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Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino de Castro e Costa Secretaria Nacional de Segurança Pública Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Diretoria de Ensino e Pesquisa Michele Gonçalves dos Ramos Coordenação-Geral de Ensino Ana Claudia Bernardes Vilarinho de Oliveira Coordenação Pedagógica Joyce Cristine da Silva Carvalho Coordenação de Ensino a Distância Renata Guilhões Barros Santos Gerente de Curso Danilo Bruno Moreira Conteudistas Alan Fernandes Elizabeth Albernaz Ignacio Cano Colaboração: Renato Sérgio de Lima Revisão Técnica Ana Paula Santos Meza Danilo Bruno Moreira Revisão Pedagógica Evania Santos Assunção Revisão Textual Julio Cezar Rodrigues Programação e Edição Renato Antunes dos Santos Fábio Nevis dos Santos Design Instrucional Wagner Henrique Varela da Silva Sumário APRESENTAÇÃO DO CURSO ................................................................................................................... 6 OBJETIVOS DO CURSO ................................................................................................................................ 10 OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................................................................... 10 ESTRUTURA DO CURSO ..................................................................................................................................... 11 MÓDULO 1 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .............................................................................................. 12 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................................................ 12 OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................... 12 ESTRUTURA DO MÓDULO ................................................................................................................................. 13 AULA 1 - O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO ............................................................................... 14 1.1 O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA MODERNA E LIBERAL: AS REVOLUÇÕES BURGUESAS E A CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE CIDADANIA ..................................................................................................................................................... 15 AULA 2 – CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS ....................................................................................... 27 AULA 3 - O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA NA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................................................................................................................................... 37 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................... 46 MÓDULO 2 – CONCEITO DE POLÍCIA E ORIGENS HISTÓRICAS ............................................................... 48 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................................................ 48 OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................... 48 ESTRUTURA DO MÓDULO ................................................................................................................................. 48 AULA 1 – O CONCEITO DE POLÍCIA E O SURGIMENTO HISTÓRICO DAS POLÍCIAS MODERNAS .............. 49 AULA 2 – DOIS MODELOS BÁSICOS DE POLÍCIA: DEFESA DO ESTADO VERSUS DEFESA DOS CIDADÃOS 61 AULA 3 - A DOUTRINA POLICIAL ENTRE O COMBATE AOS CRIMINOSOS E A PROTEÇÃO DO CIDADÃO . 72 AULA 4 - A DISCRICIONARIEDADE NO TRABALHO POLICIAL ................................................................. 84 AULA 5 – LEGITIMIDADE E TRABALHO POLICIAL .................................................................................. 94 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................. 103 MÓDULO 3 - POLÍCIA E A ESFERA DA POLÍTICA .................................................................................. 106 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO .......................................................................................................................... 106 OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................. 107 ESTRUTURA DO MÓDULO ............................................................................................................................... 107 AULA 1 - DILEMAS DO GOVERNO POLÍTICO DA POLÍCIA .................................................................... 108 AULA 2 – POLÍCIA POLÍTICA E POLÍTICA DA POLÍCIA ........................................................................... 121 2.1 POLÍCIA E POLÍTICA ................................................................................................................... 121 2.2 ................................................................................................................. POLÍCIA POLÍTICA .......................................................................................................................................................... 126 2.3 POLÍTICOS DE ESQUINA ............................................................................................................... 130 AULA 3 – POLÍCIA E A RECONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA POLÍTICA ..................................................... 134 3.1 CARACTERÍSTICAS DE CONTEXTOS PÓS-CONFLITO ........................................................................ 135 3.2 ................................................................. O CONCEITO DE CORE POLICING DE BAILEY & PERITO .......................................................................................................................................................... 139 3.3 .......................................................... A POLÍCIA E A (RE)CONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA POLÍTICA .......................................................................................................................................................... 143 AULA 4 – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E ASSOCIATIVISMO POLICIAL ...................................................... 152 4.1 ..................................................................................................... POLICIAL E TRABALHADOR .......................................................................................................................................................... 153 4.2 CONDIÇÕES DE TRABALHO E DEMOCRACIA ................................................................................... 158 4.3 ....................................................................................... ASSOCIATIVISMO E SINDICALIZAÇÃO .......................................................................................................................................................... 161 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................. 165 MÓDULO 4 - OS DESAFIOS DO ESTADO BRASILEIRO E A SEGURANÇA PÚBLICA: O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA ........................................................................................................................ 168 APRESENTAÇÃO DO MÓDULO .......................................................................................................................... 168 OBJETIVOS DO MÓDULO .................................................................................................................................169 ESTRUTURA DO MÓDULO ............................................................................................................................... 169 AULA 1 - OS DESAFIOS BRASILEIROS E SUAS REPERCUSSÕES NA OFERTA DE SEGURANÇA PÚBLICA .. 170 AULA 2 - A SEGURANÇA PÚBLICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................................ 176 AULA 3 – O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA (SUSP) ........................................................... 183 3.1 ...................................................................... GOVERNANÇA: MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO .......................................................................................................................................................... 184 3.2 LEGISLAÇÃO E CONCEPÇÃO DO SUSP .......................................................................................... 186 3.3 A POLÍTICA NACIONAL E OS PLANOS FEDERAL E SUBNACIONAIS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL ............................................................................................................................................... 191 3.4 PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL: OS CONSELHOS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL 196 3.5 FINANCIAMENTO DO SUSP: FUNDO NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA E FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL .......................................................................................................................................... 197 3.6 SISTEMAS DO SUSP ..................................................................................................................... 199 CONCLUSÃO ................................................................................................................................................. 202 FINALIZANDO.... ................................................................................................................................. 208 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 209 6 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública APRESENTAÇÃO DO CURSO Caras alunas e caros alunos, Sejam bem-vindas e bem-vindos ao curso: “O Estado democrático de direito e o papel dos profissionais do Sistema Único de Segurança Pública”. A Segurança Pública tem um papel fundamental na defesa da Democracia. O exercício pleno da cidadania, compreendida genericamente como os direitos e deveres da população de um país, não pode ser atingido sem que as pessoas tenham assegurados o direito à vida, à liberdade, à propriedade e ao livre exercício de suas atividades econômicas. A possibilidade de viverem suas vidas livres da ameaça constante da violência é fundamental para a garantia daquelas condições. Nesse sentido, entendemos que os/as profissionais do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) constituem a linha de frente da luta pela defesa da cidadania e da Democracia no Brasil. Mas como esses profissionais podem defender a Democracia? A tarefa é desafiadora e pode parecer distante da realidade cotidiana desses/as agentes. Um dos objetivos do nosso curso é justamente mostrar como o SUSP pode ser um aliado desses/as profissionais. Antes de falarmos diretamente sobre as estruturas e o funcionamento do sistema, introduziremos conceitos e informações relevantes para a contextualização dessa missão tão importante. Percorreremos eventos históricos e diversos campos de conhecimento com o intuito de fazer com que esses/as profissionais possam enxergar oportunidades para a defesa da democracia e do Estado do Direito em seu dia-a-dia, enquanto trabalhadores, representantes do Estado e provedores de um serviço essencial à sociedade. 7 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Este curso está dividido em quatro módulos: Primeiro Módulo Iniciaremos a nossa jornada com a discussão de “poder de polícia” como associado ao bom funcionamento das cidades e ao resguardo dos cidadãos, mostrando que a especialização da polícia como “burocracia de combate ao crime” é um processo histórico associado à consolidação do Estado Liberal Moderno na Europa (XVIII-XIX). Apresentamos ainda uma reflexão sobre a legitimidade e a discricionariedade policiais. Segundo Módulo Na sequência, falaremos das origens históricas da democracia, do estado democrático de direito e definiremos alguns conceitos-chave nesse sentido. Trataremos ainda dos dilemas da defesa da democracia pelos/as profissionais de segurança em sociedades complexas, em que o conflito é característica fundamental e positiva de sociedades livres e plurais. Terceiro Módulo A partir daí introduzimos uma discussão sobre a relação da polícia com a esfera da política em que trataremos do difícil equilíbrio entre o controle e a instrumentalização política das polícias na democracia. Falaremos ainda sobre condições de trabalho e dilemas da participação política desses/as profissionais enquanto “trabalhadores da segurança”. Partimos do princípio de que para que esses profissionais desempenhem um papel na produção de adesão aos princípios e normas democráticos, é preciso que estes/as vivam a democracia em seus ambientes de trabalho. Quarto Módulo Por fim, encerramos o curso com a apresentação da arquitetura e funcionamento do Susp e os dilemas enfrentados para a sua implementação considerando a realidade brasileira, que se caracteriza por um modelo de cidadania que encarna uma tensão entre princípios formais democráticos e práticas sociais hierarquizantes. 8 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Este curso tem, dentre seus propósitos, oferecer os instrumentos para que os profissionais de Segurança Pública atuem ainda mais fortemente para assegurar a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça previstas já nas primeiras linhas da nossa Constituição Federal, a Lei Maior. Os caminhos que apresentaremos aqui passam, em resumo, por refletir sobre o papel da Segurança Pública e seus profissionais na construção do Estado de Direito. Por meio dos conteúdos que serão trazidos aqui, almejamos que os/as profissionais do SUSP disponham de um repertório para sua atuação junto à sociedade e junto aos órgãos e corporações das quais fazem parte. Nesse esforço, procuramos alcançar os profissionais da ponta da linha, mas também os gestores e lideranças policiais e dos órgãos ligados ao Sistema de Segurança Pública. Ao final, esperamos que esse conteúdo contribua para avanços na Segurança Pública no Brasil, retratando-se em uma compreensão ampliada do papel desse serviço público na construção das relações sociais, na tomada de decisão mais adequada aos limites e potencialidades providas pelo Estado de Direito e no impulsionamento de um arranjo institucional que atinja níveis melhores de eficácia e eficiência na Segurança Pública. Sua participação é fundamental nesse processo pedagógico. A Segurança Pública exerce um papel fundamental para a nossa vida em sociedade, sem a qual se fragiliza a noção de cidadania, central para o Estado Democrático de Direito. Esse cenário exige refletir sobre o papel dos profissionais de Segurança Pública na construção do Estado de Direito, com base em discussões sobre a provisão de segurança às pessoas, o papel da polícia enquanto instituição encarregada da ordem e da aplicação das leis, as origens do Estado e da democracia e os arranjos institucionais brasileiros que configuram a segurança como serviço, direito e bem público. Espera-se que, ao final do conteúdo, o/a instruendo/a amplie seu repertório para suas atuações junto à sociedade e junto aos órgãos e corporações das quais fazem parte. Nesse esforço,procuramos alcançar os profissionais na ponta da linha, mas também os gestores e lideranças 9 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública policiais e dos órgãos ligados ao Sistema de Segurança Pública, promovendo uma compreensão ampliada do seu papel e da tomada de decisão em conformidade aos limites e possibilidades do Estado de Direito no Brasil. Figura 1: A sociedade brasileira Fonte: Misael Alberto Cossio Orihuela/ https://jus.com.br/artigos/44467/elementos- constitutivos-do-estado 10 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública OBJETIVOS DO CURSO O curso “O Estado democrático de direito e o papel dos profissionais do Sistema Único de Segurança Pública” tem como objetivo desenvolver uma compreensão dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e da cidadania, de modo a fortalecer o papel das instituições de segurança pública na defesa da sociedade e da democracia, a partir da valorização do profissional que integra o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para a preservação da integridade dos poderes e o respeito às leis. OBJETIVOS ESPECÍFICOS Introduzir conceitos que contribuam para uma melhor compreensão do papel das organizações de segurança pública na defesa da democracia; Contextualizar historicamente o surgimento do Estado Democrático de Direito e o papel das polícias estatais em sua consolidação; Problematizar a relação daquelas organizações com a esfera política, introduzindo o dilema entre o controle e a instrumentalização política das polícias no contexto da democracia contemporânea; Promover o papel dos/as profissionais de segurança pública como mediadores da ordem em sociedades complexas, marcadas por conflitos de interesse e diversidade; Discutir a importância da promoção de ambientes de trabalho democráticos e da participação dos profissionais do SUSP como “trabalhadores da segurança” para a promoção da democracia; e Apresentar a arquitetura do Susp, sua finalidade, princípios organizativos, potenciais benefícios e desafios de implementação na sociedade brasileira. 11 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública ESTRUTURA DO CURSO Este curso possui uma carga horária de 60 horas e compreende os seguintes módulos: Módulo 1 - O Estado Democrático de Direito Módulo 2 - Conceito de Polícia e Origens Históricas Módulo 3 - Polícia e a Esfera Política Módulo 4 - Os desafios do Estado brasileiro e a Segurança Pública: o Sistema Único de Segurança Pública 12 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública MÓDULO 1 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO APRESENTAÇÃO DO MÓDULO Para falarmos sobre o Estado Democrático de Direito e o papel dos profissionais do Sistema de Segurança Pública (Susp) é importante fazermos uma retrospectiva histórica. A proposta aqui não é dar uma aura de academicismo ao conteúdo, mas sinalizar o papel que oferece para a constituição da democracia, que é o melhor instrumento até então criado para estabelecer uma convivência que se pretenda pacífica e realizadora das potencialidades humanas, sobretudo em sociedades complexas como as contemporâneas. Embora as atuais configurações de Estado não sejam necessariamente modelagens perfeitas, a constante atuação da sociedade civil, dos funcionários públicos e da classe política, cuja participação está assegurada pela lei permitirá aumentar as potencialidades para que o Estado ofereça as condições para, como diz no Preâmbulo da nossa Constituição Federal, “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Assim, reafirmando o propósito de obter uma melhor dimensão dos papéis dos profissionais da segurança pública, trataremos de alguns autores que dão sustentação a essa construção política chamada Estado. OBJETIVOS DO MÓDULO Este módulo tem por objetivos: Conhecer os fundamentos históricos e filosóficos que orientam a formação do Estado Democrático de Direito; e 13 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Discutir o papel dos profissionais de Segurança Pública na consolidação do Estado Democrático de Direito, tendo por base a construção da ordem em sociedades complexas. ESTRUTURA DO MÓDULO Este módulo compreende as seguintes aulas: Aula 1 – O surgimento do Estado Moderno; Aula 2 – Cidadania e Direitos Humanos; e Aula 3 – O papel da segurança pública na consolidação do Estado Democrático de Direito. 14 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 1 - O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO Muito embora a tradição da ciência política remonte o surgimento do Estado à Grécia da Antiguidade, partiremos dos escritos dos autores da Modernidade. Diferentemente da Antiguidade, e da Idade Média que a sucedeu, a Modernidade vai ocorrer em um ambiente econômico e político muito mais próximo dos tempos atuais. Isso não apenas cronologicamente, mas, sobretudo, pelo fato de que foi na Idade Moderna que se formaram as instituições econômicas e políticas que dão a conformação inicial do nosso cenário, dentre as quais o Estado Moderno (BOBBIO, 2002). A principal diferença da sociedade moderna reside no fato de que a divisão de poderes políticos não mais se dava sobre a tradição ou pelo nascimento (como a sucessão do governante por seu filho mais velho, ou a proibição do casamento entre os senhores e seus servos). Agora, a sociedade se dividia por critérios econômicos e, apesar da desigualdade que ela trouxe (às vezes até maior que no feudalismo), sinalizou-se que qualquer pessoa poderia alcançar qualquer posição social. Essa transformação econômica, que se deu ao longo de séculos, retirou as amarras ideológicas que vinculavam as pessoas daquele tempo às suas posições de poder por regras imutáveis. Nesse momento da história, as forças que estruturavam a ordem social, como a religião, perdem força para um papel cada vez maior do indivíduo (ELIAS, 1990). No fundo, junto com outras construções filosóficas da Modernidade, introduziu-se a noção de liberdade. É pela noção de liberdade que trataremos de dois dos principais autores que deram as bases filosóficas que originaram o Estado. Falaremos de Hobbes e Rousseau. Chamados de contratualistas, eles pensaram em resolver a seguinte equação: como assegurar liberdade aos indivíduos, sem que a humanidade recaia em modelos políticos em que o governante se transforme em um tirano? Em outras palavras: 15 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Vamos Refletir! Qual a melhor forma de assegurar níveis de harmonia e paz na sociedade? 1.1 O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA MODERNA E LIBERAL: AS REVOLUÇÕES BURGUESAS E A CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE CIDADANIA Na seção anterior, tratamos brevemente sobre como política e economia foram os motores para as transformações humanas que levaram à consolidação do Estado Moderno, instituição que conhecemos hoje simplesmente como Estado. Neste tópico, vamos apresentar alguns fatos históricos que nos trouxeram até aqui. Por meio deles, encontraremos alguns instrumentos políticos que se mantiveram ao longo de todos esses anos e que impactam a nossa sociedade até os dias atuais. Esperamos que, com isso, possamos, por um lado, dar umadimensão do papel dos profissionais de segurança na defesa do Estado Democrático de Direito e, por outro, frisar que alcançar uma sociedade justa e pacífica exige esforço diário e cotidiano de todos nós. Assim, vamos repassar dois acontecimentos fundamentais para se compreender a formação do Estado, ambos ocorridos na Europa, nos séculos XVII e XVIII: a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e a Revolução Francesa. De início, importa dizer que, com eles, surgiram instrumentos tão importantes para a nossa democracia, como a existência de uma Constituição que regule o exercício do poder e a própria democracia formal (a que prevê os mecanismos que franqueiam a alternância de governo), sem a qual a Democracia tende a desembocar na Tirania. 16 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Os contratualistas Thomas Hobbes e Jeans-Jacques Rousseau Uma das bases do pensamento político moderno foram os escritos dos chamados contratualistas. Para eles, na origem do Estado teria ocorrido um pacto em que os indivíduos decidem por outorgar uma parcela de suas liberdades para um ente abstrato encarregado de lhes garantir a vida, a propriedade e a parcela de liberdade que fora conservada. Esse grande acordo dos indivíduos seria como um contrato (daí o nome “contratualistas”) que os indivíduos firmassem entre eles mesmos e que receberia o nome de Estado. E, assim como nos contratos que assinamos durante a nossa vida, estariam prescritos direitos e deveres mútuos, cujas infrações resultariam em penalidades de parte a parte. Apesar de parecer que esse pensamento não é tão inovador, ele representou uma ruptura no pensamento político até então vigente. Primeiro porque dizia ao mandatário do governo, em especial às monarquias absolutistas vigentes, que ele não podia exercer um poder infinito, mas restrito à medida do pacto estabelecido pela sociedade. Assim, a vida, que não havia sido objeto de cessão no contrato social, não poderia ser requerida pelo rei em nome do Estado. Segundo, porque colocava a subordinação do governante aos instrumentos escritos e legitimados pela sociedade, o que fez emergir uma pressão nos países para que fossem redigidas leis que estabelecessem os limites do exercício do poder político. A partir daí, a ideia de uma Constituição ganhou força, fazendo com que (não sem muita luta), as monarquias absolutistas se tornassem monarquias constitucionais, e, em alguns casos, repúblicas. Apesar de passados cerca de quatro séculos, as questões práticas sobre a observância do contrato ou pacto social são ainda razões que exigem a atenção coletiva e de cada um dos indivíduos. Isso porque as regras do jogo são ultrapassadas por governos e pelos indivíduos. Esses atos, classificados como ilegais, requerem que o Estado atue regulando e punindo as ações individuais 17 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública que se coloquem contra a lei, mas também que a sociedade civil1 se posicione em face dos abusos de poder que o Estado pratique. Thomas Hobbes tem como sua principal obra Leviatã. Para ele, a sociedade pré-estatal (chamada de estado de natureza) é uma guerra permanente entre os indivíduos pela ausência de um ente que pudesse regular a vida social. Em sua concepção, A natureza faz os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele (Hobbes, 1988, p. 74 apud Ribeiro, 2006, p. 54). No estado de natureza, o indivíduo, para manter sua vida e liberdade, não teria outro caminho senão recorrer à violência física ou viver sob a ameaça de ser vítima de outros indivíduos ou grupos. Os homens hobbesianos eram tão iguais, que o mais razoável – seja para evitar um ataque ou simplesmente para sobrepujar outro homem – seria atacar. Assim, dada a inexistência de um Estado capaz de controlar e reprimir as violências entre as pessoas, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais “racional” a ser adotada (RIBEIRO, 2006, p. 55). Dentre outras contribuições para o pensamento político, Hobbes nos oferta a ideia da criação de um poder soberano – o Estado - que proporcione 1 O Estado também possui deveres de atuar contra a ação de seus integrantes em caso de ilegalidades. Para um aprofundamento quanto a isso, recomendamos o estudo das análises sobre check and balances, incialmente tratada em O Federalista (LIMONGI, 2010). 18 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública estabilidade às relações sociais e, que, nessa medida, fosse capaz de impedir a guerra de todos contra todos. Ao mesmo tempo, Hobbes também se preocupava de que esse Estado não se tornasse uma tirania capaz de retirar a vida de seus cidadãos. Em sua concepção, o Estado é limitado, pois ele não pode dispor de todos os direitos dos indivíduos, já que somente a liberdade lhe foi outorgada, e parcialmente, pelos cidadãos que firmaram o contrato social. A vida, mesmo no modelo de Hobbes, permanece indisponível. Thomas Hobbes viveu entre 1588 e 1679 e suas ideias circularam durante a Revolução Gloriosa na Inglaterra. Suas ideias monarquistas se opunham à República de Cromwell instalada naquele país, tendo sido exilado na França por suas ideias. Acesse: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/thomas-hobbes.htm A questão sobre os limites da ação do Estado se coloca de maneira ainda mais intensa nos anos em que Jean-Jacques Rousseau viveu. Passados quase cem anos entre as vidas de Rousseau e Hobbes, as forças políticas e sociais europeias se modificaram com a ascensão de uma classe que passara a reivindicar parcelas maiores de atuação no poder político. Fraturando a hegemonia da Igreja católica e da monarquia, agora uma classe economicamente poderosa, a burguesia, exigia novas formas de organização do Estado. Rousseau se defronta com uma sociedade mais complexa em relação àquela que existia na transição do período feudal ao mercantil, haja vista o adensamento da população em ambientes urbanos e a oposição das classes subalternas aos ditames da monarquia. Ele será o teórico do poder político que se origina do povo, fonte originária de todo poder. Rousseau irá catalisar esse pensamento presente nessa época e é considerado por muitos o pensador da Revolução Francesa (1789), muito Saiba mais 19 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública embora tenha vivido antes desse acontecimento (1712-1778) que derrubou o rei Luis XVI do trono e provocou o questionamento de todas as monarquias vigentes na Europa. Seus escritos, representados sobretudo nas suas principais obras, “O Contrato Social” e “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, tiveram impacto mesmo fora do continente europeu, como na Independência dos Estados Unidos da América (1776) e na Inconfidência Mineira do Brasil, nos anos de 1780. Uma das principais diferenças em relação a Hobbes é que, para Rousseau, o momento pré-estatal é pacífico e o Estado tirano quem usurpa o poder. Assim, ganham relevância as formas com as quais o Estado alcança a legitimidade para atuar na sociedade. Não importa que o governo seja uma monarquia, uma aristocracia ou uma república, o povo deve manter-se como soberano do poder político, perante o qual o governo se subordina. Esse pensamento é tão vigoroso que, passados quase 300 anos, inspirou a ConstituiçãoFederal brasileira vigente que diz, no parágrafo único do artigo 1º, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988). Isso significa que o povo é o corpo a partir do qual advém a legitimidade que permite ao governo exercer suas atribuições. Por ser o povo a origem desse poder, é a ele que se voltam as ações realizadas pelos agentes públicos. Isso não se dá por uma elevação moral, abstrata, dos integrantes do Governo, ainda que isso seja importantíssimo, mas decorre, sobretudo, da lei. Aqui, voltamos a Rousseau. “Sempre se é livre quando se está submetido às leis, mas não quando se deve obedecer a um homem; porque neste segundo caso devo obedecer à vontade de outrem, e quando obedeço às leis acato apenas 20 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública a vontade pública, que é tanto minha como de qualquer outro.” (ROUSSEAU apud BOBBIO, 2002, p. 172). Neste trecho, podemos encontrar dois temas fundamentais do pensamento de Rousseau: os termos em que se estrutura o pacto social e como se constrói a legitimidade que permite a prevalência da lei sobre as vontades dos indivíduos. Para ele, as pessoas não devem se submeter aos mandamentos de um governante que não tenha alcançado essa posição senão por força da vontade popular. Essa vontade popular se materializa, por sua vez, pela sujeição à lei que, mediante regras estabelecidas também coletivamente, fornece o conjunto de regras pelas quais tais governantes (sejam os políticos, sejam os funcionários estatais), vão exercer o poder. A sujeição a esse poder decorre, portanto, da escolha livre dos indivíduos em ceder parte de sua liberdade para que o Estado lhes garanta, sobretudo, segurança contra terceiros que atentem contra bens que não foram alienados, como a vida, a propriedade e a liberdade. Diferentemente de Hobbes, que estudamos acima, Rousseau depositará na democracia os fundamentos para que o poder possa ser exercido sobre a coletividade, desde que nos termos do que será chamado posteriormente de Estado de Direito. As Revoluções burguesas Os pensamentos iluministas presentes no mundo a partir do século XVI promoveram mudanças significativas no ambiente político. Os governos autoritários passaram, no decorrer de alguns séculos, a se verem questionados quanto às formas de exercício do poder, exatamente por seu caráter despótico e opressor. Diversos países foram atingidos por essas mudanças, mas, nos casos da Inglaterra e França, foram especialmente marcantes em razão da importância que possuíam nas relações políticas internacionais daquele período. Por essa razão, as chamadas Revoluções Inglesa e Francesa são fundamentais para compreender os processos que trouxeram até nós as noções de: 21 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Democracia Estado de Direito e Direitos Humanos. A Revolução Inglesa 1603-1649 A Revolução Inglesa foi um processo político ocorrido entre os séculos XVI e XVII que culminaram na transição do absolutismo para o parlamentarismo. Esse período foi marcado por fortes conflitos entre a monarquia, a classe econômica (burguesia) e a Igreja em razão de reiteradas discordâncias das decisões do rei nos campos econômico e religioso. Em resumo, foram sobretudo as decisões da monarquia inglesa quanto ao aumento de impostos e apropriação de terras que trouxeram desagrado às classes sociais afetadas. A forte oposição do Parlamento em relação à Coroa veio à tona no período do reinado da Dinastia Stuart (1603-1649), que teve como um de seus principais nomes o Rei Carlos I, que, em seu reinado, decretou a obrigatoriedade de empréstimos à Coroa. Claramente, como já afirmado, a vontade do rei gerou uma forte oposição por parte do Parlamento. Apesar disso, o monarca aprofundou a tomada de medidas impopulares. Tais medidas aprofundaram o descontentamento dos comerciantes marítimos e dos proprietários de terras. Some-se a isso um forte descontentamento das classes populares, igualmente afetadas pela política econômica. Em face da crise interna, em 1642 teve início uma guerra civil que levou à execução de Carlos I em 1649. Essa guerra teve como um de seus principais nomes o de Oliver Cromwell que criou o chamado Exército Novo Modelo que combatia as forças reais. Com Cromwell, tem início um intervalo republicano na história inglesa. 1660-1668 A Inglaterra se viu dominada por militares após o Rei Carlos I ter sido derrubado. Essa ditadura inglesa foi marcada fortemente pelo puritanismo 22 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública empregado pelos revolucionários ingleses. O governo de Oliver Cromwell teve como principal ação os chamados “Atos de Navegação”, que exigia que todos os produtos importados pela Inglaterra fossem transportados por navios de bandeira Inglesa o que causou uma insatisfação por parte da Holanda, em uma clara tentativa de Cromwell de afirmar a hegemonia marítima e comercial britânica. Todavia, Oliver Cromwell morreu vítima de uma febre e por sua vontade seu filho, Richard Cromwell, assume. Seu governo não durou muito pois lhe faltava influência sobre os oficiais do Exército britânico, que tivera importante papel na guerra civil, e logo saiu do poder. Com isso foi feita a chamada Restauração (1660-1668) a qual simbolizava a volta da monarquia absolutista à Inglaterra, cujo principal nome era o Rei Carlos II, filho de Carlos I. 1688 Com a monarquia restaurada e sem muitas revoltas por parte do povo, Carlos II morre e seu irmão Jaime II sobe ao trono; porém, por contrariar o Parlamento, é deposto pelo mesmo em 1688, no que ficou conhecido como Revolução Gloriosa, que leva esse nome pois simbolizou a substituição pacífica e sem derramamento de sangue de Jaime II pela então coroada rainha Mary e o Rei holandês Guilherme de Orange. Os acontecimentos havidos na Inglaterra e que culminaram na Revolução Gloriosa representam um dos primeiros movimentos que buscaram pôr fim à situação própria do feudalismo. Os privilégios econômicos e políticos da monarquia, que se assentavam em uma estrutura social fundamentada nos cânones religiosos imutáveis foram sendo questionados, por força do surgimento de uma classe comercial (burguesia) que passaram a se colocar contra esse estado de coisas e ter maior possibilidade de influenciar as decisões do governo. O despotismo, que marcou a história inglesa por muitos séculos, não tinha mais espaço. 1689 A monarquia constitucional parlamentarista inglesa, pela qual o monarca subordina-se às leis elaboradas pelo Parlamento, consolida-se em 1689 com a Declaração dos Direitos. Antes de serem coroados, Guilherme de Orange e Maria Stuart, tiveram que jurar obediência a ele, em uma clara inversão dos tempos anteriores. O tratado estabeleceu o princípio de eleições livres e 23 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública liberdade de expressão no Parlamento. Também incluiu que nenhum direito de tributação ocorresse sem o aval do Parlamento, o direito de os súditos apresentarem petições ao Rei e tratamento justo das pessoas pelos tribunais. Semelhante à Revolução Inglesa, a Revolução Francesa, cujos fatos mais marcantes se deram no século XVIII, é um evento ímpar para a compreensão da criação do Estado Moderno, em razão da passagem do Absolutismo para governos constitucionais. Devemos lembrar que, nessa época, na França, vigorava o que se chamaria Antigo Regime, que, além do despotismo monárquico, ainda mantinha algumas características de uma sociedade feudal, dentre as quais o imobilismo social e grande desigualdade na distribuiçãodo poder, concentrado na nobreza e no clero. Segundo Norbert Elias, em Sociedade de Corte2, essa disposição das forças sociais possibilitava que a França possuísse uma das mais autoritárias monarquias, que, com o rei Luís XIV (1643-1715) atingiu seu ponto máximo. A ele é atribuída a frase “O Estado sou eu”, em uma clara simbologia da tamanha concentração de poderes nas mãos do governante. Muito embora a sociedade fosse uma monarquia absolutista, as condições sociais passam, gradualmente, a exercerem uma pressão sobre o rei, de forma a que suas decisões fossem cada vez mais aderentes aos interesses de outros grupos, que não a nobreza e o clero. O rei, “pela graça de Deus”, era a fonte da justiça, da legislação e da autoridade administrativa, decidindo, ainda, pela guerra e pela paz. Essas atribuições, contudo, foram escapando, uma a uma, do controle direto da monarquia, sendo atribuídas, gradativamente, a instâncias intermediárias. A justiça e a legislação, por exemplo, cada vez mais passaram a ser 2 ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Tradução de Ana Maria Alves. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, 240 24 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública exercidas pela Parlamento e pelas Cortes – tudo em nome do rei, evidentemente. Ainda aqui, a centralização encontrava forte resistência em setores onde a justiça senhorial sobrevivia.” (Miceli, 1987, p. 51). Em termos sociais, a França era dividida em três classes sociais bastante demarcadas, que recebiam o nome de Estados. Essa divisão era também política, com a definição de espaço na Assembleia Nacional Francesa, como veremos adiante: Primeiro Estado O primeiro Estado era constituído por representantes do clero. Sua influência se dava tanto do ponto de vista religioso como da cobrança de taxas sobre o uso de suas terras – que cobriam cerca de 10% do território francês –, além de taxas sobre batismo, casamento, etc. Segundo estado A nobreza constituía o segundo Estado. Além de viver junto ao próprio rei e desfrutar do consequente fausto que a vida da corte proporcionava, possuía alguns privilégios de exploração econômica decorrentes de seus títulos. Os maiores benefícios da nobreza, entretanto, vinham da isenção de tributos e da prestação de serviços obrigatórios, tais como alojar soldados e cuidar dos caminhos. Possuíam, ainda, direito de caça e pesca e detinham o monopólio de acesso aos cargos superiores do exército, da Igreja e da magistratura.” (Miceli, 1987, p. 55). 25 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Terceiro Estado O terceiro estado era constituído por todos os demais franceses e constituíam mais de 96% da população. Comerciantes, banqueiros, profissionais liberais, lojistas, além de todo o campesinato faziam parte dele. Era um Estado bastante heterogêneo, mas que, em diferentes níveis, tinham em comum o fato de participarem muito fragilmente do poder político, apesar de, sobretudo a burguesia, disporem de forte poder econômico. Nos últimos anos do século XVIII, já com o reinado de Luís XVI, a França passava por uma severa crise fiscal. Isso exigiu que Luís XVI propusesse ao Parlamento francês o fim das isenções econômicas usufruídas pelos primeiro e segundo Estados. Diante da crise que tais propostas geraram junto a esses grupos, somado à insatisfação que já existia no terceiro Estado, o Parlamento exigiu que o rei convocasse a Assembleia Nacional. Nela, cada Estado teria direito a um voto o que, diante da disparidade na composição em termos das quantidades populacionais que representavam, indicava uma clara perda para o terceiro Estado. Não somente o rei Luís XVI foi colocado em xeque, mas a própria noção de representatividade da Assembleia Nacional, pois, apesar de o terceiro estado ser a imensa maioria da população, sua participação nas discussões tinha o mesmo peso que o primeiro e segundo estados. O terceiro estado então fez uma série de reivindicações, dentre as quais a de que o voto fosse por cabeça e não mais por ordem, já que representavam a maioria da população francesa, exigências as quais não tiveram respostas do rei Luís XVI. Paralelamente ao processo político, ocorre um importante acontecimento que simbolizou a Revolução Francesa - a Queda da Bastilha (1789) - movimento de cunho popular caracterizado por derrubar uma prisão a qual continham presos políticos, um lugar o qual representava uma grande marca do velho e decadente Regime absolutista francês. Com isso, o rei Luís XVI foi ficando cada vez mais fragilizado politicamente. Encurralado e sem saídas, tomou como medida sancionar as vitórias populares. Com toda essa crise, o rei decide fugir do palácio a fim de tentar organizar forças estrangeiras para, de alguma forma, tentar reconquistar seus direitos 26 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública reais. Porém, acaba sendo descoberto na fronteira e é trazido para Paris. Luís XVI então é julgado, considerado um traidor da França e acaba sendo condenado à guilhotina, encerrado, assim, a monarquia absolutista francesa. Mais do que uma disputa pelo poder, tão comum na história, a Revolução Francesa representa o fim dos privilégios de classe, a vitória de uma ideia de igualdade entre os indivíduos e a definição de que a legitimidade do poder político advém do povo, por meio de seus representantes legalmente constituídos, o que, à época, constituíam ideias profundamente reformadoras. A dimensão de tais acontecimentos foi tamanha que o documento pelo qual os revolucionários redigiram os seus princípios se tornou a base a partir da qual foi construída a ideia de que a garantia à vida, à liberdade e à propriedade são inerentes à condição de ser humano. Essa condição política é vista, a partir de então, como condição essencial para a existência de um governo legítimo. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita em 1789, materializa esse pensamento e é, a partir dela, que os Direitos Humanos vão passar a ser uma dimensão essencial para a construção do Estado Democrático de Direito. Tanto a citada Declaração quanto os Direitos Humanos serão mais bem explorados em aula adiante. Em resumo, as Revoluções Inglesa e Francesa legaram ao mundo as lições de que a legitimidade dos governos advém do povo, mediante os processos democráticos que estabelecem como esse poder deve ser exercido, colocando término quanto à origem de outras formas de legitimidade, como a pessoal, tradicional ou religiosa, comum a regimes absolutistas. A partir de então, a lei é o instrumento que subordina a ação de governos, a qual, por sua vez, deve derivar de processos que sejam democráticos a ponto de conferir ampla participação na sua elaboração. 27 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 2 – CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS As mudanças políticas que o mundo assistiu na era moderna não foram possíveis sem que uma nova sociedade – em comparação com a feudal – surgisse. As pessoas, sem as amarras da antiga ordem, passaram a reivindicar seus espaços de poder, representados pelas Revoluções Inglesa e Francesa que trouxemos anteriormente. Prevalece, a partir desse momento histórico, a concepção de que os indivíduos possuem direitos que não poderão ser atacados pelo Estado, pois, somente a partir desse novo status que receberá o nome de cidadania, poderá existir democracia e, consequentemente, o exercício do poder legítimo por parte do governo. Assim, não é exagero afirmar que a noção de Direitos Humanos surge nesse período que, como vimos, coloca a pessoa humana como centro dos processos sociais e políticos (e, portanto, não mais a tradição nobiliárquica nem areligiosa). Os Direitos Humanos, por sua vez, são garantias de direito que se aplicam universalmente, independente de especificidades das condições dos indivíduos. Raça, credo, idioma, nacionalidade, condição econômica, como exemplos, não são critérios para destituir determinada pessoa de seus atributos legais. O instrumento político-jurídico que deu os passos iniciais para toda a construção de direitos humanos se dá exatamente em 1789, no país palco da Revolução Francesa. A ideia de um “Direito Humano” é filha, portanto, das mesmas agitações sociais que deram origem aos ideais iluministas de “indivíduo” e de “igualdade”. O surgimento de um indivíduo universal na França (o “cidadão”), portador de direitos iguais, independentes de seu status social (renda, títulos, nome), quando expandido para uma escala mundial, redundou no surgimento de um direito que se pretende aplicável a toda “humanidade”, independentemente de qualquer diferença observável entre os “seres humanos”. A ideia de um Direito Humano, como a conhecemos hoje, surgiu e se desenvolveu a partir da Revolução Francesa, cujo marco histórico foi a “Tomada da Bastilha”, em 14 de julho de 1789, quando foi oficialmente derrubada a monarquia na França. Como a monarquia era considerada, pelos revolucionários franceses, um regime de governo “corrompido”, que atribuía direitos e distribuía 28 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública propriedades observando o status social das pessoas, foi elaborada uma nova “constituição” para a recém instaurada “República Francesa”. Esta, além de proclamar a “igualdade de direitos” como princípio, foi a responsável por cunhar o termo “cidadão”. A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” foi promulgada naquele mesmo ano “revolucionário” de 1789. Em seu preâmbulo, o legislador escreveu: Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Como você deve ter notado, já em seu preâmbulo, a Declaração deixa clara a intenção do legislador, em primeiro lugar, de instituir e proteger os “direitos do homem” igualmente, colocando a “felicidade geral” e a própria proteção desse instituto jurídico (a “Constituição”) como objetivos últimos para a recém fundada República Francesa e seus cidadãos. Para sustentar sua intenção de aplicar-se a todos e todas igualmente, a ideia nascente de um direito 29 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública universal precisava encontrar uma espécie de “unidade de medida” comum a toda a humanidade. Essa medida era a ideia de “indivíduo”, surgida do chamado “século das luzes”, do Iluminismo, movimento que valorizava a razão e a figura humana, tomada como “medida de todas as coisas”, e teve seu auge entre os séculos XVIII-XIX. O indivíduo viria a se tornar o “cidadão” da República Francesa (1789). A diferença é que o cidadão passa a ser sujeito de direitos. E os direitos são iguais para todos os cidadãos, independentemente da origem e posição social. Figura 2: O Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci Fonte: wikipedia Todos e todas são cidadãos, porque iguais em suas diferenças. Essa medida de igualdade, o “indivíduo”, refletia a humanidade como uma experiência social diversa, em seus modos e aparência, mas unida por uma mesma “natureza humana”. Sobre esse substrato comum, o legislador francês atrelou os chamados “direitos naturais”, inalienáveis e sagrados, como vimos acima. Essas “garantias fundamentais” seriam consideradas essenciais à viabilidade material e moral da existência humana. Necessárias à reprodução da vida e das condições de vida do povo francês, na percepção do legislador da época, os direitos naturais eram “a 30 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (Declaração, artigo 2º). A partir da França “revolucionária” de 1789, a “capital mundial das luzes”, berço do Iluminismo (séc. XVII-XVIII), estas ideias viajaram o mundo, atravessando oceanos e influenciando gerações. Por outro lado, se o Iluminismo representa a inspiração da noção de direitos humanos, a sua formulação concreta acontece como consequência da Segunda Guerra Mundial. Nela, foram cometidas inúmeras barbaridades, especialmente pelo regime nazista, que culminaram numa tentativa de extermínio de judeus, homossexuais, doentes mentais, comunistas e outros indivíduos considerados como inimigos do Estado ou como prejudiciais para o sucesso da raça ariana. Em suma, o Estado não era apenas o garantidor dos direitos individuais, como defendiam os contratualistas que apresentamos nesse mesmo Módulo, ele era também um potencial violador desses mesmos direitos e possuía um poder gigantesco para tal, quando decidia enveredar por esse caminho. Portanto, os indivíduos precisavam de proteção supraestatal, na medida em que ficava patente que o Estado, e a legislação nacional, não podiam ser os únicos garantidores da proteção dos direitos individuais. Era preciso gerar um arcabouço moral e jurídico que reconhecesse os direitos básicos de todas as pessoas do planeta, independentemente do país onde morassem e da legislação nacional vigente nesse território. Nenhuma lei nacional poderia anular ou comprometer esses direitos básicos e inalienáveis. A ideia era gerar uma ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial baseada nesses princípios, que deveriam servir para evitar uma repetição das atrocidades cometidas. De alguma forma, os direitos humanos constituem uma tentativa de plasmar a noção do direito natural, que é consubstancial ao ser humano pelo simples fato de sê-lo e que, portanto, não dependem da sua conduta, não precisam ser merecidos nem ganhos. O resultado dessa visão foi a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” aprovada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, cujo preâmbulo reza: 31 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública (...) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. A Declaração foi aprovada por 48 votos a favor, 8 abstenções (sobretudo de países socialistas que tinham algumas ressalvas) e nenhum voto contrário. Os direitos reconhecidos aos indivíduos por essa declaração são os seguintes: 1 Igualdade em dignidade e direitos (art. 1) 2 Igualdade de direitos sem diferenciação de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política,origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou condição jurídica do território a que pertença uma pessoa (art. 2) 3 Direito à vida, liberdade e segurança pessoal (art. 3) 4 Proibição da escravidão ou servidão (art. 4) 5 Proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (art. 5) 6 Reconhecimento como pessoa perante a lei (art. 6) 7 Igualdade perante a lei e proteção contra discriminação (art. 7) 8 Remédios efetivos contra violações aos direitos fundamentais (art. 8) 9 Proibição de prisão e banimento arbitrários (art. 9) 32 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 10 Direito a tribunais imparciais (art. 10) 11 Presunção de inocência e proibição de castigos por crimes não tipificados antes da conduta julgada (art. 11) 12 Proteção contra interferências à vida privada e contra ataques à honra (art. 12) 13 Liberdade de locomoção dentro do Estado e direito a deixar qualquer país (art. 13) 14 Direito ao asilo para as vítimas de perseguição (art. 14) 15 Direito à nacionalidade (art. 15) 16 Direito a contrair matrimônio livremente consentido e à proteção da família (art. 16) 17 Direito à propriedade (art. 17) 18 Liberdade de pensamento, consciência e religião (art. 18) 19 Liberdade de opinião e expressão (art. 19) 20 Liberdade de reunião e associação (art. 20) 21 Direito à participação política expressa em eleições por sufrágio universal e secreto (art. 21) 22 Direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade da pessoa e ao livre desenvolvimento da sua personalidade (art. 22) 23 Direito ao trabalho que assegure uma remuneração digna e à sindicalização (art. 23) 24 Direito ao repouso e ao lazer (art. 24) 25 Direito a um padrão de vida que garanta bem-estar (art. 25) 26 Direito à educação, que deve ser gratuita no nível fundamental (art. 26) 27 Direito a participar da vida cultural e proteção do direito autoral (art. 27) 28 Direito a uma ordem social e internacional que respeite os direitos humanos (art. 28) 33 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 29 Direito a ser sujeito apenas às limitações estabelecidas por lei (art. 29) 30 Proibição de interpretar qualquer parte dessa Declaração como justificativa para vulnerar direitos aqui reconhecidos (art. 30) Após a Declaração, os direitos foram expandidos e codificados no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966. Ambos os pactos já foram ratificados por mais de 170 países. Posteriormente, outras convenções mais específicas outorgaram um conteúdo concreto a vários desses direitos, como a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) ou a Convenção contra à Tortura e Outros Tratos o Penas Cruéis, Inumanos ou Degradantes (1984). No nível do continente americano, e dentro dele no âmbito da Organização de Estados Americanos (OEA), foi adotada em 1969 a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José. Essa convenção, que contempla uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos e uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi ratificada pelo Brasil em 1992. Em 1998, o Brasil reconheceu a competência da Corte sobre o seu território, tornando-se desde então obrigatório o cumprimento das sentenças dela. Cortes continentais semelhantes existem na Europa (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) e na África (Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos). Os diplomas de direitos humanos (declarações, pactos, convenções, etc.) contém tanto direitos “negativos” quanto “positivos”. Os primeiros dizem respeito a ações que o Estado deve se abster de fazer, para poder respeitá-los, tais como direito à vida ou a proibição da tortura. Se referem aos direitos civis e políticos, basicamente. Essa abordagem visa colocar limites às ações dos Estados para Saiba mais 34 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública evitar abusos contra os cidadãos, tal como tinha sucedido na Segunda Guerra Mundial. Por sua vez, os direitos positivos são relativos a bens, serviços ou oportunidades que o Estado deve prover para que os indivíduos sob seu cargo tenham uma vida digna, como o direito à educação ou ao trabalho. Correspondem sobretudo aos direitos econômicos, sociais e culturais. Alguns direitos podem ser ao mesmo tempo positivos e negativos, como, por exemplo, o direito à saúde. Os Estados devem prover serviços de saúde, mas também devem evitar tomar medidas que comprometam a saúde dos cidadãos. Outra forma comum de classificar os direitos é dividi-los em direitos de primeira, segunda e terceira geração, em função do momento em que foram propostos e reconhecidos. Os de primeira geração são os direitos civis e políticos, começando pelo direito à vida, sem os quais os outros não podem ser realizados. Os de segunda geração são os econômicos, sociais e culturais, objeto do Pacto Internacional de 1966. Por último, os de terceira geração, os mais recentes, são direitos coletivos e não mais individuais, como o direito a um meio ambiente limpo, o direito à paz e o direito à autodeterminação cultural. De forma geral, os direitos humanos são considerados como direitos brandos (soft law), isto é, como direitos propositivos e ideais, mas cuja garantia efetiva depende mais da aceitação dos Estados do que de sentenças jurídicas. A própria Declaração Universal em seu preâmbulo que acabamos de ver define os direitos humanos como “um ideal comum a ser atingido”, isto é, como um dever-ser ou um desideratum. Isto é especialmente verdadeiro para os direitos positivos, econômicos, sociais e culturais. A despeito do direito individual ao trabalho, por exemplo, existem pessoas desempregadas em todos os países do mundo, e o objetivo é tentar que esse percentual seja reduzido ao mínimo possível. Mas mesmo no caso dos direitos negativos de interpretação mais inequívoca, como os direitos civis e políticos, não existe um aparato coercitivo para garanti-los, a diferença dos direitos protegidos na legislação nacional, que podem ser defendidos por sentenças judiciais nacionais que, se resistidas, podem ser aplicadas pela polícia. A polícia, como vimos, possui o monopólio da 35 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública violência legítima. Não existem, entretanto, polícias universais nem polícias das Nações Unidas que garantam a aplicação da lei internacional que, por isso, é conceituada como uma “lei branda", que depende da aceitação dos Estados. 2.1 A FALSA OPOSIÇÃO ENTRE SEGURANÇA E DIREITOS HUMANOS Em muitos países, incluindo o Brasil, há setores sociais que percebem os direitos humanos como beneficiando apenas os criminosos e, portanto, prejudicando o resto da sociedade. Isso é mais comum ainda entre indivíduos que compartilham essa percepção dicotômica e maniqueísta que divide a sociedade em dois grupos rígidos: cidadãos de bem e bandidos (ver Aula 3 do Módulo I). Nessa visão, se a lei impõe limites ao que o Estado pode fazer em relação a um suspeito ou mesmo a um criminoso convicto, isso é percebido como um empecilho na busca da segurança. Gera-se, assim, um falso antagonismo entre direitos humanos e segurança, como se essa última só pudesse ser obtida mediante o sacrifício dos direitos individuais. Na realidade, não há evidências de que o atropelo dos direitos das pessoas tenha resultado numa sociedade mais segura e há muitas evidências em sentido contrário: quando o Estado pôde agir livremente contra seus opositores ou inimigos, sem limites legais, isso provocou grande insegurança napopulação. Quem vê os direitos humanos como inimigos da segurança tende a perceber os defensores de direitos humanos como traidores à sociedade, particularmente quando a segurança pública é entendida como uma guerra (ver Aula 3 do Módulo I). A culpa do fracasso na luta contra o crime é então atribuída aos “direitos humanos” como conceito ou como grupo de pessoas que os defendem. Curiosamente, isso acontece mesmo que os direitos humanos em geral, especialmente no que concerne aos direitos negativos, não fazem senão reafirmar o que as legislações nacionais já contêm. A proibição da tortura e da execução sumária, por exemplo, não é algo inventado pelos pactos de direitos humanos, mas está contida nos 36 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública códigos penais de quase todos os países do mundo. Porém, os detratores dos direitos humanos focalizam as críticas neles ao invés de atacar a lei nacional. Essa concepção é consequência de uma visão deturpada da realidade. Obviamente, como seu próprio nome indica, os direitos humanos não defendem apenas os suspeitos ou os delinquentes, mas a todos os cidadãos que são sujeitos desses direitos universais. Os policiais são, como qualquer cidadão, sujeitos de direitos humanos, tanto como pessoas quanto como trabalhadores. Esses direitos trabalhistas nem sempre são respeitados pelas corporações. Por outro lado, o teste principal dos direitos humanos advém justamente no tratamento que o Estado dá às pessoas mais vulneráveis, como os presos, ou àqueles suspeitos de cometerem os piores crimes. O tratamento dado a esses indivíduos é a medida do nível civilizatório de uma sociedade. Só quando indivíduos eventualmente considerados indesejáveis forem tratados conforme a lei estipula é que todos teremos a garantia de que nossos direitos serão respeitados. A verdadeira discussão não é se os direitos humanos defendem a uns ou a outros, a divisão se dá entre os que desejam uma atuação do Estado pautada e limitada pela lei e aqueles outros que promovem uma atuação ilegal e sem controle por parte dos agentes do Estado, rumando assim de volta à Idade Média. Se a polícia tem como missão central a defesa da lei, seria um absurdo que fizesse isso quebrando a própria lei, pois nesse percurso anularia sua própria missão. Os policiais precisam tomar cuidado com os cantos de sereia que vêm de determinados setores sociais que defendem uma atuação ilegal da polícia (como aqueles que defendem que “bandido bom é bandido morto”), pois, para além de razões morais e sociais, serão os policiais os que eventualmente se sentarão no banco dos réus para responder de possíveis abusos, e não aqueles que advocaram esses caminhos. 37 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 3 - O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA NA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 3.1 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Nas aulas anteriores, vimos o surgimento histórico do Estado moderno e da democracia, os dois pilares essenciais do Estado Democrático de Direito. Na sociedade pré-moderna ou feudal, o poder era exercido por uma pessoa, o monarca, ou por um grupo, tomando em conta apenas sua visão de mundo e seus interesses. É o que se chama despotismo. O monarca absoluto não é obrigado a justificar suas decisões, que não precisam necessariamente ser coerentes ou sistemáticas. Obviamente, isso é a definição mesma de arbitrariedade, ou seja, medidas que obedecem exclusivamente ao livre arbítrio de quem as toma. Como forma de evitar a arbitrariedade, as sociedades desenvolveram um conjunto de regras que definem os limites da ação dos titulares do poder e balizam as ações que estejam ao seu alcance: as leis. O Estado de Direito é aquele em que a lei se sobrepõe à vontade dos governantes, que estão subordinados às regras legais definidas coletivamente. Nisso se contrapõe ao Estado Despótico. O Estado de Direito pode ser caracterizado por uma série de traços centrais, entre eles: 1 Igualdade perante a lei. As normas obrigam a todos pois num Estado de Direito, não há ninguém acima da lei. Ela não pode ser aplicada de forma seletiva ou pessoalizada, a favor ou contra determinado indivíduo. 2 Transparência e previsibilidade. As normas devem ser públicas para que todos as conheçam e possam cumpri-las e ninguém pode ser sancionado senão pelo descumprimento de uma lei previamente existente. Isso confere previsibilidade ao governo e à vida em geral, que constitui um dos componentes essenciais da vida em sociedade. 38 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 3 Devido processo. A tomada de decisões por parte de qualquer um dos poderes (executivo, legislativo ou judicial) deve seguir determinados procedimentos previamente estabelecidos para serem legais e legítimas. 4 Prestação de contas. Os tomadores de decisão, em qualquer um dos poderes, precisam justificar publicamente suas decisões para que elas possam ser submetidas a escrutínio e para que eles possam ser responsabilizados por suas decisões (accountability) (ver Aula 1 do Módulo III). 5 Segurança jurídica. As leis devem ser aplicadas de forma isonômica a todas as situações que apresentem as mesmas características, e as decisões tomadas de acordo com a lei não podem ser mudadas pela iniciativa individual de nenhum ator. A segurança jurídica é outro fator de extrema relevância para conferir previsibilidade à vida social. 6 Separação e independência de poderes, que não podem estar concentrados numa única pessoa ou instância. Tradicionalmente, as funções de elaboração de leis (legislativa), de condução do Estado (executiva) e de aplicação das leis (judiciais) são atribuídas a órgãos diferentes e independentes entre si, para evitar a acumulação de poder nas mãos de algumas pessoas. 7 Acesso à justiça. Todas as pessoas, independentemente da sua condição, devem poder apresentar suas solicitações e reclamações a um sistema de justiça que seja imparcial. Paralelamente, todos os indivíduos devem ter a possibilidade de representação legal. O Estado de Direito se corresponde exatamente com a noção de legitimidade legal-racional de Max Weber que vimos no Módulo I (Aula 5), que estava baseada num conjunto de normas escritas e racionais. A diferença entre o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito é que, nesse último caso, as leis são necessariamente aprovadas com a participação de toda a coletividade e integrando todos os setores sociais, isto é, 39 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública são geradas de forma democrática. Com isso, a lei e o exercício do poder tendem a atingir uma legitimidade maior e, dessa forma, aumenta a obediência a essas leis que foram desenvolvidas de forma coletiva. Se os contratualistas falavam de um contrato implícito para a criação do Estado, nesse caso trata-se de um contrato explícito em que as pessoas participam na gestação das normas a que estarão sujeitas. Os dois termos (Estado de Direito e Estado Democrático de Direito) são usados muitas vezes de forma quase indistinta, mas o último sublinha o caráter democrático do Estado e a legitimidade subsequente. É justamente porque as trajetórias das nações que melhor responderam a esse desafio se inspiraram nas ideias de justiça, democracia, respeito às leis e aos direitos humanos, pensadas em seu alcance universal e irrestrito. Muito provavelmente, quando perguntamos quais as sociedades que melhor conseguiram resolver seus problemas ligados à violência, somos levados a pensar em países com baixos índices de crimes, tais como Japão,Noruega, Suécia. As explicações para isso são inúmeras; contudo, ainda que possa parecer que estes países sempre possuíram ótimos níveis de convivência e que tal estado de coisas é resultado que alguma característica inata às suas Mas, afinal, por que é de fato importante que todos esses conceitos sejam levados a efeito pelos profissionais do Susp, diante de problemas de tamanha ordem e gravidade como são aqueles com os que têm de lidar constantemente? Na prática Vamos Refletir! 40 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública populações, um olhar mais atento às suas histórias nos provará que foram processos políticos que possibilitaram bons níveis de convivência social. Para discutir uma dessas possibilidades, vamos trazer uma análise realizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A OCDE é uma organização internacional composta por 38 países- membros, que reúne as economias mais avançadas do mundo, além de alguns países chamados “emergentes”. O ingresso de um país junto a essa organização significa uma espécie de credenciamento que sinaliza que as práticas adotadas e o ambiente político estão conseguindo enfrentar os desafios sociais, econômicos e ambientais de forma satisfatória. Fazem parte da OCDE: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Colômbia, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Suécia, Suíça, Reino Unido, República Tcheca, Turquia. Os primeiros passos para o ingresso do Brasil junto à OCDE ocorreram em janeiro de 2022, juntamente com Argentina, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia. Acesse: https://www.oecd.org/about/ Um dos quesitos avaliados pela OCDE para o credenciamento de países é o rule of law ou Estado de Direito, que eles definem como a capacidade de o país-candidato oferecer as mesmas regras, procedimentos e princípios para indivíduos e organizações, incluindo o próprio governo, garantindo um tratamento justo pelas instituições e igual acesso à justiça (OECD, 2019). Assim, segundo a OCDE, rule of law é um conceito multidimensional composto por Você sabia? Saiba mais 41 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública diversos elementos como os direitos fundamentais, ordem e segurança, capacidade de aplicar a lei (regulatory enforcement) e justiça civil, além de um governo aberto (OECD, 2019). O desdobramento de cada um desses componentes diz muito sobre quais são as variáveis de importância para verificar se um país promove o Estado de Direito em seu território. A seguir, apresentamos um resumo (WORLD JUSTICE PROJECT, 2022): 1 Tratamento igualitário e ausente de discriminação; 2 Existência do devido processo legal e direitos aos acusados em delitos e infrações administrativas; 3 Garantia efetiva à vida e à segurança, à liberdade de expressão e opinião, à liberdade de crença e religião, à liberdade de associação, ao direito ao trabalho e contra a interferência indevida à privacidade; 4 Controle efetivo do crime; 5 Controle efetivo dos conflitos civis; 6 Interdição à vingança privada para a resolução dos conflitos; 7 Efetividade das regulações governamentais, tais como leis e normas infralegais; e 8 Acesso à justiça, sem discriminação. Pode-se observar no mapa a seguir que os países possuem diferentes níveis de efetivação do Estado de Direito. Grosso modo, aqueles que foram avaliados com melhores níveis são exatamente os que registram menores níveis de violência. 42 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Figura 3: Estado de Direito pelo mundo Fonte: WJP Rule of Law Index, 2022. * As cores mais avermelhadas indicam maiores níveis de aderência ao Estado de Direito enquanto as cores voltadas ao azul mostram menores níveis de aderência. Esse estudo nos traz duas conclusões importantes: Primeira conclusão: Decorridos cerca de 400 anos desde os escritos e eventos que inspiraram o Estado Democrático de Direito, seus fundamentos são bastante atuais. Os avanços resultantes desse processo histórico fundamentam as análises promovidas nos dias atuais, na medida em que o Estado Democrático de Direito é considerado um requisito para atingir fins que vão muito além da questão da imposição da lei e da participação no poder, pois é por meio dele que se promovem avanços econômicos, sociais e ambientais. Segunda conclusão: Direitos humanos, democracia, segurança, cidadania e capacidade de o Estado regular os conflitos humanos são os caminhos mais bem sedimentados 43 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública para ofertar melhores níveis de convivência social. Ainda que existam outros fatores que expliquem os motivos pelos quais determinados países possuem menores níveis de violência, há fortes razões para se defender que são exatamente os elementos oferecidos pelo Estado Democrático de Direito aqueles que conduzem a maiores ganhos nesse campo. 3.2. O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Todos os direitos elencados na Declaração Universal de Direitos Humanos, que vimos na aula anterior, só podem ser usufruídos se o cidadão está e se sente em segurança. Quem teme pela própria vida, pela integridade pessoal ou inclusive pela sua propriedade dificilmente poderá exercer outros direitos. Paralelamente, a prevalência da ordem pública é também um componente importante para a possibilidade de usufruir os direitos básicos e para a previsibilidade das relações sociais. Num cenário caótico e desordenado, será difícil gozar dos direitos que a lei confere ao cidadão. O conceito de “segurança humana”, proposto pelo PNUD (1994) em contraposição à segurança nacional, pode ser concebido, na sua formulação mais sintética, como a libertação dos indivíduos do medo e da necessidade. Nesse sentido, une tanto a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais (a necessidade) com a proteção contra ameaças à integridade pessoal (o medo). Mas, no fundo, os dois aspectos estão intimamente relacionados na medida em que, como argumentamos, o medo pode acabar anulando a possibilidade de satisfazer outros direitos. Considerando que é obrigação do Estado garantir a segurança da população, a segurança torna-se necessariamente pública. Em consequência, o Estado é o sujeito central que deve garantir a segurança, embora várias legislações, incluindo a Constituição Brasileira de 1988, reforcem o papel dos próprios cidadãos no processo. 44 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A segurança tem componentes por um lado objetivos e por outro lado intangíveis e subjetivos. Assim, oferecer segurança implica não apenas reduzir os riscos e as ameaças que as pessoas apresentam de serem vítimas de crimes ou violência, mas também conseguir que elas percebam esses riscos como baixos, se sentindo efetivamente seguras. Em tudo isso, o papel das instituições de segurança pública é fundamental, pois são elas, através da sua função preventiva e repressiva, as encarregadas de prover segurança às pessoas e, dessa forma, possibilitar que elas usufruam o conjunto dos seus direitos. Nesse sentido, as instituições de segurança são garantidoras do Estado Democrático de Direito. Especificamente, elas também garantem o próprio exercício da democracia representativa, possibilitando que as eleições sejam livres. Por exemplo, perseguindo os crimes eleitorais, que tentamimpedir, condicionar ou comprar o voto. E, em ocasiões, impedindo a atuação daqueles que querem derrubar o governo democraticamente eleito por meio da força. De fato, uma democracia sem instituições de segurança pública ficaria extremamente vulnerável à ação de extremistas que quisessem acabar com ela. Mas para além desses casos mais dramáticos, as instituições de segurança pública cumprem uma função mais ampla de legitimação do sistema político e da democracia. Pois um clima de insegurança e uma alta incidência de crimes tendem a corroer a confiança dos cidadãos e questionam a própria legitimidade de um Estado que não é capaz de lhes oferecer segurança. Nesse cenário, é mais provável que surjam tendências antidemocráticas e formas violentas de exercício do poder ou de abordagem dos conflitos. Os linchamentos de pessoas suspeitas de cometerem crimes, por exemplo, estão associados ao medo e à raiva na população, que não sente que o Estado funcione corretamente para protegê-las e que, em consequência, e opta por medidas ilegais e brutais, com o risco de vitimar inocentes e de incrementar, ainda mais, a própria sensação de insegurança. Na prática 45 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Assim, instituições de segurança pública que consigam prover segurança aos cidadãos com eficácia são também promotoras do Estado Democrático de Direito e da própria democracia. Entretanto, o fortalecimento do Estado de Direito não depende só do fornecimento de segurança, mas também da forma como esse serviço é oferecido. Assim, se as instituições de segurança desempenham suas funções conforme a lei, e tratando a todos os cidadãos de maneira justa, imparcial e equitativa, elas estarão ao mesmo tempo promovendo o Estado Democrático de Direito. Adicionalmente, se essas instituições funcionam com transparência e prestando contas das suas atuações à sociedade, abrindo-se ao escrutínio da cidadania ao invés de operar com sigilo e opacidade, elas também estarão fortalecendo o Estado Democrático de Direito. Em suma, espera-se delas que funcionem com as mesmas características que são exigíveis a esse Estado: igualdade, transparência, previsibilidade, devido processo e prestação de contas à sociedade. 46 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Finalizando.... Neste módulo você aprendeu: Os fundamentos históricos e filosóficos que orientam a formação do Estado Democrático de Direito e os sucessos conseguidos na consolidação deste novo dispositivo, que configurou a mais bem acabada forma de exercício do poder político nas sociedades contemporâneas. Assim, abordamos os teóricos contratualistas, as Revoluções Burguesas e suas principais derivações conceituais: o Estado de Direito, a cidadania, a democracia e os Direitos Humanos. Os direitos humanos, inspirados no Iluminismo, aparecem como uma formulação explícita em meados do século XX como resultado das barbaridades cometidas pelos Estados contra seus próprios cidadãos durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo a tentativa de genocídio. Em consequência, eles sublinham a importância de estabelecer limites à atuação do Estado, limites definidos pelos direitos inalienáveis que todos os indivíduos possuem pelo fato de serem pessoas e, portanto, sujeitos de direitos. Embora algumas pessoas percebam os direitos humanos como defensores de delinquentes e antagônicos em relação à segurança pública, o texto tenta desmontar essa falsa oposição mostrando que a universalidade dos direitos humanos diz respeito a todos, inclusive aos policiais, cujos direitos trabalhistas nem sempre são respeitados pelas organizações. De fato, os países que apostaram por um modelo político baseado na democracia e os direitos humanos são hoje os países com menores níveis de violência no mundo. Na última aula, definimos o Estado Democrático de Direito e suas características centrais, tais como igualdade perante a lei, transparência, devido processo, prestação de contas, segurança jurídica, separação de poderes e acesso à justiça. De forma geral, o Estado Democrático de Direito é uma tentativa de conjugar a capacidade de o Estado promover níveis aceitáveis de convivência social aliada ao estabelecimento de limites ao seu poder. Esses limites devem assegurar aos indivíduos a liberdade que lhes é inerente e sem a qual o poder passa a ser opressor. 47 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Por último, analisamos o papel da segurança pública e dos agentes de segurança pública na consolidação do Estado Democrático de Direito. Esse papel é central na medida em que sem segurança é impossível o exercício do resto dos direitos. São os policiais os que garantem também eleições livres, perseguindo os crimes eleitorais e evitando que extremistas possam tentar derrubar os governos eleitos democraticamente através da violência. Além disso, de forma mais ampla, a provisão de segurança e ordem pública tende a fortalecer a confiança dos cidadãos no sistema político e melhora a legitimidade do Estado. Em resumo, este módulo procurou mostrar que segurança pública, direitos humanos e aplicação da lei não são expressões que se contrapõem. É exatamente o oposto. Esses termos conjugam-se para enfrentar os mesmos problemas. Promovê-los é, em grande medida, papel do Estado e de seus agentes, incluindo, inquestionavelmente, os profissionais do Susp. 48 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública MÓDULO 2 – CONCEITO DE POLÍCIA E ORIGENS HISTÓRICAS APRESENTAÇÃO DO MÓDULO Este módulo buscará discutir o papel da polícia na constituição do Estado Democrático de Direito, começando pelas origens e o processo de formação das polícias modernas, e continuando pelos dilemas mais importantes que enfrenta uma organização policial contemporânea. Um dos conceitos que será abordado em maior profundidade é o de legitimidade, tanto do ponto de vista geral quanto na forma em que a legitimidade afeta às organizações policiais. OBJETIVOS DO MÓDULO Este módulo tem por objetivos: ● Aprofundar as origens históricas da polícia; ● Compreender o papel da polícia e os sentidos do trabalho policial no mundo contemporâneo, em especial no diálogo entre proteção e limitação de direitos; e ● Refletir sobre a importância da legitimidade para que a polícia possa desenvolver suas funções. ● ESTRUTURA DO MÓDULO Este módulo compreende as seguintes aulas: Aula 1 – O conceito de polícia e o surgimento histórico das polícias modernas; Aula 2 – Os dois modelos básicos de polícia: defendendo o Estado versus defendendo os cidadãos; Aula 3 – A doutrina policial entre o combate aos criminosos e a proteção do cidadão Aula 4 – A discricionariedade no trabalho policial; e Aula 5 – Legitimidade e trabalho policial. 49 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 1 – O CONCEITO DE POLÍCIA E O SURGIMENTO HISTÓRICO DAS POLÍCIAS MODERNAS 1.1 ORIGENS DA POLÍCIA Etimologicamente, a palavra “polícia”, que existe com pequenas variações em todas as principais línguas europeias, deriva do termo grego “polis”, que se traduz como cidade ou forma de governar a cidade, mas também do termo latino “politia”, que identifica um regime político e administrativo (Mulone, 2019). Assim, polícia tem a ver com cidade e com governança (ver Aula 3 do Módulo IV) ou, vinculando os dois termos, com a governança da cidade. De fato, a criação das polícias está fortemente associada às cidades e, particularmente, às grandes cidades onde ela se originou. No seu texto Omnes et Singulatim, Michel Foucault (Foucault,1981: 243– 254) descreve o trabalho de Turget de Mayenne, quem em 1611 apresentou o seu programa de polícia aos parlamentares holandeses. Para Turquet o significado de polícia era “governo”, de uma forma muito abrangente. O primeiro tratado sobre polícia foi escrito por Nicolas de La Mare, um comissário real que vivia em Paris, entre 1722 e 1729. Nesse texto, “polícia” significava ordem ou, nas palavras do autor, uma “linda ordem”. Segundo ele, a ideia de ordem urbana possuía onze dimensões: 1 Religião; 2 Moralidade; 3 Saúde pública; 4 Suprimento de alimentos; 5 Estradas públicas; 6 Pontes e prédios públicos; 7 Segurança para as pessoas; 8 Ciências e artes; 9 Comércio, Indústrias e artes mecânicas; 10 Serventes e trabalhadores; e 50 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 11 Os pobres. O filósofo ilustrado alemão, Christian Wolff, desenvolveu nesse mesmo período uma “ciência da polícia” (Policeywissenschaft), que era consistia na administração governamental e que serviu de base para a conformação de um precedente do estado de bem-estar na Prússia. As primeiras cátedras dessa nova ciência foram criadas em 1727 pelo rei da Prússia. Em seu texto clássico de 1748, “O Espírito das Leis”, Montesquieu (2000) usa o conceito de “polícia”, entendido como um conjunto de regulações menos estritas e sobre assuntos menos graves do que aqueles que estão regidos pela lei: “Há criminosos que o magistrado pune; há outros a quem ele corrige; os primeiros estão sujeitos ao poder da lei, os últimos à sua autoridade; os primeiros são retirados da sociedade, obriga-se aos últimos a viver de acordo com as regras da sociedade. No exercício da polícia, é o magistrado quem pune, antes do que a lei; nos julgamentos dos crimes, é a lei que pune antes que o magistrado. Assuntos de polícia são coisas de todos os instantes, que geralmente equivalem a pouco; quase nenhuma formalidade é necessária.” (Montesquieu, 2000: 5.26.24.) Lenoir, que foi nomeado Tenente-Geral da polícia (Lieutenant général de police) de Paris em 1774, define polícia como “a ciência de governar os homens e de fazer bem a eles” (1779:34). Por sua vez, Boucher d’Argis, na Enciclopédia (Encyclopédie) de Diderot e d’Alembert, define polícia como “a arte de prover uma vida confortável e tranquila” aos indivíduos (Boucher d’Argis, 1765). Dessa forma, o termo foi ficando estabelecido e foi estendido a outros países. No 51 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Dicionário da Língua Inglesa (Dictionary of the English Language), de Samuel Johnson, aparece o termo “polícia” como importado do francês com o seguinte significado: “a regulação e governo de uma cidade ou país, no que diz respeito aos habitantes” (volume 2 da edição de 1806). Observe-se que, até esse momento, o termo “polícia” equivale a um conjunto de regulações e à governança, e não é aplicado às pessoas encarregadas dessa missão. Isto é, o termo designava a função, mas não o órgão nem os agentes que devem desenvolvê-la. Por outro lado, a ideia de polícia se aplicava a tudo o que estivesse relacionado com o governo e o bem- estar da cidade e, portanto, abrangia além da manutenção da ordem ou da preservação da lei, tal como as entendemos nos tempos modernos. Diversos autores argumentaram que o controle social tradicional que vigorava nas sociedades tradicionais e no mundo rural desapareceu na medida em que as pessoas passaram a viver em cidades de maior tamanho. Nas pequenas comunidades rurais, todos se conhecem e qualquer conduta contrária à norma grupal pode ser castigada de uma maneira informal, mas que pode ser ao mesmo tempo muito dura, como, por exemplo, por meio do isolamento social dos transgressores ou do ‘ostracismo’ romano, isto é, da expulsão da comunidade. Essa possibilidade não existe mais na grande cidade, onde o anonimato é rei e na qual um transgressor num canto da cidade pode fugir ao outro extremo do local sem ser reconhecido. Assim, alguns autores argumentam que a polícia foi criada a partir da necessidade social de manter a paz entre desconhecidos, isto é, entre os habitantes da cidade. Na Roma clássica, foi criada a figura do Aedil no ano 497 a.C. O Aedil se encarregava da ordem e da segurança, além de muitas outras funções, entre elas a manutenção de aquedutos, banhos, prédios, esgotos, além do controle da moral pública, das apostas, da usura, dos animais perigosos, dos esportes, dos funerais e dos mercados, garantindo que os preços nesses últimos fossem razoáveis. No mundo pré-moderno, as pessoas encarregadas de manter a ordem e defender a lei nas cidades não costumavam ser funcionários, mas cidadãos comuns. No século XIII, na Inglaterra, o Estatuto de Winchester criou a figura do 52 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “vigilante noturno” (night watchman), um habitante da cidade designado para desempenhar esse papel como um dever cívico, sem receber remuneração alguma (Rawlings, 2003). Com o tempo, alguns dos designados preferiram pagar a outros para exercer a função, de tal forma que o vigilante acabou se transformando numa profissão. Na Idade Média, diversas cidades criaram a figura do ‘constable’, um cidadão que preenchia o cargo de forma honorária durante um ano e cujas funções incluíam, além da manutenção da ordem e da aplicação da lei, a organização do recrutamento militar, a coleta de impostos, a regulação das moradias e o controle da vadiagem, entre outras. Diversas tarefas que atualmente são responsabilidade da administração municipal. Em suma, as funções atribuídas aos cargos equiparáveis aos de um policial dos nossos dias eram muito mais amplas do que as desses últimos e abrangiam diversas tarefas que hoje em dia são responsabilidade da administração municipal. Historicamente, a aplicação da lei, incluindo a investigação dos crimes, pertencia à esfera privada, não à pública, e dependia da vontade das vítimas e dos recursos que elas pudessem angariar. Tanto em Atenas quanto em Roma, a vítima e seus familiares deviam investigar a autoria do crime sofrido e encontrar o culpado (Emsley, 2021). Em Londres, na segunda metade do século XVII, os caçadores-de-ladrões (thief-takers) eram pagos pelas vítimas para recuperar os bens roubados e para capturar e conseguir a condenação dos criminosos. Em suma, as funções atribuídas aos cargos equiparáveis aos de um policial dos nossos dias eram muito mais amplas do que as desses últimos como são previstas atualmente e, além de abranger atividades que hoje não são de competência das polícias, não eram nem mesmo todas consideradas da esfera pública governamental. Desse modo, o surgimento das polícias modernas está vinculado a três processos que foram acontecendo paralelamente ao longo do tempo: 53 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 1º Processo: A progressiva aceitação pelo poder executivo da obrigação de prover segurança aos cidadãos e garantir a aplicação das leis, incorporando essas funções na esfera pública. Esse processo está intimamente ligado com a criação e o fortalecimento do Estado moderno (ver Módulo II, Aula I). Apesar da existência simultânea da segurança privada, o Estado foi desenvolvendo uma progressiva monopolização, e centralização, das organizações policiais. Até o ponto de que possuir uma polícia passou a ser considerada uma das características centrais do Estado moderno e um símbolo de progresso. 2º Processo: A profissionalização crescente dos encarregados da lei e da ordem, que deixaram de ser cidadãos comuns e passaram a ser funcionários públicos pagos pelo seu trabalho. Eles começaram aser treinados especificamente para essa função e tiveram acesso a carreiras policiais dentro de instituições criadas ao efeito. 3º Processo: A especialização progressiva das funções atribuídas aos encarregados de prover segurança. Essa especialização se deu em relação a várias dimensões, entre elas: 1) a polícia foi ficando restrita à manutenção da ordem e a aplicação das leis, enquanto outras tarefas, que tinham mais a ver com o funcionamento efetivo da cidade, foram transferidas a outras instituições com mandatos diferenciados. 2) o papel da polícia foi se concentrando na função executiva, e deixando de lado a legislativa e a judicial. Em alguns momentos da história, o conceito de polícia abrangia a capacidade de ditar normas e de decidir e aplicar castigos, isto é, contemplava funções legislativas e judiciais, embora de forma 54 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública limitada. Com o tempo, a polícia foi ficando restrita ao poder executivo, perdendo, em tese, qualquer capacidade legislativa ou judicial. Isto significa que as polícias modernas carecem, em princípio, de qualquer função punitiva, a despeito da pressão significativa que com frequência enfrentam por parte da sociedade e dos governos para que apliquem punições. Contudo, numa sociedade moderna a decisão sobre punições cabe exclusivamente ao poder judicial e a sua aplicação, fundamentalmente ao sistema prisional. 1.2 SEGURANÇA INTERNA VERSUS SEGURANÇA EXTERNA Na próxima aula, veremos os dois modelos pioneiros de criação da polícia na Europa, o francês e o inglês, com suas semelhanças e diferenças. Por enquanto, vale a pena acrescentar que, na criação do Estado moderno, além dos três processos antes mencionados vinculados ao surgimento da polícia moderna (caráter público, profissionalização e especialização), há outra evolução de grande importância para a constituição da polícia: a separação entre a segurança externa (ou segurança nacional) e a segurança interna (ou segurança pública). Historicamente, a segurança e a proteção contra inimigos internos ou externos eram uma coisa só. Progressivamente, exércitos nacionais foram sendo criados para enfrentar as ameaças provenientes de outros países e se iniciou um processo de profissionalização militar. No início do século XIX, o exército prussiano determinou que os oficiais não seriam mais pessoas de classe alta, mas aqueles que tivessem demostrado um melhor desempenho nas escolas militares ou no combate. A partir do exemplo prussiano, que teve um grande sucesso na guerra franco-prussiana de 1870, os exércitos se democratizaram, admitindo pessoas de todas as classes sociais em todas as posições de comando, e se profissionalizaram. Na mesma medida, foi crescendo a necessidade percebida de criar e fortalecer outra instituição, a polícia, especializada na ordem interna e na defesa da lei contra desordeiros e delinquentes. 55 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A doutrina militar parte do enfrentamento ao inimigo, como alguém externo à nossa sociedade. Mas se o exército lidava com inimigos que precisavam ser derrotados ou aniquilados, o perigo de enviar uma força militar a enfrentar revoltosos ou pequenos criminosos era causar um grande número de vítimas entre a população civil e, com isso, estimular ainda mais as revoltas. Como mostrou o exemplo inglês, que será apresentado em detalhe na próxima aula, um dos motivos para criar uma corporação policial diferenciada foi o de limitar os danos e promover a pacificação das populações, algo dificilmente possível através de um exército. Assim, enquanto o exército devia combater inimigos e aplicar toda a força necessária para tanto, a polícia devia enfrentar cidadãos suspeitos de terem cometido alguma transgressão, com uma força muito mais comedida, para que eles pudessem ser julgados, punidos e, finalmente, reintegrados à sociedade. Dessa forma, a especialização antes mencionada no processo de criação das polícias modernas incluiu também essa diferenciação entre uma instituição encarregada de enfrentar ameaças do exterior e outra com a missão de enfrentar ameaças internas, que incluíam desordens e crimes. 1.3 A NATUREZA DO TRABALHO POLICIAL As polícias, a despeito do seu papel central no Estado moderno, não receberam historicamente muita atenção como objeto de análise. Apenas nos últimos 50 anos começaram a surgir pesquisadores dedicados especificamente ao estudo das organizações policiais e do fenômeno do policiamento. A maior parte desses autores procedem do mundo anglo-saxão e, em menor medida, do francófono. Em consequência, as teorias sobre polícia costumam estar baseadas nas realidades desses dois âmbitos geográficos e culturais. A polícia é uma organização presente em praticamente todos os países do mundo e todas as pessoas, se perguntadas, sabem identificar um policial. A sua onipresença, porém, não significa que a sua natureza ou sua função sejam fáceis de conceitualizar nem que exista uma definição universal do que seja a polícia. 56 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Egon Bittner, um dos pioneiros no estudo da polícia, baseia sua definição da instituição policial em dois eixos: o uso potencial da força e a capacidade de atuar em emergências. Em relação ao primeiro eixo, ele argumenta que o papel da polícia é o de: “um mecanismo para a distribuição da força coercitiva não- negociável empregada de acordo com os ditados de uma compreensão intuitiva das exigências situacionais” (Bittner, 1990:13). Na mesma linha, Brodeur afirma que: “os agentes policiais são parte de várias organizações conectadas que estão autorizadas para usar de formas mais ou menos controladas meios diversos, geralmente proibidos por lei ou regulação ao resto da população, para aplicar vários tipos de regras e costumes que promovam uma ordem definida na sociedade” (Brodeur, 2010: 130). Essa última definição não fala explicitamente de força, mas de meios proibidos às pessoas comuns. Além do uso da força, o direito de interceptar comunicações, por exemplo, poderia ser outro exemplo de meios que não estão legalmente à disposição dos indivíduos. Essa visão de polícia baseada no uso potencial da força encaixa perfeitamente com à de Max Weber, que define o Estado como “uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p. 98) (ver conceito de legitimidade na Aula 5 desse módulo). 57 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública De forma a acabar com a violência entre os indivíduos, resultado das disputas entre eles, o Estado assume a responsabilidade de resolver esses conflitos e de exercer, só ele, a força que for necessária para aplicar sua decisão. Isso deveria evitar uma espiral de vinganças e violências descontroladas entre as pessoas e, em função disso, pacificar a sociedade (ver Módulo II, Aula 1). A expectativa era que outorgar a legitimidade do uso da força apenas a essa força pública resultaria numa solução mais efetiva, mais profissional, mais justa e menos violenta para as desordens e os conflitos sociais. Obviamente, o monopólio da força não é absoluto, pois todas as legislações reconhecem o direito individual ao uso da força em casos de legítima defesa, mas é sobre-entendido que essa defesa é legítima enquanto o Estado ainda não se fizer presente e, em consequência, o indivíduo precisar se proteger com urgência por si mesmo até a chegada dos agentes públicos. Quando esses últimos chegarem, serão eles os encarregados de prover a força necessária para sustentara lei. O bordão “chama a polícia” aponta justamente o momento em que o indivíduo percebe que há um risco claro de violência e, nesse ponto, deve se omitir e chamar os profissionais. Há ainda circunstâncias em que o monopólio da violência legítima é questionado pela existência de outras legitimidades alternativas à do Estado. Por exemplo, nos casos de linchamentos em que pessoas enfurecidas capturam e torturam ou matam alguém supostamente responsável de ter cometido um delito. Essa violência não é legítima do ponto de vista das leis e do Estado, mas se beneficia do apoio, e consequentemente da legitimidade, popular. Na Prática 58 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Por outro lado, há também uma grande controvérsia hoje em dia sobre se a proliferação da segurança privada em muitos países do mundo supõe ou não uma erosão desse monopólio da violência legítima do Estado. A ideia do monopólio da violência como um mecanismo pacificador se enquadra também dentro da concepção do processo civilizatório de Norbert Elias, que descreve como a humanidade tem feito um esforço para reduzir os níveis de violência entre os seres humanos nos últimos séculos e desenvolvido valores contrários a ela. Como veremos na próxima aula, a criação da polícia inglesa no século XIX está ligada, entre outras coisas, à vontade de evitar as mortes que provocava a intervenção do exército para reprimir conflitos civis. Mais uma vez, encontramos um propósito pacificador por trás da criação das polícias. A ideia-força da definição da polícia em termos da possibilidade do uso da força, que vem desde Bittner até nossos dias, não implica que a polícia deva usar a força de forma corriqueira ou muito menos intensa. Os pesquisadores que observaram o trabalho diário das polícias registraram que os incidentes do uso da força física eram bastante raros (Bayley & Garofalo, 1989). E, de fato, princípios internacionais estabelecem que a polícia deve tentar usar o mínimo grau de força possível, e ainda assim limitando os danos, na procura dos seus objetivos legítimos. Em suma, o elemento definidor não é nem deve ser a quantidade de força usada, mas a simples possibilidade de ela vir a ser usada. Bittner compara a capacidade de um policial para usar a força de forma legítima e competente à de um sacerdote para administrar sacramentos; trata-se de uma capacidade definitória e negada a terceiros. Idealmente, o fato de a polícia ser uma organização legal e bem treinada no uso da força deveria servir como um elemento dissuasório para diminuir a resistência a ela e, portanto, reduzir a probabilidade desse uso da força. Observe-se que a literatura policial prefere o termo “uso da força” ao de “violência” quando se refere ao trabalho policial, mas a rigor não há uma diferença conceitual entre ambas (Brodeur, 2003: 208). O segundo eixo central do conceito de Bittner é ver a polícia como uma organização que pode ser acionada em casos de emergência. Isso fica refletido de forma muito gráfica na sua descrição de que o papel do policial é intervir em situações em que: 59 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “alguma-coisa-não-deveria-estar-acontecendo-e-sobre-a-qual- alguém-precisa-fazer-alguma-coisa-agora” (Bittner 1990: 249). Esse alguém é, obviamente, o policial. As emergências não estão necessariamente ligadas a delitos, ou a situações potencialmente violentas, e podem ser de natureza muito variada. Em Bolívia, alguns anos atrás, a escassez de gás tornou-se um problema e causou tensões na disputa pelos botijões. A polícia foi então incumbida de distribuir os botijões pela cidade. Observe-se que, na medida em que a polícia é chamada para intervir em emergências que não estão relacionadas com a criminalidade, isso vai na direção contrária da tendência antes descrita de especialização crescente das suas funções que, em tese, teriam sido restritas à aplicação da lei e à manutenção da ordem. Nesse sentido, Bittner (1990:263) analisa o contraste entre a função teórica das polícias modernas, isto é, a manutenção da ordem e a defesa da lei, e as atividades diversas que elas acabam levando a cabo. Essa contraposição não é simples para os policiais, que a vivem de forma conflituosa: Acreditando que a razão real para a sua existência é a perseguição perene de pessoas como Willie Sutton [um criminoso conhecido na época nos EUA] —para o qual ele carece tanto da oportunidade como dos recursos— o policial se sente obrigado a minimizar a significação dos exemplos do seu desempenho nos quais parece seguir os passos de Florence Nightingale [fundadora da enfermagem moderna na Inglaterra]. Temendo o papel da enfermeira ou, pior ainda, o papel do assistente social, o policial combina ressentimento contra o que ele tem de fazer no dia a dia com a necessidade de fazê-lo. E nesse percurso perde a sua verdadeira vocação”. (Bittner, 1990:263). 60 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 1.4 UMA DEFINIÇÃO PROVISÓRIA DE POLÍCIA Após revisar o conteúdo das seções anteriores, poderíamos arriscar uma definição provisória e sempre sujeita a críticas e revisões. Assim, a polícia moderna seria uma instituição pública incumbida da missão de preservar a ordem e aplicar a lei, missão para a qual possui a prerrogativa de usar a força, como ultima ratio, sempre de acordo com as leis, em nome da sociedade e do Estado. O objetivo de aplicar a lei inclui corriqueiramente a prevenção dos delitos, a investigação dos crimes e a captura dos presumíveis responsáveis, mas exclui a princípio qualquer capacidade punitiva. Além dessas funções precípuas relativas ao crime e à ordem, as polícias são usualmente convocadas para atuar em situações diversas, particularmente em emergências, em função da sua disponibilidade e da sua capacidade de usar legalmente a força. A missão da preservação da ordem significa também a preservação do status quo. Nesse sentido, diversos autores avaliam que a polícia tende a ser uma instituição conservadora (Ericson, 1982), noção que se pode aplicar ao conjunto do sistema de justiça criminal e não apenas à polícia. Porém, isso não significa que a polícia não possa ser também um agente de mudança social. Assim, por exemplo, a chefa de polícia de uma cidade canadense deu uma entrevista para uma revista gay alguns anos atrás, como uma forma de combater o preconceito contra essa comunidade e favorecer a integração. 61 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 2 – Os dois modelos básicos de polícia: defendendo o Estado versus defendendo os cidadãos. A polícia moderna, desde o seu nascimento, vive uma tensão entre dois grandes modelos: uma polícia pensada para defender o Estado ou o regime versus uma polícia desenhada para proteger os direitos dos cidadãos e para pacificar as relações entre eles, mais afastada, portanto, de preocupações políticas. Todas as polícias possuem, em alguma medida, ambos os polos, embora em proporções diferentes. Para introduzir esses dois modelos vamos apresentar inicialmente as duas polícias consideradas como as pioneiras da polícia moderna na Europa: 1 a francesa no século XVII e 2 a inglesa no século XIX, essa última também chamada de Nova Polícia (New Police). Esses dois casos, embora foram obviamente reais historicamente e influenciados pela realidade do seu tempo, podem nos servir também quase que como tipos-ideais, isto é, como formulações gerais de cada um dos dois modelos. Isso porque ambos representam bem os dois respectivos extremos desse continuum entre polícia para a preservação do Estado e polícia para a preservação dosindivíduos e dos seus direitos. 2.1 A CRIAÇÃO DO TENENTE GERAL DE POLÍCIA (LIEUTENANCE GÉNÉRALE DE POLICE) NO SÉCULO XVII NA FRANÇA Em março de 1667, um decreto de Louis XIV, rei da França, criou a figura do Tenente Geral de Polícia (Lieutenance Générale de Police). Gabriel Nicolas de la Reynie, que ostentava o cargo de Mestre dos Pedidos à Casa Real (maîtres des requêtes), um cargo para o qual era preciso ter desempenhado o cargo de magistrado nas Cortes, foi a primeira pessoa designada como Tenente Geral de Polícia. O rei criou essa figura para integrar as funções policiais, particularmente no que se refere a Paris, numa única instância. Até esse momento, as funções estavam divididas entre um Tenente Civil (Lieutenant Civil) e um Tenente 62 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Criminal (Lieutenant Criminel), o que gerava confusão e insatisfação. Diversas fontes históricas recolhem panfletos e poemas da época que descreviam uma grande falta de segurança nas ruas de Paris (Buisson, 1950: 16–17). Por outro lado, o decreto reconhecia que havia uma certa incompatibilidade entre as funções policiais e as judiciais, de forma que nenhum funcionário deveria ser responsável por ambas. Em decorrência disso, o funcionário encarregado da administração de justiça seria dali em diante o Tenente Civil (Lieutenant Civil). No entanto, como veremos em breve, o Tenente Geral de Polícia continuava conservando algumas funções que podemos considerar legislativas ou judiciais. A explicação é que o conceito de administração judicial estava reservado às faltas ou crimes mais graves, como aparecia com clareza na citação de Montesquieu no seu livro “O Espírito das Leis” que vimos na Aula 1. De fato, o Tenente Geral de Polícia, além do seu poder executivo como chefe de polícia, podia também decretar normas e regulações cujo descumprimento acarretava penas pesadas, e atuava como juiz em todos os assuntos que a lei não remetia necessariamente às cortes judiciais, aqueles de menor gravidade. Mesmo assim, o Tenente de Polícia tinha o poder de impor penas de prisão e inclusive a pena de morte. Essa concentração do poder de polícia numa única instância, numa única pessoa na realidade, inaugura em França uma tradição centralizadora que pode ser encontrada na segurança pública do país até os nossos dias (Brodeur, 2010: 51). Embora o rei tenha criado a polícia como uma função e não como um conjunto de homens, o Tenente Geral de Polícia obviamente precisava de uma equipe para desenvolver seu trabalho. Ele tinha sob seu comando um número aproximado de 40 comissários (commissaires) responsáveis pelos diversos bairros de Paris. Como delegados do Tenente Geral, esses comissários também possuíam poderes judiciais e podiam conduzir julgamentos. Os comissários 63 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública eram assistidos por uns 20 inspectores cuja principal missão era a vigilância. Todos eles, comissários e inspetores, podiam solicitar o apoio da Guarda de Paris, que possuía mais de 1.000 homens armados, alguns dos quais tinham treinamento militar. Na prática, era esse componente militar que andava uniformizado e usava a força quando necessário. De acordo com Lenoir, que foi nomeado Tenente Geral de Polícia no século XVIII como já foi mencionado, os inspectores por sua vez recrutavam informantes, que geralmente procediam da própria criminalidade, para obter informação (Lenoir, 1779: 154). Assim, prostitutas, donos de tabernas e de casas de apostas, entre outros, constituíam uma rede de indivíduos que mantinham a polícia bem- informada do que acontecia. Williams, 1979: 202: Para além das suas múltiplas ocupações, a questão essencial é saber quais eram as prioridades do Tenente Geral de Polícia. Por um lado, alguns autores destacam seu papel de manutenção da ordem e de provisão de segurança para as pessoas, objetivos que se traduziam no patrulhamento ostensivo (Williams, 1979: 202). Clément, 1866: 72: Por outro lado, porém, diversos outros autores sublinham que a prioridade do Tenente Geral da Polícia era o controle da opinião pública (Clément, 1866: 72). Bondois, 1936: 21: Assim, por exemplo, a Polícia se preocupava em combater a dissidência religiosa, inicialmente os jansenistas e posteriormente os protestantes, que foram proibidos pelo rei Louis XIV em 1685. Quando o famoso Tenente Geral La 64 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Mare, já mencionado, recebeu uma pensão do rei, suas façanhas no posto foram glosadas. Nenhuma delas tinha a ver com crime violento, mas com fraude econômica, falhas no suprimento de alimentos à população, religião, matérias de Estado e censuras de livros (Bondois, 1936: 21). O ponto central para entender a polícia francesa é pensar que ela foi criada como um serviço auxiliar do rei. Desse modo, o poder de polícia é concebido como emanado diretamente do soberano. Em função disso, a manutenção do regime monárquico e da figura do rei é parte fundamental da sua missão. Para as monarquias absolutas do século XVII e XVIII o maior perigo não provinha dos delinquentes, mas das revoltas populares, muitas vezes relacionadas com a dificuldade de conseguir alimentos. Por isso, a garantia no fornecimento dos alimentos era uma questão tão sensível para a polícia. Ao mesmo tempo, a polícia se preocupava em combater as “ideias perigosas” como um requisito para a manutenção da ordem, ordem essa que precisa ser entendida não apenas como a ausência de atos vandálicos ou criminais, mas sobretudo como a manutenção do status quo político imperante. Para evitar o contágio dessas ideias, ideias estas que finalmente acabariam provocando a Revolução Francesa, algumas das estratégias usadas pela polícia incluíam a censura e o espalhamento de boatos falsos. Em suma, a polícia francesa do século XVII pode ser classificada como uma polícia política (ver Aula 2 do Módulo III). No dia a dia, o principal alvo da atuação policial desde 1667 até a Revolução Francesa era o lumpemproletariado3. Vadios que não trabalhavam, 3 O lumpemproletariado é o termo usado para designar o conjunto de indivíduos que compõem a camada mais marginal e empobrecida da sociedade. Eles carecem de recursos regulares e de trabalho formal ou legal, além de consciência de classe. Você sabia? 65 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública mendigos e trabalhadores informais que sobreviviam precariamente nas margens do mercado eram sempre suspeitos (Williams, 1979, cap. 5) por diversas razões. Em primeiro lugar: Vadios e mendigos eram considerados um símbolo de degradação moral. Em segundo lugar: Eles eram tratados como os suspeitos principais de cometerem crimes nas ruas da cidade. E, em terceiro lugar: Este contingente era visto como sempre pronto para aderir a uma revolta, que como vimos era o maior temor do regime. De acordo com Brodeur (2010), o sistema de justiça criminal francês do Antigo Regime procurava a prevenção a partir de quatro elementos: 1 leniência, de forma que os magistrados preferiam optar por admoestações e soluções não penais; 2 procura de postos de trabalho para as pessoas, como forma de evitar o que era considerado como o principal fator de risco; 3 vigilância da população como instrumento central. Observe-se que enquanto no modelo inglês a vigilância era exercida através do patrulhamento ostensivo e uniformado, como será apresentado mais adiante, na França a vigilância era desenvolvida por meio do recrutamento de informantes não ostensivos, isto é, de forma oculta e reservada; e 4 Controle da opinião pública, como jáfoi abordado. 66 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Depois da Revolução Francesa, essa contraposição tradicional entre uma polícia que se ocupava dos assuntos do Estado e uma polícia que se ocupava dos crimes de rua e da regulação do cotidiano deu lugar a dois termos característicos na literatura francesa: alta polícia (“Haute Police”) e baixa polícia (“Basse Police”). Alta polícia (“Haute Police”): A primeira se concentra na proteção do Estado e em atuações de cunho político para proteger o regime sob a chamada “razão de Estado”. Baixa polícia (“Basse Police”): A segunda lida com crimes comuns e desordens nas ruas. Pelos próprios termos utilizados é claro que a primeira é considerada mais relevante e a segunda é vista como secundária. Os elogios ao desempenho do Tenente La Mare anteriormente mencionados também evidenciavam que os serviços policiais reconhecidos como de grande importância eram aqueles funcionais para a preservação do regime. O fato de a polícia ser um órgão do rei podia também, em ocasiões, representar alguma vantagem para a população. Assim, enquanto na Inglaterra as acusações contra os suspeitos de cometerem crimes dependiam fundamentalmente da atuação das vítimas, na França o policiamento era todo ele considerado um assunto de lei pública e as cortes não dependiam tanto da acusação da vítima, considerando que qualquer crime contra um terceiro era, ao mesmo tempo, um crime contra o rei (Beattie, 2001). 2.2. ACRIAÇÃO DA POLÍCIA METROPOLITANA DE LONDRES (METROPOLITAN POLICE) NO SÉCULO XIX NA INGLATERRA Em 1829 Sir Robert Peel, o Ministro do Interior (Home Secretary), consegue aprovar no Parlamento a Lei da Polícia Metropolitana (Metropolitan Police Act) que criava a Polícia Metropolitana para Londres. Até esse momento, 67 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública o policiamento na cidade estava a cargo de diversas agrupações, como os “constables”, já descritos acima, os vigilantes da noite, os “beadles” e os “city marshals” (Beattie, 2001: 122). E, em caso de revoltas, os militares eram chamados. Por outro lado, o papel dos caçadores de ladrões (thief-takers), pagos pelas vítimas, seguia sendo fundamental para capturar criminosos. Existia também a suspeita de que muitos desses caçadores de ladrões atuavam de fato em conluio com os próprios delinquentes. Esse policiamento através de tantos grupos diferentes e descoordenados era considerado insatisfatório e uma proposta de lei de reforma policial já tinha sido apresentada em 1785, sem sucesso. Três são os motivos principais alegados para a reforma policial que foi finalmente bem-sucedida em 1829: 1 a necessidade de coordenação e de centralização do policiamento; 2 o clima de desordem e insegurança, principalmente em relação aos crimes contra a propriedade, imperante nas ruas de Londres; e 3 o alto número de vítimas fatais que aconteciam quando os militares eram chamados para reprimir distúrbios civis. A diferença medular entre o modelo de polícia inglês e o francês pode ser observada já desde o instrumento da sua criação: um decreto do rei em França e uma lei aprovada no Parlamento na Inglaterra. A Inglaterra de 1829, diferentemente da França de 1667, era uma monarquia parlamentar onde o rei reinava, mas não governava. Além disso, quase dois séculos tinham se passado entre esses dois momentos, a estrutura social dos países europeus tinha se transformado com o ascenso da burguesia em detrimento da aristocracia, e o mundo inteiro tinha sido abalado pelas ideias do Iluminismo. A burguesia inglesa, dominante no início do século XIX, tinha evitado até esse momento o surgimento na Inglaterra justamente de uma “polícia do rei” nos moldes da França (Mulone, 2019: 216), para evitar ser submetida. 68 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Em suma, enquanto a polícia francesa tinha como objetivo central a manutenção do regime, a polícia inglesa foi criada para preservar a ordem e a paz entre os cidadãos, e para combater a delinquência comum. A Nova Polícia criada em 1829 era conformada por um grupo de homens sob comando único que vestiam uniforme azul, para diferenciá-los do uniforme vermelho do exército, patrulhavam a pé e carregavam como arma, com algumas exceções, apenas um cassetete de madeira. A despeito das mudanças históricas, o conceito do policial desarmado subsiste basicamente até hoje no Reino Unido. Os policiais, chamados “bobbies” em referência a Sir Robert Peel, tinham como missão apreender delinquentes e desordeiros, mas, sobretudo, prevenir a ocorrência de crimes através do patrulhamento ostensivo. Se a vigilância na França era desenvolvida por informantes anônimos, o que era imprescindível para detectar possíveis crimes políticos ou ideias contrárias ao regime, na Inglaterra era o policial uniformado quem vigiava e dissuadia delitos comuns com a sua presença. Apenas em 1842, a Polícia Metropolitana criou um departamento de investigação criminal com detetives não uniformizados, devido ao receio de que a nova polícia dependesse de espiões ou informantes, tal como a polícia francesa (Wade, 1829: 358). Grande ênfase foi colocada na necessidade de que os novos policiais tivessem uma moral ilibada, de tal forma que houve muitas expulsões de agentes no início, a grande maioria por causa de serem surpreendidos bêbados (Taylor, 1998: 89–95). Paralelamente, foram criados mecanismos e comissões oficiais para controlar possíveis abusos e exercer o controle externo da organização policial. A criação da Nova Polícia aprofundou a tendência à especialização da função policial. Apesar de que a polícia conservou algumas tarefas que não eram sempre estritamente criminais, ela passou a ser vista não mais como um sistema autônomo de governança da cidade e sim como um braço do sistema de justiça criminal. A partir desse momento, a palavra polícia passou também a designar um conjunto de pessoas dedicadas profissionalmente a preservar a ordem e a fazer 69 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública cumprir a lei, uma organização com essa missão, e não apenas uma função como acontecia anteriormente. Para a função se reserva agora o termo policiamento, palavra que, no entanto, não existe em todas as línguas. Na Inglaterra, o novo modelo policial teve um impacto enorme sobre as acusações criminais, que passaram a depender majoritariamente do trabalho e das decisões da polícia, deixando para atrás o modelo dos caçadores de ladrões e a dependência da iniciativa das vítimas. O fato de a Polícia Metropolitana de Londres ter sido a primeira polícia moderna a ser criada para a proteção da sociedade e de, em função disso, ter servido de modelo para muitas outras polícias em países democráticos no mundo, provoca às vezes uma certa idealização dos “bobbies”. Assim, proteger a população não significava respeitar os direitos de todos os grupos sociais por igual de forma democrática. Os alvos principais da polícia britânica não eram muito diferentes dos da polícia francesa e se concentravam nas camadas mais humildes da sociedade: prostitutas, bêbados e vadios. De acordo com a própria lei de criação de 1829, o policial podia “prender todas as pessoas ociosas, vadias e desordeiras que ele encontrasse perturbando a paz pública ou de quem ele tivesse justa causa para suspeitar de intenções malignas” (Metropolitan Police Act, 10 Geo. 4. chap. 44, sect. 7). Desse modo, a detenção discricionária e arbitrária era comum, embora não com intenções diretamente políticas (Beattie, 2001: 97–98). Na Prática 70 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e osProfissionais do Sistema Único de Segurança Pública 2.3. UMA POLÍCIA PARA PROTEGER OS CIDADÃOS VERSUS UMA POLÍCIA PARA PROTEGER O GOVERNO Como acabamos de ver, os modelos francês e inglês servem bem para exemplificar os dois extremos desse continuum relativo ao objetivo central da polícia: proteger os cidadãos versus proteger o sistema político da ameaça vinda dos próprios cidadãos. Obviamente, as polícias dos países democráticos se situam e devem se situar muito mais perto do primeiro polo do que do segundo. Aqui é preciso fazer uma distinção fundamental entre proteção do sistema político e proteção do governo que ocupa o poder num certo momento. Nenhuma polícia democrática deve ter como objetivo a preservação do governo atual, embora não seja raro que elas sofram pressão para agir de uma forma que convenha ao governante, considerando que são parte do poder executivo e devem obediência a ele (ver Aula 1 do Módulo III). Paralelamente, todas as polícias do mundo, inclusive as dos países democráticos, dedicam parte do seu tempo a monitorar e desativar ameaças ao sistema político, por exemplo, golpes de estado ou tentativas de intimidar ou atacar aos cargos públicos. Todas as legislações, incluindo as dos países democráticos, possuem dispositivos que criminalizam a tentativa de derrubar os poderes constituídos pela força. Em consequência, todas as polícias possuem elementos do modelo francês e do modelo inglês em alguma medida (Mulone, 2019: 216). Porém, as polícias dos países democráticos apresentam grandes diferenças e vantagens em comparação com as dos países autoritários. Em primeiro lugar: Os níveis de legitimidade dos sistemas políticos democráticos costumam ser muito mais elevados (ver Aula 5 desse Módulo I), o que facilita enormemente 71 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública o trabalho da polícia, que pode contar, com maior probabilidade, com o apoio da população. Ela não precisa ser temida para ter respeito dos cidadãos. Em segundo lugar: A esfera do que é politicamente proibido e, portanto, reprimido, é muito maior nos sistemas autoritários, onde por exemplo, manifestações públicas, ou inclusive a expressão de ideias contrárias ao governo, não são toleradas. Isso magnifica exponencialmente a tarefa de uma polícia destinada a conter os descontentes. Nos regimes democráticos, a fração de tempo que as polícias dedicam a prevenir ou combater crimes políticos é muito pequena, e o resto do tempo pode ser empregado na luta contra a criminalidade comum. O contrário acontece nas ditaduras onde, não raro, a criminalidade comum é secundária para as forças de segurança pública desde que não perturbe o sistema. Em primeiro lugar: Os regimes democráticos se caracterizam pelo respeito ao estado de direito, de modo que as polícias devem se pautar sempre pela lei. Isso permite aos policiais se recusarem a obedecer a ordens do executivo que extrapolem os limites legais e, inclusive, os limites técnicos. Por exemplo, as polícias podem se negar a seguir indicações de como reprimir uma manifestação opositora ou um motim prisional, se elas não se ajustarem às diretrizes técnicas contidas nos protocolos de atuação policial para manifestações ou motins. Em regimes autoritários não costumam existir limites quanto ao que a polícia pode ou não fazer, nem quanto ao que os governos podem exigir das polícias. 72 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 3 - A DOUTRINA POLICIAL ENTRE O COMBATE AOS CRIMINOSOS E A PROTEÇÃO DO CIDADÃO Nas aulas anteriores vimos uma oposição essencial para entender a polícia: uma instituição para proteger o poder político versus uma instituição para defender os cidadãos. Dentro desse último paradigma de uma polícia para proteger os cidadãos, cabe estabelecer outra polaridade de grande relevância: uma polícia para combater os criminosos versus uma polícia para proteger os cidadãos. Ou, dito de outra forma, uma polícia para limitar direitos versus uma polícia para defender direitos. Essa antinomia só cobra sentido se a polícia tiver como objetivo geral a proteção do cidadão, pois ela torna-se irrelevante se a sua meta for preservar o governo ou o regime. Nesse último caso, a instituição operará sempre restringindo os direitos individuais para assim defender os titulares do poder. A princípio, poderia parecer que a oposição aqui colocada é carente de sentido ou redundante, pois para proteger os cidadãos é preciso com frequência reprimir os criminosos. Ou seja, para defender os direitos de uns cidadãos é preciso limitar os direitos de outros. No fundo, é isso o que uma boa polícia teoricamente faz, restringe os direitos de alguns para preservar os da grande maioria. Entretanto, a diferença radica na ênfase que a instituição coloca em um ou outro extremo. Polícia pensada fundamentalmente para combater os delitos: Terá como objetivo central a identificação e prisão dos responsáveis, isto é a repressão ao crime, e, provavelmente, deixará a prevenção e a segurança dos cidadãos em segundo plano. Nesse cenário, as prisões e apreensões costumam ser os indicadores básicos de desempenho policial. Polícia desenhada para a proteção dos cidadãos: Considerará sobretudo o bem-estar deles, mesmo que isso signifique permitir que alguns autores de delitos, sobretudo delitos menores, continuem 73 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública soltos. Essa polícia deverá priorizar aquilo que realmente gera insegurança na população e dedicar menos esforços a condutas que não provocam medo, mesmo que constituam crimes. Por outro lado, privilegiará a prevenção sobre a captura de meliantes, pois nada protege melhor a comunidade do que evitar os crimes, ao invés de ter que correr atrás dos responsáveis a posteriori. Há situações concretas em que a diferença entre ambos os enfoques fica patente. Num congresso sobre segurança pública em Belém do Pará uma pessoa relatou um incidente em Buenos Aires, quando correu um boato de que seriam vendidas entradas para um show dos Rolling Stones num shopping center do centro da cidade. Concentraram-se lá milhares de pessoas que ficaram frustradas quando souberam que a informação sobre a venda de entradas não era verdadeira. Houve quebra-quebra, algumas vitrines de lojas foram quebradas e produtos foram furtados. Quando a polícia chegou ao local, avaliou que se tentasse intervir contra os autores dos furtos poderia gerar uma debandada que poderia provocar graves consequências. Por isso, optou por esvaziar completamente o shopping, direcionando todas as pessoas para a saída, sem se ocupar, nesse primeiro momento, dos furtos. Na hora das perguntas, um policial brasileiro inquiriu se a polícia argentina aceitava a impunidade em relação aos crimes contra a propriedade, sugerindo que deveriam ter tentado prender os responsáveis. Para esse policial, provavelmente o combate aos criminosos era a prioridade que deveria pautar a intervenção policial, e a preocupação com a possibilidade de provocar feridos na debandada que poderia ter acontecido era secundária. No Brasil, não é incomum que as polícias desenvolvam operações contra grupos criminosos que desembocam em tiroteios em áreas densamente povoadas, gerando sérias consequências negativas para a vida dos moradores (impossibilidade de trabalhar, assistir a escola ou receber tratamento médico) além de colocá-los sob risco de serem atingidos por balas perdidas. Nesse sentido, um policial guardião precisa, antes de deflagar qualquer operação policial, avaliar o risco para as pessoas que moram 74 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública nessasregiões, de forma a não gerar mais custos sociais do que benefícios. Outra situação bastante comum é aquela em que um policial se depara com criminosos num contexto inesperado e em inferioridade numérica. Tentar intervir poderia colocar o policial e a população ao redor em situação de risco, por isso pode ser melhor optar por um recuo tático, acompanhando os delinquentes de longe e pedindo reforços. De forma geral, uma superioridade numérica por parte da polícia permite um menor emprego da força e uma maior segurança para os envolvidos. Mas para policiais concentrados no combate ao crime, o recuo pode ser considerado uma falha técnica ou moral, ou até ser classificado como prevaricação. Por outro lado, a discricionariedade no trabalho policial, que será abordada em detalhe na próxima aula, tende a ser entendida de forma diferente por aqueles que entraram na polícia basicamente para enfrentar bandidos, em comparação com os que privilegiam a proteção da cidadania. “Pois pessoas que tem escolhido a polícia como a sua carreira — sob o suposto de que consiste em lutas contra as forças do mal e com a compreensão de que serão livres para fazer em cada encontro específico aquilo que as circunstâncias demandarem segundo o seu próprio julgamento— devem ver cada restrição regulatória e cada tentativa de monitoramento como uma mudança fundamental nas condições do seu emprego.” (Bittner, 1984: 211). De fato, diversas subculturas policiais privilegiam noções como o risco, a masculinidade assertiva e o heroísmo que parecem ter muito mais a ver com a luta contra criminosos do que com proteção do cidadão. Na mesma linha, a tentativa de introduzir modelos de polícia comunitária muitas vezes enfrenta resistências de policiais que acreditam que isso não é uma verdadeira polícia, 75 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública pois esta última precisa de criminosos para serem combatidos. Numa pesquisa para avaliar a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, um sargento entrevistado que era contrário a esse novo modelo policial de proximidade assinalava que, mesmo assim, às vezes havia ocorrências “boas” que devolviam a ele a sensação de retornar à “verdadeira polícia”. Para ele, a vocação autêntica da polícia parece ser a de trocar tiros com bandidos: “Teve uma ocorrência boa nossa. Patrulhamento ali, ô. Foram três elementos, vieram lá do [nome de outra comunidade] pra assaltar ali. A viatura estava fazendo uma abordagem ali, eles passaram voados. A viatura foi até trocar tiro com a minha viatura. Resumindo: morreu um, morreu um elemento e foram dois presos, e dois carros recuperados e duas armas apreendidas. [...] Então, foi feita aquela ocorrência boa, deu até manchete porque era uma coisa boa. E é feito TRO (Talão de Registro de Ocorrência), tudo legal.” (Cano, Borges & Ribeiro, 2012: 153) Um elemento que estimula a visão do policiamento como luta contra os criminosos é a percepção dicotômica e maniqueísta da sociedade, que se dividiria em dois grupos claramente diferenciados e antagônicos: os “cidadãos de bem” e os “bandidos”. Considerando que esses últimos são considerados fatalmente inclinados ao delito, a única solução seria o combate sem quartel contra eles como forma de proteger os primeiros. Os cidadãos de bem, por sua vez, não apresentariam risco algum de se verem envolvidos em atividades ilícitas, pois eles seriam, por definição, bons. Em consequência, quando a sociedade é percebida dessa forma, a probabilidade de que a polícia seja concebida como uma cruzada contra os criminosos é muito maior. Na verdade, todos os cidadãos podem cometer um delito em algum momento das suas vidas em função das circunstâncias e ninguém pode ser permanentemente excluído dessa possibilidade. Paralelamente, pessoas hoje envolvidas em atividades ilícitas podem ser ressocializadas e abandonar a vida do crime. 76 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 3.1. POLÍCIA COMO CONTROLE SOCIAL VERSUS POLÍCIA COMO SERVIÇO SOCIAL Quando a polícia existe para preservar o regime ou o governo, como vimos na aula 2 desse módulo, a sua função precípua é o controle social dos indivíduos para evitar a subversão. Mas mesmo quando a meta central é a proteção do cidadão, esse objetivo pode tentar ser atingido através do controle das pessoas, agora não com fins políticos, mas para evitar a criminalidade. Esse controle se exerce preferentemente, mas não exclusivamente, sobre grupos e camadas sociais considerados suspeitos de cometerem crimes. Muitas polícias no mundo funcionam sob esse paradigma de controle social. Não raro, as populações por elas policiadas temem a polícia, a quem consideram uma instituição criada para controlá-las. A suspeita, portanto, opera em ambas as direções, da polícia em relação aos cidadãos e desses últimos em relação à polícia. Na tradição dos países latinos: os prenomes da polícia costumam ser “força” (força policial ou força pública) ou “corporação”, ambos reforçando a noção do controle como objetivo primordial. Já na tradição anglo-saxã: que bebe da experiência pioneira dos ‘bobbies’ londrinos apresentada na aula 2 desse módulo, o prenome da polícia costuma ser “serviço”: serviço policial (police service). Obviamente, tal nome não garante uma polícia de qualidade, mas o seu significado transmite a concepção da polícia como uma instituição a serviço dos cidadãos, que seriam a sua clientela. Na Prática 77 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública As implicações simbólicas do conceito de serviço policial não podem ser desconsideradas. Em primeiro lugar: Se a sociedade é a sua clientela, espera-se que a polícia tente satisfazer essa clientela e que, para tanto, assuma as prioridades dela como próprias. Em diversos países de tradição anglo-saxã, como a Austrália, a avaliação de desempenho da instituição policial incorpora como um dos seus indicadores centrais a percepção dos cidadãos em relação à instituição e avaliação que fazem do seu trabalho. Não poderia ser considerada uma polícia de boa qualidade aquela que deixa seus cidadãos, a sua clientela, insatisfeitos, mesmo no suposto de que a incidência criminal seja baixa. Em segundo lugar: Se a polícia é um serviço aos cidadãos, ela deve a eles total transparência e uma prestação de contas (accountability) detalhada (ver Aula 1 do Módulo 3). Sigilo e opacidade não combinam com essa visão. Em primeiro lugar: E talvez isso seja o mais importante, a ideia de serviço policial altera a relação de poder entre a cidadania e a polícia. Se uma polícia desenhada como um mecanismo de controle sobre os cidadãos tende a se colocar numa posição de superioridade, espera-se que uma polícia concebida como serviço outorgue preeminência hierárquica à própria sociedade ou, como muito, se situe numa posição de igualdade, considerando que os policiais são também cidadãos e membros da sociedade que devem proteger. Em suma, embora a eleição dos termos usados para definir a polícia (força, corporação, serviço etc.) responda a razões linguísticas e culturais de longa data, eles traduzem também valores que refletem qual é o papel da 78 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública instituição na sociedade e qual a sua posição na hierarquia social. Se bem muitos países latinos assumiram o lema de “servir e proteger” como inspiração, eles o fazem desde o conceito de uma força ou uma corporação policial. O conceito de corporação, especificamente, aponta à solidez e à estrutura interna da instituição mais do que a sua função perante a sociedade. Obviamente, nãobasta mudar o nome para mudar a natureza de uma instituição, mas a importância simbólica dos termos não pode ser desprezada. 3.2. POLICIAL GUERREIRO VERSUS POLICIAL GUARDIÃO Dois termos que encarnam bem a dicotomia apresentada na seção anterior são os de “policial guerreiro” e “policial guardião”. Policial guerreiro: O policial guerreiro vai um passo mais longe na direção antes descrita de uma polícia para combater a criminalidade, pois considera que esse combate é, de alguma forma, uma guerra. O policial guerreiro se caracteriza por uma doutrina de enfrentamento ao inimigo, voltando atrás na tendência histórica que separou as polícias dos exércitos. Ele tem como prioridade o combate a um inimigo que precisa ser derrotado. O uso de equipamentos e táticas de tipo militar na segurança pública seriam características frequentemente associadas a esse modelo. Policial guardião: Pretende sobretudo proteger os cidadãos. A luta contra os criminosos seria uma meta secundarizada em relação à primeira. De novo, a prevenção encaixa perfeitamente nessa visão, pois a ausência de violência e do crime é a melhor proteção que pode ser oferecida. 79 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Já a prevenção não faz muito sentido para o policial guerreiro, pois ele deve enfrentar um inimigo que em geral já foi plenamente definido e identificado. Da mesma maneira que nas seções anteriores, a percepção dicotômica e rígida da sociedade entre cidadãos de bem e bandidos fortaleceria a aposta por este tipo de policial. Noutro sentido, a noção de policial guerreiro reforça a ideia do patrulhamento ostensivo em lugares públicos (o “campo de batalha”) e se afasta da investigação policial, que não precisa de guerreiros, mas de detetives. Portanto, a aposta pelo policial guerreiro é também uma aposta pela ostensividade em detrimento da investigação criminal. Nas últimas duas décadas o conceito do policial guerreiro tem sido muito discutido nos EUA, especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001. O primeiro resultado dos atentados foi que a ênfase em medidas e políticas antiterroristas acabou minando a distinção entre segurança interna e externa. A discussão sobre o policial guerreiro está, nos EUA, fortemente imbricada com a polémica sobre a militarização das polícias. Segundo Balko (2013: 46), a militarização da polícia começou nos Estados Unidos já nos anos 60 e foi intensificada nos anos 80, durante a guerra contra as drogas, para receber posteriormente outro novo impulso depois do 11 de setembro de 2001. Em 1965, houve revoltas populares no bairro de Watts, em Los Angeles, que duraram vários dias e causaram perdas de vidas e enormes danos materiais. A polícia enfrentou coquetéis-molotov e disparos isolados. Em consequência, a polícia de Los Angeles (LAPD) pediu conselho ao exército sobre como enfrentar essas situações e criou um dos primeiros grupamentos de operações especiais dentro de uma organização policial: o chamado SWAT. O acrônimo inicialmente queria dizer Special Weapons Attack Team (Time de Ataque com Armas Especiais), mas depois veio a ser conhecido de forma mais moderada como Special Weapons and Tactics (Armas e Táticas Especiais). Você sabia? 80 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Esse grupamento passou a ter armamento mais poderoso e treinamento militar, incluindo táticas militares. Assim, a criação do SWAT foi inspirada por uma doutrina de contra-insurgência urbana, isto é, do combate contra a insurgência política. Seus integrantes foram treinados para lidar tanto com revoltas generalizadas quanto com atiradores que se atrincheiravam para causar o maior número de vítimas, como aconteceu na Universidade do Texas, em Austin, em 1966. Esse tipo de incidente de lá para cá tornou-se, infelizmente, frequente. Em pouco tempo, os grupos SWATs se estenderam por todo o país. Uma pesquisa publicada a finais dos anos 90 mostrava que 89% das cidades estadunidenses com mais de 50.000 habitantes tinham um grupamento SWAT, o dobro do percentual registrado em 1980 (Kraska & Kappeler, 1997). Inclusive 65% das cidades com população entre 25.000 e 50.000 possuíam também um grupo SWAT. Em outras palavras, o modelo SWAT tinha se universalizado. E não era só que os grupos de operações especiais fossem mais frequentes, eles eram também crescentemente utilizados, inclusive em operações que não tinham nada a ver com o propósito original. Em muitas ocasiões, o SWAT era usado para policiamento de rotina, como uma forma de intimidar pessoas em lugares considerados perigosos ou indivíduos que tivessem cometido ou pequenas transgressões. “Usamos patrulhas de saturação em pontos quentes. Fazemos muito do nosso trabalho com a unidade SWAT porque temos armas maiores. Enviamos dois carros, com dois a quatro agentes em cada um, procuramos transgressões menores e pulamos, seja nas pessoas na rua ou nos automóveis. Depois de pularmos, o segundo carro fornece cobertura periférica com exibição ostentosa de armamento. Estamos enviando uma mensagem clara: se os tiroteios não pararem, vamos atirar em alguém.” (Kraska & Kappeler, 1997: 10). Os membros do SWATs estavam fortemente armados, com um equipamento defensivo e ofensivo que impressionava, e eram considerados a 81 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “elite policial”, o que marcava fortemente a instituição policial para além das intervenções desses grupos. Por outro lado, a lei norte-americana permitia que o exército repassasse seus equipamentos excedentes às organizações policiais, o que facilitava o acesso dessas últimas a armamentos militares (Simckes et al., 2019). Outro ponto de grande importância é que a formação nas academias de polícia se inspirava nesse modelo do policial guerreiro, privilegiando o treinamento físico e as técnicas de uso da força e deixando de lado o ensino de habilidades comunicacionais e de procedimentos de desescalada das tensões (Rahr & Rice, 2015). Além disso, o treinamento para produzir policiais guerreiros tornou-se muito hierárquico e autoritário, exigindo dos recrutas a obediência de um soldado e o submetimento automático, atitudes que o novo policial tendia a reproduzir com os cidadãos uma vez acabada sua formação. Stoughton (2016) considera que a mentalidade do guerreiro possui, idealmente, características muito positivas como a tenacidade, a vontade de enfrentar qualquer obstáculo e a disposição ao sacrifício por uma causa, características que ele resume em quatro traços: 1 honra, que se traduz em um estrito código moral pensado para servir a outros, de preferência aos mais débeis que não podem se defender por si mesmos; 2 sentido do dever, mesmo quando demande sacrifícios pessoais; 3 determinação para enfrentar as dificuldades e para obedecer ordens, inclusive quando não estejam de acordo com o conteúdo delas; e 4 disposição a exercer uma violência justa contra o mal, que é visto como inevitável e omnipresente. O autor tenta também entender as razões da forte atração da figura do policial guerreiro para os policiais no país e oferece vários motivos: 1 ele é visto como um bastião essencial para proteger a sociedade e, com isso, o agente se sente importante e imprescindível; 2 é uma posição exclusiva, que não está ao alcance de todos, pois é preciso possuir diversas virtudes para poder desempenhá-la; 82 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 3 é um conceito que reduz a dissonância cognoscitiva (isto é a contradição percebida pelo indivíduo) entre a função ideal que se supõe que realiza a polícia e a sua realidade no dia a dia. Assim,os policiais se veem a si mesmos como os ‘mocinhos’ das disputas, mas algumas das suas ações não encaixam bem nesse papel, e o ideal do guerreiro ajuda a diminuir esse contraste; e 4 é um modelo que recebe apoio externo, ao menos de parte importante da população que subscreve essa filosofia e às vezes a demanda. Entretanto, a despeito das suas virtudes teóricas, o modelo do policial guerreiro acaba, na prática, provocando diversos efeitos negativos. Durante o treinamento, o policial guerreiro é ensinado a desconfiar de tudo e de todos e a ver a qualquer cidadão como uma possível ameaça. Transmitem-lhe que essa é a melhor forma de reduzir os riscos contra sua pessoa num mundo que seria essencialmente hostil. No entanto, essa atitude provoca hipervigilância e agressividade, e tensiona as relações com as pessoas. A consequência é que o culto ao policial guerreiro provocou a deterioração da relação com a comunidade, a desconfiança dos cidadãos aos quais devia servir (Stoughton, 2014) e, em última instância, a deslegitimação da instituição policial (ver Aula 5 desse módulo). Décadas de investimento no paradigma da polícia comunitária ficaram comprometidas pela proliferação do policial guerreiro nos EUA, com os efeitos subsequentes, especialmente na relação entre minorias étnicas e as polícias. O policial guerreiro, que desconfia de todos, não consegue estabelecer uma relação horizontal com o cidadão, muito menos uma relação de serviço. Espera submissão dele e, quando não a consegue, tende com maior facilidade à confrontação e ao uso da força, muitas vezes de forma desnecessária. O resultado é que um modelo que foi desenhado em tese para aumentar a segurança do policial acaba provocando um aumento do risco de ferimentos não apenas para as pessoas comuns, mas também para o próprio policial. O policial guerreiro e a visão militarizada da segurança pública têm sido usados também para justificar abusos policiais ou condutas extralegais. Embora os conflitos bélicos possuam normas precisas, codificadas no Direito 83 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Internacional Humanitário, muita gente ainda está convencida de que tudo vale numa guerra e, portanto, abusos devem ser ignorados ou perdoados. Para tentar retornar a um paradigma do policial guardião, Stoughton (2014) oferece duas recomendações centrais. Primeira recomendação central: A primeira é estimular os policiais, desde a academia, a manter contatos com os cidadãos que não estejam relacionados diretamente com a aplicação da lei. Em outras palavras, deve-se encorajar os agentes a conversar informalmente com as pessoas em situações que não sejam revistas, buscas, multas, prisões, interrogatórios ou paradas para pedir identificação. Obviamente, isso supõe voltar ao modelo da polícia comunitária, onde a maioria dos contatos são proativos e espontâneos, não pautados por suspeitas de crimes ou contravenções. Segunda recomendação central: A segunda recomendação é enfatizar a contenção tática (tactical restraint) no treinamento inicial e na revisão de incidentes de uso da força. O conceito de contenção tática pode ser entendido como uma tentativa de reduzir os riscos evitáveis para os policiais e para terceiros, sempre que isso não comprometa o objetivo central da intervenção. O recuo tático é uma dessas opções, entre outras, para evitar males maiores. O autor dá exemplos concretos de corporações policiais que instruem seus membros a não efetuar uma prisão ou a não continuar uma perseguição a pé a não ser que contem com apoio de outros colegas, como formas de evitar a escalada no uso da força. 84 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 4 - A DISCRICIONARIEDADE NO TRABALHO POLICIAL 4.1 O QUE É A DISCRICIONARIEDADE Uma das questões mais debatidas em relação ao trabalho policial é a sua discricionariedade, isto é, a possibilidade de decidir o que fazer numa situação específica sem que essa decisão esteja plenamente pautada por leis, normas ou regulamentos. A ideia é que normas e regulamentos impõem limites ao que o policial pode fazer, mas não determinam o que ele ou ela devem fazer em concreto, pois não podem prever a multitude de situações que deverão ser enfrentadas no dia a dia. De fato, quanto mais se avança no fluxo do sistema de justiça criminal (que começa com a polícia e acaba no sistema prisional), menor tende a ser a discricionariedade. Pensemos no trabalho de um juiz. O juiz possui um longo tempo de reflexão no seu próprio escritório para tomar a sua decisão, que deve ser fundamentada por escrito. Além disso, ela é pública por definição e submetida ao escrutínio das partes e da opinião pública em geral. Adicionalmente, ela é sujeita a revisão dos tribunais superiores através do mecanismo de apelação. Nesse cenário, qualquer decisão que não responda à lei e aos princípios jurisprudenciais poderá ser revisada e revertida posteriormente. Tudo isso não significa que o juiz não tenha discricionariedade, que de fato existe na medida em que ele ou ela interpreta tanto a lei quanto as provas apresentadas, sob o princípio, no Brasil, do “livre convencimento motivado”. Entretanto, essa discricionariedade é limitada por todos os elementos apresentados acima. Em contraposição, o policial trabalha muitas vezes na rua, sozinho ou em pequenos grupos, com escassa supervisão, e muitas das suas ações não são sequer registradas e, portanto, dificilmente poderão ser sujeitas a revisão. A aparição das câmeras corporais e de outros mecanismos tecnológicos veio alterar essa situação em alguma medida, mas o nível de registro das atuações e de supervisão é ainda bastante limitado. A discricionariedade começa pela decisão inicial que o policial deve tomar, a de intervir ou não numa determinada situação. 85 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Nenhuma polícia do mundo, por mais estrita e autoritária que seja, intervém em todos os casos de desordem ou pequenos delitos, pois em ocasiões pode não valer a pena ou pode provocar efeitos indesejados. Já o juiz, para seguir com a comparação, não pode decidir não se pronunciar sobre os assuntos que são levados à sua consideração. Na literatura policial, o aspecto mais estudado dentro da discricionariedade é a decisão de abrir um procedimento formal contra alguém por ter cometido um crime ou uma contravenção, ou não o fazer. A polícia, como de resto todo o sistema de justiça criminal, opera sob o conceito ideal da aplicação da lei a todos os infratores e a todos os crimes. Mas essa ideia não passa de uma fantasia, especialmente nas contravenções e nos crimes de menor gravidade. Em todos os países do mundo, a polícia ignora algumas transgressões e reprime outras só em determinadas circunstâncias. A possibilidade legal de não apresentar uma acusação penal mesmo quando há evidência de crimes é maior nos sistemas de lei comum ou common law, nos quais pode se desistir da acusação por motivos do interesse público, mas existe em alguma medida em todos os sistemas legais. Nos sistemas de “common law”, vigentes nos países anglo-saxões e nas suas colônias, a aplicação da lei depende fundamentalmente da jurisprudência anterior e, por isso, os diplomas legais tendem a ser menos detalhados. Contrariamente, nos sistemas de “civil law, adotados na Europa continental e nas suas colônias, os códigos legais escritos são a fonte primária do direito e, por isso, tendem a ser mais específicos. A jurisprudência nesses casos desempenha um papel menos importante. Em primeiro lugar, não seria provavelmente desejável, do ponto de vista da sociedade, se a polícia aplicasse as normas de forma implacável,pois poderia gerar mais problemas do que soluções. Imaginemos que os motoristas que Saiba Mais 86 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública tivessem cometido alguma violação a alguma norma de trânsito nos últimos 24 meses fossem todos eles, de repente, multados e tivessem seu automóvel apreendido. Boa parte da frota de veículos do país ficaria subitamente imobilizada, o que provocaria enormes custos sociais. O objetivo das normas de trânsito, pode ser arguido, não é conseguir que nunca ocorra transgressão alguma, mas manter as infrações num nível suficientemente baixo para permitir um trânsito relativamente seguro e ordenado. O caso é mais evidente quando as condutas proibidas pela lei são ou bem aceitas por uma parte significativa da população, como o consumo de drogas, ou bem consideradas como algo que deveria pertencer à esfera privada e não deveria ser objeto de sanção penal. Esses cenários dão lugar ao que se conhece como “leis inexequíveis” (“unenforceable laws”). O adultério era crime de acordo com o Código Penal brasileiro até 2005. Mas, mesmo antes dessa data, teria sido um escândalo se a Polícia Civil de um estado brasileiro tivesse dedicado seus recursos e seu pessoal a investigar adultérios e a prender adúlteros ao invés de lidar com roubos ou homicídios. A onipotência punitiva nesses dois exemplos geraria mais problemas do que soluções. Em segundo lugar, mesmo que a polícia quisesse verdadeiramente aplicar a lei a todos os infratores de todas as leis, ela não contaria, nem de longe, com recursos ou pessoal suficientes para fazê-lo. Em suma, a polícia vive a contradição entre a realidade e um ideal certamente inaplicável e provavelmente indesejável. Em palavras de Herman Goldstein, um dos estudiosos que mais tem se dedicado a refletir sobre o tema: “Dado que a discricionariedade policial tem sido encoberta e não autorizada, não existe um sistema para estruturá-la e controlá-la. Por isso, a polícia sofre realmente o pior de todos os mundos: deve exercer ampla discricionariedade por trás de uma fachada de um desempenho burocrático; e se espera dela um alto nível de equidade e justiça nas suas determinações discricionárias apesar de que não lhe foram fornecidos os meios dos quais os governos comumente dependem para atingir esses fins.” (Goldstein, 1977: 110) 87 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Essa contradição faz com que a polícia deva deixar de lado a aplicação da lei em muitas situações, mas experimente ao mesmo tempo grandes dificuldades em reconhecer publicamente que o faz, sob risco de sofrer danos reputacionais e inclusive sanções legais, como as contidas no crime de prevaricação. Obviamente, a discricionariedade relativa à decisão de processar o responsável por uma transgressão vai diminuindo de acordo com a gravidade do crime e com as consequências negativas para a sociedade. Não seria aceitável, por exemplo, que a polícia decidisse não proceder contra o responsável por um homicídio, independentemente de qualquer consideração. Mas, mesmo nos crimes graves, a polícia deverá decidir que prioridade dará a cada um deles e, com isso, ajudará a determinar a probabilidade de esclarecimento de cada um. Tudo isso configura um cenário de aplicação seletiva da lei, que é ainda mais inevitável no contexto em que se encontram a grande maioria das polícias da América Latina e de muitos outros países no mundo, sobrecarregadas por um alto número de denúncias que não podem ser investigadas em detalhe na sua totalidade. Assim, se a seletividade é inevitável, a forma como ela será exercida determinará a qualidade e equidade do serviço policial. A discricionariedade contempla não apenas a decisão de abordar ou não um infrator, mas o modo de fazê-lo, que pode ir de uma prisão a uma advertência, uma mediação ou uma referência a outros serviços sociais. Além disso, a discricionariedade não afeta só a decisão de abordar ou processar ou não uma pessoa, mas abrange todas as áreas do trabalho policial. Quando usar a força e com que intensidade, que níveis de vigilância sigilosa devem ser aplicados, que tipos de pessoas devem ser paradas e revistadas e muitas outras atuações estão impregnadas por uma ampla margem decisória. Outro motivo da discricionariedade é o intervalo temporal de que os policiais dispõem para tomar suas decisões. Na citação de Montesquieu no “O Espírito das Leis” que vimos no início da Aula 1, ele afirmava que “assuntos de 88 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública polícia são coisas de todos os instantes, que geralmente equivalem a pouco; quase nenhuma formalidade é necessária”. Essa visão da polícia como sinônimo de informalidade, ao contrário do poder judicial, prenuncia também um alto grau de discricionariedade. Mas essa mesma citação contínua do modo seguinte: “As ações da polícia são rápidas e a polícia [poder de polícia] é exercida sobre coisas corriqueiras; portanto, grandes punições não são próprias dela. Ela está perpetuamente ocupada com detalhes; portanto, grandes exemplos não encaixam nela. Ela tem regulações ao invés de leis.” (Montesquieu, 2000: 5.26.24.) Assim, além de registrar que a polícia se ocupava na época de assuntos menos importantes, em contraposição ao poder judicial, Montesquieu sublinha também a necessidade da rapidez na atuação policial. A polícia, diferentemente do juiz, não pode demorar em tomar decisões, especialmente quando intervém em emergências e em situações de risco, o que, como Bittner assinalava, constitui uma das marcas da sua função. Policiais do mundo todo destacam a dificuldade de decidir em décimas de segundo, às vezes sem conhecer bem o local ou o contexto, e considerando que essas decisões podem ter consequências graves. É justamente a possibilidade do uso da força conferida à polícia que magnifica as consequências, positivas ou negativas, da sua intervenção. Em suma, em função da urgência e da multiplicidade de situações que envolvem o trabalho da polícia, é impossível fazer com que o trabalho policial siga exatamente as diretrizes de uma norma, porque nenhuma pode ser suficientemente exaustiva ou específica. A lei, no melhor dos casos, poderia prover uma justificação da atuação policial depois dos fatos. E se um policial for questionado sobre uma ação com base em algum princípio, ele sempre poderia 89 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública responder “você tinha que estar aí” (Manning, 2013 :63). Isso leva a Skolnick, no seu livro clássico “Justice without Trial”, a descrever “a concepção de policial como um artesão mais do que como um ator legal” (Skolnick, 1966: 231). 4.2 OS RISCOS DA DISCRICIONARIEDADE Até aqui apresentamos evidências no sentido de que a discricionariedade é inevitável e pode ser desejável na medida em que permite uma resposta policial mais ajustada ao caso e ao contexto específico (Verhage, 2022: 88). Porém, existe também um lado obscuro do fenômeno que não pode ser ignorado e que apresentamos a seguir. Em primeiro lugar: A discricionariedade é prima irmã do casuísmo, isto é, se cada policial decide em cada momento segundo seus próprios critérios é muito possível que esses critérios variem de forma subjetiva e pouco criteriosa. E que dependam das crenças, ou dos preconceitos, do agente individual, distanciando-se do princípio de uma administração impessoal, de acordo com o artigo 37 da Constituição Brasileira. Em segundo lugar: E pelos mesmos motivos apontados acima, uma ampla e irrestrita margem de discricionariedade torna mais difícil garantir o princípio de igualdade perante a lei. Não seriasurpresa se o casuísmo acabasse provocando que alguns grupos sociais fossem tratados de forma mais favorável e outros de forma mais dura, ainda mais numa sociedade tão desigual quanto a brasileira (ver 90 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Módulo IV). Esse tratamento desigual já seria um abuso em si mesmo e poderia provocar outros. Em terceiro lugar: A ampla margem de decisão poderia aumentar a probabilidade de corrupção. Se a lei é aplicada seletivamente, como de fato acontece na prática, os funcionários corruptos poderiam exigir dinheiro para se omitir perante determinados transgressores enquanto perseguem outros. Com efeito, nessas situações a perseguição contra alguns aumenta o valor a ser cobrado dos outros pela omissão institucional. Em quarto lugar: A discricionariedade dificulta a transparência e a prestação de contas, na medida em que os membros de uma instituição atuam de formas diferentes em diferentes momentos e lugares e, portanto, carecem de uma posição institucional comum que possa ser monitorada e debatida. Dois temas de grande relevância para a polícia que têm sido vinculados à discricionariedade são a subcultura policial e a socialização informal, ambos por sua vez também estreitamente relacionados entre si. A ampla discricionariedade na tomada de decisões que não podem ser estreitamente pautadas por normas, abre espaço para que a subcultura organizacional, isto é o conjunto de regras e princípios informais que regem as relações dentro de uma instituição sem que sejam escritas nem oficialmente endossadas pela autoridade institucional, adquira grande importância na determinação de como os policiais vão agir. Claro que todas as profissões e instituições desenvolvem subculturas próprias, mas estas parecem ser especialmente influentes na polícia. 91 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “Minhas observações sugerem... que as normas localizadas dentro das organizações policiais são mais poderosas do que as decisões judiciais na conformação do comportamento policial, e que na realidade o processo de interação entre ambas explica em última instância como a polícia se comporta.” (Skolnick, 1966: 219) Alguns autores afirmam que, confrontada com a necessidade de produzir resultados, a polícia com frequência sacrifica a legalidade em prol da eficiência (Goldsmith, 2010: 95). A ideia que estaria por trás seria a de que não seria possível prover segurança seguindo a lei, pois essa última atrapalharia a consecução dos objetivos, uma ideia muito perigosa pois abre a porta para todo tipo de abusos. Se a cultura policial chegar ao ponto de se superpor à lei, chegaria a ser inócuo tentar modificar o comportamento policial através de mudanças legais, pois, se a subcultura policial for contrária às mudanças, ela encontraria formas de impedi-las na prática. Conectado com o ponto anterior, numerosos estudos com polícias de diversos países relatam que o impacto da socialização formal, isto é, da formação oficial nas academias de polícia, é muito menor do que a influência dos pares, ou seja, do que a subcultura policial. De novo, a discricionariedade na sua atuação profissional desempenharia um papel importante nessa predominância da socialização informal sobre a formal. “O que acontece tipicamente é que os policiais descobrem, depois de ter se graduado da sua formação de recrutas e de assumir seus primeiros cargos, que constantemente são chamados a tomar decisões; que relativamente pouco do que lhes fora ensinado parece aplicar às 92 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública situações que enfrentam; e que com frequência não tem orientação para decidir o que fazer numa situação dada. Eles aprendem gradualmente da sua associação com o pessoal mais experimentado e dos seus supervisores, que há um conjunto de “saber-fazer” no qual eles devem se inspirar.” (Goldstein, 1977: 101). 4.3 O QUE FAZER COM A DISCRICIONARIEDADE Frente à discricionariedade policial, há várias posições possíveis. A primeira é a negação. De fato, a visão tradicional mantinha que não havia discricionariedade no desempenho policial, que só começou a ser reconhecida no início dos anos 60 (Cordner & Scott, 2014), isto é, pouco tempo atrás. Inclusive hoje, muitos departamentos de polícia operam como se ela não existisse. A segunda opção é admitir que há discricionariedade, mas considerá-la como algo essencialmente negativo que deve ser combatido e reduzido à sua mínima expressão. Os setores que defendem essa visão costumam destacar vários argumentos para opor-se a ela: 1 o grande poder atribuído à polícia, que inclui a possibilidade de usar a força letal contra as pessoas; 2 a reputação que muitas polícias possuem de exceder a sua autoridade legal; 3 o fato de essa discrição tolerada ter sido abusada no passado. Uma terceira possibilidade é assumir a discricionariedade como natural e não fazer nada em relação a ela, deixando de lado os riscos que possa acarretar, que é a situação prevalecente em muitas instituições policiais. E a quarta possibilidade é aceitar a discricionariedade, mas se esforçar para estruturá-la e controlá-la dentro de parâmetros institucionais. Um dos defensores dessa visão, Goldstein argumenta que, a despeito dos riscos 93 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública inerentes à discricionariedade anteriormente mencionados, a falta de reconhecimento da natureza discricionária do trabalho policial é o que explica, ao menos em parte, alguns dos abusos e deficiências mais comuns nas operações policiais (Goldstein, 1977: 108). Segundo ele, a qualidade do serviço policial depende da forma de exercício da discricionariedade. O objetivo seria então formular princípios institucionais e protocolos de atuação que sirvam de orientação para o policial na rua e que o protejam contra punições arbitrárias em função do exercício da discricionariedade. Com efeito, muitas polícias têm se dedicado nos últimos tempos à criação de protocolos operacionais que traduzam os princípios abstratos em regras práticas que, se não determinam nunca plenamente o que deve ser feito, oferecem, no entanto, uma orientação mais explícita. A ideia é que uma posição institucional será sempre mais ponderada e cuidadosa do que o casuísmo de cada agente atuando por sua conta. Essa parametrização dos espaços de decisão deve favorecer também a supervisão dentro da instituição e facilitar a prestação de contas fora dela. De qualquer forma, a discricionariedade precisa sempre, como contrapartida, a necessidade de transparência no trabalho policial e de prestação de contas (accountability), como forma de evitar que essa flexibilidade seja usada de forma desigual ou em benefício do próprio policial ou de terceiros interesses (ver Aula 1 do Módulo III). O objetivo final é que a discricionariedade seja empregada, na medida do possível, em função do bem comum e de forma igualitária entre os diferentes grupos sociais. 94 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 5 – Legitimidade e Trabalho Policial 5.1 O CONCEITO DE LEGITIMIDADE A legitimidade pode ser definida como a crença de que o exercício de um poder é justo e adequado à situação, em outras palavras, de que tal poder deveria continuar a ser aplicado da mesma forma. Em consequência, a legitimidade do poder não é uma descrição da sua existência, o ser, mas está vinculada ao dever-ser. A crença sobre a legitimidade do poder procede daqueles que se submetem a ele. Por sua vez, aqueles que detêm o poder costumam acreditar quetêm direito a ele, mas isso não lhes confere legitimidade. Para que ela exista, é preciso que a crença seja compartilhada por aqueles sobre os quais o poder é exercido. A necessidade do conceito surge justamente porque um poder pode ser real e incontestado, mas ilegítimo. Nessa situação, as pessoas se submetem por medo ou coação, mas, se tivessem uma alternativa, se rebelariam. Frequentemente, apresenta-se uma oposição entre os conceitos de autoridade (autoritas), que contaria com legitimidade, e poder sem mais (potestas), esse último carecendo dela. A legitimidade pode ser relacionada a um regime político, a uma pessoa, a uma norma ou a uma instituição. Um governante legítimo é aquele que é aceito de forma espontânea pelos seus governados. Uma norma legítima é aquela que é considerada justa por aqueles que devem obedecê-la. Observe-se que a presença ou ausência de legitimidade é fundamental para o controle social. Se as pessoas aceitam as normas e os regimes políticos como legítimos, o custo da fiscalização e do controle social será mínimo, necessário apenas para aqueles sujeitos que são, excepcionalmente, transgressores. Por outro lado, se os membros de uma sociedade percebem 95 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública uma norma ou uma instituição como ilegítima, a tendência a desobedecer será frequente e o custo de fiscalização, muito elevado. Será preciso gerar ameaças e castigos para que as pessoas sigam normas que não aceitam de bom grau. Se para Sigmund Freud, o “superego” é a instância psíquica através da qual o indivíduo interioriza as normas que antes vinham de fora, fazendo com que ele as obedeça sem necessidade de vigilância ou castigo, a legitimidade cumpre uma função semelhante no nível social. Se uma coletividade assume uma norma como legítima, tenderá a se pautar por ela, independentemente da vigilância ou da imposição de sanções. O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) distingue três tipos clássicos de legitimidade ou dominação legítima (“Legitimen Herrshaft”): Legitimidade tradicional: Baseada nos costumes e na tradição histórica. As pessoas obedecem porque sempre foi assim e isso gerou a expectativa de que deveria continuar sendo assim; Legitimidade carismática: Os indivíduos seguem a uma pessoa concreta pelas suas qualidades individuais e sua influência. O que ele ou ela determinar será, então, legítimo. Essa legitimidade é pessoal e intransferível. Profetas, senhores da guerra, demagogos e alguns líderes políticos podem desfrutar desse tipo de legitimidade, que não precisa de justificação externa; e Legitimidade legal-racional: Fundamentada na existência de leis que, por sua vez, entende-se que seguem princípios racionais que beneficiam a coletividade. Esse é o tipo de legitimidade em que se baseia o Estado moderno (ver Aula 1 do Módulo 2). Para os contratualistas, que interpretam o Estado como resultado de um pacto entre os indivíduos, esse tipo de legitimidade fica ainda mais evidente, pois os próprios 96 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública indivíduos teriam cedido originalmente o poder ao Estado para seu próprio bem- estar. Dessa forma, ao ser eles mesmos a fonte original do poder, a legitimidade viria de forma natural. 5.1.1 A LEGITIMIDADE COMO BASE DO TRABALHO POLICIAL: “POLICING BY CONSENT” Como já foi dito na seção anterior, a legitimidade diminui drasticamente o custo de fiscalização das normas. Nesse sentido, resulta evidente que é essencial para a polícia, que é a instituição encarregada de vigiar o cumprimento das normas mais importantes, tipificadas penalmente, e de prender os responsáveis por transgredi-las. A doutrina policial britânica, inaugurada pela Polícia Metropolitana de Sir Robert Peel em 1829, passou a ser conhecida como “policiamento por consentimento” (policing by consent). A ideia é que a polícia só pode realizar seu trabalho de forma satisfatória se conta com a aceitação e a cooperação da sociedade. Contrariamente, a polícia dificilmente poderá funcionar a contento se a comunidade a vê de forma negativa ou, pior ainda, como inimiga. A polícia precisa ser aceita socialmente como instituição para poder desenvolver seu trabalho. A doutrina policial do “policing by consent” veio a ser resumida nos chamados “9 Princípios de Policiamento de Sir Robert Peel”. Na verdade, embora derivados das instruções gerais que recebiam os novos recrutas da Polícia Metropolitana de Londres em 1829, não há registro histórico de que Robert Peel tenha, ele próprio, enumerado esses princípios (Lentz et al., 2007). Eles aparecem pela primeira vez no livro de um historiador da polícia, Charles Reith, em meados do século XX (Reith, 1952), e têm feito um grande sucesso até o ponto de ter sido incorporados pelo governo britânico. Acesse: https://www.gov.uk/government/publications/policing-by- consent/definition-of-policing-by-consent O segundo desses princípios reza da seguinte forma: Saiba mais 97 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “Reconhecer sempre que o poder da polícia para cumprir as suas funções e deveres depende da aprovação pública da sua existência, ações e comportamento e da sua capacidade de garantir e manter o respeito público.” Assim, o primeiro requisito de uma polícia é que ela deve ser aceita pela sociedade, que deve aprovar não apenas a sua existência, mas também a sua forma de atuar. O terceiro dos princípios de Peel vai além ao afirmar que a polícia deve procurar ativamente a “cooperação voluntária do público na tarefa de garantir a observância das leis”, numa proposta que parece sugerir um papel de pedagogia social para os policiais, além de uma coprodução da segurança por parte dos cidadãos. Essa cooperação entre polícia e sociedade é mais esperável se, como afirma o princípio 7, “a polícia é o público e o público é a polícia”, frisando a noção de que os policiais não são senão membros da sociedade aos quais foi encarregada uma tarefa que, no fundo, é de todos. Uma sociedade que coopera com a polícia garante, por um lado, um menor nível de transgressão e, por outro, quando a transgressão acontece, significa que as pessoas colaborarão identificando os responsáveis e apresentando provas contra eles. Em suma, a inteligência policial depende fundamentalmente da cooperação ativa dos cidadãos. A legitimidade da polícia pode ser decomposta em dois níveis: 1º Nível: Em primeiro lugar, a legitimidade do próprio Estado a que ela representa. É muito difícil que uma polícia seja vista como legítima se pertence a um poder executivo que, em si mesmo, é percebido como ilegítimo. Isso é justamente o que acontecia com as polícias coloniais nos séculos XIX e XX, entendidas como órgãos de um poder externo e opressor. 98 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 2º Nível: Em segundo lugar, a polícia como instituição também precisa estabelecer sua própria legitimidade, para além da legitimidade do Estado. E para esse segundo nível de legitimidade a conduta dos policiais é o fator fundamental. Em sociedades democráticas, o nível de legitimidade do Estado tende a ser muito superior e, nessa mesma medida, o caminho para a polícia atingir também legitimidade é muito mais claro. Em sociedades autoritárias, onde a polícia é dedicada à proteção do regime, as chances de legitimidade institucional são muito pequenas. Entre os três tipos de legitimidade apresentados por Weber, a polícia depende fundamentalmente da legitimidade legal-racional. Ocasionalmente, ela pode também se beneficiar de algum grau de legitimidade tradicional ou carismática, por exemplo atravésde um chefe de polícia muito popular, mas o que fundamentará a sua aceitação popular de maneira geral é a sua observância das leis. O conceito de “polícia por consentimento” está fortemente vinculado ao de serviço policial que vimos na Aula 4 deste módulo, na medida em que o consentimento é muito mais provável se os cidadãos percebem que a instituição está ao seu serviço. Infelizmente, em muitos países da América Latina encontram-se realidades muito distantes do paradigma de policiamento por consentimento. Pesquisas de opinião mostram níveis de aprovação muito baixos para as polícias latino-americanas, em geral muito inferiores aos dos exércitos. Setores significativos da população consideram as polícias ineficazes ou pior, corruptas e excessivamente violentas. Nas áreas marginais das grandes cidades, onde moram os cidadãos com menos recursos, aqueles que não têm acesso a segurança privada e dependem, portanto, em maior medida da segurança 99 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública pública, as relações com as polícias costumam ser particularmente tensas. Em algumas zonas, a polícia é recebida com desconfiança ou inclusive hostilidade, e os policiais devolvem esse mesmo tratamento. Nesse sentido, a relegitimação das polícias é um desafio significativo em muitos países da região, particularmente entre os jovens e nas populações mais desfavorecidas. E não é só na América Latina. Reiner (1992), por exemplo, afirma que o desafio da polícia britânica na pós-modernidade é recuperar a legitimidade do velho “bobbie”. 5.2 OCEDIMENTAL E LEGITIMIDADE POLICIAL Os trabalhos de Tom Tyler (1990) têm projetado o conceito de justiça procedimental na compreensão dos motivos que levam as pessoas a obedecerem às leis. A ideia central é que a justiça pode ser dividida em dois componentes: a justiça distributiva, que tem a ver com o fato de as decisões finais serem justas; e a justiça procedimental, referida à justiça do procedimento seguido para chegar na decisão final, qualquer uma que ela seja. O postulado central é que se as pessoas percebem que os procedimentos através dos quais as decisões foram tomadas foram justos, elas aceitarão o veredito mesmo que não gostem do conteúdo. Considerando que as sentenças dificilmente agradarão a todas as partes, é fundamental então conseguir que os procedimentos sejam percebidos como justos e imparciais. Esse princípio foi inicialmente pensado para a administração de justiça, mas foi estendido também à polícia. Nesse último caso, os proponentes da teoria argumentam que a percepção de justiça procedimental por parte das pessoas depende do tratamento recebido por parte dos policiais. De acordo com Tyler e Meares (2019), a avaliação que as pessoas fazem dos contatos com a polícia depende de quatro elementos: 1 o grau em que elas percebem que tiveram uma oportunidade real de expressar seus pontos de vista e seus argumentos, o que na literatura se conhece com o termo de ‘voz’ (“voice”); 100 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 2 a percepção dos cidadãos de que os policiais foram imparciais e neutros, o que também inclui a explicação por parte destes últimos dos seus procedimentos; 3 o sentimento de ter sido tratado com respeito por parte da polícia, de uma forma que não fira a dignidade pessoal (ver Aula 2 do Módulo III); e 4 a percepção de que os policiais têm a intenção de beneficiar as pessoas e, portanto, de que seus motivos são louváveis. Um grande volume de estudos tem sido desenvolvido sobre a relação entre justiça procedimental e legitimidade policial. Uma meta-análise (ou seja, um estudo sintético que tenta extrair conclusões de um conjunto de pesquisas empíricas anteriores) de 56 pesquisas concluiu que existe uma correlação positiva entre a percepção de justiça procedimental e a legitimidade policial, mas que a direção causal dessa relação não pôde ser testada (Bolger & Walters, 2019, p. 98). Em outras palavras, não está claro em que medida a justiça procedimental melhorou a legitimidade policial ou, pelo contrário, em que medida uma polícia percebida como legítima tenderá se comportar de uma maneira mais respeitosa em relação aos procedimentos. Outra meta-análise anterior (Mazerolle et al., 2013) concluiu que o diálogo entre policiais e cidadãos é um mecanismo relevante para estimular a satisfação dos cidadãos, a confiança na polícia e a percepção de justiça procedimental. Diversas avaliações de impacto de programas de treinamento de policiais em justiça procedimental nos Estados Unidos encontraram uma redução dos incidentes de uso da força, mas nem sempre obtiveram uma melhora na legitimidade policial (Weisburd et al., 2022). A grande maioria desses estudos acontece nos países do Norte, em Estados Unidos e na Europa. A minoria de estudos em países do Sul Global, ou seja, países em desenvolvimento, nem sempre encontra resultados convergentes. Na Turquia, por exemplo, a utilização de protocolos de justiça procedimental para os policiais de trânsito conseguiu melhorar a percepção dos condutores em relação ao agente que parava seu carro, mas não em relação à polícia em geral (Sahin et al., 2017). Em Ghana, a percepção da justiça 101 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública procedimental não estava correlacionada com a disposição das pessoas a cumprir com as leis de trânsito (Tankebe et. al, 2019). De fato, a grande promessa dessa teoria era justamente que a percepção da justiça procedimental nas interações com a polícia levaria os cidadãos não apenas a melhorar a legitimidade policial, mas sobretudo a colaborar com a polícia e a cumprir as leis. Esse vínculo está longe de ser comprovado empiricamente, especialmente em países do Sul global com baixos níveis de legitimidade do Estado e uma forte percepção de corrupção policial. Podem os grupos criminosos atingir legitimidade? Em determinadas áreas de países como México, Colômbia ou Brasil é possível encontrar grupos criminosos que são apoiados por uma parte dos habitantes das comunidades onde moram. Isso se origina não apenas porque eles geram renda através das atividades ilegais, mas porque em alguns casos esses grupos desenvolvem atividades assistenciais para beneficiar a população (compra de medicamentos ou alimentos, organização de festas etc.), em função da omissão do próprio Estado que abandona muitos dos seus cidadãos à própria sorte. É muito comum que tais grupos adotem uma estratégia dupla, fazendo uso da coação e da violência contra indivíduos que não obedecem a suas ordens e, Na Prática Até aqui, falamos de legitimidade das leis e das instituições, isto é, de uma legitimidade legal. Mas é possível que pessoas ou grupos contrários à legalidade atinjam legitimidade? A resposta é que, a princípio, grupos criminosos podem receber legitimidade da mesma forma que o Estado. Vamos Refletir 102 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública ao mesmo tempo, da assistência às pessoas como mecanismo para ganhar legitimidade. Obviamente, existe uma correlação negativa entre a legitimidade de grupos criminosos e a da polícia, de maneira que a legitimidade dos primeiros pode ser considerada tanto causa quando consequência da crise de legitimidade da instituição policial. Quando os grupos criminosos recebem algum tipo de legitimidade, a tarefa da polícia se torna muito mais difícil. Nesses cenários, a repressão policial contra esses grupos não diminui necessariamente a sua legitimidade, pois ela depende de fatores estruturais mais profundos, como a omissão do Estado, que estão muito além do alcance da polícia. Mesmo assim, um dosobjetivos prioritários dela deve ser incrementar progressivamente a própria legitimidade e contribuir para criar condições para a redução da legitimidade dos grupos criminosos. 103 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Finalizando.... Neste módulo você aprendeu: Nesse módulo, começamos por apresentar as origens históricas da polícia desde a época clássica até os nossos dias. Se o conceito de polícia começou sendo sinônimo de governança das cidades num sentido muito amplo, o surgimento da polícia moderna foi resultado de um processo de profissionalização, incorporação pelo Estado e especialização de funções. A polícia perdeu todas as funções legislativas, judiciais e sancionadoras, e ficou encarregada do cumprimento da lei e da manutenção da ordem. A criação da polícia como instituição separada dos exércitos sinaliza, por um lado, a diferenciação entre segurança interna e externa e, por outro, a necessidade de não tratar como inimigos os cidadãos do próprio país, mesmo aqueles que tenham transgredido as leis. De acordo com Egon Bittner, a instituição policial se diferencia de outras instituições do Estado por duas características centrais: o uso potencial da força e o emprego em emergências. Na prática, os policiais acabam desenvolvendo diversas funções, inclusive assistenciais, para além da missão de fazer cumprir a lei e manter a paz social, mas se ressentem de ter que desempenhar essas outras tarefas, o que faz com que muitos deles questionem sua identidade profissional. De forma geral, há dois paradigmas gerais de polícia: uma polícia que tem como missão a preservação do poder político, inspirada na polícia francesa criada no século XVII, e uma polícia que pretende proteger os cidadãos, de acordo com o modelo pioneiro da Polícia Metropolitana de Londres fundada em 1829. Todas as polícias do mundo contêm em si mesmas uma parte do modelo francês e outra do modelo inglês. Isso se aplica também às polícias democráticas, que também precisam combater os crimes políticos. Mas estas últimas dão prioridade à proteção dos cidadãos sobre a preservação do Estado. Embora algo idealizada, a polícia londrina do século XIX representa até hoje um modelo para as polícias democráticas no mundo. Dentro do modelo de polícia para proteger a cidadania, há também duas opções: enfatizar o combate ao crime ou privilegiar a proteção das 104 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública pessoas. Ambos os extremos podem ser caracterizados pelos conceitos de “policial guerreiro”, que coloca a luta contra os criminosos como prioridade central, e “policial guardião”, que favorece a proteção e a prevenção sobre a repressão aos criminosos. Obviamente, a militarização da segurança pública tende a favorecer o policial guerreiro. Mesmo que ambos os aspectos sejam naturalmente complementários, a ênfase em um ou outro revela muito sobre a doutrina policial. Outro binômio muito relacionado com o anterior é a contraposição entre uma visão de polícia como serviço, comum nos nomes das polícias em países anglo-saxões, e uma polícia percebida como controle da sociedade. Uma das características centrais do trabalho policial é a discricionariedade, isto é, a necessidade de decidir o que fazer em contextos concretos sem que essa decisão esteja plenamente pautada por normas ou protocolos. Na prática, é impossível que uma norma possa prever todas as situações que podem surgir no dia a dia do trabalho policial. Além da multiplicidade dos contextos, a necessidade de contrabalançar direitos diversos e de agir com rapidez em emergências tornam a discricionariedade inevitável. Não serve de nada negá-la, mas é importante que ela seja pautada por normas e protocolos institucionais para evitar os riscos do casuísmo, da inequidade no trato de pessoas com diferentes perfis sociais e da corrupção. A última aula foi dedicada ao conceito de legitimidade, que equivale a aceitação de um poder como justo por parte daqueles que se submetem a ele. Para Weber, a legitimidade pode se originar na tradição, no carisma ou num conjunto de leis, e essa última é fundamental para alavancar a legitimidade policial num regime democrático. A legitimidade é essencial para que a polícia possa desenvolver o seu trabalho, recebendo apoio e informação da população a quem deve proteger. Esse é o cerne do conceito “policiamento por consentimento” que inspirou a polícia britânica até hoje. O conceito de “justiça procedimental” está relacionado não ao conteúdo das decisões, mas ao modo como são tomadas. No caso das polícias, a avaliação que o cidadão faz dos seus encontros com a polícia depende de se ele se sentiu ouvido, respeitado e tratado de forma imparcial. 105 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Com essas bases históricas e conceituais, esperamos ter desenhado um cenário sobre o papel da polícia numa sociedade democrática, como um ator central que não só vigia o cumprimento das normas acordadas entre todos, mas que também pode promover harmonia e coesão social. 106 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública MÓDULO 3 - POLÍCIA E A ESFERA DA POLÍTICA APRESENTAÇÃO DO MÓDULO Como vimos no Módulo 1, existe uma distância entre as leis que organizam formalmente os sistemas políticos democráticos e as normas informais que orientam as práticas sociais numa democracia. Entretanto, podemos afirmar que todos os regimes políticos que um dia já foram praticados possuem essa mesma característica. Em grande parte, essa dissociação deriva da relação entre os sistemas políticos e as estruturas de poder da sociedade e aumenta proporcionalmente ao incremento das desigualdades. No exercício de sua missão, os profissionais de segurança pública ocupam esse lugar em que a lei encontra suas condições materiais de aplicação. Um lugar conflituoso, mas crítico para a defesa da democracia como princípio e experiência viva. Pesquisas mostram que as condições de (in)segurança impactam os níveis de desigualdade, afetando diferencialmente as condições materiais dos sujeitos e o pleno exercício de direitos. Por conta dessas características, nos focaremos na relação dos profissionais de segurança pública com a esfera política. Apresentaremos o conceito de “política”, por um lado, enquanto capacidade de influenciar a distribuição de poder na sociedade e, por outro, como direito de associação e participação na construção das políticas públicas por parte dos “trabalhadores da segurança pública”. Trataremos as dimensões políticas do seu trabalho como um tipo de tensão permanente entre a necessidade de controle e o perigo de instrumentalização pela classe política, um risco inerente ao funcionamento das democracias e seus ciclos eleitorais. Nesse mesmo diapasão, introduziremos o tema da governança de polícia como uma forma de controle político. Finalizaremos colocando uma discussão sobre a importância das condições de trabalho dos profissionais de segurança pública. Entendemos que a democracia deve ser promovida a partir de instituições democráticas em seu cotidiano de trabalho e na relação com a sociedade. 107 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública OBJETIVOS DO MÓDULO Este módulo tem por objetivos: ● Desenvolver uma compreensão mais aprofundada da relação entre a polícia e o que chamamos de esfera da política, desconstruindo falsas dicotomias que podem ameaçar a democracia; ● Discutir os aspectos políticos do trabalho da polícia a partir do seu lugar na ordem do Estado e da sua relação com a estrutura das desigualdades; e ● Apresentar a perspectivado/a policial como um trabalhador da segurança pública, os dilemas e possibilidades dos modelos de organização existentes, reforçando a ideia de que apenas organizações que vivem uma democracia na prática podem reforçá-la na relação com a sociedade. ESTRUTURA DO MÓDULO Este módulo compreende as seguintes aulas: Aula 1 – Dilemas do governo político das polícias; Aula 2 – Polícia política e a política da polícia; Aula 3 – Polícia e a Reconstituição da esfera da Política; e Aula 4 – Polícia e (re)constituição da esfera política. 108 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 1 - DILEMAS DO GOVERNO POLÍTICO DAS POLÍCIAS Você já deve ter ouvido a frase “segurança pública deve ser uma política de Estado, não de Governo”. Você mesmo já deve ter recorrido a essa expressão algumas vezes. Em especial, naqueles momentos em que testemunhamos um bom trabalho ser interrompido por esse tipo de interferência que chamamos de “política”, esse é um pensamento que pode vir à tona. A frase mobiliza concepções diferentes de “política” para reclamar uma importante continuidade das políticas de segurança pública, buscando um certo nível de blindagem contra a esfera da política a partir da associação com a ideia de “Estado” e o caráter mais estável do funcionamento dos sistemas políticos. Ela mobiliza de forma bastante concreta, a partir do dia a dia dos/as profissionais de segurança pública, algumas das problemáticas de fundo para as reflexões que nos propomos a fazer aqui. Em especial, a importância da distinção entre o governo político das polícias e a sua instrumentalização político-partidária. Parafraseando o historiador e estadista francês François Pierre Guillaume Guizot (1787 - 1874), que lutou contra as tentativas de usurpação do poder legislativo pelo rei Charles X após a segunda Revolução Francesa de 1930, “quando a política penetra no recinto dos Tribunais, a Justiça se retira por alguma porta”. É a mais pura verdade que a interferência política sobre o sistema de justiça e segurança é um perigo para a democracia. Mas como podemos evitar essa interferência nefasta? A ironia, para efeitos da nossa discussão, é que a própria política, ou seja, o funcionamento democrático da esfera política, é a única que pode impedir o uso politicamente enviesado dos serviços policiais e do Estado. 109 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Como vimos nos módulos anteriores, o Estado corresponde ao conjunto do sistema político, incluindo aí o Governo, que se refere à condução política das funções executivas do Estado. Em uma democracia, a polícia presta contas ao Governo. Isso porque o Governo é eleito pelo povo e é nessa legitimidade que deve executar as suas funções de coordenação política dos vários órgãos constitucionalmente autorizados ao exercício do poder. Nesse sentido, o descontentamento refletido na expressão que abre a nossa aula sobre a ameaça constante de descontinuidade associada à interferência do Governo, não é totalmente infundado. Entretanto, a dissociação política que ela sugere é perigosa para a democracia. Se uma polícia instrumentalizada politicamente pelo Governo pode ser ruim, a sua emancipação da esfera da política é ainda mais preocupante. Enxergar a diferença entre uma coisa e outra, como veremos a seguir, implica uma ampliação da nossa visão sobre a relação da polícia com a esfera da política e encarna a própria distinção entre tirania e democracia. 1.1 ENTRE O CONTROLE E A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA Esse caráter de neutralidade ou melhor de justiça procedimental (ver Aula 5 do Módulo I) deve nortear a ação do Estado de uma maneira geral e é garantido por meio da submissão de seus órgãos a uma série de controles democráticos associados a esfera política. Mas o que estamos chamando aqui de “esfera da política”? Por que falamos em “controle político” das polícias? Você concorda que a atuação dos órgãos de segurança, enquanto burocracias de Estado, deve ser neutra e não promover ideologias de partidos e nem diferenciações de tratamento entre pessoas baseadas em sua raça, gênero, orientação sexual, religião ou classe social? Vamos Refletir 110 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Discutiremos algumas definições consagradas de “política” no início da segunda aula desse Módulo. O que chamamos aqui de “esfera da política” abrange tanto os espaços institucionais em que o poder é disputado na sociedade (ex. política eleitoral, associações e sindicatos, mídia) quanto a esfera pública de uma maneira geral. Nesse sentido, os “controles políticos” das polícias seriam as formas institucionais (ex. o Executivo, as corregedorias e comissões legislativas) e processos sociais de natureza política (ex. formação de opinião, construção das políticas de governo, manifestações populares) pelos quais são estabelecidos os limites e prioridades para a ação dessas organizações. Como vimos na seção anterior, esse espaço de construção do Governo é constrangido, em última instância, pelo parâmetro da legalidade em um Estado Democrático de Direito. Tendemos a abordar a discussão sobre controle das organizações policiais de maneira bastante limitada, focada em formas institucionais especializadas, como as Corregedorias. Falaremos melhor sobre o funcionamento dessas estruturas mais à frente. Por hora, é importante conveniar a ideia de que os controles políticos sobre as polícias (sobre a operação do Estado, de uma maneira geral) são instrumentos de governo que buscam garantir que o interesse público esteja sempre no centro de suas ações. Figura 4 Fonte: Revide. A diferenciação entre "interesse público" e "interesse privado" é fundamental para a teoria política e o Direito e tem sido discutida por vários autores, que adotam perspectivas diversas. Para Rousseau, o interesse público está ligado ao bem-estar coletivo da sociedade e pode conflitar com 111 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública os interesses privados, que corresponderiam aos desejos egoístas e individuais. Adam Smith, por sua vez, em "A Riqueza das Nações", argumenta que, por meio da busca do interesse próprio, os indivíduos contribuem para o interesse público ou geral. John Rawls, quando fala do princípio da "justiça como equidade" (2003), considera o interesse público como aquele que promove a igualdade de oportunidades e melhora a posição dos menos privilegiados. Robert Dahl, por sua vez, em O “Mito do Mandato Presidencial” (1991), fala que o interesse público não pode ser imediatamente associado ao exercício do Governo, mas que é um conceito contestável, resultado de um processo de negociação e competição entre grupos com capacidades diferenciais de incluir seus próprios interesses na agenda governamental em sociedades democráticas. Michel Foucault em a Microfísica do Poder (1979) afirma que o “governo” é a correta disposição de coisas e pessoas com vistas a produção de um objetivo adequado dentro de uma finalidade específica. Para Foucault, existem diversos espaços em que o governo é exercido na sociedade, numa empresa, na família, numa congregação religiosa, onde quer que se pretenda maximizar uma finalidade de maneira explícita. Para o autor, o governo político da sociedade é prerrogativa do Estado e a polícia constitui o seu principal instrumento. Com base no que já aprendemos nos módulos anteriores, podemos dizer que a finalidade específica do Governo em um Estado Democrático de Direito é a submissão da sociedade e do próprio Estado ao “império da lei”, que por sua vez permitirá atingir objetivos socialmente consensuais.Nesse sentido, a questão que se coloca para essa aula é como governar a polícia de modo a materializar essa finalidade. 1.2 ENTRE A GOVERNANÇA DE POLÍCIA E A GOVERNANÇA POLICIAL Em seu livro Governing the Police, David Bayley e Philip C. Stenning (2017) falam sobre os limites e possibilidades do exercício da governança democrática sobre as polícias e afirmam que as democracias enfrentam um 112 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública dilema fundamental nesse sentido. Os autores se perguntam, como podem os representantes eleitos democraticamente governar a polícia para que ela aja segundo o interesse público, evitando a tentação de usá-la para avançar seus próprios interesses político-partidários. Para responder a essa questão, os autores realizaram uma instigante análise focada em observar o cotidiano da relação entre políticos e comandantes operacionais da polícia em seis democracias do mundo anglo-saxão (Austrália, Grã-Bretanha, Canadá, Índia, Nova Zelândia e Estados Unidos). O objetivo da pesquisa foi compreender os fatores que contribuem para que, no exercício de seus respectivos papéis, a relação entre esses atores produza condições de governança focada na realização do interesse público. Os resultados são instigantes e merecem ser conhecidos pelo seu valor comparado. Entretanto, devido a associação direta entre o formato dos sistemas de governança das polícias e os tipos de sistemas legais vigentes nos países, a comparação deve ser sempre cuidadosa. Por exemplo, na Grã-Bretanha os autores identificaram uma mudança relevante no sistema de nomeação dos chefes de polícia local, que passaram a ser eleitos pela comunidade e não mais indicados pelo Executivo. Lembramos que o sistema legal vigente na Grã- Bretanha é a “common law” ou “lei comum”, em que a eleição para cargos do sistema judiciário é comum. Para os autores, essa mudança representou uma exposição positiva da polícia ao controle social, reforçando ideais de consentimento e legitimidade. No entanto, a medida também enredou os comissariados de polícia dos condados diretamente nos jogos de poder e alianças que caracterizam a vida política em nível local. Resultados como esse levaram os autores a concluírem que essa ambiguidade é inerente ao governo democrático da polícia e que um equilíbrio deve sempre ser buscado. O trabalho de Bayley e Stenning mostra também a importância das pesquisas sobre esse tema para que possamos conhecer esses desafios e contorná-los. 113 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Nos sistemas de “common law”, vigentes nos países anglo-saxões e nas suas colônias, a aplicação da lei depende fundamentalmente da jurisprudência anterior e, por isso, os diplomas legais tendem a ser menos detalhados. Contrariamente, nos sistemas de “civil law, adotados na Europa continental e nas suas colônias, os códigos legais escritos são a fonte primária do direito e, por isso, tendem a ser mais específicos. A jurisprudência nesses casos desempenha um papel menos importante. Proença Júnior, Muniz e Poncioni (2009) publicaram os resultados de uma exaustiva revisão da bibliografia nacional e internacional sobre governança em seu artigo com o instigante título “Da governança de Polícia à Governança Policial: controlar para saber; saber para governar”. Nesse trabalho, os autores propõem uma distinção entre “governança de polícia” e “governança policial”. A governança da polícia: corresponderia à institucionalidade dos mecanismos executivos que asseguram a aderência da polícia à democracia e as leis de um país. Ela resulta de uma composição entre as metas e métodos estabelecidos pelo Governo, as predileções, prioridades e problemas da comunidade de cidadãos que concede o mandato policial (autorização pública) e as demandas das próprias agências policiais. Estas últimas são colocadas a partir do campo da governança policial. A governança policial: constitui a medida de autonomia decisória concedida às polícias para gerir as suas próprias organizações com base em seu saber profissional específico. A governança de polícia não se confunde, mas contém e subordina a governança policial. Entretanto, pretensões de controle total das polícias Saiba mais 114 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública estariam fadadas ao insucesso, pois tenderiam a produzir uma burocratização excessiva das organizações e a estimular o imobilismo, prejudicando, em última instância, a própria finalidade de promover a “democracia como anterioridade, contexto e ambição” da ação policial (PROENÇA JÚNIOR; MUNIZ; PONCIONI, 2009, p. 32). A questão, mais uma vez, é a busca de um equilíbrio, de uma proporção ideal entre autonomia e controle político. Como apontado por Bayley e Stenning, a solução encontrada pelos autores está na busca das condições ideais de operação da governança policial, ou seja, da execução cotidiana de seu mandato. Para Proença Júnior, Muniz e Poncioni, a governança de polícia e a governança policial compartilham a tarefa de estabelecer as prioridades e a forma de utilização dos recursos para o policiamento. O entendimento sobre a importância dessa relação está colocado no próprio subtítulo do trabalho “controlar para saber; saber para governar”. Se para o trabalho de Bayley e Stenning aparece a metáfora de um gradiente, no caso de Proença Júnior, Muniz e Poncioni vemos emergir um ciclo virtuoso entre conhecimento e controle. Com base nas referências trazidas ao texto, gostaríamos de concluir a presente seção destacando três pontos que nos auxiliam a lidar com o dilema que colocamos entre o governo político das polícias e a sua instrumentalização político-partidária. 1º ponto: Em primeiro lugar, chamamos a atenção para o caráter inescapável desse dilema. Como vimos, mesmo alternativas que colocam a polícia sobre intenso controle social apresentam reveses e um equilíbrio entre autonomia e controle deve ser buscado. 2º ponto: Em segundo lugar, destacamos a relação entre a procura pelo conhecimento e as formas de controle político das organizações policiais. Nesse quesito, a abertura das organizações à realização de pesquisas empíricas, sejam conduzidas por seus próprios agentes ou por atores externos, é 115 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública fundamental, assim como o diálogo constante com a esfera da governança policial, ou seja, com as exigências práticas da execução do mandato. 3º ponto: Um terceiro ponto colocado pelos autores e que toca especialmente o tema de que tratamos é a importância de uma arquitetura institucional que consiga traduzir as crescentes complexidades das funções de segurança pública e que faculte uma supervisão equilibrada da aplicação dos recursos policiais e o monitoramento de seus resultados. O Sistema Único de Segurança Pública (Susp) é uma tentativa nesse sentido. Por fim, esperamos ter conseguido esclarecer o tema da interferência dita “política” de Governos sobre a segurança pública. Na verdade, o que expõe as organizações a estas interferências é a falta de regras claras e de disposição para governar a polícia de forma equilibrada e informada, a partir de estruturas e processos institucionais de governança que devem ser construídos de forma pactuada. 1.3 CONTROLE SOCIAL E ACCOUNTABILITY Como esperamos que tenha ficado claro a partir da discussão da seção anterior, a relação entre conhecimento e controle é central para o governo da polícia, assim como a existência de uma arquitetura organizacional abrangente, que articule as diversas instâncias de controle político das organizações policiais. Conheceremos melhor asestruturas institucionais previstas pelo Sistema Único de Segurança Pública para esse propósito no módulo 4, que vai tratar do histórico, funcionamento e arquitetura do SUSP. Elas incluem conselhos, comissões e sistemas de informação que formam a governança do sistema. Na presente seção, vamos tratar de três mecanismos importantes para a viabilização da governança de polícia: a participação e controle social, a articulação entre as formas de controle externo e interno, e a discussão sobre a relação entre inteligência organizacional e accountability. 116 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 1.4 CONTROLE SOCIAL E ACCOUNTABILITY Definir participação social implica entender as múltiplas ações que diferentes forças sociais desenvolvem com o objetivo de influenciar a formação, execução, fiscalização e avaliação de políticas públicas. A participação da sociedade na gestão de políticas e programas públicos é chamada de controle social. O paradigma da participação social nas democracias advém de duas importantes constatações. A primeira é que o Estado não possui todas as respostas para o caráter multifacetado dos problemas que afetam sociedades de escala e complexidade crescentes. Nesse sentido é que afirmamos, por exemplo, que as políticas públicas devam estar baseadas em diagnósticos detalhados dos contextos e valores sociais de seus potenciais beneficiários e beneficiárias. Para que isso aconteça, a participação da população é condição sine qua non. Em segundo lugar, o nível de participação em uma determinada política pública é fundamental para a adesão social necessária à sua implementação e à consecução de seus objetivos. Figura 5 Fonte: Departamento de Polícia da Cidade de Lovejoy, Georgia - E.U.A. Projetos de policiamento comunitário são um bom exemplo de iniciativas que sofrem com a descontinuidade nas políticas de segurança pública, principalmente em vizinhanças marcadas pela desconfiança em relação ao Estado e seus agentes. Nesses lugares, um período prolongado de cooperação positiva entre as forças policiais e a comunidade é fundamental para a (re)construção das bases de legitimidade de suas 117 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública ações. Esses projetos encontram-se inseridos no conjunto das políticas de governo e sua continuidade depende de uma série de fatores internos e externos, incluindo a própria prerrogativa do governo de encerrar as suas atividades. A proximidade com a comunidade constitui uma importante ferramenta de governança das polícias na democracia. Entretanto, como buscamos mostrar em nossa aula, toda a forma de governo guarda o risco prático da instrumentalização política. No caso do policiamento comunitário, pesquisas mostram que esse risco advém de grupos locais que concentram poder econômico e que tentam definir as prioridades do policiamento de forma não-representativa das demandas da comunidade como um todo (ver Muniz et al, 1997; Skogan, 2004). Lidar com esse tipo de risco implica que as polícias busquem alternativas para contornar esses desequilíbrios, criando oportunidades iguais de participação social para ouvir as demandas da população de forma ampla. Na segurança pública, o princípio democrático segundo o qual todos os que são atingidos por medidas sociais e políticas devem participar de seu processo decisório acumulou avanços importantes no século XXI, com a revolução digital e o avanço da política de Dados Governamentais Abertos (do Inglês Open Government Data - OGD; ver box informativo). Entretanto, ainda é bastante limitado pelos argumentos da técnica e do segredo. A técnica blinda as organizações policiais em relação à participação social com base na tese de que apenas policiais tem conhecimento para discutir a polícia. A polícia é um órgão público e o público, seja ele leigo ou especializado, tem o direito de ter sua perspectiva considerada. O argumento do segredo afirma que o compartilhamento de informações sobre o funcionamento das polícias pode comprometer a segurança da população e a integridade de suas operações. De fato, existem informações que circulam nos ambientes de trabalho da polícia que são altamente sensíveis e condições de acesso devem ser estabelecidas. Entretanto, o segredo não deve ser a regra geral, mas a exceção em uma democracia. Além disso, muito embora seja óbvio que certos assuntos exijam a perspectiva específica dos policiais para serem encaminhados, como opções mais adequadas de calibres policiais ou de viaturas para manobras de 118 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública direção defensiva, ainda assim, a decisão de como utilizá-los permanece sendo política, ou seja, sujeita ao escrutínio da sociedade. 1.5 RELAÇÃO ENTRE CONTROLE EXTERNO E CONTROLE INTERNO O primeiro grau de controle em qualquer sistema de responsabilização policial são os mecanismos de controle interno das polícias. Tais mecanismos possuem três componentes principais: 1 padrões profissionais e de integridade, 2 supervisão e monitoramento contínuos e 3 relatórios internos e mecanismos disciplinares (DCAF, 2015). Todas as ações policiais devem estar fundamentadas na lei. No entanto, as definições legais podem ser insuficientes quando se trata do exercício diário dos poderes da polícia (ver Aula 3 do Módulo 2). É imperativo, portanto, que esta desenvolva padrões profissionais abrangentes (códigos de conduta), fornecendo orientações claras sobre o exercício prático dos deveres e poderes dos agentes. A supervisão e monitoramento contínuos visam verificar a conformidade dessas práticas quotidianas de policiamento com a lei, as políticas e os padrões de integridade, detectar comportamentos ilegais e/ou antiéticos, mas principalmente a melhora geral do serviço e da eficácia da instituição (ICRC, 2013, p. 140). O mesmo se aplica à prática de produção de relatórios internos e aos mecanismos disciplinares formais, como as corregedorias. Entretanto, outro componente central dos sistemas de responsabilização e governança da polícia em uma democracia são os mecanismos independentes para tratar tanto denúncias internas de irregularidades e abusos de poder como as queixas públicas contra a polícia de uma forma imparcial. Chamamos essa dimensão de mecanismos de controle externo das polícias. Existe uma variedade de estruturas e processos que conformam essa esfera de responsabilização e governança das organizações, na estrutura do Judiciário, do 119 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Executivo e do Legislativo, como as comissões de inquérito, as ouvidorias de polícia, os termos de ajuste de condutas, dentre outros. A articulação entre os mecanismos de controle interno e externo das polícias é essencial para a construção de um sistema de responsabilização e governança policial funcional, tanto numa perspectiva preventiva quanto reativa. 1.6 INTELIGÊNCIA ORGANIZACIONAL E ACCOUNTABILITY Segundo Couto e Macedo-Soares (2004), a “inteligência organizacional” seria a capacidade coletiva de uma organização para identificar situações que justifiquem iniciativas de aperfeiçoamento e de conceber, projetar, implementar e operar os sistemas aperfeiçoados para propiciar a utilização ótima de recursos intelectuais, materiais e financeiros da própria organização. Organizações inteligentes sabem lidar com as informações produzidas pelo seu funcionamento, transformando o registro meramente burocrático de tarefas em insumos de conhecimento a partir da sua catalogação e análise. Muitas vezes, as organizações não dispõem dessa capacidade instalada e podem contar com o apoio de instituições externaspara a sua consecução. Figura 6 Fonte: https://digital.gov/2021/10/08/census-led-prize-challenge-incentivizes-using- open-data-for-good/ O “Open Data for Good Grant Challenge” foi uma experiência de Dados Governamentais Abertos (do Inglês Open Government Data - OGD) lançada pelo Governo dos Estados Unidos em 2021 para estimular o uso 120 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública de dados públicos no desenvolvimento de aplicações que resolvessem problemas relevantes para os cidadãos americanos. O avanço da digitalização no setor público conduziu à produção de grandes quantidades de dados, tornando o Estado um dos principais produtores de dados processáveis na economia digital. Nesse contexto, parcerias com centros de pesquisa e a iniciativa privada são comuns e se mostram estratégicas na busca por alternativas para o incremento da capacidade de planejamento e execução das organizações públicas. Ao aderir à política de Dados Governamentais Abertos, as instituições públicas tornam-se mais transparentes e responsáveis perante os cidadãos. Ao incentivar a sua utilização, reutilização e distribuição gratuita, os governos promovem soluções de políticas públicas inovadoras e centradas nos cidadãos. A ideia de accountability está diretamente associada às boas práticas de governança democrática no setor público. Esta é formada por dois componentes principais: “prestação de contas”, que é o fornecimento de informações, e “responsabilização”, por meio da qual é feito um julgamento sobre a adequação do comportamento, com base nesta e em outras informações. Em português, a palavra, que é de origem Inglesa, é comumente substituída por termos como “dever de transparência e prestação de contas”. A possibilidade de responsabilização do Governo significa que os funcionários públicos – eleitos e não-eleitos – têm a obrigação de explicar as suas decisões e ações aos cidadãos. Entretanto, para que o Governo seja passível de responsabilização, este precisa adotar uma política de dados transparente e práticas de prestação de contas regulares à sociedade. Em última instância, a organização precisa manter padrões de registro, sistematização e difusão das informações produzidas pelo seu funcionamento (relatórios, boletins, fichas), de modo que estas formem conjuntos de dados processáveis e publicáveis. 121 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 2 – POLÍCIA POLÍTICA E A POLÍTICA DA POLÍCIA 2.1 Polícia e Política Na presente aula, discutiremos a relação da polícia com a esfera da política a partir da caracterização do seu lugar estrutural na organização do Estado e da ordem social. Para explorar esse tema, iniciaremos nossa discussão pela definição do sociólogo Max Weber. Segundo Weber, a política se caracteriza como um meio de exercer influência sobre a distribuição, manutenção ou transferência do poder em uma determinada associação política (WEBER, 2011). “Todo homem, que se entrega à política, aspira ao poder — seja porque o considere como instrumento a serviço da consecução de outros fins, ideais ou egoístas, seja porque deseje o poder “pelo poder”, para gozar do sentimento de prestígio que ele confere.” (WEBER, 2011, p. 26). A partir dessa definição de política, passaremos agora a tratar das diversas maneiras por meio das quais o trabalho da polícia é influenciado e influencia a distribuição de poder na sociedade por meio de pesquisas que mostram como as condições de insegurança interferem no acesso a bens e serviços, como educação e saúde, atingindo os grupos sociais de forma diferenciada. É nesse sentido que entendemos que a atuação da polícia possui um impacto político importante, em termos “weberianos”. 122 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Figura 7 Fonte: https://www.imdb.com/title/tt2137321/ O documentário “The Dorp: 40 days of our lives” (2009), dirigido pelo cineasta sul-africano Max Fabian Meis, retrata a dimensão geracional da filiação às diversas gangs juvenis que operam na região dos Cape Flats, na Cidade do Cabo, e coloca com clareza gráfica os efeitos da violência armada na vida de uma comunidade. O termo “dorp”, em Africâner, significa uma pequena cidade, ou vila. O documentário acompanha quatro personagens que representam quatro gerações (infância, juventude, idade adulta e terceira idade) em caminhadas pelo seu bairro para explorar suas diferentes visões sobre o lugar e os graves problemas sociais que o afetam. Todos os personagens almejam um futuro melhor, mas parecem presos num círculo de pobreza e violência difícil de ser rompido. Comecemos nossa discussão pelas formas através das quais a política de segurança pública é afetada pelas relações de poder na sociedade considerando recortes de raça, gênero, classe social, capacidade física, local de residência, orientação sexual dentre outros. Quando analisamos o perfil das áreas mais afetadas pela violência e a insegurança em termos de sua população residente, características urbanísticas e de habitação podemos observar certos padrões de concentração. Esses padrões são indicativos de fatores estruturais 123 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública que operam sobre aqueles espaços de modo a torná-lo mais suscetíveis à violência e suas consequências. Atualmente, o entendimento de como esses diferentes pertencimentos afetam à exposição à violência tem sido profundamente influenciado pelo que ficou conhecido como “teoria da interseccionalidade” (ver Crenshaw, 2017; Collins & Bilge, 2020). A teoria da interseccionalidade se concentra na análise das interconexões entre diferentes formas de opressão, discriminação e desigualdade a que indivíduos ou grupos podem estar submetidos e que operam simultaneamente no sentido de aumentar ou reduzir a probabilidade destes figurarem como autores ou vítimas de violência. Por exemplo, no Brasil, as maiores vítimas e autores em casos de violência armada são do sexo masculino. Os homens, entretanto, não estão igualmente expostos a esse tipo de violência. Homens negros, jovens e periféricos estão estatisticamente mais expostos à violência armada (ver Costa & Lima, 2017). Nesse caso, além do sexo, a raça, a faixa etária e o local de residência dos sujeitos operam de forma articulada para construir uma situação de exposição diferencial à violência. A interseccionalidade explora como estas diferentes desvantagens se acumulam, operam de forma articulada na vivência social, comunitária e familiar dos sujeitos e como seus efeitos se sobrepõem para configurar uma situação de desigualdade e desempoderamento estrutural. Medeiros (2019), afirma que essa reflexão é importante de ser incorporada às políticas públicas para que estas não reproduzam cegamente as situações de desigualdade e recomenda algumas medidas: 1 Foco no espaço e nos modos de vida que nele se desenvolvem para entender como as múltiplas desvantagens operam sobre os sujeitos; Saiba mais 124 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 2 Adoção de uma perspectiva crítica sobre o modo como as políticas públicas são planejadas, implementadas e avaliadas (ciclos da política); 3 Criação de mecanismos antidiscriminação e de estratégias que promovam a inclusão e representatividade social no processo da política pública como um todo; e 4 Adoção do modelo de políticas públicas baseadas em evidências. Figura 8 Fonte: Redes da Maré, 2021. Uma outra dimensão política importante e que se relaciona com as políticas de segurança pública e o trabalho da políciaencontram-se consolidadas em uma bibliografia sobre os impactos ou custos sociais da violência. Esses trabalhos também utilizam os recortes de gênero, raça, classe social etc., mas podemos dizer que se focam mais nas consequências da violência, enquanto a análise interseccional parte de uma situação de exclusão e opressão para buscar as suas causas. Em verdade, as duas abordagens são complementares. Pesquisas que busquem investigar os efeitos da violência urbana sobre a frequência escolar, por exemplo, podem identificar que certas áreas das cidades são mais afetadas que outras nesse sentido. Pesquisa desenvolvida pela Iniciativa de Defesa da Infância do Departamento de Justiça dos EUA (Swaner, Ayoub & Rempel, 2015) e pelo 125 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública escritório especial das Nações Unidas (United Nations, 2020), mostram que a exposição de crianças a situações de violência continuada pode prejudicar o seu desenvolvimento emocional, psicológico e até mesmo físico. As crianças expostas à violência têm maior probabilidade de ter dificuldades na escola, abusar de drogas ou álcool, agir agressivamente, sofrer de depressão ou outros problemas de saúde mental e envolver-se em comportamentos criminosos quando adultos. Estudo desenvolvido pelo Fundo Monetário Internacional (Ouedraogo & Stenzel, 2021) em países da África Subsaariana, por sua vez, sugere que um aumento de 1 ponto percentual na violência contra as mulheres está associado a um nível de atividade econômica 9% inferior. No curto prazo, isso acontece porque as mulheres provenientes de lares abusivos tendem a trabalhar menos horas e a ser menos produtivas quando trabalham. No longo prazo, níveis elevados de violência doméstica podem diminuir o número de mulheres na força de trabalho, minimizar a aquisição de competências e educação pelas mulheres e resultar em menor investimento público e geração de riquezas em geral. Sabemos que o trabalho da polícia não vai resolver o problema da desigualdade. As condições de segurança da população também não dependem unicamente da ação das polícias. A segurança, em muitos aspectos, é uma condição existencial que envolve a percepção das pessoas sobre as suas condições de vida, como o acesso a moradia digna, emprego e liberdade de circulação. Entretanto, como vimos até aqui, a segurança, enquanto direito a uma vida livre dos efeitos deletérios do crime e da violência, é fundamental para o acesso a direitos e a recursos materiais. Enquanto principal instrumento de intervenção direta da política de segurança pública, o trabalho da polícia é fundamental para a construção das condições de usufruto pleno de direitos e de desenvolvimento dos sujeitos. 126 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 2.2 Polícia política Uma “polícia política”, diferente de uma “polícia democrática”, opera fora dos limites da soberania popular que, numa democracia, delimita o campo de ação, métodos e prioridades dos serviços policiais. Ela é um instrumento da vontade personalista de um ditador, de um partido político ou instituição que busca manter uma situação de dominação ou alcançá-la por meio do uso de violência contra dissidentes e oposicionistas. A polícia política opera nas sombras, no sentido de que suas atividades não estão sujeitas aos controles sociais e políticos de uma democracia, implementados, como vimos, por meio do que chamamos governança de polícia (Proença Júnior, Muniz & Poncioni, 2009). A “polícia política” não é, entretanto, sinônimo de “polícia secreta”, menos ainda de “serviços de inteligência”. Podemos chamar de polícias secretas os serviços de coleta de informações que utilizam técnicas sigilosas de vigilância, infiltração, recrutamento de informantes e interceptação de mensagens. Muito embora as polícias políticas possam incorporar estas técnicas ao seu trabalho de supressão de dissidências ao regime, ela não necessariamente atua inteiramente com base no segredo. Isso porque as demonstrações públicas de violência servem para dissuadir manifestações de descontentamento. As polícias secretas, por sua vez, não podem ser confundidas com os serviços de inteligência que constituem uma parte importante da manutenção da soberania mesmo em regimes democráticos. Portanto, a confusão entre polícia política, polícia secreta e serviços de inteligência ocorre por conta dessa superposição de métodos, mas também pelo fato de setores de inteligência estatais em regimes democráticos terem sido utilizados em ocasiões em benefício do governo e contra a oposição. O perigo dos serviços de inteligência se tornarem polícias políticas é real exatamente pela mistura perigosa entre o imperativo do segredo de suas operações e a sua proximidade com o poder político. Com baixa transparência 127 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública e controle social, os serviços de inteligência estão sujeitos a serem desviados da missão que lhes compete, para um trabalho mesquinho de coleta de informações contra grupos oposicionistas. Nesse sentido, respeitadas as necessidades específicas desse tipo de atividade, os serviços de inteligência também devem estar submetidos a estruturas de governança e prestação de contas, desde que as pessoas destinatárias estejam integradas aos “círculos de sigilo” da comunidade de inteligência no interior das três esferas de governo. O foco maior no controle interno da atividade de inteligência deve, portanto, ser complementado pela aplicação rigorosa de padrões de integridade e ética profissional à conduta de seus membros. Figura 9 Fonte: https://www.brookings.edu/books/secrets-and-spies/ Em 2017, uma série de ataques terroristas em Londres e Manchester mataram trinta e seis pessoas e feriram quase duzentas outras. Três dos seis agressores eram conhecidos do Serviço de Segurança Britânico, dois deles tendo sido anteriormente objeto de interesse e um, Khuram Butt, de uma investigação ativa. Essa situação levantou questões sobre os níveis de prestação de contas dessas agências no Reino Unido. A sociedade, o Parlamento Britânico e o Judiciário passaram a questionar o serviço de inteligência do país e a forma como o dinheiro público estava sendo aplicado por estas agências. O livro “Secrets and Spies” (Segredos e Espiões) reúne informações sobre esse e outros casos, bem como a 128 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública literatura técnica especializada e sociológica sobre o tema, para discutir em profundidade a questão da busca desse equilíbrio difícil entre segredo e transparência que deve marcar o funcionamento dos setores de inteligência em uma democracia. O jurista Roberto Romano, Professor da Unicamp, em seu artigo “Sigilo Jornalístico e Segredo de Estado” (2006), coloca essa questão de forma definitiva. Em suas palavras, a “democracia começa e termina com o segredo” (:226). Essa frase encarna perfeitamente o caráter dilemático da questão. Se, como afirma Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território e População” (FOUCAULT, [1978] 2008), conhecer as características de uma população é fundamental para o governo da sociedade, função para a qual colaboram tanto a estatística como a própria atividade de inteligência, a limitação desse saber-poder do Estado foi fundamental para o surgimento do Estado Democrático de Direito. O resultado que emerge do processo de instrumentalização política das polícias pode ser definido como um “Estado policial”. O jurista francês Raymond Carré de Malberg (1861–1935) oferece uma das mais utilizadas definições desse conceito. Nas palavras do autor, em um Estado policial:“a autoridade administrativa pode, de modo discricionário e com uma liberdade decisória mais ou menos completa, aplicar aos cidadãos todas as medidas que ela julga útil de serem tomadas por iniciativa dela mesma, para enfrentar circunstâncias e atingir em cada momento os fins a que se propõe. O Estado policial se opõe ao Estado de direito.” (Malberg, 1920). Palavra do Especialista 129 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Á título de conclusão, podemos dizer que existem dois caminhos para a degeneração de uma polícia democrática em uma polícia política. Ambos se nutrem da falta de transparência e submissão aos controles políticos e democráticos. 1º caminho: O primeiro e principal deles, como vimos, é a permeabilidade das organizações à instrumentalização política pela ausência de um sistema de governança de polícia. 2º caminho: O segundo, como tratamos nesta seção, é o argumento da técnica e do segredo, que blinda a polícia do controle da sociedade e facilita o seu uso político por governantes autocráticos. Essa mesma fragilidade, entretanto, tende a redundar na emancipação política das organizações policiais, ou seja, na sua total independência dos controles políticos democráticos. Esse é o problema principal da ideia equivocada de que a política deva passar longe do trabalho da polícia. Se a política é um meio de disputar o poder na sociedade, como nos define Max Weber, e é verdadeira a máxima imortalizada por John Dalberg- Acton de que o poder absoluto corrompe absolutamente, a busca por uma relação equilibrada entre a polícia e a esfera da política se mostra fundamental para uma polícia verdadeiramente democrática. 130 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 2.3 Políticos de esquina Em uma situação em que os membros de uma sociedade deixam de reconhecer a capacidade do Estado de prover alternativas justas e adequadas para o encaminhamento dos conflitos sociais, este perde significativa capacidade regulatória. As pessoas deixam de reportar esses conflitos, que passam a “não existir” como registros oficiais (subnotificação) e podem passar a ser administrados fora do campo estatal, como no recurso a formas de justiçamento ou a grupos que disputam a autoridade do Estado. Como vimos, não é possível governar aquilo que não se conhece, menos ainda quando não existe reconhecimento da legitimidade para tal. Essa falta de reconhecimento pode ter diversas causas contextuais, como a distância e o isolamento de comunidades, a sua prolongada exposição a situações de violência perpetrada por agentes estatais, a existência de grupos locais que capturam funções de regulação disputando com o Estado a legitimidade para tal, dentre outras. Nessa aula, entretanto, vamos identificar algumas causas estruturais importantes nesse sentido e que mostram que a construção da legitimidade da lei do Estado é um processo constante e diário de convencimento cujo objetivo é ganhar “corações e mentes” para as vantagens da mediação estatal dos conflitos. Esse fato é histórico e contraria um certo senso comum “legalista” que entende que a simples existência da lei produz efeitos regulatórios imediatos, inequívocos e definitivos sobre a sociedade. Quando as pessoas apresentam forte adesão às leis, esse estado de ordem é com certeza fruto de um esforço continuado de construção. Essa é uma construção política, porque constrói a legitimidade do Estado e conforma o espaço regulatório das sociedades. Mais do que a simples aplicação de sanções, a redução desse intervalo entre a lei e sua obediência envolve um esforço orientado de mediação e elaboração simbólica. A capilaridade da ação da polícia a coloca exatamente nesse lugar conflituoso em que a lei, enquanto formulação ideal, encontra as suas condições materiais de realização no mundo e por isso os policiais desempenham um papel fundamental nesse sentido. 131 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Antes de falarmos sobre estas características do trabalho policial, vamos tratar das causas históricas dessa condição. Segundo Norbert Elias (1990), no mundo ocidental a história do “processo civilizador” foi marcada por dois movimentos principais. 1º movimento: Em termos sociais, este se caracterizou pela contínua transformação do que o autor chamou de “padrões de vergonha e repugnância”, fontes simbólicas importantes para o exercício do controle social informal ou difuso. 2º movimento: Em termos político-institucionais, transformações nas sociedades europeias levaram à progressiva concentração do direito ao uso legal e legítimo da violência na figura do Estado, que passou a exercê-lo por meio de um grupo de indivíduos profissionalmente treinados para tal (ver Aula 1 do Módulo I). Dentre as categorias profissionais autorizadas a fazê-lo, a polícia definitivamente é uma das mais presentes no cotidiano da vida em sociedade. Nesse sentido, a consolidação do monopólio estatal da violência no mundo moderno, a partir do século XVIII, trouxe como principais vantagens civilizatórias a maior imparcialidade e objetividade das funções de regulação e de produção de justiça no âmbito do Estado, que passou a operar como uma terceira-parte neutra na intermediação dos conflitos sociais. A desvantagem desse movimento é que com a retirada dessas funções da comunidade, criou-se um hiato de reconhecimento entre: A lei universal, aplicável igualmente a todos. 132 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública E a norma social, que reconhece os atributos da pessoa e sua trajetória para a produção de alternativas de regulação adequadas a cada situação específica. Acontece que, por vezes, as demandas de natureza moral que informam as reivindicações por justiça das comunidades não são contempladas pelas alternativas universais oferecidas pelo Estado. William Ker Muir (1977), em seu livro “Street Corner Politicians”, define os policiais como “políticos de esquina”. Isso porque sua função seria marcada por um trabalho cotidiano e diligente de fazer com que as “leis do mundo” (normas sociais e práticas culturais) possam encontrar o “mundo das leis” (normas positivadas e universais). O autor fez seu trabalho de campo no departamento de polícia da cidade norte-americana de Lacônia4. Numa democracia, como vimos, esse trabalho da polícia precisa obter consentimento social e Muir pensava esse atributo em oposição à necessidade de aplicação da força. Quanto maior o consentimento, menos a necessidade de usar meios mais invasivos para obter a submissão das pessoas às leis. Essa competência, entretanto, demandava um entendimento das percepções sobre justiça e sobre a natureza dos conflitos e daquilo que está sendo disputado pelas pessoas. Nesse sentido, o trabalho do antropólogo Luis Roberto Cardoso de Oliveira pode nos auxiliar na caracterização dessa problemática. Em seu texto “Existe violência sem agressão moral?” (2008), o autor apresenta casos em que circunstâncias de desrespeito à cidadania não são devidamente captadas pelo processo judicial ou pela linguagem dos direitos universais. Com base em suas análises, ele propõe o conceito de “insulto moral” como uma dimensão importante do fenômeno jurídico e do Direito. Nas palavras de Cardoso de Oliveira, 4 Nome fictício dado pelo autor. 133 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “Trata-se de direitos acionados em interações que não podem chegar a bom termo por meio de procedimentos estritamente formais e que requerem esforços de elaboração simbólica da parte dos interlocutores para viabilizaro estabelecimento de uma conexão substantiva entre eles, permitindo o exercício dos respectivos direitos.” (OLIVEIRA, 2008, p. 136). O trabalho de “elaboração simbólica” a que o autor se refere implica que os interlocutores de casos como esses estejam abertos a reconhecer demandas por “respeito” e “consideração” que muitas vezes permeiam as percepções das pessoas sobre o que constitui uma agressão, formas “satisfatórias” de reparação e o próprio significado social do direito. O limite desse trabalho de mediação, num Estado Democrático de Direito, será sempre a lei. Em seu livro "Policing the Frontier: An Ethnography of Two Worlds in Niger" (Policiando a Fronteira: Uma Etnografia de Dois Mundos no Níger), Mirco Göpfert, também aborda essa questão das moralidades que moldam as demandas regulatórias da sociedade e, por consequência, as práticas policiais. Göpfert aborda os dilemas dos policiais para fazer cumprir a lei em um contexto de fraca penetração e legitimidade das instituições do Estado na cidade de Godya5, localizada na zona de fronteira entre o Niger e a Nigéria. Naquele contexto, segundo o autor, mesmo os próprios policiais de Godya entendiam que as instituições e leis do Estado eram inadequadas para trazer justiça aos modos de vida das pessoas e tentavam produzir formas mutuamente compatíveis de sociabilidade e moralidade entre a forma burocrática e a vida vivida. Ele chamou essa atividade de “trabalho de reparação”, um esforço para reparar a lei por meio da incorporação de concepções populares de certo e errado em seu trabalho rotineiro, produzindo maior adesão social às leis do Estado. 5 Nome fictício dado pelo autor. 134 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 3 – POLÍCIA E A RECONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA POLÍTICA Encerramos a última aula (Aula 2) deixando alguns conceitos importantes para a discussão que fazemos nas seções seguintes sobre o papel da polícia no que chamamos de “reconstituição da esfera da política”. Ao compreendermos o lugar da polícia na estrutura do Estado, que caracterizamos como um ponto de encontro entre o mundo das leis e as leis do mundo, propusemos a imagem do serviço policial como caracterizado por um trabalho de mediação entre a lei e a realidade social. Ao contribuir para a restituição da fé das pessoas na lei e na justiça estatal, a polícia pode ser um instrumento fundamental para fortalecer a legitimidade do Estado e a sua capacidade regulatória. Entretanto, não é qualquer forma de atuação da polícia que pode ser considerada trabalho de mediação. Na verdade, o trabalho de polícia que media é aquele que é guiado por princípios e atitudes de abertura para a sociedade, para a compreensão da natureza e motivação dos conflitos, dos valores que informam as noções de justiça e das condições materiais de acesso à direitos. Um trabalho feito na legalidade, ao qual as pessoas atribuem legitimidade e que por isso tem a capacidade de (re)constituir a autoridade do próprio Estado. Em contextos que estamos chamando aqui de pós-conflito, em que a capacidade regulatória estatal foi completamente perdida ou encontra-se em frangalhos, esse trabalho de mediação se torna altamente relevante, como veremos. Nesse sentido, nas seções seguintes, vamos desenvolver essas questões, iniciando com uma breve caracterização desses contextos pós- conflito. Em seguida, apresentaremos o conceito de “core policing” de David H. Bayley e Robert M. Perito desenvolvendo um pouco mais sobre as características do policiamento que têm o potencial de reparar a ordem social e 135 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública reabilitar a autoridade do Estado. Como encerramento da aula, trazemos um caso concreto de reconstrução das bases de legitimidade da polícia na África do Sul após o fim do regime do apartheid, em 1994. O caso sul-africano é considerado paradigmático, pois envolveu a polícia em um processo de reforma ampla do Estado e de reconciliação da sociedade. 3.1 Características de contextos pós-conflito As características de contextos pós-conflito podem variar amplamente com base na gravidade do conflito, sua história e duração, o contexto social e cultural do país, dentre outros fatores. Em alguns casos, grupos dissidentes ou insurgentes mantêm-se mobilizados mesmo depois de um acordo ou armistício ter sido alcançado por suas lideranças. Em outros, o medo de represálias, uma vez estabelecidos processos de alternância de poder, pode refrear os esforços de reconciliação. Certos conflitos apresentam motivações étnicas ou religiosas e objetivam a supressão de um grupo ou prática social. Outros visam o estabelecimento de um determinado grupo no poder ou simplesmente a derrubada do regime. Os conflitos podem ser generalizados ou localizados, envolver disputas regionais internas ou com outros países. Podem provocar deslocamentos massivos de refugiados, mas também limitações para o deslocamento interno. Podem envolver antagonismos entre facções dentro dos exércitos, entre milícias ou desses grupos com a própria polícia. As possibilidades são amplas. Entretanto, podemos dizer que países que passaram por guerras civis ou conflitos prolongados compartilham algumas características gerais desafiadoras. A principal delas é o reestabelecimento das instituições, da ordem e da previsibilidade social em um ambiente de profunda instabilidade política causada pela suspensão das regras que regem a sociedade em situações de normalidade. Mais desafiador ainda é o restabelecimento da fé das pessoas no Estado e suas instituições, no reconhecimento de sua função de terceira-parte neutra para a mediação dos conflitos sociais. 136 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública É relativamente comum que as pessoas utilizem o termo “guerra civil” para falar de conflitos que, na verdade, não poderiam ser classificados dessa forma. Para caracterizar uma guerra civil é preciso que sejam identificados grupos que abertamente contestem o poder político de forma violenta. Se não existe a ambição explícita de tomar o Governo ou transformar o regime por meio do recurso às armas, um conflito, por definição, não pode ser chamado de guerra civil. Mesmo que prolongado e violento, um conflito armado movido exclusivamente por motivações econômicas, como a exploração de mercados ilegais, também não pode ser classificado dessa forma. Apesar de inegavelmente produzirem impactos políticos no sentido de afetar certos grupos sociais de forma mais gravosa, com a limitação de seus direitos, acesso a recursos materiais e limitação de sua circulação, conflitos de base econômica tendem a ser vistos como dinâmicas criminais. A nomenclatura “contexto pós-conflito” pode levar a alguns equívocos, como quando pensamos nessas situações como sinônimos de paz ou de superação de um conflito existente. Os contextos pós-conflito não são, necessariamente, marcados pela paz social. A paz costuma ser definida como um estado de tranquilidade, harmonia e estabilidade. Se considerarmos que nenhum agrupamento humano reúne essas características de forma ampla e continuada é possível dizer que a paz seria, na verdade, um horizonte para a ação, raramente uma realidade concreta. Mesmo para aquelas sociedades que não estão em guerra, não seria correto afirmar que a paz reina na vida de seus habitantes. A paz não significa superação ou eliminação total dos conflitos. O conflito, na verdade, faz parte da própria vida em sociedade. Vamos Refletir 137 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública O sociólogo Georg Simmel, em seu texto “O Conflito como Sociação” (2011[1964]), nosfala do conflito como uma forma de relação social que o autor denomina “sociação” e que seria típica da vida nas grandes cidades. Nesse sentido, o autor contraria a perspectiva de que o conflito possuiria apenas atributos negativos e desagregadores, afirmando que a organização interna da vida urbana se basearia em uma hierarquia complexa de simpatias, indiferenças e aversões que estariam na base de antagonismos de tipo mais efêmero ao mais duradouro. Para Simmel, existe muito pouco espaço para a indiferença na sociedade. Relações de simpatia e aversão seriam as forças que movem a formação de grupos sociais, que são agrupamentos humanos baseados na identificação mútua e na comunidade de gostos e interesses. Existirão conflitos entre esses grupos e dentro de cada um deles. Para Simmel, entretanto, as situações de antagonismo em si não produzem sociação. O que produz sociação é a forma como estes são expressos e encaminhados, o que permitirá a continuidade da sociedade em um tipo de unidade na diferença, que Simmel chama de situação de “equilíbrio provisório”. Quando falamos em contextos pós-conflito falamos dos desafios de reconstruir a legitimidade do Estado após uma guerra civil ou governo autoritário. Entretanto, os desafios e dilemas implicados nesse processo são compartilhados por outros contextos sociais e da vida em sociedades complexas. Nesse sentido, trazemos as orientações de Simmel para afirmar que, assim como nos contextos pós-conflito, a vida urbana seria caracterizada por situações de equilíbrio provisório, mais ou menos duradouras e abrangentes, e que dependeriam de articulações políticas, sociais e de base comunitária para se manterem e expandirem. A ideia de paz, apesar de utópica, não deixa de apresentar uma relevância política importante nesse processo. Ela criaria um tipo de unidade de sentido para os esforços coletivos do Governo e da sociedade para a construção de uma situação de equilíbrio que, como vimos, tende a não ser definitiva. Palavra do Especialista 138 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública No geral, em contextos pós-conflito são criados fóruns de diálogo que não raramente recebem nomes como “comitês de paz” e que buscam promover reconciliação e justiça. Estabelecer um processo político inclusivo e transparente, que permita a participação de todas as partes implicadas no conflito, é essencial para alcançar um equilíbrio que necessariamente envolverá compromissos de parte a parte. A polícia também desempenha um papel fundamental nesse sentido. Em contextos de pluralismo jurídico, em periferias urbanas, áreas rurais ou comunidades fronteiriças, ou onde a violência de conflitos prolongados fez com que a lei do Estado parecesse distante e ameaçadora, perguntar por que as pessoas denunciam crimes específicos à polícia pode fornecer informações importantes sobre as bases sociais da legitimidade do Estado. No livro “Peacekeeping, Policing and the Rule of Law after Civil War” (Manutenção da Paz, Policiamento e Estado de Direito após a Guerra Civil), Robert A. Blair (2020) analisa as condições para que as intervenções das Nações Unidas (ONU) consigam (re)estabelecer o Estado de Direito em contextos pós-conflito. Veja a análise de Blair sobre as condições para que as intervenções das Nações Unidas (ONU) consigam (re)estabelecer o Estado de Direito em contextos pós-conflito: O autor analisa o caso da guerra civil da Libéria (1989-1997) e oferece uma definição operacional do conceito de Estado de Direito como a disposição das pessoas em recorrer a alternativas de mediação sancionadas pelo Estado em detrimento de formas de justiça de base comunitária, como o linchamento e o banimento. O autor mostrou que comunidades rurais expostas a patrulhas policiais diárias, realizadas conjuntamente pelas tropas da ONU e oficiais da polícia liberiana, estavam mais inclinadas a denunciar crimes graves à polícia, como homicídios e roubos. Esta conclusão é relevante não apenas no contexto das intervenções da ONU, mas demonstra o papel crítico do policiamento regular 139 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública na sustentação (ou destruição) das crenças das pessoas nos poderes reguladores da lei e na sua capacidade de distribuir a justiça do Estado de formas consideradas adequadas e legítimas também pelas comunidades. Entretanto, não é qualquer tipo de policiamento que restabelece a fé das pessoas na justiça do Estado. Nas seções seguintes, desenvolveremos mais sobre esse tema, tratando da forma como as funções e características do serviço policial podem atuar no sentido de promover a adesão das pessoas às leis e instituições, mesmo em contextos em que o Estado pareça distante, goze de níveis baixos de legitimidade ou tenha sido inviabilizado materialmente pela destruição total ou parcial de estruturas e instituições públicas. 3.2 O conceito de Core Policing de Bailey & Perito Qual é o núcleo do trabalho policial? Sua característica mais elementar? Em “The Police in War: Fighting Insurgency, Terrorism, and Violent Crime” (A Polícia na Guerra: Combatendo a Insurgência, o Terrorismo e o Crime Violento), David H. Bayley and Robert M. Perito (2010) refletem sobre aquelas perguntas para propor um conjunto de medidas focadas na reabilitação de forças policiais para a atuação em funções de segurança pública após períodos de guerra civil ou conflito. Nesses contextos, como vimos, movimentos de resistência (“insurgentes”) ainda encontram-se ativos, impondo a necessidade da continuidade de operações conjuntas entre as Forças Armadas e policiais. Nesse ambiente confuso, em que crimes comuns muitas vezes se confundem com crimes políticos, Bayley e Perito advogam pela importância do reencontro das forças policiais com suas funções civis essenciais de prevenção e investigação dos crimes, e de garantia da ordem pública, que constituiriam o núcleo de suas atividades e que os autores chamam de “core policing” (“policiamento essencial”). Em sua definição do conceito, Bayley e Perito afirmam que três princípios devem nortear as atividades essenciais do policiamento: 140 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Disponibilidade (availability): No que se refere à disponibilidade, os autores falam em aspectos como a visibilidade do policiamento e a postura dos/as policiais. Nesse sentido, por exemplo, uma viatura baseada em uma esquina, mas com os vidros fechados ou com agentes em postura pouco amistosa não seria o suficiente para configurar um policiamento disponível. Pronta-resposta (responsiveness): Pronta-resposta se refere à capacidade da polícia de responder aos chamados e atender efetivamente as demandas do público em tempo hábil e de forma previsível. Imparcialidade (even-handedness): Finalmente, aquilo que os autores chamam de imparcialidade se aproxima daquilo que discutimos sobre “justiça procedimental” (ver Aula 5 do Módulo I), que defende a equidade e a transparência como fundamentos dos processos e procedimentos do Estado. O "crime comum" refere-se a delitos que violam as leis gerais de uma sociedade, como homicídio, roubo, estupro, entre outros. Por sua vez, o "crime político" é um termo de definição mais complexa, pois pode variar segundo contextos históricos e políticos específicos. Segundo autores como Hannah Arendt e Carl Schmitt, a diferença entre crime comum e crime político reside principalmente na motivação por trás do ato delituoso. Veja a opinião dos estudiosos: Hannah Arendt (1989): Hannah Arendt (1989), em sua obra “As Origens do Totalitarismo”, argumenta que o crime político é cometido com base em motivações políticas ou 141 O ESTADO DEMOCRÁTICODE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública com o objetivo de atingir fins políticos específicos, como mudar o governo, promover uma ideologia ou desafiar o status quo. Arendt enfatiza que o crime político é uma manifestação da ação política, uma tentativa de intervir na esfera pública para expressar descontentamento, buscar ou conservar o poder. Carl Schmitt (2008): Já para Carl Schmitt (2008), em sua obra “O Conceito do Político”, o crime político ocorre quando um indivíduo ou grupo age contra o Estado ou as instituições políticas estabelecidas como parte de um conflito mais amplo, em que o seu autor questiona a ordem política existente. O livro de Bayley e Perito é baseado em um estudo de caso de experiências de “transferência de poder” (“power handover”) implementadas durante a ocupação Norte Americana no Afeganistão e no Iraque. Em especial, os autores se dedicam às medidas adotadas para a requalificação e treinamento da polícia local de modo que esta pudesse reassumir funções de segurança pública e realizar atividades de policiamento regular, em um contexto em que grupos insurgentes ainda permaneciam ativos. O trabalho seminal de Bayley e Perito nos fala principalmente sobre a importância da segurança pública e da ação da polícia para a (re)construção do Governo civil. Esse processo, entretanto, seria uma via de mão dupla. A legitimidade das organizações policiais também depende da existência de um Governo com estruturas e procedimentos claros de governança de polícia e uma política de segurança pública que defina as prioridades do policiamento (ver Aula 1 desse módulo). Sem segurança não há Governo e sem Governo não há política de segurança pública. Então como resolver esse dilema em contextos pós-conflito, em que o Governo civil está sendo reconstruído e a segurança ainda é um problema grave? Por onde começar? Na perspectiva dos autores, a polícia seria o “agente primário” desse movimento. 142 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “Em resumo, existem duas razões para considerarmos a polícia local como agente primário no desenvolvimento de um Governo legítimo: ela pode prover informações cruciais para o enfrentamento da violência e ela pode demostrar para um público cético que vale a pena apoiar o Governo. Esses efeitos se reforçam mutuamente. As pessoas que consideram o Governo legítimo estarão mais inclinadas a cooperar com a polícia; as informações do público que auxiliem o incremento da segurança pública aumentam também a legitimidade do Governo. Sem apoio público, ambos, o controle da violência e a estabilidade do Governo encontram-se em risco. A polícia local é mais importante para ganhar esse apoio do que qualquer outro agente de segurança, seja este local ou estrangeiro.” (Bayley & Perito, 2010, p. 152–153). Em suma, enquanto o Governo está sendo reconstruído, o segredo para estabelecer esse ciclo virtuoso de mútua legitimação social de que nos fala Bayley e Perito é focar nos aspectos essenciais (“core”) do trabalho da polícia. A pesquisa de Bayley e Perito confirma que o bom trabalho policial é essencial para promover a adesão e respeito às leis e instituições de um país. O inverso também é verdadeiro e o funcionamento dos controles políticos do Governo - o que chamamos de governança de polícia - atribui legitimidade ao trabalho da polícia, ao garantir que seus serviços sejam prestados de forma disponível, pronta e justa. Nesse sentido, o principal mérito do conceito de core policing de Bayley e Perito é prover uma referência de parâmetros mínimos para definir o que seria esse “bom trabalho policial” que reconstrói a fé das pessoas no Estado de Direito. Como vimos, mesmo em situações em que o Governo ainda é incipiente e luta para reconstruir sua legitimidade em meio a profunda insegurança e instabilidade política, a crença coletiva de que a lei deve se aplicar a todos depende grandemente do desempenho de uma polícia que conheça os códigos locais. Mesmo nesses contextos altamente militarizados, segundo Bayley e 143 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Perito, a polícia deve buscar reencontrar as suas funções civis. Entretanto, não basta treinar a polícia para que esse “reencontro” aconteça. Faz-se necessário um esforço simultâneo de reformulação e fortalecimento das estruturas de governança do sistema de justiça e segurança de forma ampla. O que, segundo os autores, demandaria vontade política, liderança estratégica e participação social. Sem um sistema judiciário e penitenciário funcional, o restauro da ordem pública e o processo de estabilização em contextos pós-conflito ficam profundamente comprometidos no longo prazo. Nesse contexto, formas de justiça sumária podem florescer, tanto na sociedade quanto nos meios policiais, sem nenhuma consequência legal para os seus perpetradores. Essa armadilha acaba por corromper até os/as policiais mais bem treinados, minando a confiança pública no Governo e qualquer tentativa de estabelecimento de um modelo de governança democrática. Uma visão clara sobre os serviços de segurança pública seguindo os princípios de core policing é apenas o ponto de partida. O dilema da construção da paz é, portanto, fazer com que essas coisas caminhem juntas, segurança e o desenvolvimento de um governo civil eficaz. 3.3 A polícia e a (re)constituição da esfera da política A África do Sul, entre os anos de 1948 e 1994, viveu sobre o regime do apartheid. O apartheid representou um tipo de autoritarismo peculiar, baseado em teorias racistas vigentes à época, em que a restrição de direitos para certos grupos sociais era operada não em um contexto de “exceção”, como normalmente operam os regimes totalitários, mas de funcionamento regular das instituições e sob o resguardo das leis do país. Tratava-se de um sistema de governo altamente legalista, obcecado com a ideia de ordem e que pregava a separação total entre regimes político-jurídicos por “grupos raciais”: um Estado, uma lei, uma polícia para os brancos, outra para a população negra. Para tanto, foram criadas áreas segregadas autorizadas a instituir o seu próprio Governo, 144 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública sua própria polícia e sistema de justiça, mas sempre subordinadas aos desígnios do Governo central. Figura 10: Apartheid fence, Johannesburg, 1953. Fonte: Schadeberg, Jurgen, 1953. A palavra apartheid significa “separação” em afrikaans e foi adotada como slogan pelo Partido Nacional Sul-africano depois da vitória de Daniel François Malan nas eleições parlamentares de 1948. Na foto acima, denominada “apartheid fence” (“cerca do apartheid” em português), vemos a ideia de separação encarnada no registro feito por Jurgen Schadeberg em um parque de Joanesburgo (Johannesburg, 1953). De modo a garantir a separação entre os grupos raciais, foi implementado um sistema de passes, um tipo de passaporte interno onde o Estado fazia constar o lugar em que as pessoas negras podiam morar e trabalhar, limitando a sua circulação. A polícia sul-africana era a principal responsável pela fiscalização do sistema de passes, auxiliada, por vezes, pelas forças armadas. Sem o apoio da maioria da população, com a sua atuação focada na repressão política (ver “polícia política” na Aula 2 desse módulo) e na manutenção da ordem racial do apartheid, a South African Police (SAP) era a principal força policial do país e ficou conhecida por casos extremos de violência. Saiba mais 145 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Figura 11: Hector Pieterson sendo carregado por Mbuyisa Makhubo após ser baleadopela polícia sul-africana. Sua irmã, Antoinette Sithole, corre ao lado deles. Fonte: Sam Nzima. Diversos episódios de violência policial ocorridos durante o apartheid ganharam projeção internacional. Um dos mais famosos foi o "Massacre de Sharpeville". O episódio ocorreu em 21 de março de 1960, na cidade de Sharpeville, na África do Sul, e desempenhou um papel fundamental na história da luta contra o regime de segregação racial no país, gerando comoção pública e pressão internacional pelo seu fim. Durante uma manifestação pacífica contra as "Leis do Passe" a polícia de Sharpeville abriu fogo contra os manifestantes, matando sessenta e nove pessoas e ferindo centenas de outras. Dezesseis anos depois, em 1976, em Soweto, bairro negro da cidade de Joanesburgo, um outro episódio de brutalidade foi protagonizado pela polícia sul-africana. Em junho daquele ano, cento e setenta e seis jovens em idade escolar que protestavam contra a obrigatoriedade do ensino do afrikaans, língua de origem colonial holandesa, em detrimento de línguas nativas, foram mortos pela polícia. Contagens não oficiais falam em até setecentos jovens mortos no episódio que ficou conhecido como o “Levante de Soweto” e foi imortalizado pela imagem do menino Hector Pieterson, de apenas doze anos, sendo carregado sem vida por um colega e pela irmã, em busca de socorro (ver figura 12). Você sabia? 146 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Segundo David Welsh (2010), em seu livro “The Rise and Fall of Apartheid” (O Surgimento e a Queda do Apartheid), os elevados custos de manutenção do sistema de passes, associados a pressões diplomáticas internacionais, embargos econômicos e movimentos de resistência internos tornaram o regime do apartheid inviável e precipitaram o seu fim. Na década de 90, quando Nelson Mandela deixou a prisão, existiam onze forças policiais diferentes operando no território sul-africano. A principal era a SAP, cuja atuação se concentrava nas cidades, áreas de moradia da população branca. Os postos de baixa-patente da SAP eram reservados à população negra, mantendo-se os níveis estratégicos e de comando da organização nas mãos da minoria branca. As demais polícias eram compostas a partir de efetivos da SAP e eram responsáveis por atuar nos dez territórios reservados exclusivamente para os negros africanos, os chamados Bantustões. Ainda na década de 90, iniciam-se às conversas sobre paz e reconciliação e o funcionamento da polícia foi um tópico importante nas negociações. O período foi marcado por muitas incertezas e instabilidade política, pelo crescimento da criminalidade comum e por episódios de violência política. Como vimos na discussão de Bayley e Perito (2010) sobre core policing, o principal desafio enfrentado pelo novo Governo sul-africano naquela época era o de construir uma identidade civil e de serviço para a SAP em um contexto em que funções de segurança pública e segurança nacional ainda se sobrepunham. De modo a lidar com esses desafios de forma estruturada, foram criados comitês locais e regionais de transição, chamados Peace Committees (Comitês de Paz), previstos em uma legislação transicional provisória chamada National Peace Accord, um acordo nacional entre os diferentes grupos políticos que definia os termos do processo de transição pacífica para a democracia na África do Sul. 147 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Como vimos nas seções anteriores, o termo “contexto pós-conflito” pode ser mal interpretado como um período de paz social (“peacetime society”). A paz é um processo, uma construção, que envolve pactuações e um gerenciamento adequado das tensões e motivações para o conflito, de modo a administrá-lo na direção da construção de padrões de convivência democráticos. No caso da África do Sul, havia um forte pânico revanchista por parte da população branca, que temia ser perseguida pelo Governo de maioria negra. Por sua vez, o novo Governo temia que a burocracia do Estado, herdada do apartheid, sabotasse o projeto político de emancipação da população negra encampado pelo Congresso Nacional Africano (CNA). Esse pedregoso, mas necessário caminho para a paz foi trilhado sob a liderança de Nelson Mandela, talvez uma das únicas unanimidades políticas em um país racialmente dividido e temeroso em relação ao futuro. Figura 12 Fonte: "Invictus” (2009) mergulha no turbulento período pós-apartheid na África do Sul e destaca o extraordinário papel de Nelson Mandela na busca pela paz e reconciliação. O filme foi dirigido por Clint Eastwood e é uma adaptação da história real contada no livro "Playing the Enemy" de John Carlin. A história começa com Nelson Mandela (Morgan Freeman) saindo da prisão após 27 anos de detenção, determinado a unir a África do Sul. A estratégia de Mandela é tão surpreendente quanto eficaz: ele decide usar o esporte, em particular o rugby, como uma ferramenta para unir as pessoas. O rugby era tradicionalmente visto como um esporte associado à 148 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública minoria branca, enquanto a maioria negra odiava-o como um símbolo do regime opressor. No entanto, Mandela reconhece que o sucesso da equipe nacional de rugby, os Springboks, poderia ser uma oportunidade única para unir a nação. Ele se aproxima do capitão da equipe, François Pienaar (Matt Damon), e apoia os esforços da equipe na Copa do Mundo de Rugby de 1995. O filme retata muito bem a habilidade política de Nelson Mandela, que enxergou no sucesso dos Springboks uma oportunidade para colocar a ideia de paz e reconciliação no centro do imaginário social e político da África do Sul naquela época. Segundo Janine Rauch (2000), em seu paper “Police Reform and South Africa's Transition” (Reforma Policial e Transição na África do Sul), a missão da polícia durante o apartheid era fazer cumprir as leis de segregação racial e suas funções eram muito assemelhadas às de uma “polícia política” (ver Aula 2 desse módulo), o que não exigia grandes competências em funções policiais tradicionais e permitia abusos em grande escala. Demonstrações de lealdade política e a força bruta eram as únicas habilidades exigidas de seus agentes. A tarefa de transformar a SAP em uma organização legítima para a maioria da população e eficaz contra o crime era gigantesca e ficou conhecida como um dos mais ambiciosos processos de reconstrução das bases de legitimidade de uma força policial na história das democracias modernas. 149 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Figura 13: Nelson Mandela depositando o seu voto nas primeiras eleições democráticas da África do Sul, realizadas em Abril de 1994, momento histórico registrado pelo fotógrafo Paul Weinberg. Fonte: Paul Weinberg. Em 1994, Nelson Mandela é eleito o primeiro presidente da África do Sul democrática. Uma das primeiras medidas adotadas pelo seu Governo foi a mudança de foco da SAP para um conceito de polícia como “serviço” (ver Aula 3 do Módulo I). No ano seguinte, a nomenclatura “força policial” foi abandonada e a SAP passou a se chamar South African Police Service (SAPS) com a edição da Lei da SAPS (SAPS Act/1995). Naquele período, outras medidas foram adotadas, como o redesenho de uniformes, insígnias e viaturas, bem como a substituição da longa cadeia de postos e graduações militares por um modelo civil, mais enxuto, inspirado na polícia britânica. Foram adotadas políticas de recrutamento, aposentadoria compulsória e estímulos de progressão na carreira que facilitaram o acesso da população negra aos cargos de chefia da organização, tornando-amais racialmente balanceada. De modo a reduzir a instabilidade política e evitar que pessoas com treinamento militar fossem incorporadas por grupos criminosos, foi adotada uma política de desmobilização das diversas guerrilhas que lutaram contra o regime do apartheid que incluía a sua incorporação aos efetivos da polícia e das forças armadas. 150 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A polícia comunitária passou a ser a base filosófica do sistema de governança da organização. Nesse sentido, foram criadas estruturas de accountability e participação social como os Community-Police Forums (Fóruns de Polícia Comunitária) e o Independent Complaints Directorate (Diretoria Independente de Reclamações, um tipo de Ouvidoria de Polícia). A nova lei da SAPS tornou também obrigatória a divulgação anual dos planos e prioridades da organização, seus focos orçamentários e gastos, bem como um relatório anual sobre desempenho. Foram criadas instâncias consultivas e de fiscalização, como os Secretariats for Safety and Security (Secretarias de Segurança), estruturas de gestão da política pública em nível estadual formadas por policiais e especialistas em segurança pública. A formulação da política pública de segurança passou a ser proposta federativamente, no âmbito das Secretarias de Segurança estaduais, com a participação de policiais e da população civil, sob a coordenação do então Minister of Safety and Security (Ministério da Segurança), hoje Minister of Police (Ministério da Polícia). Figura 14 Fonte: South African Police Service A insígnia adotada pela SAPS em 1995 usa uma árvore de aloe vera como imagem principal. Planta típica da África do Sul, o aloe vera é uma vegetação de gosto amargoso, mas que é reconhecida mundialmente por suas propriedades curativas e simboliza a ideia de que a polícia pode ser um remédio amargo, mas fundamental para a saúde da comunidade. Saiba mais 151 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Se considerarmos o tamanho dos desafios e das dificuldades enfrentadas para a construção de uma polícia legítima pós-apartheid e o espaço de tempo limitado em que todas essas transformações foram implementadas, pode-se dizer que todo o processo resultou na transição de uma polícia de Estado, com características de polícia política, para uma organização focada no cidadão. A SAPS, entretanto, ainda enfrenta desafios sérios, principalmente no que se refere ao combate à corrupção e ao enraizamento de valores como direitos humanos e igualdade racial entre seus membros. A despeito desses desafios, em grande parte compartilhados com organizações policiais em muitos países, a SAPS é um exemplo da importância estratégica da polícia para o processo de construção e defesa da democracia em contextos de pós-conflito. 152 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública AULA 4 – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E ASSOCIATIVISMO POLICIAL Nesta aula que encerra o Módulo III, trataremos de uma dimensão da relação da polícia com a esfera da política que tem recebido bastante atenção na literatura internacional, mas que, no Brasil, em especial, encontra-se ainda pouco desenvolvida. A dimensão do/a policial como um trabalhador da segurança pública. Na primeira aula deste módulo, colocamos um dilema para a relação da polícia com a esfera da política, entre o governo político das polícias, que chamamos de governança de polícia, e a sua instrumentalização política. Nas duas aulas que se seguiram (Aulas 2 e 3), falamos sobre o lugar da polícia na estrutura do Estado, sua relação com moralidades e desigualdades, e apresentamos a discussão de core policing para pensar como a polícia pode reconstituir (ou destruir) a legitimidade do Estado e das leis. Na presente aula, entretanto, a relação entre a polícia e o Estado parte da perspectiva do mundo do trabalho para falarmos da polícia. O tema levanta debates acalorados. A pergunta é como dar vazão às demandas de ordem trabalhista dos/as policiais de modo institucional e transparente, sem que isso constitua uma ameaça para a ordem do Estado e da sociedade. Como veremos em nossa seção inicial, essa tarefa encontra barreiras no próprio reconhecimento do/a policial como trabalhador em razão do lugar contraditório de sua ocupação na sociedade de classes. Na seção seguinte, apresentamos a tese de que apenas uma organização que vive a democracia em seu dia a dia pode atuar como sua defensora. Essa é uma aplicação do princípio de justiça procedimental ao trabalho da polícia e que tem ganhado espaço nas discussões sobre o que chamamos aqui de associativismo policial. Por fim, apresentaremos as vantagens e desvantagens dos dois modelos de organização dos trabalhadores policiais mais difundidos, as associações e os sindicatos. 153 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 4.1 Policial e trabalhador O trabalho da polícia tem uma característica peculiar. Seu dia a dia, grande parte do tempo, pode ser repetitivo, burocrático e enfadonho, mas uma emergência qualquer subitamente faz explodir os níveis de adrenalina e estresse. No transcorrer de um turno de trabalho, esses profissionais podem viver um verdadeiro carrossel de emoções. Essas características fazem com que o seu trabalho seja fonte de prazer e orgulho, mas também de grande sofrimento físico e emocional. Sentimentos de isolamento social, inadequação e a percepção de que seus esforços não seriam reconhecidos pela sociedade agravam esse quadro. Por conta dessas características, os policiais costumam ser associados à figura do herói. O herói é um arquétipo universal que personifica virtudes e valores humanos, como coragem, sabedoria e justiça, servindo de modelo de comportamento. O herói é também alguém que vive a sua vida pela busca de um propósito maior, como a luta contra o mal. Nessa jornada, ele aprende e ensina a todos nós sobre a vida e a condição humana. No entanto, a associação com a figura do herói, em certos aspectos, pode ser problemática. Primeiro, porque o herói é uma personagem. Pense nos filmes de ação hollywoodianos. Entre explosões e escapadas espetaculares, ninguém vê as dores cotidianas do herói, suas fraquezas e vulnerabilidades. Nas raras vezes em que elas são mostradas em filmes, o herói sempre triunfa sobre elas. Segundo, porque os padrões de moralidade claros que informam as ações do herói na ficção raramente se verificam na prática. Na vida real, as circunstâncias são bem mais complexas e ambíguas, exigindo maior atenção e compreensão acerca das motivações e pressões que conformam as decisões de pessoas de carne e osso. 154 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Diversas pesquisas na área de saúde e segurança do trabalho identificam que essa associação com a figura do herói leva à desconsideração da importância das condições de trabalho dos policiais. Em alguns casos, observa-se a glorificação explícita de situações laborais que estão longe das ideais. Afinal, o valor do herói está em superar todas as dificuldades, negligenciando suas dores para realizar o propósito maior de ser um exemplo. Mesmo o treinamento por vezes reflete essa crença e coloca esses profissionais em situações-limite para que possam sobreviver ao dia a dia de sua profissão: longas horas de pé, turnos de serviço exaustivos, equipamentos inadequados, alimentação insuficiente etc. (Silveira & Oliveira, 2016; Albernaz & Pires, 2022). Se é verdade que sua profissão exige níveis de dedicação e preparação diferenciados, estas exigências não podem naturalizar causas deadoecimento físico, emocional e moral associados ao seu trabalho. Em parte, isso se deve a dificuldade que a sociedade, o Estado e, muitas vezes, os próprios profissionais têm de se identificarem como trabalhadores da segurança pública. Mas o que é um “trabalhador”? Por definição, o trabalhador é alguém que: 1 não possui os meios de produção (fábricas, terras, máquinas etc.) e, portanto, 2 precisa vender sua força de trabalho em troca de um salário. Palavra do Especialista Você concorda que a atuação dos órgãos de segurança, enquanto burocracias de Estado, deve ser neutra e não promover ideologias de partidos e nem diferenciações de tratamento entre pessoas baseadas em sua raça, gênero, orientação sexual, religião ou classe social? Vamos Refletir 155 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Estas são suas características principais. Nesse sentido, o profissional de segurança pública é um trabalhador. Mas por que o reconhecimento dessa condição é tão difícil? Já falamos sobre a imagem do herói que leva à exaltação de atributos sobre-humanos dos agentes, naturalizando as agruras de sua situação de trabalho. Entretanto existem outros motivos, bem mais estruturais, para essa situação. Veja os dois motivos: 1º motivo: O primeiro motivo seria o lugar contraditório ocupado pela polícia na sociedade de classes. Robert Reiner, em um texto clássico de 1978, chamado The Police in the Class Structure (A Polícia na Estrutura de Classe) fala sobre essa questão em relação à polícia do Reino Unido. Mas antes precisamos esclarecer o que chamamos aqui de “sociedade de classes”. A sociedade é formada por diversos segmentos populacionais que chamamos “classes sociais” (classe média, classe alta, classe baixa etc.), que se diferenciam entre si segundo critérios como faixa de renda, educação, padrões de consumo, hábitos e valores. Um dos elementos de diferenciação mais importantes entre as classes sociais, entretanto, é a ocupação. No exercício de sua ocupação, os policiais, que são também trabalhadores, são empregados na repressão a movimentos reivindicatórios de outros trabalhadores. Por conta disso, segundo Reiner, na sociedade Inglesa, nem o/a policial se identificava com a classe trabalhadora, nem esta com o trabalho dos policiais. 2º motivo: Em segundo lugar, podemos mencionar a questão da sindicalização. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece o direito à sindicalização como um direito fundamental dos trabalhadores, e isso é refletido em sua Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Essa declaração afirma que todos os membros da OIT têm a obrigação de respeitar e promover a liberdade de associação, ou seja, o direito dos trabalhadores de 156 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública formar e se juntar em sindicatos, e o direito de negociação coletiva com empregadores sobre salários, condições de trabalho e outros assuntos de interesse mútuo. Figura 15 Fonte: A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência especializada das Nações Unidas dedicada a promover direitos trabalhistas, emprego decente e relações de trabalho justas em todo o mundo. Ela enfatiza a importância do direito à sindicalização como um dos princípios fundamentais do trabalho. O direito à sindicalização é abordado principalmente nas convenções e recomendações da OIT, bem como em suas declarações e documentos relacionados. A OIT trabalha para garantir que os países membros respeitem e implementem esses princípios fundamentais. A organização também monitora a conformidade dos países membros com esses princípios e pode prestar assistência técnica para promover a sindicalização e a negociação coletiva em nações que enfrentam desafios nessa área. Em diversos países, os policiais não podem formar sindicatos. Os sindicatos são organizações formadas por trabalhadores com o objetivo principal de representar os interesses e direitos de uma determinada categoria profissional. Essas organizações atuam como intermediárias entre os trabalhadores e os empregadores ou governos, buscando melhorar as condições Você sabia? 157 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública de trabalho através de acordos coletivos. Diferente dos serviços de assistência jurídica das associações policiais, cujas decisões não geram efeitos coletivos, os acordos têm status de lei e devem ser obedecidos pelos empregadores, beneficiando toda categoria. A proibição da sindicalização da polícia, como veremos nas seções seguintes, não é uma regra universal e pesquisas mostram que existem prós e contras em torno dessa medida. Por hora, é importante frisar que os policiais são trabalhadores essenciais, encarregados do monopólio da violência legal e legítima do Estado e, por conta disso, não podem fazer greves. A paralização dos serviços policiais historicamente tem sido associada a problemas graves de desordem e insegurança (Rocha, 2018; Benzaquen, 2020). Essa característica, que distingue esses profissionais, acaba afastando- os ainda mais da identidade de trabalhador, cujos direitos de sindicalização e greve são garantidos por lei nas democracias. Mas, então, como tratar essa questão das condições de trabalho da “classe policial”? Se concordamos que a profissão é essencial e que sua execução pode comprometer física, psicológica e moralmente seus praticantes, é preciso garantir condições de trabalho adequadas para estes profissionais. Falaremos das vantagens e desvantagens de diferentes modelos de participação política de policiais enquanto trabalhadores mais à frente. Entretanto, é importante mencionar que existe uma experiência relativamente recente no Brasil em que essa identificação promoveu um modelo de participação efetiva. No ano de 2009, aconteceu a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública (CNSP). A CNSP envolveu meses de um amplo processo de consulta à sociedade, com grupos de trabalho organizados em nível municipal 158 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública e estadual, focados em construir propostas para a política nacional de segurança pública, segundo eixos temáticos. A participação nesses grupos era dividida por categorias e uma escolha importante foi a separação entre os “trabalhadores da segurança pública” e o “Governo”. Com essa medida, deixou-se claro que, muito embora os interesses do Governo e da polícia sejam coincidentes na promoção da ordem pública, estes podem estar separados quando se fala em condições de trabalho. 4.2 Condições de trabalho e democracia Na área de saúde e segurança do trabalho, estudos recentes têm incluído a questão do “sofrimento moral” dos policiais referindo-se a situações em que agentes cometem, deixam de prevenir ou testemunham mortes ou atos graves de violência que violentam suas crenças morais profundas sobre certo e errado, justiça e dignidade (Papazoglou et al., 2020). Como os próprios autores desses estudos apontam, a dimensão do sofrimento moral ainda é pouco explorada tanto na pesquisa quanto na política pública de segurança. Podemos adicionar a esse diagnóstico o fato de que a dimensão moral do sofrimento emocional e físico dos policiais não deve se restringir às suas atividades finalísticas, incluindo, por exemplo, as relações entre pares e superiores hierárquicos. A moral se refere a um conjunto de princípios, valores e normas que orientam o comportamento humano em relação ao que é considerado certo ou errado dentro de uma determinada sociedade, cultura ou grupo, sendo influenciada por fatores como a religião, a origem social, a ocupação, a orientaçãosexual, dentre outros. Nesse sentido, o que é considerado moralmente aceitável em determinado contexto pode não ser em outras 159 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública situações e conflitos morais podem emergir. Quando conflitos desse tipo acontecem no dia a dia - e eles acontecem bastante - é possível ignorá-los, aceitando que as concepções de certo e errado entre as pessoas simplesmente diferem e a vida segue. Em uma situação de trabalho, entretanto, não há muita escapatória. As pessoas precisam desempenhar tarefas compartilhadas, tomar decisões conjuntas e entregar resultados. A questão é como lidar com esse tipo de conflito, que atinge as nossas crenças mais arraigadas sobre certo e errado, no ambiente de trabalho das polícias, em que a hierarquia e disciplina são altamente valorizadas. Hierarquia e disciplina existem em todas as organizações. Em um sentido lato, podemos dizer que qualquer espaço social, formal ou informalmente, possui suas próprias hierarquias e formas disciplinares. Nas organizações policiais, estes princípios organizadores são basilares para a coordenação entre as frações de efetivos e para garantir que o poder armado da polícia não se volte contra a sociedade e o próprio Estado. Todo o sentimento de desconforto ou desacordo que não afronte esses propósitos deve contar com canais apropriados de expressão. O represamento dessas demandas, além de causa para o sofrimento moral, como vimos, pode gerar uma situação de desgoverno estrutural em razão da adoção de estratégias individuais e coletivas de sabotagem que impactam a possibilidade de uma governança de polícia eficiente e efetiva. Essas são algumas das conclusões do estudo de Fleming, Marks e Wood (2006), consolidadas no artigo “Standing on the inside looking out: the significance of police unions in networks of police governance" (Olhando de dentro para fora: a importância dos sindicatos policiais nas redes de governança policial). Ao analisarem o estado da arte das relações trabalhistas e do funcionamento dos sindicatos policiais, os pesquisadores chegaram a uma importante constatação: uma polícia que não abre espaços de escuta e participação focados no aprimoramento do seu ambiente laboral tem dificuldades de se enxergar como promotora da democracia. 160 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Se a realização de uma democracia de fato depende da materialização de um Estado Democrático de Direito, que tem como nortes a justiça procedimental e a legalidade (ver Aula 5 do Módulo I), apenas uma organização que viva esses princípios na prática poderá reforçá-los na relação com a sociedade. Segundo os autores, a falta de respeito a esses princípios dentro da instituição policial tende a contribuir para o desenvolvimento de uma concepção cínica do seu trabalho e da relação com a sociedade e com o Governo, o que se reflete na forma como os policiais se relacionam com pessoas fora da instituição. Muito embora existam diversas causas para o que os autores chamam de cinismo policial (ver Graves, 1996; Caplan, 2003), o estudo de Fleming, Marks e Wood tem o mérito de relacioná-lo diretamente à identificação do policial como trabalhador e suas condições de trabalho. Em parte, o “cinismo” pode ser uma forma de autodefesa, pois as pessoas cínicas têm dificuldade em acreditar na honestidade e integridade de terceiros. Os cínicos tendem a criticar constantemente o status quo, as normas sociais e as ações das pessoas. Entretanto, a característica fundamental do cinismo é um ceticismo acentuado em relação a ideias, valores, instituições e pessoas. Eles veem as instituições sociais como corruptas e desonestas. Uma postura excessivamente cínica pode levar a relações sociais difíceis, isolamento social e um senso geral de desconfiança em relação ao mundo, o que pode provocar sofrimento emocional e privação. Outros estudos focados no desenvolvimento de sistemas de governança, tanto no setor público quanto no privado, corroboram esse entendimento, que não se restringe de forma alguma às organizações policiais. Esses estudos mostram também que quando questões relacionadas ao ambiente de trabalho não são tratadas pelas organizações por meio de canais e procedimentos estabelecidos, florescem estratégias de sobrevivência e progressão na carreira que usam a patronagem e a troca de favores como moedas. Falaremos mais sobre isso na próxima seção. Por hora, gostaríamos apenas de fixar que toda a Saiba mais 161 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública experiência social rotineira produz um tipo de pedagogia prática, ou seja, ensina algo que vira um conhecimento arraigado devido ao seu caráter vivencial. Nesse sentido, se em seu ambiente de trabalho o/a policial precisa barganhar direitos como privilégios, essa é a lógica que ele/a adotará ao tratar dos direitos de outros. As "relações de patronagem" se referem a um tipo de interação social ou prática em que uma pessoa em posição de poder, conhecida como "patrão" ou "patrono," fornece proteção, favores, apoio ou recursos a outra pessoa em troca de lealdade, obediência ou serviços. Essas relações são desiguais em termos de poder e influência, e o patrão detém uma posição social, política ou econômica superior à pessoa que recebe o patrocínio, conhecida como "protegido" ou "afilhado". Embora as relações de patronagem possam ter benefícios mútuos, elas também podem criar desigualdades e oportunidades limitadas para aqueles que não têm acesso a um patrono influente. Em muitos casos, as relações de patronagem podem perpetuar sistemas de nepotismo e corrupção. Portanto, em muitos países e contextos, esforços são feitos para regulamentar ou reduzir essas práticas a fim de promover maior igualdade de oportunidades e justiça. 4.3 Associativismo e sindicalização Como vimos no início de nossa aula, a polícia vive sob um regime de trabalho especial. Seus serviços são considerados essenciais e o exercício do direito à greve dessa categoria pode ser altamente danoso para a sociedade. Por sua vez, o direito à sindicalização não se aplica universalmente à polícia, como no caso dos demais trabalhadores. Existem países que adotam o modelo que podemos chamar “associativista” e outros autorizam a organização de sindicatos, mas com a vedação do direito de greve. Saiba mais 162 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Em alguns países, como a África do Sul, apenas os funcionários civis da polícia podem paralisar as suas atividades. Falaremos sobre as vantagens e desvantagens desses modelos mais à frente. Essa situação nos coloca um conjunto de desafios importantes. 1 Como promover melhores condições de trabalho por meio de canais e processos institucionalizados e universais? 2 Como viabilizar a participação desses trabalhadores na política pública de segurança, que os afeta diretamente? 3 Como construir uma pedagogia institucional democrática dentro das polícias, para que estas possam ser verdadeiras defensoras da democracia? Como mencionamos no início da seção, podemos dizer que sindicatos e associações policiais são os dois modelos mais comuns operando hoje na regulação das relações de trabalho entre a polícia e seu empregador, o Estado. Estudos mostram diferentes resultados em termos da obtenção de melhoramentos efetivos das condições de trabalho dos policiais e da promoção da democracia entre os dois modelos. Entretanto, podemos dizer que a principal diferença entre eles gira em torno do que chamaremos de efeitos coletivos. A organização de associações policiais é aceita universalmente nas democracias contemporâneas.Os/as policiais, como qualquer pessoa, podem se associar em grupos de interesse ocupacionais, fraternais, recreativos, dentre outros. Estas associações, no mundo policial, notadamente, oferecem serviços de diversas ordens, incluindo assistência jurídica. Entretanto, os efeitos dessas decisões judiciais pontuais não têm validade para o restante da categoria profissional, ou seja, não geram efeitos coletivos. Mas isso não quer dizer que Saiba mais 163 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública essas organizações não tenham seu espaço de negociação com o Governo de melhorias para a classe que representam. Os sindicatos, por sua vez, têm um “assento” na mesa de negociações garantido por lei, em câmaras de arbitragem. As associações participam de conselhos consultivos de Governo e trabalham com a estratégia de construir redes de influência política. Nesse ponto, retornamos ao trabalho de Robert Reiner (1978), “The Police in the Class Structure” (A Polícia na Estrutura de Classe) que mostra que mais importante que a distinção de modelos é a questão de como estas organizações, sejam sindicatos ou associações, constroem o seu poder de barganha na prática. Reiner afirmou ainda que os sindicatos de policiais no Reino Unido não poderiam ser definidos facilmente como “conservadores” ou “progressistas”. Segundo o autor, isso se devia à postura pragmática que estas organizações adotavam na negociação de suas reivindicações com o Governo. Reiner identifica ainda os perigos da negociação permanente entre a polícia britânica e a classe política acerca das condições de trabalho e das demandas (materiais, legislativas, operacionais) de execução do mandato da polícia. O autor entende que quanto maior a permeabilidade do comando das organizações a estas negociatas, maior o risco de instrumentalização política das polícias. Para Reiner, mesmo os contratos de sindicatos, que são formas institucionalizadas de negociação da classe política com as organizações policiais, precisam ser transparentes para que não criem brechas para a impunidade, como apresentado pelo trabalho de Stephen Rushin, abordado mais à frente no texto. Ainda segundo Robert Reiner, a principal maneira de construir poder de barganha pelos sindicatos e associações é o tamanho de sua membresia e o seu enraizamento nas unidades policiais. O autor também menciona o papel da 164 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública relevância dessas organizações na construção do debate público sobre polícia. Mas aquilo que as associações e sindicatos precisam, acima de tudo, é mostrar resultados. Que tipo de resultados? Isso vai variar, dependendo de quais sejam as demandas da categoria naquele momento e contexto. O trabalho de representação precisa ser dinâmico e estar em contato direto com suas bases de apoio. Na busca por esses resultados, surge como assunto delicado a relação dessas organizações com a esfera política. Se, por um lado, a falta de poder de barganha coletiva pode expor mais o modelo associativista à lógica de estabelecimento de relações de patronagem com políticos e comandantes, sabotando os esforços de profissionalização da polícia, os contratos produzidos pelos sindicatos têm sido motivo de preocupação, ameaçando a democracia em diversos países do mundo. Esse é um amplo debate que tem questionado exatamente a forma como as demandas trabalhistas de policiais podem ser ouvidas de forma institucionalizada, universal e transparente. O extenso trabalho do pesquisador Stephen Rushin, Police Union Contracts (2017) analisou um total de 178 contratos firmados entre sindicatos policiais e governos de cidades nos Estados Unidos. Com base nessa amostra, o autor e sua equipe analisaram em quantos destes contratos foi verificada a concessão de proteções processuais que dificultavam a responsabilização de policiais acusados de desvios de conduta. Os resultados foram alarmantes, pois na grande maioria das grandes cidades dos Estados Unidos, esse tipo de medida tinha sido acordado entre governos municipais e sindicatos. Isso mostra a responsabilidade dos Governos na supervisão, não apenas de aspectos técnicos do trabalho da polícia, mas principalmente políticos, no sentido de definir e defender meios aceitáveis para se obter resultados em uma democracia. 165 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Finalizando.... Neste módulo você aprendeu: Nesse módulo, tratamos das dimensões políticas do trabalho policial como um tipo de tensão permanente entre a necessidade de controle e o perigo de instrumentalização da polícia pela classe política, um risco inerente ao funcionamento das democracias e seus ciclos eleitorais. Depois de diferenciarmos entre o “controle político” e a “instrumentalização político-partidária”, introduzimos o tema da “governança de polícia” (Proença Júnior, Muniz e Poncioni, 2009) como solução para o problema e tratamos dos riscos de uma “polícia política”. Destrinchamos ainda os aspectos “políticos” do trabalho policial, finalizando o módulo colocando uma discussão sobre a importância das condições de trabalho dos profissionais de segurança pública como um aspecto fundamental para a defesa da democracia. No exercício de sua missão, os profissionais de segurança pública ocupam um lugar estratégico na proteção do Estado Democrático de Direito. Não apenas em razão do seu trabalho de controle e prevenção do crime que, como vimos, é fruto de um processo histórico de especialização dos serviços policiais. Mas em razão de sua atuação se situar em um lugar - que é físico, mas também político - que caracterizamos como um “ponto de encontro”. Um encontro que acontece entre a polícia e a população, entre os cidadãos e o Estado, entre o mundo das leis e as leis do mundo. Em sociedades altamente desiguais, funcionários/as públicos/as que trabalham diretamente com as demandas da população tendem a experimentar o Estado como uma espécie de “fronteira” (Göpfert, 2020), em que a distância entre as circunstâncias ideais visualizadas pelo Legislativo e as condições materiais de aplicação das leis parece por vezes intransponível. Nesse contexto, cabe aos poderes Judiciário e Executivo, que atuam diretamente no espaço regulatório dos sistemas políticos, trabalhar para reduzir esse intervalo. A polícia, enquanto instituição estatal, é considerada um híbrido: um instrumento de intervenção do Executivo, mas que se incorpora ao processo Judiciário por meio do seu trabalho de 166 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública identificação e processamento legal de crimes e condutas desestabilizadoras da ordem pública. Sabemos que a polícia não vai resolver o problema da desigualdade. Muito menos fechar o intervalo regulatório que caracteriza os sistemas político-jurídicos. Entretanto, devido à natureza dos seus poderes e à autorização para o emprego da força, a polícia desempenha um papel “político” fundamental no sentido de influenciar a distribuição de poder na sociedade (Weber, 2011). Mas de que maneiras isso acontece? Ao longo do Módulo III, mostramos que essa dimensão política do trabalho da polícia se manifesta, por exemplo, nos impactos diferenciais da violência e da insegurança sobre determinadas áreas e segmentos da população, mas também no trabalho cotidiano dos/as policiais enquanto “políticos de esquina”, realizando um trabalho de mediação simbólica que incorpora demandas por respeito e consideração (Oliveira, 2008) nos conflitos em que são chamados/as a intervir. Mostramos que a adequada mediação dessas conflitualidades cotidianas, que fazem parte da vida em sociedades urbanas complexas(Simmel, 2011[1964]), pode fazer a diferença no acesso a direitos. Entretanto, para que isso aconteça, como vimos, é preciso interromper o processo avançado de militarização das polícias, priorizando o desenvolvimento de suas funções civis com o objetivo de ampliar a sua disponibilidade, capacidade de pronta-resposta e imparcialidade (Bayley & Perito, 2010), configurando a polícia enquanto um serviço essencial focado no cidadão. Recorremos, nesse sentido, ao exemplo dos chamados “contextos pós-conflito”, em que os dilemas implicados na reconstrução da confiança das pessoas nas leis e na justiça do Estado, ou seja, na reconstrução do Estado de Direito, são mais agudos. Vimos com o exemplo sul-africano que, mesmo nesses cenários extremos, é possível realizar esse trabalho de reconstituição da esfera da política em que a reforma da polícia se mostrou fundamental para o processo de construção da democracia. Ao longo do módulo, argumentamos que o Estado de Direito e a sociedade como um todo se beneficiam muitíssimo de uma polícia consciente de seu papel e relevância social. Entretanto, mostramos também que a democracia é importante para a própria polícia. Nesse 167 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública contexto, afirmamos que a discussão sobre formas de expressão e encaminhamento de demandas trabalhistas e conflitos internos às organizações policiais contribui para uma relação equilibrada entre a polícia e a esfera da política, no sentido de reduzir oportunidades para o recurso à “troca de favores” e ao “apadrinhamento político” na reivindicação de direitos que deveriam ser garantidos aos trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública. 168 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Módulo 4 - OS DESAFIOS DO ESTADO BRASILEIRO E A SEGURANÇA PÚBLICA: O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA APRESENTAÇÃO DO MÓDULO Esse módulo buscará se aprofundar nos desafios que estão presentes na realidade nacional brasileira, em especial, no referente à questão da segurança pública. Tentaremos oferecer uma discussão sobre a prestação do serviço de prover segurança às pessoas, debatendo sobre os problemas que ora remanescem de nosso passado, ora dizem respeito às lacunas que a segurança pública possui em relação a outros campos das políticas públicas que, apesar de problemas estruturantes da vida nacional, têm obtido melhores índices de eficiência e eficácia na provisão dos seus respectivos bens públicos. Assim, com o objetivo de melhorar o serviço ofertado, discorreremos sobre as questões presentes nessa área, recorrendo à análise de suas variáveis sociais e político-jurídicas, em especial a Constituição Federal. A partir daí, lançaremos mão da discussão sobre como o Estado brasileiro estabelece seus caminhos (legais, políticos e administrativos) para atingir os objetivos consensuados politicamente, o que chamaremos provisoriamente de governança da Segurança Pública. O Sistema Único de Segurança Pública (Susp) será, então, objeto das nossas discussões, com o objetivo de torná-lo um instrumento do Estado e da sociedade civil na alavancagem de melhores condições de segurança à população e aos profissionais de Segurança Pública. Abordaremos as questões afetas a este sistema, dentre as quais sua concepção, legislação vigente, orçamento, desenho institucional e políticas públicas no seu escopo. 169 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública OBJETIVOS DO MÓDULO Este módulo tem por objetivos: Abordar os desafios do Estado brasileiro na construção do Estado Democrático de Direito do ponto de vista da Segurança Pública; Compreender o desenho legal e institucional que orienta a Segurança Pública no Brasil; Apresentar instrumentos ligados à governança da Segurança Pública no Brasil; e Apresentar o Susp, de forma a oferecer aos profissionais de Segurança Pública possibilidades de otimização do trabalho desenvolvido. ESTRUTURA DO MÓDULO Este módulo compreende as seguintes aulas: Aula 1 – Os desafios brasileiros e suas repercussões na oferta de segurança pública; Aula 2 – A Segurança Pública e a Constituição Federal de 1988; e Aula 3 – O Sistema Único de Segurança Pública (Susp). 170 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 1 - OS DESAFIOS BRASILEIROS E SUAS REPERCUSSÕES NA OFERTA DE SEGURANÇA PÚBLICA Muito embora se pense que segurança pública seja sinônimo da atuação na área de justiça criminal, a capacidade de prender criminosos e levá-los a julgamento é apenas uma das faces do amplo trabalho que significa prover melhores níveis de segurança e uma resolução menos violenta dos conflitos, cerne da atuação dos profissionais do Susp. Em outras palavras, o sistema de justiça criminal, responsável pelo atendimento estatal prestado após o cometimento de um delito é apenas um aspecto do esforço para a preservação do Estado de Direito. Como vimos, assegurar o império da lei (rule of law) passa pela promoção da cidadania muito antes de se acionar mecanismos que estabeleçam sanções penais. Essa afirmação alcança um ponto central do trabalho policial, pois, não obstante as polícias possuírem uma potencialidade de fazer valer, nas ruas, a força da lei, seu papel começa muito antes e, podemos dizer, vai muito além da lei penal. Nos módulos anteriores, tratamos da polícia como um serviço policial orientado mais para a sociedade do que para o Estado. De fato, nosso próprio conjunto legal brasileiro, construído a partir da Constituição Federal de 1988, também assim o faz. Apesar disso, podemos dizer que a segurança pública no Brasil não foi capaz de fazer uma guinada que fosse além de sua forte vinculação com o Direito Penal. Essa dificuldade nacional tem suas razões e tentar abordá-las e, mais, encontrar caminhos para superá-las é o que vamos buscar neste módulo, ao resgatar algumas leituras sobre o Brasil. Feito isso, procuramos apresentar os avanços que vêm sendo construídos no sentido de entregar melhores níveis de segurança pública. Conseguir níveis de sucesso melhores é, contudo, uma construção coletiva de muitas mãos. Esperamos poder oferecer alguns elementos para ela. 171 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública O Brasil é reconhecidamente um dos países mais violentos do mundo (UNODC, 2019), não obstante possuir índices socioeconômicos melhores que muitas nações com menores taxas de crimes violentos. Ao mesmo tempo, a distribuição de tais taxas é desigual: enquanto populações de determinados territórios e de determinadas clivagens sociais possuem números dentre os melhores do mundo, outras têm uma incidência de violência superior à de países envolvidos em guerras internas (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023). Assim como os crimes que atentam contra a vida e a incolumidade das pessoas, os crimes contra a propriedade são igualmente expressivos. Esse panorama traz a questão da insegurança para o cotidiano das pessoas, as quais chegam a reorientar suas vidas em face do medo de serem vítimas de crimes. Essa situação não é própria somente dos nossos dias. A violência compõe a nossa própria história, desde a configuração histórica das nossas relações sociais, marcada por séculos de submissão de parcela substancial da nossa população à escravidão e, por óbvio, à violência, até a naturalização da violência para a solução de conflitos. Uma das principais peculiaridades brasileiras reside no fato de que alguns elementos que perpassaram a nossa conformação como país comunicam-se muito fortemente com o nosso atual momento, impondo grandes obstáculospara se alcançar níveis mais “civilizados”, ou menos violentos, nos termos de Norbert Elias (1990), já trazidos neste curso. Por certo que, tão variadas sejam as lentes de análise sobre os problemas estruturantes de nossa sociedade, tão variadas serão as explicações para eles. Para nosso módulo, vamos nos deter em duas marcas de nossa sociedade que, em nossa concepção, guardam forte relação com a violência e a oferta de segurança pública pelo Estado. 172 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Uma das características mais marcantes da sociedade brasileira é o autoritarismo, marca de nossa cultura política em que o poder se concentra nas mãos de uma pessoa ou grupo político, com pequena participação das pessoas nas decisões que afetam suas vidas (SCHWARCZ, 2019). Ainda que isso seja marcante nas questões que envolvem Estado e sociedade, o autoritarismo se construiu nas diversas esferas de relações sociais com grande disparidade (ou assimetria) de poder, como o caso dos senhores e a população escravizada, nas relações familiares com pouco espaço de poder para mulheres e filhos, ou nas relações de trabalho que se constituíram após o regime escravocrata. Paulo Sérgio Pinheiro (1991, 1997) estabelece uma relação entre o autoritarismo e a incapacidade de o Brasil estabelecer um Estado de Direito que, por meio da lei, conferisse um estatuto de igualdade aos cidadãos na participação no poder, a despeito da existência de previsões legais no sentido de reduzir essas disparidades. Esse autoritarismo socialmente implantado persiste também naquilo que podemos chamar de “microdespotismo” da vida diária, que se manifesta na forma de racismo, sexismo, elitismo e outras hierarquias socialmente entrincheiradas. Uma dramática desigualdade entre ricos e pobres, um gap profundo e histórico que não diminuiu, mas, pelo contrário, aumentou as dificuldades das novas democracias. A combinação de uma falta de controle democrático sobre as classes dominantes e a negação dos direitos para os mais pobres reforça as diferenças sociais hierárquicas, fazendo com que os direitos e o império da lei sejam pouco mais que uma cortina de fumaça para uma terrível dominação (PINHEIRO, 1997, p. 47). Você sabia? 173 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Como apontado por Pinheiro, é por meio do Estado Democrático de Direito que o autoritarismo pode ser enfrentado. Isso é especialmente válido para o Brasil contemporâneo, onde o conjunto de leis apresenta um repertório que se coloca de forma bastante propositiva; o que ocorre, todavia, é que essas leis, aqui, não conseguem ser colocadas em prática, pela ineficácia do Estado brasileiro em fazer valer esse ordenamento. Isso é fruto, em parte, da dificuldade dos grupos mais vulneráveis para fazerem valer sua cidadania, e, em parte, e principalmente, da deficiência da própria arquitetura do Estado em alcançar essas populações. No que se refere à segurança pública, o autoritarismo se reflete em algumas dimensões, veja algumas delas abaixo: Violência ou abuso policial: Uma delas se traduz em práticas de excesso de poder que recebe o nome de violência ou abuso policial. Sob o prisma em questão, trata-se exatamente de uma das faces do autoritarismo, uma vez que faz presente o exercício do poder sob o domínio do outro e, portanto, com a retirada do arcabouço jurídico que lhe assegure as garantias individuais. Grupos criminais: Se o excesso de poder estatal é um reflexo do autoritarismo, ele não se faz presente apenas nas instituições, pois existe também nas micro relações sociais. Outra marca do nosso autoritarismo é a capacidade de grupos criminais imporem sua autoridade. Se, por certo, os grupos, ou facções, criminais mais conhecidos nacionalmente logo nos vêm à mente, há, infelizmente, um rol de outros grupos que, valendo-se da força bruta, mas também da ameaça, constrangem parcelas imensas da população. Esse é o caso das chamadas milícias, dos grileiros que se valem da força para a remoção forçada de populações, dos madeireiros e extrativistas ilegais, dentre outros exemplos, cujas ações, sobretudo exercidas sobre as populações mais desassistidas, reforçam a marca do autoritarismo brasileiro. 174 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Outra questão bastante peculiar à nossa sociedade é a crença de que os bens e serviços públicos são, ao invés de coletivos, especialmente voltados a atender determinados grupos. É o que se denomina patrimonialismo. Por meio dessa concepção deturpada, grupos poderosos se apropriam daquilo que deveria atender ao bem comum. A distribuição desigual de recursos a populações mais poderosas constitui uma distorção dos fins a que o Estado se destina. Um dos principais teóricos sobre isso foi Raymundo Faoro (2001), em seu livro “Os Donos do Poder”. Nele, Faoro descreve como, desde o início da história nacional, um grupo, para o qual o Estado funciona como uma extensão de seus interesses, alcançou posições de destaque no Brasil. Nessa trajetória, o governo no Brasil privilegiou o atendimento às classes economicamente poderosas, deixando de lado critérios que atendessem a fins públicos definidos em leis. Assim, segundo essa leitura, os integrantes do Estado orientavam suas práticas para o atendimento a esse grupo, negligenciando, portanto, as camadas menos favorecidas e mais carentes. O patrimonialismo presente no Estado brasileiro é objeto de diferentes esforços por combatê-lo. Veja o que diz Fernando Abrucio e Maria Rita Loureiro: No trabalho “Burocracia e Ordem Democrática: desafios contemporâneos e experiência brasileira”, Fernando Abrucio e Maria Rita Loureiro (2018) descrevem um conjunto de iniciativas adotadas pelo Brasil no sentido de conferir melhores níveis de profissionalismo e impessoalidade à burocracia nacional, como forma de estabelecer uma dissociação entre interesses públicos e privados, muito embora apontem para a incompletude desse esforço nacional. 175 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Podemos dizer que uma das consequências mais evidentes do patrimonialismo é a corrupção, mediante a qual servidores públicos apropriam- se dos recursos públicos para seu próprio benefício. A existência de órgãos, tais como tribunais de contas e corregedorias, que se coloquem frente a essas práticas, revela-se ainda mais importante em contextos em que as diferenças entre o público e o privado são tênues, e em serviços públicos que gozam de grande potencial discricionário, como a polícia. Se é verdade que sua profissão exige níveis de dedicação e preparação diferenciados, estas exigências não podem naturalizar causas de adoecimento físico, emocional e moral associados ao seu trabalho. Combater o patrimonialismo exige uma dimensão ética que seja capaz de reafirmar que, nas suas diferentes atuações, o Estado deverá entregar níveis de eficiência e efetividade, calcados em uma moralidade pública. Caso contrário, corre-se o risco de que, mesmo nas decisões mais triviais, a segurança pública seja um instrumento das distorções que reproduzam esses problemas. Vamos Refletir 176 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 2 - A SEGURANÇA PÚBLICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Como dissemos, os problemas quanto à nossa formação social e política derivam de configurações que são resultado de especificidades da história nacional e que vêm até o presente. Contudo, mesmo os países com melhores níveis de desenvolvimento político e social tiveram percursos históricos que, em alguma medida, assemelham-seao do Brasil, mas, por força de novos arranjos, tiveram maior sucesso em superá-los. Um problema que permeia a sociedade brasileira e o próprio Estado para a consolidação do Estado Democrático de Direito é a distribuição desigual de poder na sociedade. Trata-se de um problema que alcança em cheio os profissionais da segurança pública. Para ilustrar, vamos pensar nas eleições brasileiras que ocorriam no começo do século passado. Com o fim da Monarquia em 1889 e a instalação da República, logo na passagem do século, o Brasil teve eleições para presidente. Nada mais democrático, certo? Mas, quem podia votar? Para se ter ideia, nas eleições da chamada Primeira República (1889-1930) apenas 6% dos eleitores eram autorizados a votar*. Parece inegável que a participação na definição das regras do país restringia-se a uma pequeníssima parcela da população, esses mais poderosos economicamente. *Disponível na página eletrônica do Tribunal Superior Eleitoral. Acesse:https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Fevereiro/90-anos-da-justica- eleitoral-12-eleicoes-presidenciais-ja-foram-realizadas-no-brasil-desde-1945 Esse exemplo nos mostra que o exercício do voto deve ser amplo o suficiente para que contemple a vontade coletiva, caso contrário, teríamos a reprodução da concentração de poder, reforçando a desigualdade e a mitigação da cidadania para enormes parcelas da população. Na Prática 177 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A possibilidade de votar e ser votado é indispensável, mas não é suficiente para que tenhamos um Estado Democrático de Direito pleno para todos, que assegure universalmente direitos tais como o direito à vida, à liberdade, à educação e à segurança, que concretizam a possibilidade de participação na vida política de um país. A vigente Constituição Federal, promulgada em 1988, busca superar os problemas políticos que remanescem no Brasil e consolida o esforço nacional para estabelecer uma nova pactuação que promova cidadania a grupos que, historicamente, tiveram sua participação excluída. Chamada de “Constituição Cidadã”, representa a tentativa de romper com um passado marcado pelo autoritarismo e pela reprodução de estruturas que consolidaram forte desigualdade social e que estiveram na base da formação da nossa nação e, consequentemente, do Estado brasileiro. Ela tenta superar os problemas que percorrem nossa história, não só pela sedimentação da democracia, mas, em grande parte, pela organização do Estado brasileiro com o intuito de torná-lo capaz de ser aderente aos interesses da sociedade. Nestes termos, podemos afirmar que a Constituição Federal possui tanto uma dimensão cidadã – representada com destaque nos seus artigos 5º e 9º, que tratam dos direitos civis e dos direitos sociais – como uma dimensão gerencial, como, por exemplo, no artigo 37 e seguintes, que abordam a administração pública. Podemos representar essa passagem em três pontos principais: 1 o fortalecimento dos mecanismos e instituições que garantissem a realização de eleições nos três níveis federativos (União, Estado e Município); Você sabia? 178 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 2 a proteção aos direitos civis, sociais e políticos como base da construção de nossa sociedade; e 3 uma organização do Estado que fosse capaz de atender às exigências dessa sociedade, baseada em princípios básicos nas principais democracias, como eficiência, eficácia e efetividade, legalidade e impessoalidade. Nos termos constitucionais vigentes, a segurança pública se relaciona com os últimos dois pontos que trouxemos anteriormente. Isso porque ela tanto se coloca como um dos direitos a que os brasileiros fazem jus, assim como uma na questão da organização administrativa do Estado na oferta desse serviço público. Ocorre que, ainda que se possa dizer que houve avanços em relação às Constituições Federais anteriores, a atual Carta vigente, por outro lado, manteve alguns problemas e apresentou outros novos. Em termos do texto constitucional, a segurança pública aparece em dois momentos. O espaço especialmente dedicado à segurança pública vem previsto no artigo 144, o qual, em seu caput, prevê que a segurança pública é: “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988). Esse dispositivo se coaduna com o espírito que permeia a Constituição Federal na medida em que busca trazer a sociedade para participar das ações do Estado, em uma clara inflexão em relação aos padrões vigentes até então na segurança pública, cujas questões eram pensadas como “assuntos de Estado”, sem a participação da sociedade, portanto. Esse esforço em promover maior participação social será uma tônica em todo o texto constitucional, como nas áreas de saúde (artigo 198) e educação (artigo 205, caput), dentre outras. 179 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública O artigo 144 passa, então, a definir as competências de cada uma das agências policiais, quais sejam a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis, as Polícias Militares, os Corpos de Bombeiros Militares e a Polícia Penal*. *O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 28 de agosto de 2023, reconheceu as Guardas Municipais como integrantes do rol de agências que integram a Segurança Pública. Para mais informações, recomendamos a leitura do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 995. Acesse: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6444398 Não será objeto do presente conteúdo descrever cada uma das missões dessas agências policiais, as quais estão definidas no dispositivo legal, muito embora existam importantes zonas de superposição de atuação. Para nossa finalidade, cabe destacar uma outra questão ligada a esse artigo, qual seja a falta de articulação entre essas agências. Para isso, vamos passar brevemente pelo capítulo que trata de outra importante área de prestação estatal: a saúde e os artigos 196 a 200 em que serão encontrados dispositivos mais bem elaborados em relação à governança. Muito diferentemente da segurança pública, a Constituição Federal dedicou muito maior detalhamento sobre o funcionamento, financiamento, formas de controle social e, até mesmo, vencimentos dos profissionais de saúde. Tomemos, por exemplo, a forma com que o legislador constitucional buscou avançar na articulação entre os diferentes atores da área da saúde: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: Saiba mais 180 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade (BRASIL. CONSTITUIÇÃO, 1988). Dentre a enormidade de ações disponíveis na saúde, a Constituição Federal define que são prioritárias as atividades preventivas, em comparação com as adotadas após o acometimento de doenças, por exemplo. Além disso, a participação da comunidade é sinalizada como uma diretriz necessária à prestação do serviço que, por sua vez, deverá contemplar ao mesmo tempo atendimento descentralizado, mas que atenda a ditames mais centralizados. Além desse artigo, outros vão compor o esforço em estabelecer uma articulação que busque entregar bons níveis de eficiência e efetividade. É o que se vê quando define como cada um dos entes federativos (União,Estado ou Distrito Federal, e Municípios) participará no financiamento da área de saúde, qual o papel da iniciativa privada e, até mesmo, como serão formuladas as políticas salariais dos servidores ligados a essa área. Ainda que haja muito em que se avançar nos assuntos ligados à oferta de saúde no Brasil, podemos afirmar que os mecanismos vigentes são capazes de congregar um conjunto de medidas que permite reorganizar os rumos dessa política, por meio de instrumentos que derivam do governo, em suas diferentes instâncias federativas, mas que contemplam a participação social, de forma a buscar melhor atender a população. Atendo-se somente ao cenário constitucional brasileiro, a segurança pública recebeu um tratamento bastante aquém (SILVA et al., 2023). Mais do que apontar as razões que levaram a esse tratamento legal à segurança pública (FERNANDES, 2021), importa dizer que avanços ou retrocessos de uma sociedade são construções coletivas, que envolvem os indivíduos, em seus múltiplos papeis, e as instituições que compõem a vida nacional. 181 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Esse pensamento também se aplica a outro desafio, que deriva igualmente da Constituição Federal. Neste caso, mais do que uma questão inerente ao próprio texto, diz respeito a como a segurança pública foi compreendida como um tema desconectado de outras áreas da vida social, a despeito do pensamento do legislador constitucional. Além do artigo 144, a segurança está também prevista, no artigo 6º, como um direito social, ao lado de educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, dentre outros. Nestes termos, a segurança pública é um direito fundamental e condição essencial para o exercício pleno da cidadania, tal como desenvolvemos nos módulos anteriores, em especial quando tratamos sobre o Estado de Direito (rule of law) e sobre como a segurança é condição fundamental para o exercício desse Estado de Direito. Mas, o que gostaríamos de problematizar aqui é a razão pela qual a segurança pública no Brasil conecta-se muito menos à noção de um direito social e, muito mais, a uma série de órgãos ligados, tão-somente, à justiça criminal. Se, inquestionavelmente, a prisão de pessoas que incorrem na prática de crimes é uma das condições para assegurar melhores níveis de segurança, também é certo que promover segurança não se resume a esse tipo de atuação. Prevenir o cometimento de crimes, diminuir os riscos de as pessoas serem vítimas das mais diversas formas de violência, restabelecer social e individualmente um cenário de mitigação da violência sofrida ou tornar pessoas e comunidades mais resilientes à eclosão da violência são exemplos de medidas que se dão muito distantemente à Justiça Criminal e que dialogam com a noção de segurança pública enquanto direito. E ainda, revestir a segurança pública como uma área de atenção social preferencial por parte do Estado, implicaria, ao menos conceitualmente, conceder o tratamento que outras áreas, como alimentação, enfrentamento à pobreza, saneamento básico e educação, além da própria saúde já trazida aqui, também recebem. 182 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A prestação de um melhor serviço de segurança requer que as ações sejam pensadas enquanto políticas públicas, o que, minimamente, envolve transparência, prestação de contas, participação social, planejamento de políticas multisetoriais, monitoramento e avaliação de resultados e a reorientação dos rumos adotados em face das evidências existentes (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2014; CAPELLA, 2018; FARAH, 2016; FILGUEIRAS, 2018). No entanto, a despeito das mudanças incrementais verificadas nas últimas décadas, que aumentaram a eficiência operacional e tecnológica das forças de segurança do país, a persistência de opções político institucionais que valorizam um modelo de segurança reativo impede que o tema seja tratado como uma política social universal que atinja toda a população brasileira. 183 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Aula 3 – O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA (SUSP) Até este momento, procuramos, neste módulo, apresentar os desafios que cercam a oferta de melhores níveis de segurança pública para a consolidação de um Estado de Direito. Revisamos algumas mazelas que dizem respeito a como o Estado brasileiro se colocou na relação com a sociedade, como o autoritarismo e o patrimonialismo, para pensar em como a Constituição Federal buscou enfrentar tanto esses como um conjunto de outros problemas. Neste ponto, apresentamos algumas análises sobre fragilidades e possibilidades de avanço em uma leitura essencialmente ligada ao texto constitucional. Buscamos deixar claro, contudo, que as dificuldades que existem exigem esforços para superá-las que passam por novas percepções sobre o trabalho dos profissionais de segurança pública e que não passam necessariamente por mudanças legais. São, muito mais, novas formas de se abordar o problema da segurança pública no Brasil que requerem igualmente outros arranjos institucionais. A partir daqui, pretendemos apresentar uma ferramenta que, à semelhança de outras áreas de atuação do Estado, pretende promover avanços. Abordaremos o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Para introduzir esse conteúdo, trataremos inicialmente sobre o principal produto que o Susp pretende entregar, e que busca enfrentar um dos principais problemas da segurança pública no Brasil: como coordenar os diferentes atores interessados (chamados pela literatura de stakeholders). Falamos aqui dos órgãos de Estado, como as polícias, as guardas municipais, os órgãos de polícia forense, as secretarias estaduais e os órgãos federais de gestão da segurança pública, mas também da sociedade civil, destinatária e, portanto, centralmente interessada no tema. Aqui, emerge um problema que tem sido objeto de estudo em diferentes contextos internacionais, que é o de: Promover a organização do Estado e da sociedade civil, de forma articulada, com a finalidade de buscar a maximização dos bens públicos. É o que chamamos governança. 184 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 3.1 Governança: monitoramento e avaliação Para iniciarmos essa discussão, vamos buscar compreender o que significa governança. O artigo de Bernardo Buta e Marco Antonio Carvalho Teixeira discute os diferentes sentidos da palavra e nos traz algumas definições. Para os fins que pretendemos aqui, daremos ênfase à definição trazida por Gisselquist para quem governança é “o exercício do poder político para gerenciar assuntos coletivos” (GISSELQUIST, 2014, apud BUTA e TEIXEIRA, 2020, p. 381). Em estudo sobre governança e a Polícia Rodoviária Federal, Duarte Pires (2016, p. 27) vai nos trazer uma definição da Organização das Nações Unidas, que diz muito a respeito sobre como conjugar essa temática com a segurança pública no Brasil. Governança não é necessariamente uma “entidade física”, nem é o ato de governar sobre cidadãos. É mais realisticamente entendida como um processo: o processo por meio do qual instituições, organizações e cidadãos “guiam” a si próprios. Governança trata, também, da interação entre o setor público e a sociedade, e de como esta se organiza para a tomada de decisão coletiva, de modo a que sejam providos mecanismos transparentes para que tais decisões se materializem (PIRES, 2016, p.17). Um dos pontos centrais a respeito da governança é como articular atores com realidades, inserções institucionais e problemas diversos para propiciar avanços em uma determinada questão. Um exemplo é trazido pelos trabalhos de um autorligado à Universidade Erasmus, em Roterdã, Holanda, chamado Erik Hans Klijn, que discorre sobre as dificuldades de se implementar ações conduzidas pelo Estado, mesmo em um país unitário e com um território bem 185 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública menor que o Brasil, como a Holanda. Em um de seus textos, escrito em coautoria com Van Gils (2007), Klijn explica como foi possível conciliar interesses que colidiam para promover a reforma do porto de Roterdã, em um trabalho que exigiu 30 anos de negociação para que os diferentes interessados conseguissem ter seus interesses atendidos, ainda que parcialmente, na concretização da reforma. Traz como lição que, apesar dos conflitos, é fundamental que sejam promovidos arranjos, sistemas, desenhos institucionais, dentre outras medidas, que busquem atender interesses públicos. Com base nessas lições, podemos dizer que, sem isso, há uma falha na provisão dos interesses coletivos, uma em razão das disputas, outra porque os esforços, quando descoordenados, sobrepõem-se, deixam vazios de atuação ou, simplesmente, anulam-se. Agora, observem o quadro a seguir. Ele foi elaborado por Renato Sérgio de Lima e utilizado por Iara Sennes em seu trabalho que diz respeito à governança em segurança pública no Brasil (SENNES, 2021). Ele apresenta um mapeamento dos stakeholders da burocracia estatal ligados à segurança pública nacional. Figura 16: Mapa de Stakeholders pertencentes ao Estado (Segurança Pública, Sistema Socioeducativo e Justiça Criminal) Fonte: Sennes (2021). Já por esse ponto de vista, é possível ter um retrato do desafio brasileiro para fazer com que tais órgãos atuem de forma articulada. Quando incluímos os stakeholders da sociedade civil, tais como os ligados ao setor econômico privado 186 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública (mercado), as associações e sindicatos dos trabalhadores de segurança pública, a imprensa e a opinião pública, apenas para citar alguns, esse panorama se torna ainda mais complexo. Integrá-los, todos, de forma a conferir sentidos que atendam à pactuação política prevista, por exemplo, em leis e planos nacionais, é, por certo, uma difícil tarefa. Além da capacidade de conciliar sentidos federativos e institucionais diversos, importa, para uma eficiente governança, avaliar se os planejamentos e ações em curso entregam bons níveis de eficácia, ou, em outras palavras, se atendem ao interesse público com níveis adequados de investimento e se conectam-se com os anseios da sociedade. Com estas questões no horizonte, o Susp foi elaborado. Passaremos a abordá-lo com mais detalhamento. 3.2 Legislação e Concepção do Susp Instituído pela Lei Federal nº 13.675, de 11 de junho de 2018 (BRASIL LEGISLATIVO, 2018), o Susp representa o esforço para estabelecer as bases para uma ação articulada dos órgãos e instituições de segurança pública do Brasil, em seus diferentes níveis federativos, e da sociedade civil. Do ponto de vista constitucional, esta lei dialoga com o artigo 144, inciso 7º da Constituição Federal, que postergou para lei futura a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública. A lei nº 13.675 estabelece em seu artigo 1º que o SUSP tem por finalidade a: “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio de atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública e defesa social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em articulação com a sociedade.” 187 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A questão que essa lei busca enfrentar é como o Brasil pode promover melhores condições de segurança às pessoas, organizando os atores públicos, em especial as Polícias, Guardas Municipais, Bombeiros, apenas para citar alguns, ao mesmo tempo em que estabelece espaços privilegiados de participação da sociedade na segurança pública. Busca ir além das capacidades individuais de cada servidor e de cada instituição para tornar o conjunto desses órgãos, reconhecidos como um “sistema”, eficazes, efetivos e eficientes. Para isso, não bastam o voluntarismo, o heroísmo e as boas intenções. A oferta ótima de qualquer bem público, assim como a segurança, requer: 1 que os atores conheçam suas atribuições (evitando sobreposições ou ausências); 2 que sejam estabelecidas responsabilidades (“quem coordena?; quem presta contas?”); 3 que sejam estabelecidos espaços institucionais de qualificação dos quadros em razão de novos desafios que se colocam à frente; e 4 que espaços de diálogo sejam definidos entre a segurança pública enquanto Administração Pública e a sociedade, de forma que não ocorra um processo de insulamento (ABRUCIO; LOUREIRO, 2018) muito comum nas burocracias estatais. Com o insulamento, a técnica administrativa, no limite, desconecta-se dos anseios da população, guiando-se apenas pelas lógicas institucionais. A Lei nº 13.675/18 estabelece o conjunto de princípios, diretrizes e objetivos que traduzem os sentidos das políticas de segurança pública no Brasil (artigos 4º, 5º e 6º). Muito embora princípios, diretrizes e objetivos digam respeito a diferentes momentos da formulação e implementação de uma política pública, podemos, a partir deles, compreender quais são as principais ideias que promoveram a concepção desse sistema. 188 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A prevenção e repressão à violência e seus riscos é o que qualifica, em última análise, os objetivos do Susp. Isso se representa na interdição ao uso da violência na resolução dos conflitos (artigo 4º, inciso VIII), na atuação moderada e proporcional na atuação estatal (artigo 4º, inciso IX) e na proteção da vida, junto ao patrimônio e ao meio ambiente (artigo 4º, inciso X). Dedica atenção às políticas destinadas à preservação da ordem pública (artigo 1º; artigo 6º inciso II), à investigação de crimes (artigo 6º, inciso III e XXIV), ao tráfico de drogas (artigo 6º, XVI) e aos crimes transfronteiriços (artigo 6º, inciso VIII). Além da legalidade que deve orientar as políticas e ações promovidas em segurança pública (artigo 4º, inciso I), a Lei 13.675/18 tem a proposta de conferir melhores níveis de eficiência, eficácia e efetividade. Essas exigências se colocam ao Estado, em geral, no seu papel de oferta de bens públicos (BRESSER-PEREIRA, 2008; CAPELLA, 2018; CAVALCANTE; PIRES, 2018), o que se aplica também na segurança pública. Essas concepções perpassam diferentes princípios e objetivos do Susp e coincidem com os referenciais que regem a governança das políticas públicas de forma geral (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2014). Em especial quando tratam da articulação entre os entes federativos e entre as agências responsáveis pela Segurança Pública (artigo 5º, inciso IV; artigo 6º, inciso I e XIX) nas fases de planejamento, execução, monitoramento e avaliação das ações, promovendo-se a racionalização dos meios com base nas melhores práticas (artigo 5º, inciso V), incluindo-se o compartilhamento de bancos de dados (artigo 5º, inciso VIII) e informações de inteligência (artigo 6º, X), a interoperabilidade tecnológica (artigo 5º, inciso XI; artigo 6º, incisos III, VII) e a unificação dos registros policiais. Outro aspecto incluído na concepção do Susp foi a construção de uma Segurança Pública que estabelecesse canais de comunicação com a sociedade civil. Com esse intuito, a lei reafirma a importância do controle social sobre as ações em Segurança Pública, enfatizando a publicidade e a transparência das atuações (artigos 4º, incisos XI e XVI, e artigos 33 a 35), que abrem a possibilidadede definição de responsabilidades quanto às ações a serem promovidas diante da ausência da provisão de segurança pública (controle social 189 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública a priori) ou diante de excessos (controle social a posteriori) (PROENÇA JÚNIOR; MUNIZ; PONCIONI, 2009). Aliada à concepção de gestão pública baseada em evidências, a Lei do Susp incentiva, em diversas passagens, a produção de conhecimento que impulsione avaliações sobre os resultados das ações adotadas (artigo 4º, inciso XII, artigo 5º, inciso IX e artigo 6º, incisos VI, XVI e XVIII) de forma a reorientar as políticas adotadas de forma mais eficaz, a qualificação dos profissionais de Segurança Pública (artigo 5º, inciso VI e artigo 6º, inciso XI) para a adoção das melhores práticas (artigo 5º, inciso V) e a inovação tecnológica (artigo 5º, incisos VII e XI; artigo 6º, inciso III). A Lei 13.675/18 dedica especial espaço à promoção de melhores condições de trabalho para os profissionais de Segurança Pública (artigo 4º, inciso II; artigo 5º, inciso VI e artigo 6º, inciso XXI e XXII), por meio de sua valorização, programas de apoio à sua incolumidade física e mental (artigo 42) e constante melhoria em sua qualificação 190 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Figura 17: Princípios, diretrizes e objetivos que informam a concepção do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Fonte: Lei Federal nº 13.675/18; do conteudista. • Interdição ao uso da violência na resolução dos conflitos • Proteção da vida, do patrimônio e do meio ambiente • Preservação da ordem pública, investigação de crimes, enfrentamento ao tráfico de drogas e aos crimes transfronteiriços Prevenção e repressão às violências e seus riscos • Racionalização dos meios com base nas melhores práticas • Compartilhamento de bancos de dados e informações de inteligência • Interoperabilidade tecnológica • Unificação de registros policiais Articulação entre os entes federativos e entre as agências de Segurança Pública • Transparência • Responsabilização • Prestação de contas Controle social • Realização de avaliação e monitoramento das políticas pública • Reorientação da capacitação profissional com base nas melhores práticas • Inovação tecnológica Produção de conhecimento • Proteção, valorização e reconhecimento dos profissionais de Segurança Pública • Formação continuada e qualificada • Criação de mecanismos de proteção aos profissionais e seus familiares • Monitorar ações nas áreas de valorização profissional Promoção de melhores condições de trabalho 191 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS) e no Sistema Único de Assistência Social (Suas), exemplos que contam com maior longevidade (SILVA et al., 2023), a Lei do Susp busca estabelecer um arranjo político que ofereça na segurança pública melhores níveis de eficiência e efetividade. A fórmula elaborada se estrutura em três pontos, quais sejam: 1 a existência de uma Política Nacional em Segurança Pública e seus decorrentes Planos Nacional, Estaduais e Distrital; 2 o funcionamento de Conselhos pluralmente constituídos pelo Estado e pela sociedade civil; e 3 a destinação orçamentária consoante os objetivos estabelecidos pela normatização e pelas instâncias de participação. Esse tripé Plano/Conselho/Fundo resume como a Lei do Susp estrutura a governança do Sistema (SENNES, 2021; SILVA et al., 2023) e é sobre cada um desses pontos que vamos tratar a partir daqui. 3.3 A Política Nacional e os Planos Federal e subnacionais de Segurança Pública e Defesa Social Alcançar objetivos requer o estabelecimento de um planejamento sobre quais caminhos adotar, quais são principais e quais secundários, quanto de recurso vou empregar para alcançá-los, quais são as etapas que pretendo superar e como reoriento o percurso em face das incertas do futuro. Esse planejamento é consolidado, geralmente, em um plano. Sobre ele, temos autonomia para ajustar o curso. Isso se torna mais complexo quando há outras pessoas interessadas nesse plano. Como são diversos os objetivos a serem alcançados, torna-se necessário estabelecer consensos mínimos que dirijam os planos, seus objetivos e diretrizes. É o que se denomina a política que rege o plano. 192 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública “Políticas” e “planos” são encontrados em diferentes instituições da sociedade, inclusive em empresas privadas, cujo número de atores interessados é menor que em uma nação e cujos interesses tendem a ser menos plurais e conflituosos. É exatamente para definir objetivos, estabelecer metas finais e intermediárias, promover o monitoramento e avaliações constantes da efetividade das ações planejadas e permitir o avanço de todo esse processo que o Brasil, seguindo exemplos mundiais, estabeleceu Políticas Nacionais, que se desdobram em Planos Nacionais e subnacionais. Há inúmeros exemplos disso como a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a Política Nacional do Meio Ambiente, a Política Nacional de Habitação, a Política de Defesa Nacional, a Política Nacional de Energia, a Política Nacional de Saúde, dentre outras, cada qual com seus planos correspondentes. Essas iniciativas diferenciam-se entre si em termos de suas capacidades de entregar os bens públicos previstos em seus objetivos, dentre outras variáveis. Já vimos que, em 2018, foi promulgada a Lei Federal nº 13.675 que cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, aqui resumida. A partir da promulgação dessa lei, foi criado o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA., 2021). Na Prática 193 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Figura 18: Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030. Fonte: https://www.gov.br/mj/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/categorias-de- publicacoes/planos/plano_nac-_de_seguranca_publica_e_def-_soc-_2021___2030.pdf O Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2021, p. 10) traz como objetivos: 1 Determinar ciclos de implementação, monitoramento e avaliação do PNSP; 2 Apresentar ações estratégicas alinhadas aos objetivos da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social; e 3 Definir metas estratégicas e indicadores alinhados aos objetivos da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social e às ações estratégicas apresentadas; 4 Estabelecer estratégias de governança e gerenciamento de riscos com vistas à plena execução, o acompanhamento e a avaliação do PNSP; e 194 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 5 Orientar os entes federativos quanto ao diagnóstico, elaboração, conteúdo e forma dos planos de segurança pública e defesa social, visando o alinhamento com a PNSPDS e o PNSP. Existem competências distribuídas entre os entes federativos, conforme previsão constitucional. Isso se reflete nos objetivos do Plano, que se concentra na apresentação, definição e orientação de estratégias e metas que subsidiem as instituições subnacionais na concretização desses esforços. O Plano estabelece os objetivos, representados por algumas metas almejadas para o final do ciclo 2021-2030. São algumas delas: Figura 19: Metas do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-30 Problema Metas Homicídios Redução de 23,57 vítimas por 100 mil habitantes para 16 vítimaspor 100 mil habitantes. Queda de 32,13% Lesão Corporal seguida de Morte Redução de 0,44 vítimas por 100 mil habitantes para 0,30 mil por 100 mil habitantes. Queda de 31,64% Latrocínio Redução de 0,97 vítimas por 100 mil habitantes para 0,70 vítimas por 100 mil habitantes. Queda de 27,61% Mortes Violentas de Mulheres Redução de 4,09 vítimas por 100 mil mulheres para 2,00 vítimas por 100 mil mulheres. Queda de 51,12%. Mortes no trânsito Redução de 17,54 vítimas por 100 mil habitantes para 9 por 100 mil habitantes. Queda de 48,7%. Vitimização de profissionais de Segurança Pública Redução de 30% dos números absolutos Suicídio de profissionais de Segurança Pública Redução de 30% dos números absolutos 195 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Furto de veículos Redução de 236,4 furtos por 100 mil veículos para 140 furtos por 100 mil veículo. Queda de 40,78% Roubo de veículos Redução de 241,11 roubos por 100 mil veículos para 150 roubos por 100 mil veículos. Queda de 31,79% Vagas no sistema prisional Aumento para 677.187. Acréscimo de 60% em relação a 2017 Atividades laborais no sistema prisional Meta de 363.414 pessoas atendidas. Aumento de 185% em relação a 2017 Atividades educacionais no sistema prisional Meta de 218.994 presos. Aumento de 185% em relação a 2017. Prevenção de desastres e acidentes Meta de 50% das Unidades Locais6 devidamente certificadas, por meio de alvará de licença dos Corpos de Bombeiros Militares até 2030. Fonte: Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social; elaboração própria O Plano avança metas que esmiuçam as pretensões da Lei nº 13.675/18, constituindo-se num referencial sobre os caminhos a serem trilhados pelos órgãos e instituições de Segurança Pública. Podemos citar as ações, denominadas “estratégicas” nas áreas de governança, na articulação entre governos e sociedade, nas ações preventivas e repressivas com vistas à redução de crimes e conflitos sociais, no enfrentamento aos crimes transnacionais e na melhoria da capacitação e valorização dos profissionais de Segurança Pública, dentre outras recomendações. A redação do artigo 22, § 5º da Lei nº 13.675/18 sinaliza para que Estados, Distrito Federal e Municípios elaborem seus respectivos Planos, os quais 6 Unidade Local é unidade de produção numa única localização geográfica (endereço), onde a atividade econômica é realizada (ou a partir de onde é conduzida) (IBGE, 2007 apud BRASIL, 2021, p. 22). 196 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública deverão ter por base o Plano Nacional (SENNES, 2021). Muitos Estados já possuem seus respectivos instrumentos orientadores das políticas públicas de segurança e defesa social consolidados na forma de Planos Estaduais de Segurança Pública e Defesa Social, o que consideramos fundamental para que os órgãos envolvidos possam balizar suas iniciativas bem como para apontar à sociedade quais são os objetivos traçados e como alcançá-los, permitindo tanto o controle das ações quanto o apoio necessário para sua sustentação ou correção. 3.4 Participação da sociedade civil: os Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social Alcançar objetivos requer o estabelecimento de um planejamento sobre quais caminhos adotar, quais são principais e quais secundários, quanto de recurso vou empregar para alcançá-los, quais são as etapas que pretendo superar e como reoriento o percurso em face das incertas do futuro. Esse planejamento é consolidado, geralmente, em um plano. Sobre ele, temos autonomia para ajustar o curso. A participação social é condição necessária para uma política que seja aderente aos anseios da sociedade. Ela se faz por meio de canais de participação definidos previamente segundo regras democráticas. Com essa intenção, a Lei Federal nº 13.675/18 definiu os canais de participação social junto à Administração Pública. Segundo o referido diploma, ela se dá por meio de Conselhos existentes nos níveis federativos. De acordo com o artigo 19, § 2º, “os Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social congregarão representantes com poder de decisão dentro de suas estruturas governamentais e terão natureza de colegiado, com competência consultiva, sugestiva e de acompanhamento social das atividades de segurança pública e defesa social, respeitadas as instâncias decisórias e as normas de organização da Administração Pública.” 197 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Assim, os Conselhos têm como funções principais acompanhar as condições de trabalho, a valorização e o respeito pela integridade física e moral dos profissionais de Segurança Pública, o cumprimento das metas previstas, além do resultado da apuração das denúncias em tramitação nas respectivas corregedorias e as ações promovidas em função delas. Cabe, ainda, aos Conselhos proporem diretrizes para as políticas públicas de segurança pública e defesa social, com vistas à prevenção e à repressão da violência e da criminalidade (artigo 20, §§ 4º e 5º). Em nível federal, o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social – (CNSP) está regulado pelo Decreto nº 9.489, de 30 de agosto de 2018 (BRASIL EXECUTIVO, 2018). Ele é presidido pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública e formado por representantes de outros Ministérios do Governo Federal, representantes de agências policiais federais, estaduais e municipais, representantes do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil, e pessoas com notórios conhecimentos na área de políticas de segurança pública e defesa social (artigo 35). O Decreto prevê ainda que o Conselho se reunirá semestralmente ou mediante convocação extraordinária. Atendidas as regras legais previstas, sobretudo nos artigos 19 e 20 da Lei nº 13.675, cada Estado, o Distrito Federal, e cada Município deve estruturar seu respectivo Conselho, que, ressalvadas as definições editadas por cada ente, possuirão as mesmas funções do CNSP. Assim como ocorre com a edição dos Planos, há diferentes estágios de implementação dos Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social no Brasil, resultado que creditamos à recente implementação do Susp e à necessária maturidade institucional a ser alcançada. 3.5 Financiamento do SUSP: Fundo Nacional de Segurança Pública e Fundo Penitenciário Nacional Seguindo a metodologia de explorar as três bases que dão estrutura ao Susp (Plano/Conselho/Financiamento), passamos agora a estudar como se dá a alocação de recursos orçamentários para a consecução das políticas de segurança pública, a partir das normas que definem o assunto. 198 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Para isso, vamos falar dos Fundos que a Lei nº 13.675/18 contemplou em seu texto: o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen)*. É por meio deles que, somados a outras fontes orçamentárias, o Governo Federal busca promover uma articulação que envolva os entes federativos. Muito embora os Estados sejam quem empenha a maior parte dos recursos investidos no Brasil em Segurança Pública, em torno de 80% do total, os valores gerenciados pela União, por volta de 11% do total, contribuem significativamente para as políticas públicas de segurança. Em 2017, foram empenhados aproximados 95 bilhões de reais, dentre os quais 11 bilhões tiveram como origem o Governo Federal (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, p. 15). Por uma limitação de objeto de análise, não discutiremos o Fundo de Direitos Difusos e o Fundo Nacional Antidrogas. Indicamos as normas que disciplinam tais temas, que são a Lei Federal nº 7.347, de 24 de julhode 1985, e a Lei Federal nº 7.560, de 19 de dezembro de 1986, respectivamente. O FNSP é regulado pela Lei nº 13.756 e se destina a apoiar projetos, atividades e ações nas áreas de segurança pública e de prevenção à violência. As ações contempladas incluem construção, reforma e melhoria de unidades policiais, melhoramentos logísticos e tecnológicos e programas de prevenção à violência e redução da criminalidade. Segundo previsão legal, entre 10 e 15% dos recursos do FNSP devem ser destinados a programas habitacionais e para a melhoria da qualidade de vida dos profissionais do Susp (artigo 5º, § 1º). Com o objetivo de atender a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, recentes publicações do Ministério da Justiça e da Segurança Pública buscaram conferir maior adesão dos investimentos financiados pelo FNSP aos princípios e diretrizes nela contidos, bem como materializar as concepções do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (FIGUEIREDO; MATTOS, 2023). Assim, por meio da Portaria MJSP nº 440 (BRASIL EXECUTIVO, 2023a) e da Portaria MJSP nº 439 (BRASIL Saiba mais 199 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública EXECUTIVO, 2023b), ambas de 4 de agosto de 2023, buscou-se aplicar um pensamento sistêmico aos processos de segurança pública no Brasil, de modo a potencializar, por um lado, uma maior articulação entre os atores do SUSP e, por outro, uma capacidade de governança maior sobre os fins a que os recursos se destinam. Itens elegíveis de aquisição, planos de ação que contemplem metas e indicadores de processos e resultados, e dotações especificamente dedicadas a determinados problemas públicos (mortes violentas intencionais, violência contra a mulher e melhoria da qualidade de vida dos profissionais da Segurança Pública), previstos nas Portarias citadas, procuram estabelecer esforços coordenados. O Funpen é previsto na Lei Complementar n.º 79, de 7 de janeiro de 1994 (BRASIL (LEGISLATIVO), 1994) e tem por finalidade proporcionar recursos e meios para financiar e apoiar as atividades e programas de modernização e aprimoramento do sistema prisional, tais como construção, reforma e ampliação dos estabelecimentos penais, formação e especialização de servidores e elaboração e execução de projetos voltados à reinserção dos presos e egressos (artigo 3º). 3.6 Sistemas do Susp Seguindo a metodologia de explorar as três bases que dão estrutura ao Susp (Plano/Conselho/Financiamento), passamos agora a estudar como se dá a alocação de recursos orçamentários para a consecução das políticas de segurança pública, a partir das normas que definem o assunto. A Lei do Susp prevê o funcionamento de alguns sistemas que devem dar sustentação ao desenvolvimento das políticas estabelecidas. Falaremos sobre cada um deles. 200 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública SINAPED: O Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social (SINAPED) tem como função realizar o monitoramento do alcance das metas indicadas no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, sob o ponto de vista do acompanhamento dos indicadores de resultado (metas) e dos indicadores de processo (avaliação de planos de ação, gestão dos programas, ações, atividades e projetos em curso e acompanhamento financeiro-orçamentário). É por meio do SINAP que o Plano Nacional deve ser avaliado, sobretudo ao final de sua vigência, não obstante a existência de avaliações periódicas e de acompanhamento. Conforme o artigo 29, o processo de avaliação das políticas deve contar com a participação de representantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social, em cuja composição há integrantes da sociedade. SINESP: O Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e munições, de Material Genético e de Drogas (SINESP) tem a finalidade de armazenar, tratar e integrar dados e informações para auxiliar na formulação, implementação, execução, acompanhamento e avaliação das políticas de segurança pública e defesa social. O SINESP se coloca como um banco de dados que permite fazer a gestão do SUSP, além de ser uma base de informações para a atuação operacional das corporações, a interface do sistema mais conhecida pelos profissionais da segurança pública no Brasil. Mais do que uma ferramenta de apoio às ações de ponta-de-linha, o SINESP se coloca como o repositório que oferece aos gestores informações para a tomada de decisão, mas também para a elaboração e avaliação das políticas em curso. 201 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Segundo o texto legal já citado, o SINESP tem por objetivos: I - proceder à coleta, análise, atualização, sistematização, integração e interpretação de dados e informações relativos às políticas de segurança pública e defesa social; II - disponibilizar estudos, estatísticas, indicadores e outras informações para auxiliar na formulação, implementação, execução, monitoramento e avaliação de políticas públicas; III - promover a integração das redes e sistemas de dados e informações de segurança pública e defesa social, criminais, do sistema prisional e sobre drogas; IV - garantir a interoperabilidade dos sistemas de dados e informações, conforme os padrões definidos pelo conselho gestor. SIEVAP: O Sistema Integrado de Educação e Valorização Profissional (SIEVAP) volta-se aos profissionais do Susp. Este sistema atua na gestão das áreas de formação e capacitação pessoal e das políticas de valorização, atenção psicossocial e saúde. No que se refere à educação, o SIEVAP tem como instrumentos de concretização das políticas a Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), formada por instituições de ensino e pesquisa para a produção de difusão de conhecimento nessa área, a matriz curricular nacional, instrumento pelo qual se pretende conferir diretrizes comuns na capacitação desse público e a Rede EaD-Senasp , por meio da qual oferece cursos de formação continuada aos profissionais do SUSP de todo o Brasil, sobretudo pela oferta de cursos à distância. Já quanto à atenção às condições de saúde e valorização, o SIEVAP atua por meio do Programa Nacional de 202 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (Pró-Vida), que tem por objetivo fazer a governança dos “programas de atenção psicossocial e de saúde no trabalho dos profissionais de segurança pública e defesa social, bem como a integração sistêmica das unidades de saúde dos órgãos que compõem o Susp”, conforme o artigo 42 da Lei 13.675/18. CONCLUSÃO Como os profissionais do Susp podem defender a democracia? Todo poder emana do povo. Essa afirmação de princípios abre não apenas a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo primeiro, mas uma nova era na história política de nosso país. Uma era em que o princípio da soberania popular substitui à força das armas como fonte do poder político e da autoridade. Nesse sentido, a carta magna de 1988, também conhecida como a “Constituição Cidadã”, inaugura a própria democracia brasileira. O século XX viu a democracia se tornar um dos pilares do mundo moderno ocidental. Em uma democracia, o povo é soberano e exerce seu poder na participação direta no processo político, por meio do sufrágio universal e da gestão de políticas públicas, e também na participação indireta através de seus representantes eleitos. A participação efetiva dos cidadãos, entretanto, deve se dar emcondições de igualdade, princípio constitucional que visa garantir que nenhuma pessoa seja tratada de maneira desigual com base na sua classe, sexo, raça, origem social, orientação sexual ou filiação religiosa. O princípio da igualdade implica que as leis e políticas públicas sejam aplicadas de forma imparcial e justa. É nesse sentido que a realização prática daquele princípio enfrenta o desafio permanente das desigualdades que existem de fato na nossa sociedade. A política pública é o principal instrumento do governo para a promoção da justiça social, ou seja, para a redução das assimetrias de poder e de acesso a recursos. É nesse sentido que o funcionamento das instituições de governo é crucial. Por meio do ciclo das políticas públicas, os governos podem influenciar as dinâmicas de distribuição 203 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública de riqueza e poder na sociedade. Dentre as instituições de governo existentes, a polícia desempenha um papel fundamental ao contribuir com as condições de previsibilidade e segurança necessárias ao pleno usufruto dos direitos constitucionais. Seu mandato e sua localização na estrutura do Estado fazem dela um ator estratégico na defesa do Estado Democrático de Direito. A democracia depende da segurança e da ordem pública para funcionar eficazmente e a polícia possui um papel fundamental nisso. Vejamos como: Em primeiro lugar: A segurança pessoal é um requisito para poder exercer todos os outros direitos que o Estado de Direito e os direitos humanos reconhecem ao indivíduo. Se a vida, a integridade e a propriedade das pessoas não estiverem garantidas, não será possível usufruir o resto dos direitos. Em segundo lugar: É a polícia que garante a celebração de eleições livres, impedindo aqueles que eventualmente tentem tomar o poder pela força e coibindo os crimes eleitorais. Em terceiro lugar: Num sentido mais amplo, a ausência de segurança e a prevalência de crimes tendem a criar um ambiente de medo e incerteza que mina a confiança e a legitimidade do Estado. No limite, sem que sejam asseguradas a liberdade e a vida, constituintes originárias da noção de cidadania, é o próprio Estado de Direito que se vê questionado. Nessa tensão, as formas de participação política democrática, assumidas como as que melhor atendem à sociedade, tendem a ser esvaziadas, reproduzindo e aprofundando formas não democráticas e violentas de exercício do poder. 204 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública A polícia constitui o principal instrumento da política de segurança, atuando no ponto de encontro entre o “mundo das leis” e as “leis do mundo”. Entretanto, para que a política de segurança pública possa contribuir com a construção de condições efetivas de igualdade ela precisa ser guiada por princípios democráticos, como o dever de transparência e a justiça procedimental. Nesse diapasão, a polícia precisa ser gerenciada e percebida como um serviço público essencial, focado na promoção da segurança em sentido amplo, como bem-estar e tranquilidade pública. A proteção do cidadão e de seus direitos deve ser o seu objetivo maior e o consentimento público precisa ser o fundamento de sua autoridade. A cidadania precisa ser percebida pela polícia como sua clientela, cuja satisfação com o serviço deve ser um dos parâmetros do sucesso institucional. Para que isso aconteça, algumas condições precisam ser atendidas. A primeira delas se refere ao abandono de velhos arquétipos como o do/a policial “guerreiro/a”, focado/a exclusivamente no combate ao crime por meio de ações repressivas, marcadas por níveis elevados de violência e letalidade e inspiradas por uma mentalidade de combate e extrema militarização. Todas as polícias democráticas possuem forças táticas especiais responsáveis por situações graves com alta probabilidade de confronto armado. Entretanto, no âmbito das relações cotidianas de negociação da ordem pública, no contato direto com a população, a ideologia do policial guerreiro não oferece ferramentas Com isso, pretendemos dizer que a segurança pública vai muito além do enfrentamento a crimes: ela tem como função prover condições para exercer todos os outros direitos, entre eles os direitos políticos, longe de constrições autoritárias. Para refletir 205 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública adequadas para que esses agentes trabalhem com foco nas demandas dos cidadãos. Se considerarmos que boa parte do trabalho da polícia se concentra em ocorrências de trânsito, conflitos do cotidiano e chamados de natureza assistencial, fica claro que o bom uso do armamento, apesar de importante, não é uma competência que ofereça respostas sobre como lidar com aquilo que de fato a polícia é demandada a maior parte do tempo. Esse tipo de trabalho, desvalorizado sob o paradigma do policial guerreiro, mostra-se na realidade crítico para a construção da legitimidade e da imagem pública da polícia e do próprio Estado. Neste curso, propusemos algumas imagens alternativas em relação àquele paradigma como, por exemplo, a do/a “policial guardião/a” (ver Aula 3 do Módulo I), dentro da mudança de foco de uma “polícia de Estado” para uma polícia protetora dos cidadãos. Uma polícia de Estado renuncia à busca da legitimidade social e do consentimento público como princípios basilares da atuação policial. Ao servir ao Estado, a polícia corre o risco de ser reduzida a mero instrumento da vontade personalista do governante. Num regime democrático pautado pelo Estado de Direito, a polícia tem como missão a proteção do regime, isto é, da própria democracia, mas nunca a preservação do governo de turno. Para que a polícia seja um instrumento efetivo de proteção da democracia, ela precisa realizar o seu potencial de administração dos conflitos que caracterizam a ordem pública em sociedades complexas. Nesse sentido propusemos uma imagem alternativa do trabalho policial como um trabalho de mediação (ver Aula 2 do Módulo III) e de promoção da justiça de forma ampla. Não apenas no enfrentamento do crime e da impunidade, mas na proteção efetiva de direitos por meio de um trabalho de mediação entre a lei e suas condições materiais de aplicação. Ao levar em consideração as diferentes moralidades presentes na sociedade, a polícia desenvolve uma melhor compreensão sobre a natureza e a motivação dos conflitos sobre os quais ela é chamada a intervir. Seu trabalho de mediação deve sempre ter como limite último a lei. Dentro desse limite, a polícia deve promover a proteção dos direitos das pessoas e o fortalecimento da legitimidade institucional. Quanto maior a 206 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública legitimidade, menor será a necessidade do emprego da força pela polícia para produzir a obediência às leis. Mas se afirmamos que a polícia é fundamental para a defesa da democracia, buscamos mostrar que esta é também importante para a polícia e para os/as policiais. Por um lado, a gestão democrática da segurança pública e das polícias se beneficia da implementação de estruturas de governança transparentes e participativas que reduzam o risco de instrumentalização política das polícias. Apenas num regime democrático pautado pelo Estado de Direito é que os policiais poderão procurar proteção contra interferências políticas ou manipulação por parte do governo de turno. Ao contrário, em regimes autoritários não há limites quanto ao que o poder executivo pode exigir das polícias, que serão arrastadas à ilegitimidade junto com o sistema político e acabarão enfrentadas aos cidadãos que deveriam proteger. O uso da polícia a serviço de interessesde grupos políticos e elites econômicas não é apenas prejudicial à saúde da democracia, como também produz um ambiente de trabalho que é prejudicial à saúde do/a próprio/a policial. Quando as regras de funcionamento da organização policial são cooptadas por essas lógicas, os direitos, para essa categoria de trabalhadores, que deveriam ser garantidos em razão da importância da sua função, ficam mais suscetíveis à patronagem e a troca de favores. Por fim, argumentamos que uma mudança de paradigma importante para a consolidação de uma polícia defensora da democracia é o entendimento do/a policial enquanto um/a “trabalhador/a da segurança pública”. Essa abordagem segue no sentido oposto de muitos cursos de formação policial, que promovem um distanciamento entre o/a policial e a sociedade, da qual seria preciso afastar- se para se tornar um policial eficiente. A imagem do/a policial enquanto trabalhador/a não só aproxima a polícia da sociedade, mas permite que o/a policial possa expressar demandas sobre condições de trabalho e conflitos institucionais por meio de canais e procedimentos estabelecidos. Isso significa que a situação de trabalho da polícia não pode ser vista de forma separada de suas finalidades. A consequência lógica desse entendimento é que apenas uma 207 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública polícia que vive uma democracia em seu ambiente laboral poderá reforçá-la na prática. 208 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública Finalizando.... Neste módulo você aprendeu: Neste módulo, você estudou alguns dos problemas nacionais que se localizam em nossa constituição histórica como sociedade e como eles se conectam com a oferta de segurança pública no Brasil hoje. Revisamos, então, as formas encontradas na Constituição Federal para enfrentar esses e outros problemas na atuação do Estado e, nesse percurso, buscamos dar ênfase a como o texto constitucional tratou a segurança pública. A partir daí, explicamos como estabelecer níveis mais elevados de governança em segurança pública pode contribuir para avanços nessa área, tratando, em especial, do Sistema Único de Segurança Pública. Concluímos que a consolidação do Estado de Direito, instrumento capaz de promover cidadania, inclusive na oferta da segurança enquanto direito, requer, além de medidas punitivas, uma visão de segurança enquanto uma política pública que inclua também a prevenção. Assim, é possível contemplar as percepções da sociedade e promover avanços gerenciais que melhorem a prestação do serviço público da segurança. 209 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Burocracia e ordem democrática: desafios contemporâneos e experiência brasileira. In: PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela; OLIVEIRA, Vanessa Elias (org.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: Ipea / Enap, 2018. p. 23–57. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. EMSLEY, C. (2021). A short history of police and policing. Oxford University Press, USA. Ericson, R. V. (1982). Reproducing order: A study of police patrol work. Toronto, ON: University of Toronto Press. FIGUEIREDO, Isabel; MATTOS, Márcio Júlio da Silva. Avanços nos arranjos institucionais do Sistema Único de Segurança Pública. 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