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Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino de Castro e Costa Secretaria Nacional de Segurança Pública Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Diretoria de Ensino e Pesquisa Michele Gonçalves dos Ramos Coordenação-Geral de Ensino Ana Claudia Bernardes Vilarinho de Oliveira Coordenação Pedagógica Joyce Cristine da Silva Carvalho Coordenação de Ensino a Distância Renata Guilhões Barros Santos Gerente de Curso Danilo Bruno Moreira Conteudistas Alan Fernandes Elizabeth Albernaz Ignacio Cano Colaboração: Renato Sérgio de Lima Revisão Técnica Ana Paula Santos Meza Danilo Bruno Moreira Revisão Pedagógica Evania Santos Assunção Revisão Textual Julio Cezar Rodrigues Programação e Edição Renato Antunes dos Santos Fábio Nevis dos Santos Design Instrucional Wagner Henrique Varela da Silva Sumário APRESENTAÇÃO DO CURSO ................................................................................................................... 5 OBJETIVOS DO CURSO .................................................................................................................................. 9 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...................................................................................................................................... 9 ESTRUTURA DO CURSO ..................................................................................................................................... 10 MÓDULO 1 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ........................................................................... 11 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................................................ 11 OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................... 11 ESTRUTURA DO MÓDULO ................................................................................................................................. 12 AULA 1 - O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO ............................................................................... 13 1.1 O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA MODERNA E LIBERAL: AS REVOLUÇÕES BURGUESAS E A CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE CIDADANIA ..................................................................................................................................................... 14 AULA 2 – CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS ....................................................................................... 26 AULA 3 - O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA NA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................................................................................................................................................ 36 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................... 45 MÓDULO 2 – CONCEITO DE POLÍCIA E ORIGENS HISTÓRICAS ............................................................... 47 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................................................ 47 OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................... 47 ESTRUTURA DO MÓDULO ................................................................................................................................. 47 AULA 1 – O CONCEITO DE POLÍCIA E O SURGIMENTO HISTÓRICO DAS POLÍCIAS MODERNAS .............. 48 AULA 2 – OS DOIS MODELOS BÁSICOS DE POLÍCIA: DEFENDENDO O ESTADO VERSUS DEFENDENDO OS CIDADÃOS. ........................................................................................................................................... 60 AULA 3 - A DOUTRINA POLICIAL ENTRE O COMBATE AOS CRIMINOSOS E A PROTEÇÃO DO CIDADÃO . 71 AULA 4 - A DISCRICIONARIEDADE NO TRABALHO POLICIAL ................................................................. 83 AULA 5 – LEGITIMIDADE E TRABALHO POLICIAL .................................................................................. 93 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................. 102 MÓDULO 3 - POLÍCIA E A ESFERA DA POLÍTICA .................................................................................. 105 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO .......................................................................................................................... 105 OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................. 106 ESTRUTURA DO MÓDULO ............................................................................................................................... 106 AULA 1 - DILEMAS DO GOVERNO POLÍTICO DAS POLÍCIAS ................................................................. 107 AULA 2 – POLÍCIA POLÍTICA E A POLÍTICA DA POLÍCIA ........................................................................ 120 2.1 POLÍCIA E POLÍTICA ....................................................................................................................120 2.2 POLÍCIA POLÍTICA .......................................................................................................................125 2.3 POLÍTICOS DE ESQUINA ................................................................................................................ 129 AULA 3 – POLÍCIA E A RECONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA POLÍTICA ..................................................... 133 3.1 CARACTERÍSTICAS DE CONTEXTOS PÓS-CONFLITO ...................................................................... 134 3.2 O CONCEITO DE CORE POLICING DE BAILEY & PERITO ................................................................. 138 3.3 A POLÍCIA E A (RE)CONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA POLÍTICA ........................................................ 142 AULA 4 – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E ASSOCIATIVISMO POLICIAL ...................................................... 151 4.1 POLICIAL E TRABALHADOR .......................................................................................................... 152 4.2 CONDIÇÕES DE TRABALHO E DEMOCRACIA ................................................................................. 157 4.3 ASSOCIATIVISMO E SINDICALIZAÇÃO .......................................................................................... 160 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................. 164 MÓDULO 4 - OS DESAFIOS DO ESTADO BRASILEIRO E A SEGURANÇA PÚBLICA: O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA ........................................................................................................................ 167 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO .......................................................................................................................... 167 OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................. 168 ESTRUTURA DO MÓDULO ............................................................................................................................... 168 AULA 1 - OS DESAFIOS BRASILEIROS E SUAS REPERCUSSÕES NA OFERTA DE SEGURANÇA PÚBLICA .. 169 AULA 2 - A SEGURANÇA PÚBLICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................................ 175 AULA 3 – O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA (SUSP) ........................................................... 182 3.1 GOVERNANÇA: MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO ......................................................................183 3.2 LEGISLAÇÃO E CONCEPÇÃO DO SUSP ......................................................................................... 185 3.3 A POLÍTICA NACIONAL E OS PLANOS FEDERAL E SUBNACIONAIS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL .................................................................................................................................. 190 3.4 PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL: OS CONSELHOS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL .......................................................................................................................................................... 195 3.5 FINANCIAMENTO DO SUSP: FUNDO NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA E FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL ................................................................................................................ 196 3.6 SISTEMAS DO SUSP .................................................................................................................... 198 CONCLUSÃO ................................................................................................................................................. 201 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................. 206 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 207 5 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública APRESENTAÇÃO DO CURSO Caras alunas e caros alunos, Sejam bem-vindas e bem-vindos ao curso: “O Estado democrático de direito e o papel dos profissionais do Sistema Único de Segurança Pública”. A Segurança Pública tem um papel fundamental na defesa da Democracia. O exercício pleno da cidadania, compreendida genericamente como os direitos e deveres da população de um país, não pode ser atingido sem que as pessoas tenham assegurados o direito à vida, à liberdade, à propriedade e ao livre exercício de suas atividades econômicas. A possibilidade de viverem suas vidas livres da ameaça constante da violência é fundamental para a garantia daquelas condições. Nesse sentido, entendemos que os/as profissionais do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) constituem a linha de frente da luta pela defesa da cidadania e da Democracia no Brasil. Mas como esses profissionais podem defender a Democracia? A tarefa é desafiadora e pode parecer distante da realidade cotidiana desses/as agentes. Um dos objetivos do nosso curso é justamente mostrar como o SUSP pode ser um aliado desses/as profissionais. Antes de falarmos diretamente sobre as estruturas e o funcionamento do sistema, introduziremos conceitos e informações relevantes para a contextualização dessa missão tão importante. Percorreremos eventos históricos e diversos campos de conhecimento com o intuito de fazer com que esses/as profissionais possam enxergar oportunidades para a defesa da democracia e do Estado do Direito em seu dia-a-dia, enquanto trabalhadores, representantes do Estado e provedores de um serviço essencial à sociedade. 6 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Este curso está dividido em quatro módulos: Primeiro Módulo Iniciaremos a nossa jornada com a discussão de “poder de polícia” como associado ao bom funcionamento das cidades e ao resguardo dos cidadãos, mostrando que a especialização da polícia como “burocracia de combate ao crime” é um processo histórico associado à consolidação do Estado Liberal Moderno na Europa (XVIII-XIX). Apresentamos ainda uma reflexão sobre a legitimidade e a discricionariedade policiais. Segundo Módulo Na sequência, falaremos das origens históricas da democracia, do estado democrático de direito e definiremos alguns conceitos-chave nesse sentido. Trataremos ainda dos dilemas da defesa da democracia pelos/as profissionais de segurança em sociedades complexas, em que o conflito é característica fundamental e positiva de sociedades livres e plurais. Terceiro Módulo A partir daí introduzimos uma discussão sobre a relação da polícia com a esfera da política em que trataremos do difícil equilíbrio entre o controle e a instrumentalização política das polícias na democracia. Falaremos ainda sobre condições de trabalho e dilemas da participação política desses/as profissionais enquanto “trabalhadores da segurança”. Partimos do princípio de que para que esses profissionais desempenhem um papel na produção de adesão aos princípios e normas democráticos, é preciso que estes/as vivam a democracia em seus ambientes de trabalho. Quarto Módulo Por fim, encerramos o curso com a apresentação da arquitetura e funcionamento do Susp e os dilemas enfrentados para a sua implementação considerando a realidade brasileira, que se caracteriza por um modelo de cidadania que encarna uma tensão entre princípios formais democráticos e práticas sociais hierarquizantes. 7 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Este curso tem, dentre seus propósitos, oferecer os instrumentos para que os profissionais de Segurança Pública atuem ainda mais fortemente para assegurar a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça previstas já nas primeiras linhas da nossa Constituição Federal, a Lei Maior. Os caminhos que apresentaremos aqui passam, em resumo, por refletir sobre o papel da Segurança Pública e seus profissionais na construção do Estado de Direito. Por meio dos conteúdos que serão trazidos aqui, almejamos que os/as profissionais do SUSP disponham de um repertório para sua atuação junto à sociedade e junto aos órgãos e corporações das quais fazem parte. Nesse esforço, procuramos alcançar os profissionais da ponta da linha, mas também os gestores e lideranças policiais e dos órgãos ligados ao Sistema de Segurança Pública. Ao final, esperamos que esse conteúdo contribua para avanços na Segurança Pública no Brasil, retratando-se em uma compreensão ampliada do papel desse serviço público na construção das relações sociais, na tomada de decisão mais adequada aos limites e potencialidades providas pelo Estado de Direito e no impulsionamento de um arranjo institucional que atinja níveis melhores de eficácia e eficiência na Segurança Pública. Sua participação é fundamental nesse processo pedagógico. A Segurança Pública exerce um papel fundamental para a nossa vida em sociedade, sem a qual se fragiliza a noção de cidadania, central para o Estado Democrático de Direito. Esse cenário exige refletir sobre o papel dos profissionais de Segurança Pública na construção do Estado de Direito, com base em discussões sobre a provisão de segurança às pessoas, o papel da polícia enquanto instituição encarregada da ordem e da aplicação das leis, as origens do Estado e da democracia e os arranjos institucionais brasileiros que configuram a segurança como serviço, direito e bem público. Espera-se que, ao final do conteúdo, o/a instruendo/a amplie seu repertório para suas atuações junto à sociedade e junto aos órgãos e corporações das quais fazem parte. Nesse esforço, procuramos alcançar os profissionais na ponta da linha, mas também os gestores e lideranças 8 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública policiais e dos órgãos ligados ao Sistema de Segurança Pública, promovendo uma compreensão ampliada do seu papel e da tomada de decisão em conformidade aos limites e possibilidades do Estado de Direito no Brasil. Figura 1: A sociedade brasileira Fonte: Misael Alberto Cossio Orihuela/ https://jus.com.br/artigos/44467/elementos- constitutivos-do-estado https://jus.com.br/artigos/44467/elementos-constitutivos-do-estadohttps://jus.com.br/artigos/44467/elementos-constitutivos-do-estado 9 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública OBJETIVOS DO CURSO O curso “O Estado democrático de direito e o papel dos profissionais do Sistema Único de Segurança Pública” tem como objetivo desenvolver uma compreensão dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e da cidadania, de modo a fortalecer o papel das instituições de segurança pública na defesa da sociedade e da democracia, a partir da valorização do profissional que integra o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para a preservação da integridade dos poderes e o respeito às leis. OBJETIVOS ESPECÍFICOS ✓ Introduzir conceitos que contribuam para uma melhor compreensão do papel das organizações de segurança pública na defesa da democracia; ✓ Contextualizar historicamente o surgimento do Estado Democrático de Direito e o papel das polícias estatais em sua consolidação; ✓ Problematizar a relação daquelas organizações com a esfera política, introduzindo o dilema entre o controle e a instrumentalização política das polícias no contexto da democracia contemporânea; ✓ Promover o papel dos/as profissionais de segurança pública como mediadores da ordem em sociedades complexas, marcadas por conflitos de interesse e diversidade; ✓ Discutir a importância da promoção de ambientes de trabalho democráticos e da participação dos profissionais do SUSP como “trabalhadores da segurança” para a promoção da democracia; e ✓ Apresentar a arquitetura do Susp, sua finalidade, princípios organizativos, potenciais benefícios e desafios de implementação na sociedade brasileira. 10 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública ESTRUTURA DO CURSO Este curso possui uma carga horária de 50 horas e compreende os seguintes módulos: Módulo 1 - O Estado Democrático de Direito Módulo 2 - Conceito de Polícia e Origens Históricas Módulo 3 - Polícia e a Esfera Política Módulo 4 - Os desafios do Estado brasileiro e a Segurança Pública: o Sistema Único de Segurança Pública 11 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública MÓDULO 1 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO APRESENTAÇÃO DO MÓDULO Para falarmos sobre o Estado Democrático de Direito e o papel dos profissionais do Sistema de Segurança Pública (Susp) é importante fazermos uma retrospectiva histórica. A proposta aqui não é dar uma aura de academicismo ao conteúdo, mas sinalizar o papel que oferece para a constituição da democracia, que é o melhor instrumento até então criado para estabelecer uma convivência que se pretenda pacífica e realizadora das potencialidades humanas, sobretudo em sociedades complexas como as contemporâneas. Embora as atuais configurações de Estado não sejam necessariamente modelagens perfeitas, a constante atuação da sociedade civil, dos funcionários públicos e da classe política, cuja participação está assegurada pela lei e permitirá aumentar as potencialidades para que o Estado ofereça as condições para, como diz no Preâmbulo da nossa Constituição Federal, “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Assim, reafirmando o propósito de obter uma melhor dimensão dos papéis dos profissionais da segurança pública, trataremos de alguns autores que dão sustentação a essa construção política chamada Estado. OBJETIVOS DO MÓDULO Este módulo tem por objetivos: Conhecer os fundamentos históricos e filosóficos que orientam a formação do Estado Democrático de Direito; e 12 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Discutir o papel dos profissionais de Segurança Pública na consolidação do Estado Democrático de Direito, tendo por base a construção da ordem em sociedades complexas. ESTRUTURA DO MÓDULO Este módulo compreende as seguintes aulas: Aula 1 – O surgimento do Estado Moderno; Aula 2 – Cidadania e Direitos Humanos; e Aula 3 – O papel da segurança pública na consolidação do Estado Democrático de Direito. 13 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 1 - O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO Muito embora a tradição da ciência política remonte o surgimento do Estado à Grécia da Antiguidade, partiremos dos escritos dos autores da Modernidade. Diferentemente da Antiguidade, e da Idade Média que a sucedeu, a Modernidade vai ocorrer em um ambiente econômico e político muito mais próximo dos tempos atuais. Isso não apenas cronologicamente, mas, sobretudo, pelo fato de que foi na Idade Moderna que se formaram as instituições econômicas e políticas que dão a conformação inicial do nosso cenário, dentre as quais o Estado Moderno (BOBBIO, 2002). A principal diferença da sociedade moderna reside no fato de que a divisão de poderes políticos não mais se dava sobre a tradição ou pelo nascimento (como a sucessão do governante por seu filho mais velho, ou a proibição do casamento entre os senhores e seus servos). Agora, a sociedade se dividia por critérios econômicos e, apesar da desigualdade que ela trouxe (às vezes até maior que no feudalismo), sinalizou-se que qualquer pessoa poderia alcançar qualquer posição social. Essa transformação econômica, que se deu ao longo de séculos, retirou as amarras ideológicas que vinculavam as pessoas daquele tempo às suas posições de poder por regras imutáveis. Nesse momento da história, as forças que estruturavam a ordem social, como a religião, perdem força para um papel cada vez maior do indivíduo (ELIAS, 1990). No fundo, junto com outras construções filosóficas da Modernidade, introduziu-se a noção de liberdade. É pela noção de liberdade que trataremos de dois dos principais autores que deram as bases filosóficas que originaram o Estado. Falaremos de Hobbes e Rousseau. Chamados de contratualistas, eles pensaram em resolver a seguinte equação: como assegurar liberdade aos indivíduos, sem que a humanidade recaia em modelos políticos em que o governante se transforme em um tirano? Em outras palavras: 14 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Vamos Refletir! Qual a melhor forma de assegurar níveis de harmonia e paz na sociedade? 1.1 O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA MODERNA E LIBERAL: AS REVOLUÇÕES BURGUESAS E A CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE CIDADANIA Na seção anterior, tratamos brevemente sobre como política e economia foram os motores para as transformações humanas que levaram à consolidação do Estado Moderno, instituição que conhecemos hoje simplesmente como Estado. Neste tópico, vamos apresentar alguns fatos históricos que nos trouxeram até aqui. Por meio deles, encontraremos alguns instrumentos políticos que se mantiveram ao longo de todos esses anos e que impactam a nossa sociedade até os dias atuais. Esperamos que, com isso, possamos, por um lado, dar uma dimensão do papel dos profissionais de segurança na defesa do Estado Democrático de Direito e, por outro, frisar que alcançar uma sociedade justa e pacífica exige esforço diário e cotidiano de todos nós. Assim, vamos repassar dois acontecimentos fundamentais para se compreender a formação do Estado, ambos ocorridos na Europa, nos séculos XVII e XVIII: a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e a Revolução Francesa. De início, importa dizer que, com eles, surgiram instrumentos tão importantespara a nossa democracia, como a existência de uma Constituição que regule o exercício do poder e a própria democracia formal (a que prevê os mecanismos que franqueiam a alternância de governo), sem a qual a Democracia tende a desembocar na Tirania. 15 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Os contratualistas Thomas Hobbes e Jeans-Jacques Rousseau Uma das bases do pensamento político moderno foram os escritos dos chamados contratualistas. Para eles, na origem do Estado teria ocorrido um pacto em que os indivíduos decidem por outorgar uma parcela de suas liberdades para um ente abstrato encarregado de lhes garantir a vida, a propriedade e a parcela de liberdade que fora conservada. Esse grande acordo dos indivíduos seria como um contrato (daí o nome “contratualistas”) que os indivíduos firmassem entre eles mesmos e que receberia o nome de Estado. E, assim como nos contratos que assinamos durante a nossa vida, estariam prescritos direitos e deveres mútuos, cujas infrações resultariam em penalidades de parte a parte. Apesar de parecer que esse pensamento não é tão inovador, ele representou uma ruptura no pensamento político até então vigente. Primeiro porque dizia ao mandatário do governo, em especial às monarquias absolutistas vigentes, que ele não podia exercer um poder infinito, mas restrito à medida do pacto estabelecido pela sociedade. Assim, a vida, que não havia sido objeto de cessão no contrato social, não poderia ser requerida pelo rei em nome do Estado. Segundo, porque colocava a subordinação do governante aos instrumentos escritos e legitimados pela sociedade, o que fez emergir uma pressão nos países para que fossem redigidas leis que estabelecessem os limites do exercício do poder político. A partir daí, a ideia de uma Constituição ganhou força, fazendo com que (não sem muita luta), as monarquias absolutistas se tornassem monarquias constitucionais, e, em alguns casos, repúblicas. Apesar de passados cerca de quatro séculos, as questões práticas sobre a observância do contrato ou pacto social são ainda razões que exigem a atenção coletiva e de cada um dos indivíduos. Isso porque as regras do jogo são ultrapassadas por governos e pelos indivíduos. Esses atos, classificados como ilegais, requerem que o Estado atue regulando e punindo as ações individuais 16 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública que se coloquem contra a lei, mas também que a sociedade civil1 se posicione em face dos abusos de poder que o Estado pratique. Thomas Hobbes tem como sua principal obra Leviatã. Para ele, a sociedade pré-estatal (chamada de estado de natureza) é uma guerra permanente entre os indivíduos pela ausência de um ente que pudesse regular a vida social. Em sua concepção, A natureza faz os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele (Hobbes, 1988, p. 74 apud Ribeiro, 2006, p. 54). No estado de natureza, o indivíduo, para manter sua vida e liberdade, não teria outro caminho senão recorrer à violência física ou viver sob a ameaça de ser vítima de outros indivíduos ou grupos. Os homens hobbesianos eram tão iguais, que o mais razoável – seja para evitar um ataque ou simplesmente para sobrepujar outro homem – seria atacar. Assim, dada a inexistência de um Estado capaz de controlar e reprimir as violências entre as pessoas, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais “racional” a ser adotada (RIBEIRO, 2006, p. 55). Dentre outras contribuições para o pensamento político, Hobbes nos oferta a ideia da criação de um poder soberano – o Estado - que proporcione 1 O Estado também possui deveres de atuar contra a ação de seus integrantes em caso de ilegalidades. Para um aprofundamento quanto a isso, recomendamos o estudo das análises sobre check and balances, incialmente tratada em O Federalista (LIMONGI, 2010). 17 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública estabilidade às relações sociais e, que, nessa medida, fosse capaz de impedir a guerra de todos contra todos. Ao mesmo tempo, Hobbes também se preocupava de que esse Estado não se tornasse uma tirania capaz de retirar a vida de seus cidadãos. Em sua concepção, o Estado é limitado, pois ele não pode dispor de todos os direitos dos indivíduos, já que somente a liberdade lhe foi outorgada, e parcialmente, pelos cidadãos que firmaram o contrato social. A vida, mesmo no modelo de Hobbes, permanece indisponível. Thomas Hobbes viveu entre 1588 e 1679 e suas ideias circularam durante a Revolução Gloriosa na Inglaterra. Suas ideias monarquistas se opunham à República de Cromwell instalada naquele país, tendo sido exilado na França por suas ideias. Acesse: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/thomas-hobbes.htm A questão sobre os limites da ação do Estado se coloca de maneira ainda mais intensa nos anos em que Jean-Jacques Rousseau viveu. Passados quase cem anos entre as vidas de Rousseau e Hobbes, as forças políticas e sociais europeias se modificaram com a ascensão de uma classe que passara a reivindicar parcelas maiores de atuação no poder político. Fraturando a hegemonia da Igreja católica e da monarquia, agora uma classe economicamente poderosa, a burguesia, exigia novas formas de organização do Estado. Rousseau se defronta com uma sociedade mais complexa em relação àquela que existia na transição do período feudal ao mercantil, haja vista o adensamento da população em ambientes urbanos e a oposição das classes subalternas aos ditames da monarquia. Ele será o teórico do poder político que se origina do povo, fonte originária de todo poder. Rousseau irá catalisar esse pensamento presente nessa época e é considerado por muitos o pensador da Revolução Francesa (1789), muito Saiba mais https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/thomas-hobbes.htm 18 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública embora tenha vivido antes desse acontecimento (1712-1778) que derrubou o rei Luis XVI do trono e provocou o questionamento de todas as monarquias vigentes na Europa. Seus escritos, representados sobretudo nas suas principais obras, “O Contrato Social” e “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, tiveram impacto mesmo fora do continente europeu, como na Independência dos Estados Unidos da América (1776) e na Inconfidência Mineira do Brasil, nos anos de 1780. Uma das principais diferenças em relação a Hobbes é que, para Rousseau, o momento pré-estatal é pacífico e é o Estado tirano quem usurpa o poder. Assim, ganham relevância as formas com as quais o Estado alcança a legitimidade para atuar na sociedade. Não importa que o governo seja uma monarquia, uma aristocracia ou uma república, o povo deve manter-se como soberano do poder político, perante o qual o governo se subordina. Esse pensamento é tão vigoroso que, passados quase 300 anos, inspirou a Constituição Federal brasileira vigente que diz, no parágrafo único do artigo 1º, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988). Isso significa que o povo é o corpo a partir do qual advém a legitimidade que permite ao governo exercer suas atribuições. Por ser o povo a origem desse poder, é a ele que se voltamas ações realizadas pelos agentes públicos. Isso não se dá por uma elevação moral, abstrata, dos integrantes do Governo, ainda que isso seja importantíssimo, mas decorre, sobretudo, da lei. Aqui, voltamos a Rousseau. “Sempre se é livre quando se está submetido às leis, mas não quando se deve obedecer a um homem; porque neste segundo caso devo obedecer à vontade de outrem, e quando obedeço às leis acato apenas 19 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública a vontade pública, que é tanto minha como de qualquer outro.” (ROUSSEAU apud BOBBIO, 2002, p. 172). Neste trecho, podemos encontrar dois temas fundamentais do pensamento de Rousseau: os termos em que se estrutura o pacto social e como se constrói a legitimidade que permite a prevalência da lei sobre as vontades dos indivíduos. Para ele, as pessoas não devem se submeter aos mandamentos de um governante que não tenha alcançado essa posição senão por força da vontade popular. Essa vontade popular se materializa, por sua vez, pela sujeição à lei que, mediante regras estabelecidas também coletivamente, fornece o conjunto de regras pelas quais tais governantes (sejam os políticos, sejam os funcionários estatais), vão exercer o poder. A sujeição a esse poder decorre, portanto, da escolha livre dos indivíduos em ceder parte de sua liberdade para que o Estado lhes garanta, sobretudo, segurança contra terceiros que atentem contra bens que não foram alienados, como a vida, a propriedade e a liberdade. Diferentemente de Hobbes, que estudamos acima, Rousseau depositará na democracia os fundamentos para que o poder possa ser exercido sobre a coletividade, desde que nos termos do que será chamado posteriormente de Estado de Direito. As Revoluções burguesas Os pensamentos iluministas presentes no mundo a partir do século XVI promoveram mudanças significativas no ambiente político. Os governos autoritários passaram, no decorrer de alguns séculos, a se verem questionados quanto às formas de exercício do poder, exatamente por seu caráter despótico e opressor. Diversos países foram atingidos por essas mudanças, mas, nos casos da Inglaterra e França, foram especialmente marcantes em razão da importância que possuíam nas relações políticas internacionais daquele período. Por essa razão, as chamadas Revoluções Inglesa e Francesa são fundamentais para compreender os processos que trouxeram até nós as noções de: 20 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Democracia Estado de Direito e Direitos Humanos. A Revolução Inglesa 1603-1649 A Revolução Inglesa foi um processo político ocorrido entre os séculos XVI e XVII que culminou na transição do absolutismo para o parlamentarismo. Esse período foi marcado por fortes conflitos entre a monarquia, a classe econômica (burguesia) e a Igreja em razão de reiteradas discordâncias das decisões do rei nos campos econômico e religioso. Em resumo, foram sobretudo as decisões da monarquia inglesa quanto ao aumento de impostos e apropriação de terras que trouxeram desagrado às classes sociais afetadas. A forte oposição do Parlamento em relação à Coroa veio à tona no período do reinado da Dinastia Stuart (1603-1649), que teve como um de seus principais nomes o Rei Carlos I, que, em seu reinado, decretou a obrigatoriedade de empréstimos à Coroa. Claramente, como já afirmado, a vontade do rei gerou uma forte oposição por parte do Parlamento. Apesar disso, o monarca aprofundou a tomada de medidas impopulares. Tais medidas aprofundaram o descontentamento dos comerciantes marítimos e dos proprietários de terras. Some-se a isso um forte descontentamento das classes populares, igualmente afetadas pela política econômica. Em face da crise interna, em 1642 teve início uma guerra civil que levou à execução de Carlos I em 1649. Essa guerra teve como um de seus principais nomes o de Oliver Cromwell que criou o chamado Exército Novo Modelo que combatia as forças reais. Com Cromwell, tem início um intervalo republicano na história inglesa. 1660-1668 A Inglaterra se viu dominada por militares após o Rei Carlos I ter sido derrubado. Essa ditadura inglesa foi marcada fortemente pelo puritanismo 21 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública empregado pelos revolucionários ingleses. O governo de Oliver Cromwell teve como principal ação os chamados “Atos de Navegação”, que exigia que todos os produtos importados pela Inglaterra fossem transportados por navios de bandeira Inglesa o que causou uma insatisfação por parte da Holanda, em uma clara tentativa de Cromwell de afirmar a hegemonia marítima e comercial britânica. Todavia, Oliver Cromwell morreu vítima de uma febre e por sua vontade seu filho, Richard Cromwell, assume. Seu governo não durou muito pois lhe faltava influência sobre os oficiais do Exército britânico, que tivera importante papel na guerra civil, e logo saiu do poder. Com isso foi feita a chamada Restauração (1660-1668) a qual simbolizava a volta da monarquia absolutista à Inglaterra, cujo principal nome era o Rei Carlos II, filho de Carlos I. 1688 Com a monarquia restaurada e sem muitas revoltas por parte do povo, Carlos II morre e seu irmão Jaime II sobe ao trono; porém, por contrariar o Parlamento, é deposto pelo mesmo em 1688, no que ficou conhecido como Revolução Gloriosa, que leva esse nome pois simbolizou a substituição pacífica e sem derramamento de sangue de Jaime II pela então coroada rainha Mary e o Rei holandês Guilherme de Orange. Os acontecimentos na Inglaterra que culminaram na Revolução Gloriosa representam um dos primeiros movimentos que buscaram pôr fim à situação própria do feudalismo. Os privilégios econômicos e políticos da monarquia, que se assentavam em uma estrutura social fundamentada nos cânones religiosos imutáveis foram sendo questionados, por força do surgimento de uma classe comercial (burguesia) que passou a se colocar contra esse estado de coisas e buscou maior possibilidade de influenciar as decisões do governo. O despotismo, que marcou a história inglesa por muitos séculos, não tinha mais espaço. 1689 A monarquia constitucional parlamentarista inglesa, pela qual o monarca subordina-se às leis elaboradas pelo Parlamento, consolida-se em 1689 com a Declaração dos Direitos. Antes de serem coroados, Guilherme de Orange e Maria Stuart, tiveram que jurar obediência a ele, em uma clara inversão dos tempos anteriores. O tratado estabeleceu o princípio de eleições livres e 22 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública liberdade de expressão no Parlamento. Também incluiu que nenhum direito de tributação ocorresse sem o aval do Parlamento, o direito de os súditos apresentarem petições ao Rei e tratamento justo das pessoas pelos tribunais. A Revolução Francesa Semelhante à Revolução Inglesa, a Revolução Francesa, cujos fatos mais marcantes se deram no século XVIII, é um evento ímpar para a compreensão da criação do Estado Moderno, em razão da passagem do Absolutismo para governos constitucionais. Devemos lembrar que, nessa época, na França, vigorava o que se chamaria Antigo Regime, que, além do despotismo monárquico, ainda mantinha algumas características de uma sociedade feudal, dentre as quais o imobilismo social e grande desigualdade na distribuição do poder, concentrado na nobreza e no clero. Segundo Norbert Elias, em Sociedade de Corte2, essa disposição das forças sociais possibilitava que a França possuísse uma das mais autoritárias monarquias, que, com o rei Luís XIV (1643-1715) atingiu seu ponto máximo. A ele é atribuída a frase “O Estado sou eu”, em uma clara simbologia da tamanha concentração de poderesnas mãos do governante. Muito embora a sociedade fosse uma monarquia absolutista, as condições sociais passam, gradualmente, a exercerem uma pressão sobre o rei, de forma a que suas decisões fossem cada vez mais aderentes aos interesses de outros grupos, que não a nobreza e o clero. O rei, “pela graça de Deus”, era a fonte da justiça, da legislação e da autoridade administrativa, decidindo, ainda, pela guerra e pela paz. Essas 2 ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Tradução de Ana Maria Alves. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, 240 23 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública atribuições, contudo, foram escapando, uma a uma, do controle direto da monarquia, sendo atribuídas, gradativamente, a instâncias intermediárias. A justiça e a legislação, por exemplo, cada vez mais passaram a ser exercidas pela Parlamento e pelas Cortes – tudo em nome do rei, evidentemente. Ainda aqui, a centralização encontrava forte resistência em setores onde a justiça senhorial sobrevivia.” (Miceli, 1987, p. 51). Em termos sociais, a França era dividida em três classes sociais bastante demarcadas, que recebiam o nome de Estados. Essa divisão era também política, com a definição de espaço na Assembleia Nacional Francesa, como veremos adiante: Primeiro Estado O primeiro Estado era constituído por representantes do clero. Sua influência se dava tanto do ponto de vista religioso como da cobrança de taxas sobre o uso de suas terras – que cobriam cerca de 10% do território francês –, além de taxas sobre batismo, casamento, etc. Segundo estado A nobreza constituía o segundo Estado. Além de viver junto ao próprio rei e desfrutar do consequente fausto que a vida da corte proporcionava, possuía alguns privilégios de exploração econômica decorrentes de seus títulos. Os maiores benefícios da nobreza, entretanto, vinham da isenção de tributos e da prestação de serviços obrigatórios, tais como alojar soldados e cuidar dos caminhos. Possuíam, ainda, direito de caça e pesca e 24 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública detinham o monopólio de acesso aos cargos superiores do exército, da Igreja e da magistratura.” (Miceli, 1987, p. 55). Terceiro Estado O terceiro estado era constituído por todos os demais franceses e constituíam mais de 96% da população. Comerciantes, banqueiros, profissionais liberais, lojistas, além de todo o campesinato faziam parte dele. Era um Estado bastante heterogêneo, mas que, em diferentes níveis, tinham em comum o fato de participarem muito fragilmente do poder político, apesar de, sobretudo a burguesia, disporem de forte poder econômico. Nos últimos anos do século XVIII, já com o reinado de Luís XVI, a França passava por uma severa crise fiscal. Isso exigiu que Luís XVI propusesse ao Parlamento francês o fim das isenções econômicas usufruídas pelos primeiro e segundo Estados. Diante da crise que tais propostas geraram junto a esses grupos, somado à insatisfação que já existia no terceiro Estado, o Parlamento exigiu que o rei convocasse a Assembleia Nacional. Nela, cada Estado teria direito a um voto o que, diante da disparidade na composição em termos das quantidades populacionais que representavam, indicava uma clara perda para o terceiro Estado. Não somente o rei Luís XVI foi colocado em xeque, mas a própria noção de representatividade da Assembleia Nacional, pois, apesar de o terceiro estado ser a imensa maioria da população, sua participação nas discussões tinha o mesmo peso que o primeiro e segundo estados. O terceiro estado então fez uma série de reivindicações, dentre as quais a de que o voto fosse por pessoa e não mais por ordem, já que compunham a maioria da população francesa, exigências as quais não tiveram respostas do rei Luís XVI. Paralelamente ao processo político, ocorre um importante acontecimento que simbolizou a Revolução Francesa - a Queda da Bastilha (1789) - movimento de cunho popular caracterizado por derrubar uma prisão a qual continham presos políticos, um lugar o qual representava uma grande marca do velho e decadente Regime absolutista francês. Com isso, o rei Luís 25 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública XVI foi ficando cada vez mais fragilizado politicamente. Encurralado e sem saídas, tomou como medida sancionar as vitórias populares. Com toda essa crise, o rei decide fugir do palácio a fim de tentar organizar forças estrangeiras para, de alguma forma, tentar reconquistar seus direitos reais. Porém, acaba sendo descoberto na fronteira e é trazido para Paris. Luís XVI então é julgado, considerado um traidor da França e acaba sendo condenado à guilhotina, encerrado, assim, a monarquia absolutista francesa. Mais do que uma disputa pelo poder, tão comum na história, a Revolução Francesa representa o fim dos privilégios de classe, a vitória de uma ideia de igualdade entre os indivíduos e a definição de que a legitimidade do poder político advém do povo, por meio de seus representantes legalmente constituídos, o que, à época, constituíam ideias profundamente reformadoras. A dimensão de tais acontecimentos foi tamanha que o documento pelo qual os revolucionários redigiram os seus princípios se tornou a base a partir da qual foi construída a ideia de que a garantia à vida, à liberdade e à propriedade são inerentes à condição de ser humano. Essa condição política é vista, a partir de então, como condição essencial para a existência de um governo legítimo. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita em 1789, materializa esse pensamento e é, a partir dela, que os Direitos Humanos vão passar a ser uma dimensão essencial para a construção do Estado Democrático de Direito. Tanto a citada Declaração quanto os Direitos Humanos serão mais bem explorados em aula adiante. Em resumo, as Revoluções Inglesa e Francesa legaram ao mundo as lições de que a legitimidade dos governos advém do povo, mediante os processos democráticos que estabelecem como esse poder deve ser exercido, colocando término quanto à origem de outras formas de legitimidade, como a pessoal, tradicional ou religiosa, comum a regimes absolutistas. A partir de então, a lei é o instrumento que subordina a ação de governos, a qual, por sua vez, deve derivar de processos que sejam democráticos a ponto de conferir ampla participação na sua elaboração. 26 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 2 – CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS As mudanças políticas que o mundo assistiu na era moderna não foram possíveis sem que uma nova sociedade – em comparação com a feudal – surgisse. As pessoas, sem as amarras da antiga ordem, passaram a reivindicar seus espaços de poder, representados pelas Revoluções Inglesa e Francesa que trouxemos anteriormente. Prevalece, a partir desse momento histórico, a concepção de que os indivíduos possuem direitos que não poderão ser atacados pelo Estado, pois, somente a partir desse novo status que receberá o nome de cidadania, poderá existir democracia e, consequentemente, o exercício do poder legítimo por parte do governo. Assim, não é exagero afirmar que a noção de Direitos Humanos surge nesse período que, como vimos, coloca a pessoa humana como centro dos processos sociais e políticos (e, portanto, não mais a tradição nobiliárquica nem a religiosa). Os Direitos Humanos, por sua vez, são garantias de direito que se aplicam universalmente, independente de especificidades das condições dos indivíduos. Raça, credo, idioma, nacionalidade, condição econômica, como exemplos, não são critérios para destituir determinada pessoa de seus atributos legais. O instrumento político-jurídico que deu ospassos iniciais para toda a construção de direitos humanos se dá exatamente em 1789, no país palco da Revolução Francesa. A ideia de um “Direito Humano” é filha, portanto, das mesmas agitações sociais que deram origem aos ideais iluministas de “indivíduo” e de “igualdade”. O surgimento de um indivíduo universal na França (o “cidadão”), portador de direitos iguais, independentes de seu status social (renda, títulos, nome), quando expandido para uma escala mundial, redundou no surgimento de um direito que se pretende aplicável a toda “humanidade”, independentemente de qualquer diferença observável entre os “seres humanos”. A ideia de um Direito Humano, como a conhecemos hoje, surgiu e se desenvolveu a partir da Revolução Francesa, cujo marco histórico foi a “Tomada da Bastilha”, em 14 de julho de 1789, quando foi oficialmente derrubada a monarquia na França. Como a monarquia era considerada, pelos revolucionários franceses, um regime de governo “corrompido”, que atribuía direitos e distribuía 27 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública propriedades observando o status social das pessoas, foi elaborada uma nova “constituição” para a recém instaurada “República Francesa”. Esta, além de proclamar a “igualdade de direitos” como princípio, foi a responsável por cunhar o termo “cidadão”. A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” foi promulgada naquele mesmo ano “revolucionário” de 1789. Em seu preâmbulo, o legislador escreveu: Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Como você deve ter notado, já em seu preâmbulo, a Declaração deixa clara a intenção do legislador, em primeiro lugar, de instituir e proteger os “direitos do homem” igualmente, colocando a “felicidade geral” e a própria proteção desse instituto jurídico (a “Constituição”) como objetivos últimos para a recém fundada República Francesa e seus cidadãos. Para sustentar sua intenção de aplicar-se a todos e todas igualmente, a ideia nascente de um direito 28 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública universal precisava encontrar uma espécie de “unidade de medida” comum a toda a humanidade. Essa medida era a ideia de “indivíduo”, surgida do chamado “século das luzes”, do Iluminismo, movimento que valorizava a razão e a figura humana, tomada como “medida de todas as coisas”, e teve seu auge entre os séculos XVIII-XIX. O indivíduo viria a se tornar o “cidadão” da República Francesa (1789). A diferença é que o cidadão passa a ser sujeito de direitos. E os direitos são iguais para todos os cidadãos, independentemente da origem e posição social. Figura 2: O Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci Fonte: wikipedia Todos e todas são cidadãos, porque iguais em suas diferenças. Essa medida de igualdade, o “indivíduo”, refletia a humanidade como uma experiência social diversa, em seus modos e aparência, mas unida por uma mesma “natureza humana”. Sobre esse substrato comum, o legislador francês atrelou os chamados “direitos naturais”, inalienáveis e sagrados, como vimos acima. Essas “garantias fundamentais” seriam consideradas essenciais à viabilidade material e moral da existência humana. Necessárias à reprodução da vida e das condições de vida do povo francês, na percepção do legislador da época, os direitos naturais eram “a 29 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (Declaração, artigo 2º). A partir da França “revolucionária” de 1789, a “capital mundial das luzes”, berço do Iluminismo (séc. XVII-XVIII), estas ideias viajaram o mundo, atravessando oceanos e influenciando gerações. Por outro lado, se o Iluminismo representa a inspiração da noção de direitos humanos, a sua formulação concreta acontece como consequência da Segunda Guerra Mundial. Nela, foram cometidas inúmeras barbaridades, especialmente pelo regime nazista, que culminaram numa tentativa de extermínio de judeus, homossexuais, neurodivergentes, comunistas e outros indivíduos considerados como inimigos do Estado ou como prejudiciais para o sucesso da raça ariana. Em suma, o Estado não era apenas o garantidor dos direitos individuais, como defendiam os contratualistas que apresentamos nesse mesmo Módulo, ele era também um potencial violador desses mesmos direitos e possuía um poder gigantesco para tal, quando decidia enveredar por esse caminho. Portanto, os indivíduos precisavam de proteção supraestatal, na medida em que ficava patente que o Estado, e a legislação nacional, não podiam ser os únicos garantidores da proteção dos direitos individuais. Era preciso gerar um arcabouço moral e jurídico que reconhecesse os direitos básicos de todas as pessoas do planeta, independentemente do país onde morassem e da legislação nacional vigente nesse território. Nenhuma lei nacional poderia anular ou comprometer esses direitos básicos e inalienáveis. A ideia era gerar uma ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial baseada nesses princípios, que deveriam servir para evitar uma repetição das atrocidades cometidas. De alguma forma, os direitos humanos constituem uma tentativa de plasmar a noção do direito natural, que é consubstancial ao ser humano pelo simples fato de sê-lo e que, portanto, não dependem da sua conduta, não precisam ser merecidos nem ganhos. O resultado dessa visão foi a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” aprovada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, cujo preâmbulo reza: 30 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública (...) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. A Declaração foi aprovada por 48 votos a favor, 8 abstenções (sobretudo de países socialistas que tinham algumas ressalvas) e nenhum voto contrário. Os direitos reconhecidos aos indivíduos por essa declaração são os seguintes: 1 Igualdade em dignidade e direitos (art. 1) 2 Igualdade de direitos sem diferenciação de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou condição jurídica do território a que pertença uma pessoa (art. 2) 3 Direito à vida, liberdade e segurança pessoal (art. 3) 4 Proibição da escravidão ou servidão (art. 4) 5 Proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (art. 5) 6 Reconhecimento como pessoaperante a lei (art. 6) 7 Igualdade perante a lei e proteção contra discriminação (art. 7) 8 Remédios efetivos contra violações aos direitos fundamentais (art. 8) 9 Proibição de prisão e banimento arbitrários (art. 9) 31 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 10 Direito a tribunais imparciais (art. 10) 11 Presunção de inocência e proibição de castigos por crimes não tipificados antes da conduta julgada (art. 11) 12 Proteção contra interferências à vida privada e contra ataques à honra (art. 12) 13 Liberdade de locomoção dentro do Estado e direito a deixar qualquer país (art. 13) 14 Direito ao asilo para as vítimas de perseguição (art. 14) 15 Direito à nacionalidade (art. 15) 16 Direito a contrair matrimônio livremente consentido e à proteção da família (art. 16) 17 Direito à propriedade (art. 17) 18 Liberdade de pensamento, consciência e religião (art. 18) 19 Liberdade de opinião e expressão (art. 19) 20 Liberdade de reunião e associação (art. 20) 21 Direito à participação política expressa em eleições por sufrágio universal e secreto (art. 21) 22 Direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade da pessoa e ao livre desenvolvimento da sua personalidade (art. 22) 23 Direito ao trabalho que assegure uma remuneração digna e à sindicalização (art. 23) 24 Direito ao repouso e ao lazer (art. 24) 25 Direito a um padrão de vida que garanta bem-estar (art. 25) 26 Direito à educação, que deve ser gratuita no nível fundamental (art. 26) 27 Direito a participar da vida cultural e proteção do direito autoral (art. 27) 28 Direito a uma ordem social e internacional que respeite os direitos humanos (art. 28) 32 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 29 Direito a ser sujeito apenas às limitações estabelecidas por lei (art. 29) 30 Proibição de interpretar qualquer parte dessa Declaração como justificativa para vulnerar direitos aqui reconhecidos (art. 30) Após a Declaração, os direitos foram expandidos e codificados no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966. Ambos os pactos já foram ratificados por mais de 170 países. Posteriormente, outras convenções mais específicas outorgaram um conteúdo concreto a vários desses direitos, como a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) ou a Convenção contra à Tortura e Outros Tratos o Penas Cruéis, Inumanos ou Degradantes (1984). No nível do continente americano, e dentro dele no âmbito da Organização de Estados Americanos (OEA), foi adotada em 1969 a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José. Essa convenção, que contempla uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos e uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi ratificada pelo Brasil em 1992. Em 1998, o Brasil reconheceu a competência da Corte sobre o seu território, tornando-se desde então obrigatório o cumprimento das sentenças dela. Cortes continentais semelhantes existem na Europa (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) e na África (Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos). Os diplomas de direitos humanos (declarações, pactos, convenções, etc.) contém tanto direitos “negativos” quanto “positivos”. Os primeiros dizem respeito a ações que o Estado deve se abster de fazer, para poder respeitá-los, tais como direito à vida ou a proibição da tortura. Se referem aos direitos civis e políticos, basicamente. Essa abordagem visa colocar limites às ações dos Estados para Saiba mais 33 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública evitar abusos contra os cidadãos, tal como tinha sucedido na Segunda Guerra Mundial. Por sua vez, os direitos positivos são relativos a bens, serviços ou oportunidades que o Estado deve prover para que os indivíduos sob seu cargo tenham uma vida digna, como o direito à educação ou ao trabalho. Correspondem sobretudo aos direitos econômicos, sociais e culturais. Alguns direitos podem ser ao mesmo tempo positivos e negativos, como, por exemplo, o direito à saúde. Os Estados devem prover serviços de saúde, mas também devem evitar tomar medidas que comprometam a saúde dos cidadãos. Outra forma comum de classificar os direitos é dividi-los em direitos de primeira, segunda e terceira geração, em função do momento em que foram propostos e reconhecidos. Os de primeira geração são os direitos civis e políticos, começando pelo direito à vida, sem os quais os outros não podem ser realizados. Os de segunda geração são os econômicos, sociais e culturais, objeto do Pacto Internacional de 1966. Por último, os de terceira geração, os mais recentes, são direitos coletivos e não mais individuais, como o direito a um meio ambiente limpo, o direito à paz e o direito à autodeterminação cultural. De forma geral, os direitos humanos são considerados como direitos brandos (soft law), isto é, como direitos propositivos e ideais, mas cuja garantia efetiva depende mais da aceitação dos Estados do que de sentenças jurídicas. A própria Declaração Universal em seu preâmbulo que acabamos de ver define os direitos humanos como “um ideal comum a ser atingido”, isto é, como um dever-ser ou um desideratum. Isto é especialmente verdadeiro para os direitos positivos, econômicos, sociais e culturais. A despeito do direito individual ao trabalho, por exemplo, existem pessoas desempregadas em todos os países do mundo, e o objetivo é tentar que esse percentual seja reduzido ao mínimo possível. Mas, mesmo no caso dos direitos negativos de interpretação mais inequívoca, como os direitos civis e políticos, não existe um aparato coercitivo para garanti-los, diferentemente dos direitos protegidos na legislação nacional, que podem ser defendidos por sentenças judiciais nacionais que, se resistidas, podem ser aplicadas pela polícia. A polícia, como vimos, possui o monopólio da 34 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública violência legítima. Não existem, entretanto, polícias universais nem polícias das Nações Unidas que garantam a aplicação da lei internacional que, por isso, é conceituada como uma “lei branda", que depende da aceitação dos Estados. 2.1 A FALSA OPOSIÇÃO ENTRE SEGURANÇA E DIREITOS HUMANOS Em muitos países, incluindo o Brasil, há setores sociais que percebem os direitos humanos como beneficiando apenas os criminosos e, portanto, prejudicando o resto da sociedade. Isso é mais comum ainda entre indivíduos que compartilham essa percepção dicotômica e maniqueísta que divide a sociedade em dois grupos rígidos: cidadãos de bem e bandidos (ver Aula 3 do Módulo I). Nessa visão, se a lei impõe limites ao que o Estado pode fazer em relação a um suspeito ou mesmo a um criminoso convicto, isso é percebido como um empecilho na busca da segurança. Gera-se, assim, um falso antagonismo entre direitos humanos e segurança, como se essa última só pudesse ser obtida mediante o sacrifício dos direitos individuais. Na realidade, não há evidências de que o atropelo dos direitos das pessoas tenha resultado numa sociedade mais segura e há muitas evidências em sentido contrário: quando o Estado pôde agir livremente contra seus opositores ou inimigos, sem limites legais, isso provocou grande insegurança na população. Quem vê os direitos humanos como inimigos da segurança tende a perceber os defensores de direitos humanos como traidores à sociedade, particularmente quando a segurança pública é entendida como uma guerra (ver Aula 3 do Módulo I). A culpa do fracasso na luta contra o crime é então atribuída aos “direitoshumanos” como conceito ou como grupo de pessoas que os defendem. Curiosamente, isso acontece mesmo que os direitos humanos em geral, especialmente no que concerne aos direitos negativos, não fazem senão reafirmar o que as legislações nacionais já contêm. A proibição da tortura e da execução sumária, por exemplo, não é algo inventado pelos pactos de direitos humanos, mas está contida nos 35 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública códigos penais de quase todos os países do mundo. Porém, os detratores dos direitos humanos focalizam as críticas neles ao invés de atacar a lei nacional. Essa concepção é consequência de uma visão deturpada da realidade. Obviamente, como seu próprio nome indica, os direitos humanos não defendem apenas os suspeitos ou os criminosos, mas a todos os cidadãos que são sujeitos desses direitos universais. Os policiais são, como qualquer cidadão, sujeitos de direitos humanos, tanto como pessoas quanto como trabalhadores, e seus direitos como cidadãos e trabalhadores também devem ser respeitados. Por outro lado, o teste principal dos direitos humanos advém justamente no tratamento que o Estado dá às pessoas mais vulneráveis, como os presos, ou àqueles suspeitos de cometerem os piores crimes. O tratamento dado a esses indivíduos é a medida do nível civilizatório de uma sociedade. Só quando indivíduos eventualmente considerados indesejáveis forem tratados conforme a lei estipula é que todos teremos a garantia de que nossos direitos serão respeitados. A verdadeira discussão não é se os direitos humanos defendem a uns ou a outros, a divisão se dá entre os que desejam uma atuação do Estado pautada e limitada pela lei e aqueles outros que promovem uma atuação ilegal e sem controle por parte dos agentes do Estado, rumando assim de volta à Idade Média. Se a polícia tem como missão central a defesa da lei, seria um absurdo que fizesse isso quebrando a própria lei, pois nesse percurso anularia sua própria missão. Os policiais precisam tomar cuidado com os cantos de sereia que vêm de determinados setores sociais que defendem uma atuação ilegal da polícia (como aqueles que defendem que “bandido bom é bandido morto”), pois, para além de razões morais e sociais, serão os policiais os que eventualmente se sentarão no banco dos réus para responder de possíveis abusos, e não aqueles que advocaram esses caminhos. 36 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 3 - O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA NA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 3.1 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Nas aulas anteriores, vimos o surgimento histórico do Estado moderno e da democracia, os dois pilares essenciais do Estado Democrático de Direito. Na sociedade pré-moderna ou feudal, o poder era exercido por uma pessoa, o monarca, ou por um grupo, tomando em conta apenas sua visão de mundo e seus interesses. É o que se chama despotismo. O monarca absoluto não é obrigado a justificar suas decisões, que não precisam necessariamente ser coerentes ou sistemáticas. Obviamente, isso é a definição mesma de arbitrariedade, ou seja, medidas que obedecem exclusivamente ao livre arbítrio de quem as toma. Como forma de evitar a arbitrariedade, as sociedades desenvolveram um conjunto de regras que definem os limites da ação dos titulares do poder e balizam as ações que estejam ao seu alcance: as leis. O Estado de Direito é aquele em que a lei se sobrepõe à vontade dos governantes, que estão subordinados às regras legais definidas coletivamente. Nisso se contrapõe ao Estado Despótico. O Estado de Direito pode ser caracterizado por uma série de traços centrais, entre eles: 1 Igualdade perante a lei. As normas obrigam a todos pois num Estado de Direito, não há ninguém acima da lei. Ela não pode ser aplicada de forma seletiva ou pessoalizada, a favor ou contra determinado indivíduo. 2 Transparência e previsibilidade. As normas devem ser públicas para que todos as conheçam e possam cumpri-las e ninguém pode ser sancionado senão pelo descumprimento de uma lei previamente existente. Isso confere previsibilidade ao governo e à vida em geral, que constitui um dos componentes essenciais da vida em sociedade. 37 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 3 Devido processo. A tomada de decisões por parte de qualquer um dos poderes (executivo, legislativo ou judicial) deve seguir determinados procedimentos previamente estabelecidos para serem legais e legítimas. 4 Prestação de contas. Os tomadores de decisão, em qualquer um dos poderes, precisam justificar publicamente suas decisões para que elas possam ser submetidas a escrutínio e para que eles possam ser responsabilizados por suas decisões (accountability) (ver Aula 1 do Módulo III). 5 Segurança jurídica. As leis devem ser aplicadas de forma isonômica a todas as situações que apresentem as mesmas características, e as decisões tomadas de acordo com a lei não podem ser mudadas pela iniciativa individual de nenhum ator. A segurança jurídica é outro fator de extrema relevância para conferir previsibilidade à vida social. 6 Separação e independência de poderes, que não podem estar concentrados numa única pessoa ou instância. Tradicionalmente, as funções de elaboração de leis (legislativa), de condução do Estado (executiva) e de aplicação das leis (judiciais) são atribuídas a órgãos diferentes e independentes entre si, para evitar a acumulação de poder nas mãos de algumas pessoas. 7 Acesso à justiça. Todas as pessoas, independentemente da sua condição, devem poder apresentar suas solicitações e reclamações a um sistema de justiça que seja imparcial. Paralelamente, todos os indivíduos devem ter a possibilidade de representação legal. O Estado de Direito se corresponde exatamente com a noção de legitimidade legal-racional de Max Weber que vimos no Módulo I (Aula 5), que estava baseada num conjunto de normas escritas e racionais. A diferença entre o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito é que, nesse último caso, as leis são necessariamente aprovadas com a participação de toda a coletividade e integrando todos os setores sociais, isto é, 38 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública são geradas de forma democrática. Com isso, a lei e o exercício do poder tendem a atingir uma legitimidade maior e, dessa forma, aumenta a obediência a essas leis que foram desenvolvidas de forma coletiva. Se os contratualistas falavam de um contrato implícito para a criação do Estado, nesse caso trata-se de um contrato explícito em que as pessoas participam na gestação das normas a que estarão sujeitas. Os dois termos (Estado de Direito e Estado Democrático de Direito) são usados muitas vezes de forma quase indistinta, mas o último sublinha o caráter democrático do Estado e a legitimidade subsequente. É justamente porque as trajetórias das nações que melhor responderam a esse desafio se inspiraram nas ideias de justiça, democracia, respeito às leis e aos direitos humanos, pensadas em seu alcance universal e irrestrito. Muito provavelmente, quando perguntamos quais as sociedades que melhor conseguiram resolver seus problemas ligados à violência, somos levados a pensar em países com baixos índices de crimes, tais como Japão, Noruega, Suécia. As explicações para isso são inúmeras; contudo, ainda que possa parecer que estes países sempre possuíram ótimos níveis de convivência e que tal estado de coisas é resultado que alguma característica inata às suas Mas, afinal, por que é de fato importante que todos esses conceitossejam levados a efeito pelos profissionais do Susp, diante de problemas de tamanha ordem e gravidade como são aqueles com os que têm de lidar constantemente? Na prática Vamos Refletir! 39 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública populações, um olhar mais atento às suas histórias nos provará que foram processos políticos que possibilitaram bons níveis de convivência social. Para discutir uma dessas possibilidades, vamos trazer uma análise realizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A OCDE é uma organização internacional composta por 38 países- membros, que reúne as economias mais avançadas do mundo, além de alguns países chamados “emergentes”. O ingresso de um país junto a essa organização significa uma espécie de credenciamento que sinaliza que as práticas adotadas e o ambiente político estão conseguindo enfrentar os desafios sociais, econômicos e ambientais de forma satisfatória. Fazem parte da OCDE: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Colômbia, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Suécia, Suíça, Reino Unido, República Tcheca, Turquia. Os primeiros passos para o ingresso do Brasil junto à OCDE ocorreram em janeiro de 2022, juntamente com Argentina, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia. Acesse: https://www.oecd.org/about/ Um dos quesitos avaliados pela OCDE para o credenciamento de países é o rule of law ou Estado de Direito, que eles definem como a capacidade de o país-candidato oferecer as mesmas regras, procedimentos e princípios para indivíduos e organizações, incluindo o próprio governo, garantindo um tratamento justo pelas instituições e igual acesso à justiça (OECD, 2019). Assim, segundo a OCDE, rule of law é um conceito multidimensional composto por Você sabia? Saiba mais https://www.oecd.org/about/ 40 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública diversos elementos como os direitos fundamentais, ordem e segurança, capacidade de aplicar a lei (regulatory enforcement) e justiça civil, além de um governo aberto (OECD, 2019). O desdobramento de cada um desses componentes diz muito sobre quais são as variáveis de importância para verificar se um país promove o Estado de Direito em seu território. A seguir, apresentamos um resumo (WORLD JUSTICE PROJECT, 2022): 1 Tratamento igualitário e ausente de discriminação; 2 Existência do devido processo legal e direitos aos acusados em delitos e infrações administrativas; 3 Garantia efetiva à vida e à segurança, à liberdade de expressão e opinião, à liberdade de crença e religião, à liberdade de associação, ao direito ao trabalho e contra a interferência indevida à privacidade; 4 Controle efetivo do crime; 5 Controle efetivo dos conflitos civis; 6 Interdição à vingança privada para a resolução dos conflitos; 7 Efetividade das regulações governamentais, tais como leis e normas infralegais; e 8 Acesso à justiça, sem discriminação. Pode-se observar no mapa a seguir que os países possuem diferentes níveis de efetivação do Estado de Direito. Grosso modo, aqueles que foram avaliados com melhores níveis são exatamente os que registram menores níveis de violência. 41 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Figura 3: Estado de Direito pelo mundo Fonte: WJP Rule of Law Index, 2022. * As cores mais avermelhadas indicam menores níveis de aderência ao Estado de Direito enquanto as cores voltadas ao verde mostram maiores níveis de aderência. Esse estudo nos traz duas conclusões importantes: Primeira conclusão: Decorridos cerca de 400 anos desde os escritos e eventos que inspiraram o Estado Democrático de Direito, seus fundamentos são bastante atuais. Os avanços resultantes desse processo histórico fundamentam as análises promovidas nos dias atuais, na medida em que o Estado Democrático de Direito é considerado um requisito para atingir fins que vão muito além da questão da imposição da lei e da participação no poder, pois é por meio dele que se promovem avanços econômicos, sociais e ambientais. Segunda conclusão: Direitos humanos, democracia, segurança, cidadania e capacidade de o Estado regular os conflitos humanos são os caminhos mais bem sedimentados para ofertar melhores níveis de convivência social. Ainda que existam outros fatores que expliquem os motivos pelos quais determinados países possuem 42 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública menores níveis de violência, há fortes razões para se defender que são exatamente os elementos oferecidos pelo Estado Democrático de Direito aqueles que conduzem a maiores ganhos nesse campo. 3.2. O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Todos os direitos elencados na Declaração Universal de Direitos Humanos, que vimos na aula anterior, só podem ser usufruídos se o cidadão está e se sente em segurança. Quem teme pela própria vida, pela integridade pessoal ou inclusive pela sua propriedade dificilmente poderá exercer outros direitos. Paralelamente, a prevalência da ordem pública é também um componente importante para a possibilidade de usufruir os direitos básicos e para a previsibilidade das relações sociais. Num cenário caótico e desordenado, será difícil gozar dos direitos que a lei confere ao cidadão. O conceito de “segurança humana”, proposto pelo PNUD (1994) em contraposição à segurança nacional, pode ser concebido, na sua formulação mais sintética, como a libertação dos indivíduos do medo e da necessidade. Nesse sentido, une tanto a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais (a necessidade) com a proteção contra ameaças à integridade pessoal (o medo). Mas, no fundo, os dois aspectos estão intimamente relacionados na medida em que, como argumentamos, o medo pode acabar anulando a possibilidade de satisfazer outros direitos. Considerando que é obrigação do Estado garantir a segurança da população, a segurança torna-se necessariamente pública. Em consequência, o Estado é o sujeito central que deve garantir a segurança, embora várias legislações, incluindo a Constituição Brasileira de 1988, reforcem o papel dos próprios cidadãos no processo. A segurança tem componentes por um lado objetivos e por outro lado intangíveis e subjetivos. Assim, oferecer segurança implica não apenas reduzir 43 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública os riscos e as ameaças que as pessoas apresentam de serem vítimas de crimes ou violência, mas também conseguir que elas percebam esses riscos como baixos, se sentindo efetivamente seguras. Em tudo isso, o papel das instituições de segurança pública é fundamental, pois são elas, através da sua função preventiva e repressiva, as encarregadas de prover segurança às pessoas e, dessa forma, possibilitar que elas usufruam o conjunto dos seus direitos. Nesse sentido, as instituições de segurança são garantidoras do Estado Democrático de Direito. Especificamente, elas também garantem o próprio exercício da democracia representativa, possibilitando que as eleições sejam livres. Por exemplo, perseguindo os crimes eleitorais, que tentam impedir, condicionar ou comprar o voto. E, em ocasiões, impedindo a atuação daqueles que querem derrubar o governo democraticamente eleito por meio da força. De fato, uma democracia sem instituições de segurança pública ficaria extremamente vulnerável
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