? 2 Debata com o colega sobre que leis ou políticas do Estado, apesar de apresentarem neutralidade formal, reforçam desigualdades existentes. Em seguida, pensem em alternativas para mudar isso, atendendo às necessidades do maior número de pessoas. Por fim, apresentem suas conclusões à turma. Manifestação em Santiago (Chile), em 2018, contra a Administradora de Fundos de Pensão (AFP) e o sistema de capitalização na previdência social. Embora garanta o direito de aposentadoria a todos os cidadãos, esse sistema penaliza os que têm menor renda, pois o valor da pensão depende essencialmente da contribuição feita pelo próprio trabalhador no decorrer da vida. C la u d io R e y e s A F P 137 V4_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap6_130a151_LA.indd 137V4_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap6_130a151_LA.indd 137 9/27/20 2:33 PM9/27/20 2:33 PM Ilustração do livro Os direitos do homem (1791), de Thomas Paine, que exalta a Revolução Francesa. Enquanto um menino, amparado por uma mulher, lê a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o povo festeja, sob a luz do esclarecimento, em torno de um mastro encimado por um barrete frígio, gorro usado pelos pobres na Roma antiga e que se tornou símbolo republicano na Revolução Francesa. Por trás da Declaração, um homem se arrasta em um cenário de trevas. Ele expressa tudo o que a Revolução Francesa destruiu: o absolutismo monárquico, os privilégios e as hierarquias de nascimento. A R E V O L U ‚ Ì O F R A N C E S A ( 1 7 8 9 ) Poucos anos depois da Revolução Americana, e quase um século após a Revolução Gloriosa, eclodiu na França, em 14 de julho de 1789, uma revolução muito influenciada pelo pensamento iluminista. Grupos burgueses, trabalha- dores das cidades e camponeses derrubaram o absolutismo. O episódio fi- cou conhecido como Revolução Francesa. Seu lema subvertia os valores e as crenças vigentes até então: “liberdade, igualdade e fraternidade”. Eram ideias verdadeiramente revolucionárias, pois, até então, afirmar que todos são iguais e livres era considerado absurdo perante o rei e a Igreja. Menos de um mês após a vitória da revolução, a Assembleia Nacional, repre- sentando o povo francês, aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cida- dão. Trata-se de documento da maior importância na história contemporânea, que estabelece os direitos civis básicos de todos os cidadãos. Também nela aparece a categoria de “direitos naturais” do homem. O primeiro deles é o de que todos “nas- cem e são livres e iguais em direitos”, em particular a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão, ecoando ideias de John Locke e fundamentos da Revolução Americana. Quanto à liberdade, afirmava-se que consistia em poder fazer tudo, menos o que preju- dicasse o próximo, com limites que deveriam estar determina- dos pela lei. Era uma premissa absolutamente inovadora. A Revolução Francesa explicada à minha neta VOVELLE, Michel. São Paulo: Editora Unesp, 2007. Nesse livro em linguagem acessível, o historiador francês analisa a Revolução Francesa, considerando seu legado de combate às injustiças, mas também suas lacunas, como a eliminação das desigualdades sociais. F I C A A D I C A A Declaração também afirmava que a lei expressava a vontade geral e que so- mente deveriam ser proibidas as ações nocivas à sociedade. Mais ainda, dizia que todos são iguais perante a lei e são considerados inocentes até que se prove sua culpa. No todo, a Declaração criou a figura do cidadão e esboçou o que hoje cha- mamos de direitos humanos. Por isso os revolucionários franceses foram ambicio- sos: sua Declaração não era apenas para a França, mas deveria ser universal, para todos os povos. Era declaração de direitos para toda a humanidade. Em 1791, a Assembleia Nacional promulgou a primeira Constituição da França. Entre outras diretrizes, ela abolia instituições que “ferem a liberdade e a igual- dade dos direitos”. Não haveria mais nenhuma prerrogativa de superioridade de um cidadão sobre outro, nobres nem privilégios por nascimento. Outros artigos ratificavam os pontos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No ano seguinte, diante da resistência e da conspiração do rei e de parte da nobreza, Luís XVI foi deposto e a república foi declarada. A Revolução Francesa incentivou os defensores das liberdades civis em outros países europeus. República, democracia, liberdade, direitos do cidadão torna- ram-se expressões subversivas nos países sob o regime de absolutismo monár- quico. B ri d g e m a n i m a g e s /E a s y p ix B ra s il 138 V4_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap6_130a151_LA.indd 138V4_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap6_130a151_LA.indd 138 9/27/20 2:33 PM9/27/20 2:33 PM