Prévia do material em texto
Caravana de comerciantes indo à Tijuca, de Godefroy Engelmann (1788-1839) a partir de aquarela de Johann Moritz Rugendas (1802-1858), c. 1835 (litografia, de 21,6 cm 3 16,6 cm). vice-rei denominação dada a alguns governadores do Brasil indicados pela administração portuguesa, geralmente os de alta fidalguia, reservando-se o título de governador-geral aos demais; essa situação foi modificada a partir de 1720, quando todos passaram a ser denominados vice-reis, independentemente de suas origens, até 1808. O comércio de muares foi uma atividade que interligou várias regiões do Brasil. Durante o século XVIII, os animais eram criados nas capitanias do sul do Brasil e conduzidos por cerca de 2 mil quilômetros, parando para invernadas nos pastos do Paraná, até as famosas feiras da cidade de Sorocaba, interior de São Paulo. Ali, eram amansados e negociados para outras regiões do Brasil, em particular para as capitanias de Minas Gerais e de Goiás, mas também para o Rio de Janeiro e outras áreas do sudeste. A capacidade de carga das mulas permitiu, por um longo tempo, o transporte de mercadorias pelas trilhas do interior do território. OBSERVE QUE . . . BICALHO, Maria Fernanda. O Rio de Janeiro no século XVIII: a transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa. Urbana. Revista Eletrônica do CIEC/IFCH/UNICAMP, v. 1, p. 1-20, 2006. p. 2. Disponível em: https:// periodicos.sbu.unicamp. br/ojs/index.php/urbana/ article/view/8635108. Acesso em: 12 jul. 2020. Até esse momento, a ca- pital do Brasil era a cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Alguns atribuem à cri- se aurífera a transferência da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, de onde poderiam controlar com maior eficiência o comércio do ouro. A situação, entretanto, era mais complexa. O porto do Rio de Janeiro havia se tornado a prin- cipal saída do minério, além de centro do comércio de escravizados vindos pelo Atlântico, por causa do ouro. Além disso, as disputas de fronteiras entre Espanha e Portugal, no estuário do Prata, transformaram a cidade do Rio de Janeiro em local articulador do território centro-sul da América portuguesa e dos territórios ligados pelo Atlântico, incluindo a África e a Ásia. Alguns historiadores indicam, a exemplo de Fernanda Bicalho, a escassez de registros oficiais que formalizam o Rio de Janeiro como capital. Na realidade, o que houve foi uma determinação do governo português para que o indicado, Antônio Álvares da Cunha (1700-1791), tomasse posse como vice-rei do Estado do Bra- sil, no Rio de Janeiro, em dezembro de 1763. A autora indica a centralidade que a região passou a ter nas questões geopolíticas da monarquia portuguesa em relação a outras colônias da Ásia e da África e ao comércio com o Oriente. Teria sido, portanto, o reconhecimento de uma situação de fato política e econômica. UM PROJETO DE MONARQUIA NOS TRîPICOS Um dos mais destacados conselheiros políticos do rei dom João V, dom Luís da Cunha (1662-1749), escreveu Instruções políticas, em 1736. Nelas, lembra um conselho que seu bisavô dera a dom Antônio, prior do Crato (1531-1595), possível sucessor do reino de Portugal, quando o rei de Castela, Felipe II, rei- vindicou o trono português depois da morte do rei dom Sebastião, sem descen- dentes, em 1580: que embarcasse para o Brasil, junto com a corte, mantendo- -se rei. Dom Antônio não seguiu o conselho, foi desterrado, e Portugal acabou, como vimos, sob domínio espanhol por sessenta anos, período denominado União Ibérica. Nas Instruções políticas, dom Luís ensaiou o mesmo conselho ao então rei, dom João V, mas indicando um lugar específico: o Rio de Janeiro, considerando que futuramente a cidade se tornaria mais opulenta do que a cidade de Lisboa: […] estando tão próxima das minas de ouro e diamantes, seria mais fácil prevenir os seus descaminhos, e cresceriam os seus descobrimentos […] a que justi�caria a facilidade de tirar mais negros da costa de África e da ilha de São Lourenço, para a cultura de todos os gêneros que o Brasil produz. SILVA, Abílio Diniz (ed.). CUNHA, d. Luís da. Instruções políticas. Lisboa: CNCDP, 2001. p. 366 apud BICALHO, Maria Fernanda. A cidade do Rio de Janeiro e o sonho de uma capital americana: da visão de D. Luís da Cunha à sede do vice-reinado (1736-1763). Revista Hist—ria, v. 30, n. 1, Franca, jan./jun. 2011. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-90742011000100003. Acesso em: 10 ago. 2020. Reprodução/Coleção particular 77 V2_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_062a087_LA.indd 77V2_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_062a087_LA.indd 77 9/21/20 2:15 PM9/21/20 2:15 PM M O N A R Q U I A R E A L I Z A D A N O S T R Ó P I C O S O projeto de transferência da Corte portuguesa para o Brasil não foi somente de dom Luís da Cunha. Outros antes dele já haviam proposto essa transferência, como o padre Antônio Vieira, no século XVII, durante as guerras de restauração da monarquia portuguesa em relação à Espanha. Aconselhou que a família real deve- ria se deslocar para o Brasil se a Espanha invadisse o reino. Nesse caso, a região escolhida seria Pernambuco, lugar ocupado pelos holandeses por décadas e onde eles construíram um sistema de fortificação eficiente e capaz de proteger a Corte portuguesa. O projeto não se realizou em virtude da assinatura do tratado luso-bri- tânico, de 1661, que garantiu a independência de Portugal. Por sua vez, o ministro de dom José I, o marquês de Pombal, temendo uma invasão franco-espanhola em 1762, aconselhou o rei a tomar medidas para sua transferência para o Brasil. Em suma, a ideia de tornar o Brasil, e o Rio de Janeiro em especial, a capital do império português, centro de uma monarquia pluricontinental, não era nova, mas tomou forma e se realizou no início do século XIX, novamente por ameaça de invasão externa: o plano de expansão territorial da França, levado a cabo pelo governo de Napoleão Bonaparte. Em 1807, a França invadiu a Espanha e ameaçou Portugal caso não rompes- -se sua aliança com a Inglaterra. Pressionada, em novembro de 1807 a família real portuguesa embarcou, com mais centenas de nobres e familiares, para a América, em vários navios, chegando ao Brasil no ano seguinte. A corte de dom João VI instalou-se no Rio de Janeiro, tornando a cidade uma “metrópole inte- riorizada”, segundo definição da historiadora Maria Odila da Silva Dias. O projeto de um império luso-brasileiro não se realizou, mas outro império se formou: o do Brasil. QUESTÕES EM FOCO História e armadilhas da linguagem Para exemplificar a situação do Rio de Janeiro, Fernanda Bicalho cita o trecho de uma carta de 1765, en- dereçada ao principal ministro de dom José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, em que o governador da capitania de São Paulo fez a seguinte declaração: […] pelas notícias e informações de pessoas práticas que incessantemente tenho ouvido desde que desembarquei, e por tudo o que tenho observado, considero hoje o Rio de Janeiro a chave deste Brasil pela sua situação, pela sua capacidade, pela vizinhança que tem com os domínios de Espanha e pela dependência que desta cidade têm as Minas com o interior do país, �cando por este modo sendo [sic] uma das pedras fundamentais em que se a�rma a nossa Monarquia e em que [se] segura uma parte muito principal de suas forças e das suas riquezas. Carta de dom Luiz Antonio de Souza ao Conde de Oeiras. Rio de Janeiro, 26 de junho de 1765. Apud BICALHO, Maria Fernanda. O Rio de Janeiro no século XVIII: a transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa. Urbana. Revista Eletrônica do CIEC/IFCH/UNICAMP, v. 1, p. 1-20, 2006. p. 2. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8635108. Acesso em: 12 jul. 2020. Veja o significado de “vizinhar” no dicionário de Antônio Moraes e Silva, de 1789: […] estar vizinho de outros,e tratar-se, visitarem-se a miúdo como os vizinhos soem. VIZINHAR. In: SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. p. 9. ■ Com base nas palavras do governador de São Paulo sobre a situação do Rio de Janeiro: a) Pesquise e situe historicamente a expressão “vizinhança que tem com os domínios da Espanha”. b) Que outra vizinhança pode ser considerada nos argumentos do governador de São Paulo para justificar seu agrado por ter o Rio de Janeiro se tornado sede do vice-reinado do Brasil? DIAS, Maria Odila da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2009. 78 V2_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_062a087_LA.indd 78V2_CIE_HUM_Vainfas_g21Sa_Cap3_062a087_LA.indd 78 9/21/20 2:15 PM9/21/20 2:15 PM