Prévia do material em texto
25 Com certeza o negociante recebera alguma dívida perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo, perguntou-me se eu estava com- preendendo o que lia. Explicou-me que se tratava de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte lida. Um casal com filhos andava numa floresta, em noite de in verno, perseguido por lobos, ca- chorros selva gens. Depois de muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um lenhador. Era ou não era? Traduziu-me em linguagem de cozi nha diversas expressões literárias. Animei-me a parolar. Sim, real- mente havia alguma coisa no livro, mas era difícil conhecer tudo. Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar o sentido da prosa confusa, aventu rando-me às vezes a inquirir. E uma luzinha quase imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito. Recolhi-me preocupado: os fugitivos, os lobos e o lenhador agitaram- -me o sono. Dormi com eles, acordei com eles. As horas voa ram. Alheio à escola, aos brinquedos de mi nhas irmãs, à tagarelice dos moleques, vivi com essas criaturas de sonho, incompletas e misteriosas. À noite meu pai me pediu novamente o volume, e a cena da véspera se reproduziu, leitura emperrada, mal-entendidos, explicações. Na terceira noite fui buscar o livro espontaneamente, mas o velho es- tava sombrio e silencioso. E no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me com um gesto, carrancudo. Nunca experimentei decepção tão grande. Era como se tivesse desco- berto uma coisa muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos, depois de me haver ajudado a encon- trá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi desespero, sensa- ção de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza de que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar. Findas, porém, as manifestações secretas de mágoa, refleti, achei que o mal tinha remédio e expliquei o negócio a Emília, minha excelente prima. O rosto sereno, largos olhos pretos, um ar de seriedade – linda moça. A irmã, brincalhona e rabugenta, ora pelos pés, ora pela cabeça, ria como doida e logo explodia em acessos de cólera. Mas Emília não era deste mundo. Só se zangou comigo uma vez, no dia em que, tuber- culosa, me viu beber água no copo dela. Um anjo. Confessei, pois, a Emília o meu desgosto e propus-lhe que me dirigisse a leitura. Esfor cei-me por interessá-la contando-lhe a escuri dão na mata, os lobos, os meninos apavorados, a conversa em casa do lenhador, o aparecimento de uma sujeita que se chamava Águeda. Passado algum tempo, essa Águeda me serviu muito. Eusébio doido pegou o volume na loja, entrou a declamá-lo, e, topando o nome da personagem, pronunciou Aquéda. Isto me deu satisfação: apesar de ma- duro, Eusébio doido era mais atrasado que eu. Quando falei a Emília, porém, ignorava que houvesse pessoas tão ru- des quanto Eusébio e admitia facilmente as auréolas da profes sora. Em conformidade com a opinião de mi nha mãe, considera-me uma besta. Assim, era necessário que a priminha lesse comigo o ro mance e me au- xiliasse na decifração dele. Emília respondeu com uma pergunta que me espantou. Por que não me arriscava a ten tar a leitura sozinho? Longamente lhe expus a minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis, sobretudo na ordem terrível em que se juntavam. Se eu fosse como os ou tros, bem; mas era bruto em demasia, todos me achavam bruto em demasia. parolar: ter uma conversa sem conteúdo ou que não leva a nada; falar demais V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap1_020a053_LA.indd 25V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap1_020a053_LA.indd 25 16/09/2020 17:2216/09/2020 17:22 26 Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, in- divíduos que liam no céu, percebiam tudo quanto há no céu. Não no céu onde moram Deus Nosso Senhor e a Virgem Maria. Esse ninguém tinha visto. Mas o outro, o que fica por baixo, o do sol, da lua e das estrelas, os astrônomos conheciam per feitamente. Ora, se eles enxer- gavam coisas tão distantes, por que não conseguiria eu adi vinhar a página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras? Matutei na lembrança de Emília. Eu, os astrônomos, que doidice! Ler as coisas do céu, quem havia de supor? E tomei coragem, fui esconder- -me no quintal, com lobos, o ho mem, a mulher, os pequenos, a tem- pestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetra- vam a inteligência espessa. Vagarosamente. Os astrônomos eram formidáveis. Eu, po bre de mim, não desvenda- ria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abando- nadas, escuridão e animais ferozes. RAMOS, Graciliano. Os astrônomos. In: Inf‰ncia. 47. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 205-210. 3 O narrador abre sua história contando que era quase analfabeto aos 9 anos. Por que ele trouxe essa informação logo no início do texto? 4 Ainda no início, o narrador se apresenta fazendo uma comparação entre ele e os vizinhos. Que diferenças existem entre eles? Como ele marca essas diferenças? 5 O narrador compara a escola que ele frequentava com a dos vizi- nhos. Retome o texto e identifique como cada escola é descrita. Que diferenças entre elas se podem supor? 6 Como eram as aulas na escola do narrador? 7 O narrador escolhe usar as palavras “imobilidade” e “insensibilida- de” para descrever a escola que frequentava. O que esses substan- tivos revelam sobre o lugar? 8 Por que o menino se espantou quando o pai lhe pediu que pegasse o livro? O que isso revela sobre a relação entre eles? 9 O narrador afirma ter pegado “com repugnância o objeto antipáti- co”. O que o narrador quer revelar ao utilizar essas palavras? 10 Ao iniciar a leitura, o menino afirma que vai “mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma cantinela medonha, indiferente à pontua- ção, saltando linha e repisando linhas”. Considere as palavras destaca- das: que imagens o narrador utiliza para mostrar sua falta de habilidade leitora? Qual é o efeito de sentido trazido por essa escolha? O fio condutor da narrativa será o início do processo de aprendizagem da leitura, daí a relevância dessa informação. Ele afirma que os meninos eram “perfeitos”, já que eram felizes, frequentavam escola decente, riam alto. Já ele vestia roupas ordinárias, brincava com lama no quintal, não falava muito e ia à escola de “ponta de rua”. O narrador descreve que os vizinhos frequentavam uma escola “decente” e ele uma escola “de ponta de rua”; em outro momento, afirma que “não há prisão pior que uma escola primária do interior”. Assim, mostra ao leitor que a escola não era nada boa, em com paração com a dos vizinhos, que era decente. Mostra também o sofrimento vivido nessa escola. Na escola, que parecia ser a casa da professora, havia a mãe e a filha dela. Os outros colegas não se moviam; o menino percebia que sabia tanto quanto a filha da professora, que, às vezes, era encarregada de dar aulas a ele. Revelam monotonia; ele descreve até moscas nos olhos dos colegas, que não se mexiam para tirá-las dali. A insensibilidade é presente, pois nada descrito representa um conhecimento, estudo, algo vivo. É possível perceber que o pai quase não lhe dirigia a palavra, por isso, ao ouvir o pai lhe pedir que pegasse o livro, houve o espanto. O narrador revela ao leitor não apenas seu desinteresse pela leitura, como também o distanciamento que ele tinha do ato de ler. O narrador, por meio da seleção lexical, vai relacionando a leitura ora à ação de mastigar, ora a um caminho, por causa das linhas, para representar uma leitura engasgada e atropelada, que não respeita o ritmo do texto. NÃO ESCREVA NESTELIVRO. V ir in a fl o ra /S h u tt e rs to ck V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap1_020a053_LA.indd 26V4_LINGUAGENS_Faraco_g21Sa_Cap1_020a053_LA.indd 26 16/09/2020 17:2216/09/2020 17:22