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Fundamentos da ordem social Estudos sobre os credos e concílios da Igreja Primitiva R. J. Rushdoony Tradução Fabrício Tavares de Moraes Este é provavelmente o livro mais importante que Rushdoony escreveu. Está repleto de percepções excepcionais e demonstra que a cultura ocidental não teria sido possível não fosse os pressupostos cristãos. O atual desmoronamento do Ocidente se dá por conta de seu abandono do cristianismo. Rushdoony mostra-nos o caminho de volta à vida e vigor culturais. — P. Andrew Sandlin Autor, Cultura cristã: uma introdução Fundamentos da ordem social é um livro profundo e muito influente, que vale o tempo que dispensamos com sua leitura. — Douglas Wilson Autor, Alegria no limite das forças O livro Fundamentos da ordem social é uma das obras mais importantes de Rushdoony. Li-o várias vezes ao longo dos anos. A obra não somente nos ensina como a Igreja Primitiva estabeleceu as doutrinas fundamentais do cristianismo em sua batalha contra as heresias, mas também explica como essas confissões dos primeiros concílios são a base para uma sociedade que preserva a liberdade e justiça para todos. Portanto, é impossível que haja liberdade genuína, a menos que uma sociedade esteja alicerçada na teologia dos concílios ecumênicos da igreja primitiva. Recomendo altamente este livro! — Joe Morecraft, III Autor, Com liberdade & justiça para todos Copyright © 1968, de Rousas John Rushdoony Publicado originalmente em inglês sob o título The Foundations of Social Order pela Ross House Books PO Box 158, Vallecito, CA, 95251, EUA. Todos os direitos em língua portuguesa reservados por EDITORA MONERGISMO SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620 www.editoramonergismo.com.br 1ª edição, 2019 Tradução: Fabrício Tavares de Moraes Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto Capa: Bárbara Lima Vasconcelos PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rushdoony, Rousas John Fundamentos da ordem social: estudos sobre os credos e concílios da Igreja Primitiva / Rousas John Rushdoony, tradução Fabrício Tavares de Moraes — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. Título original: The Foundations of Social Order: Studies in the Creeds and Councils of the Early Church 978-85-69980-91-9 1. Credos e confissões 2. História da Igreja3. Teologia I. Título CDD 230 Sumário PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA PREFÁCIO DE 1998 1. O CREDO APOSTÓLICO E O CONFESSIONALISMO 2. NICEIA: HISTÓRIA VERSUS IMAGINAÇÃO 3. CONSTANTINOPLA CONTRA O ÓDIO À CONVICÇÃO 4. TE DEUM LAUDAMUS 5. O PODER E A GLÓRIA 6. ÉFESO: A CONDENAÇÃO DO CULTO AO HOMEM 7. O CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA: FUNDAMENTO DA LIBERDADE OCIDENTAL 8. O CREDO ATANASIANO: O UNO E O MÚLTIPLO 9. CONSTANTINOPLA II: A FALÁCIA DA SIMPLICIDADE 10. A DOUTRINA DA GRAÇA 11. A PROCESSÃO DO ESPÍRITO SANTO 12. LEI CANÔNICA 13. CONSTANTINOPLA III: A ABOLIÇÃO DE DEUS 14. ICONODULISMO 15. A ASCENSÃO E A SESSÃO 16. O JUÍZO FINAL 17. A IGREJA 18. A COMUNHÃO DOS SANTOS 19. O PERDÃO DOS PECADOS 20. A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS 21. O HOMEM E SEUS CREDOS 22. OS FUNDAMENTOS DA ORDEM SOCIAL PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Fundamentos da ordem social: Estudos sobre os credos e concílios da Igreja Primitiva é uma das maiores realizações de Rousas John Rushdoony (1916-2001). Ele une um conhecimento histórico preciso da história cristã e romana antigas a um entendimento profundo dos debates teológicos patrísticos e, acima de tudo, a uma capacidade impressionante de apreender as relações dessas discussões em geral confusas com as questões contemporâneas que o leitor moderno defronta. Sua documentação é esplêndida e sua escrita nesta obra tem uma precisão, simplicidade e clareza inigualáveis. Pode-se colocá-lo certamente, com base neste livro somente, em pé de igualdade com aqueles que chamamos de “Pais da Igreja” modernos, tais como o teólogo russo Georges Florovsky (1893-1979) e seu colega francês, Pierre Courthial (1914-2009). Este é um volume em que a análise de Rushdoony muitas vezes se aproxima da profundidade patrística, tanto dos teólogos cristãos quanto dos concílios que examina com tamanha perspicácia e zelo. Sem dúvida suas origens ortodoxas armênias deram-lhe uma empatia instintiva para o estudo desses elevados debates dogmáticos que se tornaram desde então o alicerce da teologia cristã e da civilização que se desenvolveu a partir daí. No que diz respeito ao próprio Rushdoony, um estudo de suas obras à luz deste pequeno livro conduzirá o leitor a situá-lo efetivamente dentro da tradição reformada como um teólogo de estatura patrística. Isto deve ajudar o leitor a vê-lo para além dos slogans reducionistas muito frequentemente associados ao seu nome. Trata-se de vinte e dois capítulos que abarcam todo o período patrístico desde “O Credo dos Apóstolos e o confessionalismo” até o capítulo final “O homem e os credos” e “Os fundamentos da ordem social”. Desse modo, Rushdoony nos oferece uma pesquisa esclarecedora dos debates teológicos desde o Primeiro Concílio de Niceia em 325 ao Segundo Concílio de Niceia em 787, este último em defesa das imagens, doutrina rejeitada pelos protestantes. O livro, portanto, conduz-nos de Atanásio (296-373) a João Damasceno (680-764), fornecendo-nos uma profunda introdução a vários dos grandes temas da teologia da Igreja Antiga. Tem-se assim uma leitura atenta dos documentos dogmáticos dos concílios vistos em seu contexto histórico, acompanhada de uma penetrante explanação de sua relevância para as questões que enfrentamos atualmente. É, pois, um excelente preâmbulo a um entendimento profundo dos grandes temas abordados pela teologia cristã. Permitam-me concluir essas breves notas com curtos excertos retirados da conclusão de Rushdoony. Toda ordem social assenta-se num credo, num conceito da vida e da lei, e representa, pois, uma religião em ação. A cultura é religião externalizada, e, como Henry Van Til observou, “a religião de um povo se manifesta em sua cultura e os cristãos não podem ficar satisfeito com nada menos que uma organização cristã da sociedade”. Sempre que há um ataque à organização da sociedade, há também um ataque à sua religião. A fé fundamental de uma sociedade implica o desenvolvimento com base nessa fé, ao passo que qualquer intervenção nessa estrutura básica configura-se como atividade revolucionária. [...] A vida de uma sociedade é seu credo; um credo agonizante depara-se prontamente com a deserção ou subversão. Todo credo, por mais saudável que seja, encontra-se no entanto sob constante ataque; a cultura que negligencia a defesa e a promoção de sua base confessional está expondo seu coração à faca de seus inimigos. Em razão de sua indiferença à base confessional que tem no cristianismo bíblico, a civilização ocidental depara-se hoje com a morte, e trava uma luta mortal com o humanismo. [...] O problema do ser humano não é seu meio, mas o pecado, o desejo de ser seu próprio deus, sua própria lei e princípio supremo. O homem não pode salvar a si próprio, seja pela política, obras de lei ou moralidade, nem por outro meio qualquer. Jesus Cristo é o único salvador do homem. É necessário, pois, que o indivíduo viva sob a ordem legal de Deus a fim de viver livre e alegremente; porém esta ordem legal não pode salvar o homem, nem sobreviverá por muito tempo, caso não haja um corpo considerável de crentes cujas vidas sejam a lei de Deus. Portanto, a graça é essencial à verdadeira ordem. Sem ela, falta ao homem o caráter para desenvolver suas potencialidades, capitalizar suas atividades e ordenar sua vida. [...] O sucesso dos subversivos se assenta em seu ataque ao credo do establishment e à sua substituição por um novo credo. Quando os fundamentos são lançados, a forma geral do edifício é determinada. Quando o credo é aceito, a ordem social é determinada. Não pode haver reconstruçãoda civilização cristã do Ocidente senão sobre fundamentos confessionais cristãos. Que este excelente volume encontre, por parte do público brasileiro, a ampla apreciação que merece. — Jean-Marc Berthoud Lausanne, 8 de novembro 2018 PREFÁCIO DE 1998 Em todos os meus escritos, busquei demonstrar a relação entre fé, teologia, ideias e vida. Em quatro de meus livros, meu interesse se pautou no relacionamento entre fé e história. Em Fundamentos da ordem social (1968), lidei com os credos e concílios da Igreja Primitiva, com o modo pelo qual eles remodelaram homens e nações, e com a relevância deles para nosso tempo. Em The One and the Many [O uno e o múltiplo] (1971), por sua vez, meu foco foi o elo indissociável entre a doutrina da Trindade e o problema do uno e do múltiplo. Esta última obra foi escrita, é claro, a partir dos pressupostos da filosofia da religião de Cornelius Van Til. Anteriormente, em This Independent Republic [Esta República independente] (1964) e The Nature of the American System [A natureza do sistema americano] (1965), apliquei essas ideias à história americana. Nesta última obra, a seção “The Religion of Humanity” [A religião da humanidade] trabalha com o atual e grande inimigo do cristianismo. A perda de teologia sólida na igreja conduziu à degenerescência da vida e fé cristãs. A era moderna tem testemunhado a crescente irrelevância da fé e doutrina cristãs para o mundo em geral. Sua presença é deveras real, mas sua influência é cada vez menor e mais tíbia. O relacionamento do Rev. Billy Graham com os presidentes americanos ilustra apropriadamente esse fato. Ora, os credos e concílios da Igreja Primitiva, ao trabalharem nas definições das doutrinas, também lançavam consigo os fundamentos da cristandade. Harold J. Berman, em Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition [Direito e revolução: a formação da tradição jurídica ocidental], demonstrou como a doutrina da expiação de Cristo reformulou a lei e a sociedade, e como o presente declínio dessa doutrina está conduzindo à morte da civilização ocidental. Em cada área da fé e da doutrina, são necessários estudos semelhantes a esses. A abstração da doutrina e teologia da vida foi um dos grandes desastres na vida da igreja. Richard Weaver afirmou, com clareza, que As ideias têm consequências.[1] Abstrair a fé bíblica da vida para a sala de aula e limitar sua relevância ao domínio privado é um dos grandes males da igreja moderna. Os profetas bíblicos jamais poderiam imaginar um afastamento semelhante a esse. Sendo Deus absolutamente Deus e Senhor sobre todas as coisas, não há esfera de vida ou pensamento que possa estar fora de seu governo e autoridade. O cristianismo não pode ser reduzido ao nível de uma religião de mistério pagã essencialmente absorta com a vida após a morte e com as coisas pessoais desta vida. De fato, os fundamentos da ordem social se encontram aqui e agora, porém em nossa fé e vida, naquilo que cremos com respeito às questões finais. À medida que os homens se desviaram do evangelho de Cristo, eles passaram a construir um evangelho social; e visto que abandonaram a lei de Deus em prol do antinomianismo, suplantaram a Palavra-lei divina, voltando-se para a palavra humana, pietismo e efusões piedosas. Atualmente, a música eclesiástica amiúde celebra os sentimentos do homem em vez da Santíssima Trindade. Esse é o caminho do declínio e da morte, o qual deve dar lugar — e sinais presentes assim nos indicam — à restauração da soberania, graça e Palavra genuína de Deus. O fundamento da ordem social pode estar somente no Deus triúno e na sua verdade e palavra contidas nas Escrituras. — Rousas John Rushdoony Chalcedon, 12 de agosto de 1998 1. O CREDO APOSTÓLICO E O CONFESSIONALISMO Tornou-se algo popular, nos últimos anos, igrejas que afirmam não possuir credos e que sua membresia é, portanto, “aberta” e “viva”. Uma determinada seita valia-se desta abrutalhada expressão: “Nenhum credo senão Cristo”. Toda negação do confessionalismo é baseada na hipocrisia ou na ignorância. A palavra “credo” provém do latim credo, isto é, eu creio. Portanto, credo é qualquer fórmula ou confissão de fé por parte dos membros de uma igreja. Não existe igreja que não exija alguma forma de assentimento como condição para a adesão, nem que seja somente um desejo de unir-se a ela em particular. E implícito a todo assentimento está um credo. Desse modo, uma comunidade eclesiástica, que simplesmente pergunta a seus membros em potencial se eles desejam tornar-se dela participantes, retém consigo, durante as sessões anteriores com os catecúmenos, e implícita a essa indagação, uma negação do cristianismo ortodoxo, uma insistência no direito individual de se crer naquilo que se quer, contanto que haja uma sincera dedicação ao aprimoramento humano e um assentimento geral às doutrinas do humanismo. Essa alardeada ausência de credo dessa igreja em particular é, na prática, um dogmatismo rígido e intolerante, selvagemente hostil ao confessionalismo cristão em nome do confessionalismo humanista. Um credo é mais do que um padrão de uma igreja. Na maioria dos casos, um símbolo de uma igreja envolve uma afirmação mais intensiva do que a do credo. Os requerimentos do clero, dos oficiais eclesiásticos, e a lei eclesiástica podem ser bem mais detalhados, extensivos e intensivos do que um credo permite. Mas o credo é a porta para a casa da fé. É a declaração mínima de fé. E é pessoal: “Creio”, credo. É mais do que a fé da igreja: é a fé do crente. Uma congregação o recita ou o canta, mas não pode dizer: “Nós cremos”, mas sim “Creio”. Novamente, o credo é a porta para a casa da fé, sendo intensamente pessoal. O indivíduo afirma cada artigo do credo, de Deus como Pai Todo- Poderoso e Criador ao perdão dos pecados e ressurreição do corpo, como sua fé pessoal. É o ponto que separa o cristianismo ocidental da igreja oriental. O plural da primeira pessoa, “nós” [cremos], é de uso grego.[2] As igrejas ocidentais seguiram a fórmula latina, “creio”. Significativamente, o cristianismo latino e as igrejas ocidentais testemunharam uma longa série de reformas até o presente, várias convocações aos fiéis ou por parte dos fiéis para o retorno à fé, porque a fé do crente — em lugar da fé da igreja — teve prioridade confessional. O Credo dos Apóstolos é, evidentemente, não um credo redigido pelos apóstolos, mas uma confissão de fé antiga e anterior ao Concílio de Nicéia que resume a pregação apostólica. Leith observou que “o Credo possui uma reivindicação de fato legítima a seu título tendo como base o fato de que todos seus artigos se encontram em fórmulas teológicas então comuns por volta de 100 d.C.”[3] Schaff escreveu: Todos os fatos e doutrinas que [o Credo] contém estão em total conformidade com o Novo Testamento... A oposição racionalista ao Credo dos Apóstolos e sua utilização nas igrejas é, portanto, um ataque indireto ao Novo Testamento em si.[4] É interessante comparar os vários textos do Credo dos Apóstolos. Sua Antiga Forma Romana é apresentada por Rufino em latim, cerca de 390 d.C., e em grego por Marcelo, cerca de 336-341 d.C.: Creio em DEUS PAI TODO-PODEROSO. E em JESUS CRISTO seu único Filho nosso Senhor, Que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria; Crucificado sob o poder de Pôncio Pilatos e sepultado; Ressuscitou ao terceiro dia; Subiu ao céu e está sentado à mão direita do Pai, De onde há de vir julgar os vivos e os mortos. E no ESPÍRITO SANTO; Na santa Igreja; Na remissão dos pecados; Na ressurreição do corpo (carne).[5] A Forma Recebida, ou Textus Receptus, foi adotada por volta do ano 700, e assim reza, com as adições à Antiga Forma Romana inseridas por Schaff em parênteses a fim de indicá-las: Creio em DEUS PAI TODO-PODEROSO. (Criador do céu e da terra) E em JESUS CRISTO seu único Filho nosso Senhor, Que nasceu (foi concebido) do Espírito Santo e da virgem Maria; (Padeceu) sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, (morto) e sepultado; (Desceu aos infernos [Hades],ressuscitou ao terceiro dia) Ressuscitou ao terceiro dia; Subiu ao céu e está sentado à mão direita do (Deus) Pai (Todo-Poderoso), De onde há de vir julgar os vivos e os mortos. E (creio) no ESPÍRITO SANTO; Na santa Igreja (católica); (na comunhão dos santos) Na remissão dos pecados; Na ressurreição do corpo (carne). (na vida eterna).[6] Há uma forma antiga do credo, que data bem antes da Conquista Normanda e ainda em uso oficial na igreja, que é especialmente interessante, já que a tradução reflete um nítido entendimento de alguns artigos, tal como a comunhão dos santos: I beleue in God the Father Almightye, maker of heauen and earth. And I beleue in the Sauiour Christ his onely begotten Sonne our Lorde, who was conceaued of the Holy Ghost, and borne of Marye the virgyne, suffred vnder the Pontish Pilate, on the crosse hanged, he was dead, and buryed, and he down descended to hel. And he arose from death on the thyrd daye. And he went vp to heauen, and sitteth now at the right hand of God Almightie the Father. From thence he will come to judge both the quicke and the deade. And I beleue on the Holy Ghost. And the holy Congregation. And of the saintes the societie. And sins forgeuenesse. And of the flesh the again-rising. And the euerlasting life.[7] O Credo dos Apóstolos é diferente de todos os demais credos de outras religiões, sejam humanistas, budistas, muçulmanos, hinduístas ou outros. A fé de todas as demais religiões é um corpo de ideias ou afirmações concernentes à realidade. Pode ser uma crença na supremacia do homem ou na supremacia do nada, no ofício de um homem (Mohammed como um profeta), ou num dualismo ou monismo supremos; todavia, em todo caso, ela exige a crença em certas ideias ou afirmações. O Credo Apostólico é radicalmente diferente: ele oferece uma sinopse da história — criada por Deus, o Pai Todo-Poderoso, cuja salvação depende de Jesus Cristo, seu Filho unigênito, que entrou, viveu, morreu e ressuscitou na história e é agora seu Senhor e Juiz. Sua santa congregação atua na história, que culmina na ressurreição geral e na vida eterna. A totalidade do credo, portanto, é uma declaração concernente à história. Desse modo, nada pode ser mais estranho ao credo e à fé bíblica do que a separação dialética entre fé e história. Contrastar o Jesus da fé e o Jesus da história é falar a língua do paganismo e não do cristianismo. Afirmar a inspiração da Bíblia, mas negar sua infalibilidade histórica é renunciar a Bíblia em prol da dialética. O cristianismo bíblico é uma declaração referente àquilo que Deus realizou na história, no entanto, nossa fé ressalta que ele é o Autor — o Deus triúno ontológico e transcendental — que não pode ser reduzido à história: ele é seu “Criador”. Implícita a essa declaração de que Deus Pai, o Todo-poderoso, é o Criador dos céus e da terra está a afirmação de que Deus é o legislador, determinador e conservador do céu, da terra e de toda a história. Ele é seu construtor, estando, pois, a história totalmente sujeita a ele. A declaração da doutrina da criação é também uma declaração das doutrinas da soberania e do decreto eterno, da predestinação. Uma teologia e uma escatologia (ou doutrina das últimas coisas) que se capitulam à história, ou a vê como sendo uma derrota, é infiel para com o cristianismo. Deus é o Criador dos céus e da terra, não Satanás. A história culmina no plano e triunfo de Deus, não na vitória de Satã. Na proporção em que uma escatologia inclui a vitória do mal na história, nessa mesma proporção ela se rende à e recua da história. Atualmente um dos maiores pecados que afligem o cristianismo evangélico é a escatologia que nega o Evangelho e também a história. O Credo, portanto, possui vastas implicações concernentes à história devido à sua declaração de que Deus é o Criador de todas as coisas. Esta declaração imediatamente faz de Deus a fonte de toda ética, de toda moralidade, e de toda lei. Em todos os sistemas não cristãos, a fonte da lei e da ética é o Estado, a polis, o império ou o reino. Não é possível compreender o abismo entre Aristóteles e Platão e o cristianismo, por exemplo, à parte desse fato, e esse abismo não pode ser legitimamente superado. Ou Deus é a verdadeira fonte da moralidade e da lei, ou o Estado o é. Porém, se Deus é a verdadeira fonte, então a igreja, Estado, escola e todas as esferas da vida devem dar ouvidos à Palavra de Deus como a única fonte autorizada da lei e moralidade. Uma vez que as instituições e ordens declaram a lei, é necessário que o façam ministerialmente, como administradores subordinados a Deus. Portanto, a Palavra de Deus fala à toda esfera, incluindo a igreja e o Estado, e, estando sobre a igreja, corrige-a e disciplina-a. É significativo — e era também inevitável — que, assim como a Igreja Primitiva formulou os credos, os concílios que os decretaram promulgaram também os cânones, ou a lei canônica, para governar a igreja e os crentes, e para declarar a lei de Deus ao Estado. Seria impossível o desenvolvimento do confessionalismo sem um desenvolvimento paralelo da lei canônica. Enquanto os credos progressivamente formulavam a realidade do poder soberano de Deus e da realidade de Cristo como sacerdote, profeta e rei sobre o homem e história, os concílios, por sua vez, simultaneamente conduziram a vida sob a autoridade dos cânones da fé, sob a lei e moralidade bíblicas. A vitalidade e relevância da lei canônica declinaram na mesma proporção que o confessionalismo bíblico declinou, e na medida em que a lei e ética estadistas gradativamente passaram a governar a igreja. Tertuliano zombou da fonte política da lei em Roma. Com efeito, essa fonte fazia dos homens os deuses supremos, visto que o senado não somente criava leis, mas também deuses: Para dizer algumas palavras acerca da origem das leis do tipo a que por ora nos referimos, houve um antigo decreto segundo o qual nenhum deus deveria ser consagrado pelo imperador até que fosse primeiramente aprovado pelo Senado. Marco Emílio tinha experiência disso em referência a seu deus, Alburno. E desse modo, também, dá-se em nosso caso, pois entre vós a divindade é posta ao julgamento dos seres humanos. A não ser que os deuses deem satisfação aos homens, não lhes será reconhecida a divindade: será preciso que o deus seja propício ao homem.[8] A verdadeira lei, acreditava-se, adveio do Deus triúno, e suas afirmações são universais. Todos os homens conhecem a lei, porque, na criação, foi inscrita nas tábuas de seu coração e, desse modo, todos estão sujeitos ou rebeldes com relação à lei. Irineu declarou que os Dez Mandamentos simplesmente reafirmavam aquilo que a criação originalmente estabeleceu: Eles (os judeus) possuíam a lei, um curso de disciplina, e uma profecia das coisas futuras. Pois Deus, tendo num primeiro momento efetivamente os advertido por meio dos preceitos naturais que desde o princípio ele implantara na humanidade, isto é, por meio do Decálogo (e aquele que não o observa não tem salvação), não exigiu posteriormente mais nada deles.[9] O cristianismo não somente formulou uma leia canônica, mas, com base na fé cristã, reformulou a lei civil. Por conseguinte, conforme Percival observou, a lei canônica e a lei civil, tais como o Ocidente as conhece, surgiram por volta do mesmo período.[10] Visto que Deus é o criador, ele também é o redentor. As observações de Schaff aqui são especialmente pertinentes: Com relação à criação: Irineu e Tertuliano rejeitaram firmemente as visões hilozóica e demiúrgica do paganismo e do gnosticismo, e ensinaram, de acordo com o livro de Gênesis, que Deus criou o mundo, incluindo a matéria, não, é claro, a partir de qualquer material [preexistente], mas do nada, ou, para dizê-lo positivamente, a partir de sua vontade todo-poderosa e livre e mediante sua palavra. Esta vontade livre de Deus, uma vontade de amor, é a causa suprema, absolutamente incondicionada e totalmente condicionante, e razão final de toda existência, excluindo assim toda ideia de força física ou de emanação.Cada criatura, uma vez que procede do bondoso e santo Deus, é, em si mesma, quanto à sua essência, boa. O mal, portanto, não é uma entidade substancial nem original, mas uma corrupção da natureza, passível, portanto, de destruição por meio do poder da redenção. Sem uma doutrina correta da criação, não pode haver uma doutrina genuína da redenção, conforme demonstram todos os sistemas gnósticos.[11] Esta última sentença é particularmente relevante. Todos os credos primitivos da igreja começam com a declaração de que Deus é o criador: este é o ponto de partida de tudo o que se segue. O credo se inicia, “Creio”; porém, conforme vimos, não se trata de uma afirmação de certas ideias e conceitos, mas um assentimento à história tal como Deus a criou, redimiu e governa. O confessionalismo não bíblico é ativo: envolve a decisão individual no tocante a um conjunto de ideias e conceitos. O confessionalismo bíblico é um assentimento à criação, redenção e governo de Deus; é passivo porque afirma um ato de redenção por parte do Deus triúno, do qual o homem é, pela graça, simplesmente um recipiente. Mas essa passividade é o fundamento da verdadeira atividade: o homem subordinado a Deus conduz-se agora com base na verdadeira lei, com base no cânone das Escrituras, a fim de exercer domínio sobre a terra em nome do Deus triúno. O confessionalismo cristão é, pois, essencial ao ativismo e constitucionalismo ocidentais, bem como à sua esperança em relação à história. 2. NICEIA: HISTÓRIA VERSUS IMAGINAÇÃO Contrariamente ao cristianismo bíblico, todas as demais religiões buscam impor uma ideia de história e pô-la em prática ou realizá-la. O humanismo sustenta uma fé no homem, na fraternidade e na igualdade. O mundo e história reais não fornecem evidências de nada confiável no homem, nem qualquer evidência de fraternidade ou igualdade. Contudo, o propósito do humanismo é alcançar esses objetivos e fazer a história convergir em direção a eles. A essência do Islã é uma ordem política, e o propósito dos muçulmanos é a devida consecução desse “governo de Deus” na e por meio da ordem política. O papel de Mohammed era religioso justamente porque também era político até seu âmago; as religiões não cristãs são primordialmente políticas, sendo derivadas de um conceito de uma ordem política divina, ordem que é, em si mesma, a fonte da moralidade e da religião. O budismo advoga um relativismo derradeiro e imediato: já que o nada é a última instância e todas as coisas são relativas, o “caminho” é, de igual modo, o desprezo da vida e o controle político da vida sem consideração pelo bem ou mal, isto é, o desprezo político pela vida. Em todas as fés não bíblicas, a essência da religião é o esforço da imaginação humana para impor um padrão ou ideal sobre a história. Como resultado, há uma hostilidade evidente para com a história. Ora, a história advém das mãos de Deus com um sentido e direção preordenados, e move-se para um propósito que não é ordenado pelo homem nem favorável ao pecado do homem. Consequentemente, o homem se encontra em estado de revolta contra a história — ele contrapõe à história a imaginação de seu coração caído. Um grande exemplo desse conflito contra a história é o gnosticismo, que tentou destruir seu inimigo, o cristianismo bíblico, a partir de dentro. O gnosticismo ofereceu um lugar para Cristo em seus sistemas, mas apenas para negá-lo. Portanto, como Scott notou, “os gnósticos ensinavam sobre três deuses: o Absoluto, que se revelou por meio de Cristo; o Demiurgo, o criador do mundo; e o próprio mundo”.[12] O significando dessa “trindade” é prontamente evidente: o Absoluto e o Demiurgo são opostos que negam um ao outro, de modo que o mundo, ou mais propriamente o homem apresenta-se como o único deus verdadeiro. Sendo assim, não se concedia um caráter divino a Cristo; pelo contrário, sua Divindade tornou-se uma divindade comum a todos os homens, idealmente. Desse modo, Marcos [ou Marcus], um gnóstico, e “um pouco mais velho contemporâneo de Irineu”, parodiou o credo cristão em seu círculo de seguidores. O Credo Marcosiano é citado por Irineu: No batismo disseram acerca deles: Em nome do desconhecido Pai do universo; Em [nome da] Verdade, a Mãe de todas as coisas; Em [nome de] ele que veio sobre Jesus; Em união; Em redenção; Em comunhão nos poderes.[13] O propósito desse credo era simplesmente tornar a divindade acessível ao homem; ele “afirmava” o Pai, mas somente como o “desconhecido”, e o Espírito Santo, mas apenas como a fonte da deidade para todos, e Jesus, porém simplesmente como um dentre vários homens que receberam a divindade. Para os marcosianos, a salvação era conhecimento: “Pois eles afirmam que o homem interior e espiritual é redimido por meio do conhecimento, e que eles, tendo adquirido o conhecimento de todas as coisas, permanecem desde então sem necessidade alguma. Isto, portanto, é o verdadeiro conhecimento”.[14] Este conhecimento não era o conhecimento da revelação de Deus nas Escrituras; antes, era essencialmente o autoconhecimento. O conhecimento marcosiano levou os seus acólitos a afirmarem: “Pois procedo dele que é preexistente, e retorno ao meu próprio lugar de onde emergi”.[15] O verdadeiro conhecimento do homem e sua salvação é, portanto, aquiescer à sua própria imaginação e declarar-se divino. Habitualmente, contudo, o gnosticismo não se contentava com a formulação de credos. De maneira demasiado óbvia, os credos revelavam seu desvio e hostilidade em relação à fé cristã. Mostrava-se muito mais eficaz afirmar o Credo dos Apóstolos e reinterpretá-lo nos termos do gnosticismo. Isto, desde o gnosticismo até a neo-ortodoxia, tem sido um método preferencial de heresia. O gnosticismo era essencialmente o humanismo, a glorificação do homem. No humanismo, o homem faz de si mesmo supremo ao minar a supremacia de Deus. Quanto mais vagas tornarem-se as doutrinas do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mais claramente o homem emergirá como o soberano e sua ordem, como a ordem suprema. No arianismo e no semi-arianismo, o humanismo falou à igreja valendo-se da linguagem do Credo dos Apóstolos, mas reinterpretando as palavras a fim de dar um novo contexto a elas. O propósito subversivo do arianismo foi citado por Singer: O arianismo não era tanto o produto de uma tentativa inculta e mal orientada de se utilizar da filosofia clássica para explicar as doutrinas bíblicas quanto um esforço deliberado de interpretar o cristianismo em termos filosóficos e convertê-lo num tipo de filosofia religiosa. As origens derradeiras dessa heresia encontram-se principalmente no platonismo e na filosofia de Fílon, embora alguns especialistas afirmam perceber também algumas influências de Aristóteles.[16] Os três principais pontos do arianismo eram: primeiramente, Cristo era um ser criado; em segundo lugar, ele não era eternamente existente; e, em terceiro lugar, Cristo não era da mesma essência que o Pai. A fé ortodoxa insistia que Cristo era: primeiramente, gerado, não criado; em segundo lugar, gerado antes de todas as eras, e, em terceiro lugar, Cristo é da mesma essência que o Pai. Ário, um presbítero de Alexandria, afirmou sua posição em sua Thalia: O próprio Deus, então, em sua própria natureza, é inefável para todos os homens. Igual ou semelhante a si mesmo não há ninguém, nem com relação à sua glória. E chamamo-lo de Ingerado, por causa daquele que é gerado por natureza. Louvamos a ele [Deus] como sem princípio, por causa daquele que tem um princípio. E adoramo-lo como eterno, por causa daquele que veio a ser no tempo. O Sem Princípio fez do Filho um princípio das coisas criadas; e apresentou-o como um Filho a si mesmo por adoção. Ele [o Filho] nada tem próprio de Deus em sua substância particular. Pois não é igual, nem um em essência com ele [Deus]. Deus é sábio, pois é mestre da Sabedoria. Há amplas evidências de que Deus é invisível para todos os seres; ele é invisível tanto para as coisas que o são por meio do Filho quando para o próprio Filho. Direi isto nitidamente:como, por meio do Filho, o Invisível é visto? Pelo poder por meio do qual Deus vê e, em sua própria escala, o Filho suporta ver o Pai, como é lícito. Portanto, há uma Tríade, não igual nas suas respectivas glórias. Suas substâncias não se misturam entre si. Um mais glorioso do que o outro em suas glórias até a imensidão. Alheio ao Filho, em essência, é o Pai, pois ele é sem princípio. Compreenda que a Mônada foi; mas a Díade não foi antes que viesse à existência. Segue-se, pois, que, embora o Filho não era, o Pai era Deus. Daí o Filho, não sendo (pois ele passou a existir com a vontade do Pai), é Deus Unigênito, e é alheio a ambos. A Sabedoria existia como Sabedoria pela vontade do Deus Sábio. Assim ele é concebido em inumeráveis concepções: Espírito, Poder, Sabedoria, a Glória de Deus, Verdade e Luz. Um igual ao Filho, o Superior é capaz de gerar; mas não um mais excelente, ou superior. Segundo a vontade de Deus, o Filho é aquilo que ele é. E quando e desde que ele era, desde este momento então ele subsistiu a partir de Deus. Ele, sendo um Deus forte, exalta, em sua medida, o Superior. Em resumo, Deus é inefável para seu Filho. Pois ele é, para si mesmo, o que ele é, isto é, indizível. De modo que o Filho nada tem a falar sobre aquilo que é designado compreensível; pois é impossível para ele sondar o Pai, que subsiste por si mesmo. Porque o Filho não conhece sua própria essência, pois, sendo Filho, realmente existiu de acordo com a vontade do Pai. Que argumento, pois, se deduz? Que aquele que provém do Pai deveria conhecer seu próprio genitor mediante a compreensão? Porque é visível que, para aquilo que tem um princípio, conceber como o Sem Princípio é, ou apreender suas ideias, não é possível.[17] Analisando a Thalia de Ário, vemos, em primeiro lugar, que essa afirmação, com efeito, não exclui somente Cristo, mas também Deus. Deus é incognoscível mesmo para Cristo, que é a maior de todas as criaturas. Um deus que é tão incognoscível e que não pode se revelar é, pois, um deus irrelevante devido à sua incoerência radical. A despeito da glorificação extravagante que Ário dedica a Deus, na verdade, tanto aqui quanto em sua carta ao bispo Alexandre, ele exclui Deus exceto como um conceito limitante. Vivo ou morto, o deus de Ário é irrelevante. Em segundo lugar, Cristo é excluído por Ário. Embora designado como a maior de todas as criaturas, ele ainda é uma criatura. O Jesus de Ário não pode conhecer a Deus e, portanto, não pode revelá-lo. Não obstante o fato de que o Jesus ou o Filho, na visão de Ário, não pode ser superado, isto é, seu deus não pode criar um ente superior, ainda assim pode criar um ente igual ao Filho. Abre-se, pois, a porta para que outros filhos de deus possam igualar-se com deus, e, devido ao momento oportuno em que se encontram na história, estão acima do próprio Jesus com os homens. Por conseguinte, não apenas Deus Pai é excluído, mas também Deus Filho. E uma vez que, por definição, não pode existir outro igual a Deus, Deus Espírito Santo é, de igual modo, excluído. E sendo pois irrelevante este deus incognoscível e não revelado, o homem permanece essencialmente sozinho como seu próprio deus. Em terceiro lugar, a Bíblia é também eliminada. Um deus incoerente não pode se revelar. De modo que uma revelação em Cristo ou na Bíblia é assim descartada. Como um deus pode se declarar quando, por definição, ele ultrapassa qualquer autodeclaração, seja em seu filho, seja em seu mundo? O deus de Ário, como o homem, não possui plena autoconsciência; seu próprio ser é pleno de factualidade bruta e repleto de caos em ação, “pois ele é, para si mesmo, o que ele é, isto é, indizível”. Em quarto lugar, a resposta bíblica ao problema do uno e do múltiplo é negado. No Deus triúno — um Deus, três Pessoas —, há uma supremacia equânime do uno e do múltiplo. Unidade e particularidade são igualmente importantes. Ário reafirmou a ênfase pagã na unidade — unidade que era o império. Por toda parte, o estadismo pagão percebeu no arianismo uma doutrina ideal, e por alguns séculos o arianismo floresceu na Europa como a fé estabelecida. Em nome do cristianismo, o arianismo estabeleceu o anticristianismo. Professando o “cristianismo” ariano, governantes poderiam banir ou se oporem ao cristianismo ortodoxo como um elemento subversivo. Em quinto lugar, como é presentemente evidente, o arianismo era humanismo e estadismo. Tratava-se de uma fé popular com os governantes, na medida em que tornou possível a continuação da exaltação pagã do Estado como a ordem divino-humana e a política como o caminho da salvação. O imperador, Constantino, o Grande, com seu interesse essencialmente romano pela religião, voltou-se para o arianismo como forma de apoio. Um de seus troféus comemorativos, uma moeda de bronze de aproximadamente 307-308 d.C., tinha, num lado, a efígie de Constantino, e, do lado inverso, o deus-sol. [18] Para o império, abriu-se a porta para Jesus como a grande criatura de Deus, mas abriu-se também para várias outras criaturas divinas, todas servindo para a unificação do Império Romano como a ordem divino- humana. Os bispos arianos eram, pois, inescapavelmente estadistas no tocante à orientação e fé. Para eles, o império era a verdadeira ordem de Deus, e o imperador, a presente manifestação de Deus e o poder na terra. No Concílio de Niceia (325 d.C.) foi travada a batalha acerca das palavras-chave homoousion (sendo de uma só essência, isto é, com o Pai) e homoiousion (de essência semelhante), a posição semi-ariana projetada para transmitir uma aparência de ortodoxia, embora essencialmente destruísse a ortodoxia. Gibbon tratou da diferença entre as posições com desprezo. Seu ódio para com a ortodoxia é evidente. Numa conhecida nota de rodapé, Gibbon observou: “Não posso deixar de lembrar ao leitor que a diferença entre homoousion e homoiousion é quase invisível ao mais perspicaz olho teológico”.[19] É impossível descartar isto como ignorância: Gibbon sabia o que estava em jogo aqui, e sua lealdade era para com o estadismo enquanto esperança do homem. O triunfo da ortodoxia em Niceia teve uma importância tremenda. Schaff observou: O Concílio de Niceia é o mais importante evento do século IV, e sua vitória intelectual — que não levou ao derramamento de sangue — sobre um perigoso erro é de importância muito maior para o progresso da verdadeira civilização do que todas as sangrentas vitórias de Constantino e seus sucessores.[20] Os comentários de Leith são também importantes: Teologicamente, a afirmação de que o Filho é somente semelhante a Deus solapava a convicção da comunidade cristã acerca do objetivo de Jesus Cristo. A declaração de que ele era semelhante a Deus pressupunha algum critério para determinar se ele era como Deus e em que medida. Isto, ademais, abriu a possibilidade de que um outro alguém mais semelhante a Deus pudesse aparecer. O cristianismo seria apenas uma das muitas religiões possíveis. Se o próprio Deus se encarnou em Jesus Cristo, então este é a Palavra final. Não há nada mais a ser dito. O significado cultural da teologia nicena é revelado na disposição dos imperialistas políticos em serem arianos. O imperialismo enquanto estratégia política era mais compatível com a noção de que Jesus Cristo é algo menos do que a absoluta e plena Palavra de Deus.[21] O Credo Niceno, em sua forma original, de acordo com Eusébio de Cesareia, declara: Cremos em um só DEUS, PAI TODO-PODEROSO, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor JESUS CRISTO, o Filho de DEUS, unigênito do Pai, da substância do Pai; DEUS de DEUS, gerado, não criado, consubstancial ao Pai; por quem foram criadas todas as coisas que estão no céu ou na terra. O qual por nós homens e para nossa salvação, desceu (do céu), se encarnou e se fez homem. Padeceu e ao terceiro dia ressuscitou e subiu ao céu. Ele virá novamente para julgar os vivos e os mortos. E (cremos) no Espírito Santo. E quem quer que diga que houve um tempo em que o Filho de Deus não existia, ou que antes que fosse geradoele não existia, ou que ele foi criado daquilo que não existia, ou que ele é de uma substância ou essência diferente (do Pai), ou que ele é uma criatura, ou sujeito à mudança ou transformação, todos os que falem assim, são anatematizados pela Igreja Católica e Apostólica.[22] Visto que se tratava de um concílio ecumênico, a declaração grega, “cremos”, foi usada, mas a versão ocidental alterou para “creio”. Os concílios e usos subsequentes conduziram a uma formulação mais clara dos pontos e a uma leitura padronizada do credo no uso ocidental: Creio em um Deus, Pai Todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma só substância com o Pai; pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne pelo Espírito Santo da Virgem Maria, e foi feito homem; e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos. Ele padeceu e foi sepultado; e no terceiro dia ressuscitou conforme as Escrituras; e subiu ao céu e assentou- se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai e do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas. Creio na Igreja una, universal e apostólica, reconheço um só batismo para remissão dos pecados; e aguardo a ressurreição dos mortos e da vida do mundo vindouro. Como é imediatamente visível, o Credo Niceno é uma expansão do Credo dos Apóstolos e uma defesa deste contra o abuso causado pela reinterpretação.[23] Em sua presente forma, incorpora o trabalho de concílios subsequentes, incluindo o de Calcedônia. A mais importante adição posterior é a cláusula Filioque, a processão do Espírito Santo do Filho. Os elementos remanescentes de subordinacionismo foram, desse modo, eliminados no Ocidente; a cláusula foi rejeitada pelo Oriente. Por meio dela, a absoluta igualdade do Pai e do Filho foi declarada; a Trindade é um só Deus, três Pessoas, sem nenhuma subordinação de uma pessoa à outra na substância ou ser, mas somente em termos de economia ou operação. Ário, após Niceia, reconquistou certo poder por meio de influências políticas. Quando reconvocaram Ário, Alexandre, primado de Alexandria, prostrou-se com lágrimas no sacrário, suplicando: “Se Ário dirigir-se amanhã à igreja, leve-me embora e não me permita perecer com a culpa. Porém se tu te compadeceres de tua Igreja, como te compadecesses, leve Ário para longe, para que, quando de sua entrada, não adentre com ele a heresia”. Na manhã seguinte, em sua procissão triunfal rumo à igreja, a fim de ser formal e publicamente reconciliado com a autoridade imperial, Ário interrompeu e deixou a procissão subitamente, devido a uma dor gástrica. Após aguardarem um tempo, seus seguidores investigaram e descobriram que o velho Ário desfizera-se em sangue e precipitara-se numa latrina aberta. O partido ortodoxo triunfantemente relembrou as palavras concernentes à morte de Judas, que “precipitando-se, rompeu-se pelo meio” e morreu (Atos 1.18). A maneira pela qual Ário morreu foi usada pelos ortodoxos para desconcertar os hereges e encorajar os santos, tendo sido, pois, declarada como um ato de Deus. Os hereges preferiram esquecê-la, e os hereges modernos eliminaram este e outros eventos semelhantes dos livros da história como “irrelevantes”. Isto, todavia, foi uma conclusão providencial à grande batalha intelectual e espiritual de Niceia. 3. CONSTANTINOPLA CONTRA O ÓDIO À CONVICÇÃO Numa entrevista com o ator Robert Walker Jr., um comentário bastante interessante veio à tona: Após um filme, Walker recolhe-se à sua nova casa em Malibu com sua esposa Ellie, uma ex-dançarina do grupo June Taylor Dancers com quem se casou em 1961, e seus dois filhos, Michael, 4 anos, e Davi, 3 anos. “Temos uma casa na praia”, diz Walker. “Somos praieiros — sol, areia e scuba. Mas se esta casa nos dominar, nos prender… bem, vamos deitar fogo nela”.[24] Reconhecemos que essa afirmação do ator possivelmente revela apenas um sujeito extravagante, porém é significativo o fato de que ele considera como algo louvável essa sua pose como indivíduo que odeia fervorosamente as raízes. Todas as coisas associadas às raízes e à convicção são hoje desprezadas pela autodenominada nova elite. Matrimônio, moralidade, família, lei, ordem, convicção e, acima de tudo, cristianismo, são odiados intempestivamente. A liberdade do homem é evitar toda convicção exceto com relação a si mesmo; a busca por certezas é vista como uma busca pela morte. Para tais homens, a vida significa incerteza e desarraigamento. Um estudante radical observou: “Odeio pessoas que sabem das coisas”. O ódio à convicção é uma paixão motriz do homem existencialista. Esse ódio às raízes e à convicção é essencial à atividade revolucionária. O revolucionário destrói coisas de valor justamente porque elas possuem um valor independente dele. Somente aquilo que ele decreta pode subsistir. O revolucionário destrói raízes, valores e leis porque elas tratam de convicção — e ele está em guerra contra a convicção. Esta é a base da destruição revolucionária. Isto, porém, soa absurdo para aqueles que não são capazes de perceber que a destruição é essencial à fé revolucionária. O ódio à convicção foi um fator vital no Império Romano e seu anticristianismo, e é um aspecto vital do humanismo pervasivo, antigamente e também hoje. Os partidos humanistas fizeram todo o possível para trazer incerteza à fé, para tornar vagas as doutrinas de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, para obnubilar, com a incerteza, as doutrinas da criação, salvação e juízo. O ódio à convicção doutrinal mostrou-se intenso e veemente. Porém esse ódio à convicção é uma dissimulação e uma fachada para o avanço de uma nova convicção — não Deus, mas o homem. É parte da busca por uma convicção humanista. Portanto, um homem que está disposto a queimar uma casa, caso crie vínculos com ela, afirma, com efeito, que não pode ser constrangido por nenhuma outra responsabilidade senão seu desejo de satisfazer a si mesmo. Se seu casamento ou família lhe enreda, ele, de igual modo, há de “deitar fogo” neles. Sua liberdade é mostrar-se irresponsável para com toda responsabilidade dada por Deus como uma forma de afirmar sua independência e sua própria divindade. Foi esse ódio à convicção bíblica que os concílios antigos tiveram que combater. Os concílios ecumênicos da Igreja Primitiva eram, em seu propósito e natureza, muito diferentes dos concílios modernos e dos esforços ecumênicos da igreja. Em primeiro lugar, os concílios primitivos tinham como propósito principal a defesa e estabelecimento da verdade e não a unidade. A unidade teve de ser estabelecida sobre o alicerce da verdade — não foi o caso de a verdade apresentar-se como um produto da unidade. Os concílios reuniam-se com vistas ao conflito — a batalha da verdade contra o erro —, e qualquer unidade em outro elemento que não a verdade integral das Escrituras era anátema. Em segundo lugar, a preocupação dos concílios era primeiramente a fé e não a igreja. Institucionalmente, a igreja sofria com o conflito, mas, teologicamente, florescia e garantia sua sobrevivência e crescimento. O movimento ecumênico e concílios modernos estão, pois, em seu propósito e ação, em oposição direta aos concílios primitivos: sua preocupação é primariamente com a unidade e com a instituição, não com a fé. A Igreja Primitiva chegou ao Concílio de Niceia já com cicatrizes de guerra devido ao embate com os inimigos internos e externos, com o império e com os hereges. Os pais dirigiram-se à Niceia com as marcas da batalha — braços mirrados por causa da inflição de ferros quentes aos nervos, corpos aleijados e mutilados. “Alguns tiveram o olho direito arrancado,outros perderam o braço direito.”[25] A batalha pós-nicena foi similar, embora mais sutil. Agora o império era supostamente um aliado, mas, em geral, um aliado dos hereges dentro da igreja contra a fé ortodoxa. O arianismo foi, de acordo com Schaff, em primeiro lugar, “deísta e racionalista”, ao passo que o “atanasianismo” era “teísta e sobrenaturalista”. “O arianismo procedia da razão humana, o atanasianismo, da revelação divina.” Em segundo lugar, “o arianismo se associou com o poder político secular e o partido da corte; representava, pois, o princípio império-papal”, perseguia a igreja e negava-lhe uma área de independência com relação ao império, enquanto o partido ortodoxo estava preocupado com a integridade da fé.[26] O segundo concílio ecumênico, o Concílio de Constantinopla I, reuniu- se em 381 d.C. para lidar com o desafio contínuo dos humanistas que tentavam erodir as convicções da fé. Os homens que se reuniram haviam sofrido severamente nas mãos dos líderes eclesiásticos apóstatas em coligação com o império. A carta sinódica do Concílio cita estes sofrimentos resumidamente: Nossas perseguições são demasiadamente recentes. Seus sonidos ainda ressoam em nossos ouvidos tanto nos que a sofreram quanto naqueles cujo amor fizeram da dor dos sofredores a sua própria. Foi há apenas um dia ou dois, por assim dizer, que alguns, libertos das cadeias em terras estrangeiras, retornaram às suas igrejas por meio de muitas aflições; de outros, que morreram no exílio, suas relíquias foram trazidas para casa; outros, também, mesmo após seu retorno do exílio, depararam-se com a paixão ainda fervente dos hereges e, mortos por estes com pedras, como foi o bendito Estevão, encontraram um destino mais triste em sua própria terra do que numa terra estrangeira. Outros, abatidos por várias crueldades, ainda trazem em seus corpos as cicatrizes de suas feridas e marcas de Cristo. Quem poderia narrar essa história de multas, de privação de direitos, de confiscos individuais, de intrigas, de atrocidades, de prisões? Em verdade, todos os tipos de tribulação em nosso meio são inumeráveis, talvez porque estejamos pagando o preço dos pecados, talvez porque o Deus misericordioso estivesse nos provando por meio da multidão de nossos sofrimentos. Por estes, damos graças a Deus, o qual, mediante tais aflições, aperfeiçoou seus servos e, segundo a multidão de suas misericórdias, trouxe-nos novamente o refrigério. Nós, de fato, necessitávamos de um longo descanso, tempo e labuta a fim de restaurar a igreja mais uma vez, para que, como médicos curando o corpo após demorada doença e expulsando esta enfermidade por meio de tratamento gradual, pudéssemos trazê-la novamente à sua antiga saúde da verdadeira religião. É verdade que, no todo, aparentemente fomos livrados da violência de nossas perseguições e estamos somente agora recuperando as igrejas que foram, por um longo tempo, presas dos hereges. Porém, os lobos são um incômodo para nós, os quais, embora expulsos do aprisco, todavia assolam o rebanho por todas as direções nas clareiras, ousando rivalizar as assembleias, incitando sedições em meio ao povo, e não abrindo mão de nada que possa prejudicar as igrejas.[27] Esta não é a linguagem da conciliação. O fundamento do ecumenismo de Constantinopla não era o abrandamento das diferenças e a construção de pontes entre os opostos; antes, tinha como base a fé irredutível, expulsar os inimigos, impedindo-lhes a entrada senão por meio da conversão. Os inimigos eram francamente designados de “lobos”; eles deveriam se tornar ovelhas antes que pudessem se aproximar pacificamente. A carta sinodal sumarizou o trabalho teológico do Concílio: Esta é a fé que deveria bastar a vós, a nós, e a todos que não batalham pela palavra da verdadeira fé; pois é a antiga fé; é a fé de nosso batismo; é a fé que nos ensina a crer no nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. De acordo com essa fé, há uma só Divindade, Poder e Substância do Pai e do Filho e do Espírito Santo; sendo iguais em dignidade, e sendo iguais em majestade nas três perfeitas hipóstases, isto é, três pessoas perfeitas. Desse modo, não há espaço para a heresia de Sabélio por meio da confusão de hipóstases, isto é, a destruição das personalidades; daí a blasfêmia dos eunomianos, dos arianos e dos pneumatômanos é feita em nada, blasfêmia que divide a substância, a natureza e a divindade, e acrescenta à Trindade incriada, consubstancial e coeterna uma natureza posterior, criada e de uma substância diferente. Nós, ademais, preservamos incorrupta a doutrina da encarnação do Senhor, advogando a tradição de que a dispensação da carne não é nem privada de alma, nem privada de mente, nem imperfeita; e conhecendo plenamente que a Palavra [Cristo] de Deus era perfeita antes das eras, e tornou- se homem perfeito nestes últimos dias, para a nossa salvação. [28] A afirmação resume tanto a posição dos inimigos da fé quanto a palavra do Concílio. A palavra “tradição” é usada na carta sinodal no sentido de fé bíblica. A primeira heresia citada pelo Concílio, excluída pelo credo expandido, foi a “heresia de Sabélio”, ou monarquianismo. O sabelianismo tinha tendências gnósticas e judaizantes. Advogava um monoteísmo ou unitarianismo estrito em oposição ao trinitarianismo. O sabelianismo negava qualquer distinção entre o Pai e o Filho; mas existia apenas uma Pessoa.[29] Deus é a mônada, a substância original, inativa e improdutiva até que se desenvolvesse. O Pai é “Privado de Verbo”, isto é, não gera o Filho, visto que Deus é, por definição, privado da sabedoria e do verbo, em outros termos, basicamente uma substância original inconsciente. Ele é o Deus silencioso. O universo, assim como o Filho, são produtos de uma dilatação ou expansão da substância de Deus; ao fim de tudo, essa substância se contrai de modo que a criação desaparece.[30] Portanto, se a mônada torna-se uma díade ou tríade, a substância una original simplesmente se expandiu, e esta expansão é temporária e transitória. O sabelianismo era essencialmente um panteísmo, e seu deus, meramente uma substância abstrata que se desenvolve no mundo da realidade. “Alguns dos pais retraçaram a doutrina de Sabélio até o sistema estoico”.[31] O sabelianismo e seus correlatos marcelianos foram condenados pelo Concílio em seu cânone 1º. O Concílio de Constantinopla enfatizou a realidade da Trindade, de um Deus e três Pessoas. Em vez de uma concepção abstrata da substância original, o Concílio afirmou um Deus pessoal. No lugar de um deus silencioso, o Concílio declarou o Deus da revelação. O universo, em lugar de ser uma expansão de “deus”, é, antes, criação daquele que é “um só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. A segunda heresia enfrentada em Constantinopla foram as formas então mais recentes do arianismo, chamadas, de modo geral, de anomeanismo[32]. Eunômio, líder, fundador e bispo de uma seita de arianos, negava efetivamente a divindade do Verbo, do Filho de Deus. Com a suposta intenção de exaltar o Pai, o anomeanismo negava a divindade do Filho, porém o Pai que afirmavam adorar tratava-se de um deus incoerente incapaz de expressão. Desse modo, o anomeanismo era uma negação prática do Pai e do Filho. Para Eunômio, o Filho era apenas uma criatura, e Deus, uma mera substância remota. O canône 1º do Concílio condenou os anomeanos e os fotinianos [ou fotinistas] (seguidores de Fotino, discípulo de Marcelo, o qual afirmava que Jesus era um simples homem).[33] O Credo Constantinopolitano, uma expansão do Credo Niceno, deixou enfaticamente claro que Jesus é verdadeiro Deus. O terceiro tipo de heresia condenado foi a dos semi-arianos, macedonianos ou pneumatômacos. Os pneumatômacos (de pneuma, espírito, e machomai, difamar) eram seguidores de Macedônio, bispo de Constantinopla, o qual havia declarado que o Espírito Santo era apenas uma criatura. Com relação ao Filho, os semi-arianos e os macedonianos abstinham-se de declará-lo tanto como consubstancial ao Pai (ou verdadeiroDeus) quanto como criatura. A negação da divindade do Espírito Santo era uma negação de qualquer imanência de Deus. Desse modo, mesmo se os macedonianos tivessem sido ortodoxos no tocante às suas doutrinas do Pai e do Filho (o que não eram nem poderiam ser, uma vez que a doutrina da Trindade é um todo unificado), eles ainda teriam tornado Deus irrelevante, já que alheio ao mundo. Deus seria o “totalmente outro” que não poderia se revelar verdadeiramente ao homem ou operar no universo. Este deus absolutamente transcendente também seria um deus oculto, um deus sem revelação e completamente dissociado do homem. Ele seria, pois, irrelevante senão enquanto conceito limitante, e a consequência prática dessa divindade é que não há deus senão o homem. Os pneumatômacos sustentavam que o Espírito Santo era não somente uma criatura, mas também uma emanação de Jesus Cristo, este próprio uma criatura. Parte do credo ariano atestava que o Espírito Santo era um ser criado. Transformar Cristo e o Espírito Santo em emanações significava abrir o caminho para transformar o homem numa emanação, uma vez que a singularidade fora negada a favor de um processo inerente, uma emanação. A semelhança com o gnosticismo é óbvia. Atanásio, que cunhou o grupo de pneumatômacos, também os chamava de Tropici, por causa de suas interpretações figuradas das Escrituras. Visto que, para eles, Deus estava oculto, não existia qualquer palavra de Deus, e a Bíblia poderia somente apresentar insinuações, figuras sugestivas de Deus, porém jamais uma verdadeira revelação. Ao artigo “Creio no Espírito Santo”, do Credo de Niceia, o Concílio de Constantinopla acrescentou “o Senhor que dá a vida, e procede do Pai; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas”. O Espírito Santo é, pois, claramente Deus, a terceira Pessoa da Trindade. Em quarto lugar, o Concílio de Constantinopla condenou no cânone 1º, e em seu credo, os apolinarianistas. No esforço de interpretar a doutrina nicena, Apolinário enfatizara a divindade de Cristo, mas negando parcialmente sua verdadeira humanidade. Apolinário estava, assim, a mais de meio trajeto em direção ao arianismo, visto que sua posição era efetivamente uma negação da encarnação. Além disso, Apolinário acreditava que uma natureza humana completa em Cristo implicava pecaminosidade — essencialmente a crença pagã que a criaturalidade ou finitude era pecado, embora a fé bíblica conceba o homem como uma criatura originalmente criada boa. Ora, o pecado não é a finitude, mas a transgressão moral da lei de Deus. Se a finitude for vista como pecado, então a salvação é, necessária e logicamente, deificação. Por mais bem-intencionadas que pudessem ser as intenções de Apolinário, seus pressupostos eram helenistas e anticristãos. A declaração de Niceia no que diz respeito à encarnação de Cristo foi desse modo expandida a fim de enfatizar a realidade da encarnação. Em quinto lugar, o Concílio de Constantinopla acrescentou à sua declaração da consubstancialidade da Trindade o seu cânone 5º, uma confissão da “unidade da Divindade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. [34] Assim, o subordinacionismo foi condenado, e a unidade da Divindade afirmada. É interessante comparar o Credo de Niceia (o Credo dos 318 Pais) com o credo expandido dos 150 Pais de Constantinopla. A versão do Credo de Niceia apresentada por Leith declara (sendo uma tradução do texto grego, tem-se o pronome plural): Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso (pantokratora), Criador (poieten) do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai (ek tes ousias tou patros) antes de todos os séculos: Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado (poiethenta), consubstancial (da mesma realidade) ao Pai (homoousion to patri). Por ele todas as coisas foram feitas. E, por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos céus: e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem (enanthropesanta). Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim. (Cremos) no Espírito Santo... E quem quer que diga que houve um tempo em que o Filho de Deus não existia, ou que antes que fosse gerado ele não existia, ou que ele foi criado daquilo que não existia, ou que ele é de uma substância ou essência diferente (do Pai), ou que ele é uma criatura, ou sujeito à mudança ou transformação, todos os que falem assim, são anatematizados pela Igreja Católica e Apostólica. Por sua vez, o Credo expandido de Constantinopla declara: Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso (pantokratora), Criador (poieten) do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos (pro panton ton aionon): Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado (poiethenta), consubstancial (da mesma realidade) ao Pai (homoousion to patri). Por ele todas as coisas foram feitas. E, por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos céus: e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem (enanthropesanta). Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim (telos). Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Professo um só batismo para remissão dos pecados. Espero a ressurreição dos mortos; e a vida do mundo que há de vir. Amém.[35] A forma original do Credo Niceno conclui com um anátema. O cânone 1º de Constantinopla I fez a mesma coisa. A atual contrariedade em relação aos anátemas é uma negação da fé. Ninguém pode afirmar uma fé caso afirme seu contrário, nem pode defender uma fé sem declarar guerra contra os inimigos dessa mesma fé. Nenhum descrente ou herege pode se converter caso não seja primeiramente reconhecido como um descrente em vez de um irmão. Os anátemas são, pois, fundamentais ao confessionalismo. O Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., expressou as convicções da fé contra as tentativas do humanismo de transformá-la em incerteza. O humanismo dedicou-se novamente, e como sempre, ao desejo de reduzir as Escrituras a um labirinto de incertezas, mitos, figuras e símbolos. Seu propósito é “libertar” o homem da fé bíblica, deitar fogo sobre a habitação da fé, de modo que o homem possa ser totalmente desenraizado e alienado em relação a Deus. Mas a fuga da certeza sobre Deus é inútil, na medida em que cada fibra do ser do homem, tendo sido criada por Deus, dá testemunho dele (Romanos 1.18-25). Conforme o ator Walker Jr. disse: “Mas se esta casa nos dominar, nos prender… bem, vamos deitar fogo nela”. Seu plano é inútil. Ninguém pode incendiar a criação de Deus. O homem existencialista é um mito, e o único fogo que ele conhecerá é o de Deus. 4. TE DEUM LAUDAMUS A Igreja Primitiva não tinha falta de líderes idôneos, porém é um erro atribuir um papel demasiado importante aos Pais da Igreja. A despeito de sua heroica atitude, os melhores dentre eles não estavam livres dos erros teológicos devido aos efeitos persistentes das filosofias pagãs. De modo semelhante, as várias heresias trouxeram um paganismo aberto para a vida da igreja, e práticas e crenças pagãs abundavam. Ora, que a Igreja Primitiva representava um quadro confuso e uma “multidão mista” é algo evidente. Entretanto, permanece o fato de que um sólido âmago de ortodoxia também se fazia presente. O crescente colapso do humanismo fez ainda maisdo cristianismo ortodoxo não somente uma alternativa, mas a única esperança do homem. Em oposição aos mitos vagos do paganismo e das heresias, assim como das incertezas deliberadas do humanismo, as realidades sólidas e seguras da fé bíblica mostraram-se como uma radiante opção mesmo em face das perseguições. Um hino da igreja que expressou com exuberância a natureza triunfante da igreja foi o Te Deum Laudamus, que reflete a fé confessional de modo extremamente claro. É o cântico de vitória da igreja em frente à heresia e à descrença; ele ecoa as batalhas contra o gnosticismo, arianismo e outras heresias e celebra a vitória da ortodoxia e sua jubilosa fé no Deus triúno. As raízes do Te Deum encontram-se no hino grego Gloria patri e em vários hinos de louvor. As Constituições Apostólicas (c. 357?) contêm elementos do Te Deum,[36] que, por sua vez, remete ao Codex Alexandrinus da Bíblia; e um excerto de cinco linhas do hino foi incorporado a esse texto. [37] A presente forma do hino data provavelmente do século IV. O texto do Te Deum, conforme consta no Livro comum de oração, diz: A Vós, ó Deus, louvamos e por Senhor nosso Vos confessamos. A Vós, ó Eterno Pai, reverencia e adora toda a Terra. A Vós, todos os anjos, a Vós, os céus e todas as potestades; A Vós, os querubins e serafins com incessantes vozes proclamam: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos! Os céus e a Terra estão cheios da vossa glória e majestade. A Vós, o glorioso coro dos Apóstolos, A Vós, a respeitável assembleia dos Profetas, A Vós, o brilhante exército dos mártires engrandece com louvores! A Vós, Eterno Pai, Deus de imensa majestade, Ao Vosso verdadeiro e único Filho, digno objeto das nossas adorações, Do mesmo modo ao Espírito Santo, nosso consolador e advogado. Vós sois o Rei da Glória, ó meu Senhor Jesus Cristo! Vós sois Filho sempiterno do vosso Pai Omnipotente! Vós, para vos unirdes ao homem e o resgatardes não Vos dignastes de entrar no casto seio duma Virgem! Vós, vencedor do estímulo da morte, abristes aos fiéis o Reino dos Céus, Vós estais sentado à direita de Deus, no glorioso trono do vosso Pai! Nós cremos e confessamos firmemente Que de lá haveis de vir a julgar no fim do mundo. A Vós portanto rogamos que socorrais os vossos servos a quem remistes com o Vosso preciosíssimo sangue. Fazei que sejamos contados na eterna glória, entre o número dos vossos santos. Salvai, Senhor, o vosso povo e abençoai a vossa herança, E regei-os e exaltai-os eternamente para maior glória vossa. Todos os dias Vos bendizemos E esperamos glorificar o vosso nome agora e por todos os séculos. Dignai-Vos, Senhor, conservar-nos neste dia e sempre sem pecado. Tende compaixão de nós, Senhor, compadecei-Vos de nós, miseráveis. Derramai sobre nós, Senhor, a vossa misericórdia, pois em Vós colocamos toda a nossa esperança. Em Vós, Senhor, esperei, não serei confundido. Proctor, em seu estudo sobre o Livro de oração, citou um excelente sumário dos conteúdos do hino: Comber observa que este antigo hino contém — primeiramente, um ato de louvor oferecido a Deus de nossa parte e de todas as criaturas, assim na terra como nos céus; em segundo lugar, uma confissão de fé, declarando: (a) um consentimento geral à fé; (b) os seus particulares no tocante a cada pessoa da Trindade, e mais detidamente com relação ao Filho, à sua divindade, à sua humanidade e, particularmente, à sua encarnação, sua morte, sua glória presente e seu retorno para o julgamento; em terceiro lugar, uma súplica baseada na fé — (a) para todo o povo de Deus, para que possam ser preservados hoje e salvos no porvir; (b) para nós mesmos, que diariamente louvamos a Deus, para que sejamos preservados de pecados no futuro, e sejamos perdoados por aquilo que é passado, porque confiamos nele.[38] Este sumário é excelente e assinala o caráter do hino. O Te Deum canta com a fervorosa alegria e com a exuberante confiança da fé ortodoxa na Igreja Primitiva. Várias características importantes são aqui evidentes. Primeiramente, é a fé ortodoxa que o Te Deum claramente afirma. A popularidade do hino era uma indicação das raízes populares da fé ortodoxa: era a fé de um grande número de crentes humildes e de pastores simples. As incertezas vagas do arianismo e outras heresias eram capaz de apelar aos elementos obstinados, rebeldes e humanistas na igreja; contudo, para os cristãos humildes, falar acerca de Deus como a mônada e de Cristo como uma emanação era um disparate insubstancial quando comparado às realidades concretas e claras celebradas pelo Te Deum. Em segundo lugar, embora os cristãos fossem uma minoria dentro e fora do Império Romano, eles entoavam o Te Deum na confiante alegria de que o verdadeiro crente se encontra sempre na vasta maioria do universo de Deus: “A Vós, ó Eterno Pai, reverencia e adora toda a Terra... Os céus e a Terra estão cheios da vossa glória e majestade”. O Te Deus ecoa a fé de Salmos 19.1: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos”. As pessoas que acreditam que a oposição, por mais arraigada e numérica e politicamente forte que seja, é simplesmente uma nuvem passageira no universo de Deus não serão facilmente desencorajadas ou desviadas de seu movimento inabalável rumo ao poder e domínio. O inimigo possui somente um deus silencioso; já o partido ortodoxo tem o Deus que se revela. O inimigo tinha o poder de César atrás de si; os crentes ortodoxos, por sua vez, tinham o poder do Deus triúno — o Senhor de César era seu Deus e Salvador. E este Deus, tendo morrido por eles, cuidaria e faria ainda mais por eles. Portanto, podiam cantar com alegria: “Vós sois o Rei da Glória, ó meu Senhor Jesus Cristo!”. Em terceiro lugar, com fé confiante, os crentes ortodoxos podiam fazer a maravilhosa oração: “Em Vós, Senhor, esperei, não serei confundido”, a culminação do Te Deum. Para os pagãos, os deuses e a história sempre confundiam os homens. A sorte dos homens era angustiante, e os processos do universo confundiam, perturbavam e aviltavam com frustrações, derrotas, decadência e morte. Os humanistas habitualmente retratam a Antiguidade pagã como uma era de ouro, um tempo de júbilo, de autorrealização e de dignidade; essa retratação, todavia, representa a mitologia. Os homens pagãos adotavam uma perspectiva essencialmente pessimista. Uma espécie de filosofia “tu não podes vencer”. A fortuna destinava o homem a um fim, em última instância, sombrio e obscuro, e seus dias eram obnubilados pela hostilidade elementar da vida para com o homem. O mesmo se dava com os bárbaros, para os quais a vida era frustrante. Vida Scudder cita uma passagem esclarecedora do Venerável Beda que ilustra o mundo diferente do cristianismo: “Não é de se admirar”, diz Beda sobre São Cuteberto, “que a própria criatura que fielmente obedecia ao grande Autor de todas as criaturas deveria obedecer a seus próprios desejos. Nós, porém, em grande parte perdemos nosso domínio sobre a criação que fora sujeitada a nós, porque negligenciamos a obediência ao Senhor e Criador de todas as coisas”. A criação fora sujeitada a nós! Quão estranhamente essa fortuita expressão caiu nos ouvidos pagãos![39] Ser um cristão significa, percebeu o partido ortodoxo, a restauração do domínio e realeza de Adão sobre a terra. Tal fé proporciona uma confiança magnífica em face de todas as coisas. De acordo com o Venerável Beda, em 627 d.C., os conselheiros do rei Eduíno da Nortúmbria insistiram na adoção do cristianismo pela razão pragmática de que ele “contém algo mais seguro” do que seu paganismo, e, portanto, “ao que parece, merece, com justiça, ser seguido”.[40] E nesse apelo exercido pelo cristianismo ortodoxo não foi insignificante o fato de que oferecia “algo mais seguro”, nem que esse algo fosse um evangelho, as boas-novas, e a palavra de vitória. A vida tinha um modo de confundir os homens, tanto os grandes como os pequenos, de maneira que uma fé que tinha confiança em sua oração contra tal confusão era claramente uma fé que se sobressaía.O Te Deum, neste ponto e nos demais, estava notoriamente refletindo as Escrituras. O salmo 22.5 diz: “A ti clamaram e se livraram; confiaram em ti e não foram confundidos”. Em outro salmo, Davi orou: “Não sejam envergonhados por minha causa os que esperam em ti, ó SENHOR, Deus dos Exércitos; nem por minha causa sofram vexame os que te buscam, ó Deus de Israel” (Salmos 69.6). Em vários salmos, clama-se para que os ímpios sejam confundidos (Salmos 35.4; 40.14; 70.2; 71.13; 83.17; 97.7). A certeza dos crentes ortodoxos: “não serei confundido” estava também alicerçada na declaração de Paulo: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes” (1 Coríntios 1.27). A confiança do Te Deum encontra- se, pois, firmemente fundamentada: Deus não apenas poupará seus eleitos de serem confundidos, mas ele pretende usá-los para confundir os poderes deste mundo. Em quarto lugar, o poderoso agente que confunde os ímpios é “o rei da glória”, a segunda pessoa da Trindade, Jesus Cristo. Ele é o grande juiz, o salvador do homem e auxílio presente. É o encarnado que experimentou todas as coisas que o homem experimenta, incluindo “o aguilhão da morte”. O Te Deum, portanto, é também uma triunfante expressão do confessionalismo cristão ortodoxo. A Thalia, de Ário, era cantada pelos estivadores alexandrinos e outros indivíduos, e gozou de uma curta popularidade, embora somente como meio de escarnecer os crentes ortodoxos. Com exceção de seu uso sarcástico e zombeteiro, não tinha sentido algum, e certamente não enquanto cântico de fé. O Te Deum, contudo, é um cântico de fé, de confiante e triunfante fé no Deus triúno que governa toda a história. As controvérsias confessionais não se tratavam simplesmente de debates teológicos cujo escopo se restringia aos intelectuais da igreja. O desenvolvimento e a grande popularidade do Te Deum ilustram a vitalidade da teologia confessional na vida diária da Igreja Primitiva. O cântico foi fortalecido pelas controvérsias confessionais e possibilitou o intelectualismo que embasava os pais ortodoxos. A igreja que produziu e sustentou os pais era uma igreja experimentada na batalha, que cantava uma vitória certa em (e por meio de) Cristo, o rei: Te Deum laudamus. 5. O PODER E A GLÓRIA Duas antigas doxologias da era da Igreja Primitiva continuam sendo usadas até hoje. São elas a Gloria in Excelsis [Glória a Deus nas alturas], a doxologia maior, e a Gloria Patri [Glória ao Pai], a doxologia menor. A Gloria in Excelsis, em sua versão no vernáculo, declara: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. Senhor Deus, Rei dos céus, Deus Pai todo-poderoso: nós Vos louvamos, nós Vos bendizemos, nós Vos adoramos, nós Vos glorificamos, nós Vos damos graças, por vossa imensa glória. Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito, Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai: Vós que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós; Vós que tirais o pecado do mundo, acolhei a nossa súplica; Vós que estais à direita do Pai, tende piedade de nós. Só Vós sois o Santo; só Vós, o Senhor; só Vós, o Altíssimo, Jesus Cristo; com o Espírito Santo, na glória de Deus Pai. Amém. Por sua vez, o Gloria Patri, na forma ocidental, declara: Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém. A glória é a manifestação da natureza divina. Na doutrina cristã, no âmbito da teologia bíblica, o poder e a glória são atribuídos somente ao Deus triúno. Ao longo da história, contudo, homens que conquistaram o poder mundial, ou um imenso poder imperial, também reivindicaram a glória para si. Atribuíram a si mesmos poderes divinos e se declararam como a manifestação visível da glória divina. São Lucas relatou um incidente desses em Atos 12.21-23. O rei Herodes reivindicou a “glória” para si mesmo, incorrendo assim no juízo de Deus. Se o monarca se declara como a glória de Deus, segue-se evidentemente que seu domínio se torna o reino de Deus na terra. O império persa declarou-se claramente como esse reino e seu governo, o possessor da glória divina.[41] No Antigo Testamento, a glória de Deus significa, primeiramente, “o caráter autorrevelado e o ser de Deus”, e, em segundo lugar, “um fenômeno físico indicativo da presença divina”.[42] A glória de Deus está também presente onde Deus concedeu poder e autoridade, como no caso de Nabucodonosor (Daniel 2.37). São Paulo falou da mulher como sendo “a glória do homem”, isto é, “a mulher evidenciando a autoridade do homem” por meio de sua obediência piedosa.[43] De acordo com Whitham, a “glória de Deus”… necessariamente se refere à sua Divindade essencial e imutável tal como revelada ao homem. E a atribuição familiar: “Glória a Deus” implicaria não apenas um justo louvor por parte do homem, mas a designação a Deus daquilo que ele realmente é, pois nada superior pode lhe ser atribuído. De semelhante modo, a verdadeira “glória” do homem, ou sua natureza, é a condição ideal, a perfeição final, que existe enquanto fato real na mente divina. A glória de Deus é aquilo que ele é essencialmente; a glória das coisas criadas é aquilo que Deus pretendeu que elas fossem, embora ainda não tenham atingindo isso perfeitamente (Hebreus 2.10; Romanos 8.18-21).[44] A palavra glória também “traz em si as ideias de ‘luz’, ‘esplendor’ e ‘beleza’”.[45] Com base nisto, torna-se nítido a razão pela qual uma cabeleira longa e a cabeça coberta é “autoridade” (1 Coríntios 11.10) e “glória” para uma mulher (1 Coríntios 11.15). É o testemunho público de sua aceitação de seu papel ideal e preordenado, e essa aceitação e cumprimento do propósito que lhe foi ordenado por Deus é autoridade e glória para si. Isto é confirmado por Robert Law, que chamou a atenção para o uso bíblico da glória significando a “perfeição natural” da criatura (1 Coríntios 15.40-41; 1 Coríntios 11.15; 1 Pedro 1.24).[46] O homem apóstata e caído aspira recorrentemente pela possessão do poder e da glória divinos em algum aspecto. Que essa reivindicação tenha sido um lugar-comum nas civilizações pagãs é fato bastante conhecido, porém também foi e é comum às culturas que se denominam cristãs. O exemplo mais notório é Bizâncio. A corte imperial era uma instituição religiosa centrada no poder e glória divinos do imperador. Tudo era feito para sugerir a glória de Deus na pessoa do imperador. Uma árvore de bronze, coberta de ouro, cujos ramos eram repletos de pássaros mecânicos, também de ouro, que emitiam sons de acordo com suas espécies, encontrava-se em frente ao trono. O trono era cercado de leões mecânicos que rugiam e abanavam suas caudas, e erguia-se em direção ao teto, ao passo que os mortais que dele se aproximavam faziam três mesuras ao imperador com suas faces encostadas ao chão.[47] A árvore dourada pelo visto sugeria a árvore da vida, cujo poder de conceder a vida era dispensado pela benevolência do imperador. No mundo moderno, aqueles que reivindicam o poder e a glória de Deus têm sido menos dramáticos e mais pragmáticos e práticos. A divindade se localiza agora nas multidões, nas massas, na democracia, de maneira que “o povo” é, teoricamente, o poder e a glória. Não se permite nenhuma transcendência; antes, postulam uma imanência total: a potência divina é inerente ao povo. Desse modo, Mao Tse-Tung disse acerca dos Estados Unidos, de Hitler, da Rússia imperial dos tzares, do Japão imperial e outras potências do passado e do presente, que eles “eram apenas tigres de papel. A razão disto é porque se separaram do povo”.[48] O poder está no povo. Portanto, “o exército deve se tornar um com as pessoas para que possam vê- lo como seu próprio exército. Um exército destes será invencível”.[49] Porém às pessoas não se permite o exercício desse poder: elas são culpadas de “ultrademocracia” e “da aversão individualista e pequeno-burguesa à disciplina”, caso pensem isto. É, de fato, contrarrevolucionário imaginar que as pessoas têm o direito de exercer seu próprio“poder”, devendo-se, pelo contrário, declarar guerra contra esse tipo de crença: Na esfera da teoria, destrua as raízes da ultrademocracia. Primeiramente, deve-se sinalizar que o perigo da ultrademocracia reside no fato de que ela prejudica ou mesmo subverte completamente a organização do Partido, enfraquece ou mesmo solapa por inteiro a capacidade de luta do Partido, tornando-o incapaz de cumprir suas tarefas combativas, ocasionando assim a derrota da revolução. Em seguida, deve- se assinalar que a fonte da ultrademocracia consiste na aversão individualista pequeno-burguesa à disciplina. Quando esta característica é trazida para dentro do Partido, ela se desenvolve em ideias ultrademocráticas, política e organizacionalmente. Tais ideias são absolutamente incompatíveis com as tarefas combativas do proletário.[50] Nos países ocidentais, também se deram essas mesmas tentativas de se apropriar do poder e da glória, embora tenham assumido formas distintas. O conceito de “consenso democrático” é bastante comum. Um grupo de elite é o intérprete e possuidor da glória do povo na forma de uma tradição intelectual. O consenso não é aquilo que o povo enquanto maioria deseja ou a favor do qual vota, mas aquilo que a elite “sabe” que o povo deseja. O consenso é a vontade geral de Rousseau, e a elite, a encarnação do poder e glória do homem.[51] Quando Jesus ensinou que a oração deveria incluir a atribuição do poder e da glória a Deus (“Pois teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém”, Mateus 6.13), ele estava acentuando a totalidade das Escrituras e a totalidade de seu ministério. A atribuição do poder e da glória ao Deus triúno colocou o cristianismo em conflito não somente com o Império Romano, mas também com todos os demais domínios em que adentrou. As duas doxologias expressaram e expressam a fé bíblica. As doxologias atribuem jubilosamente todo o poder e a glória ao Deus triúno. Elas expressam, pois, a confiança cristã em face de um império ferozmente hostil. Porém são mais do que isso. Elas são expressão de um desafio implícito a todas as contra-reivindicações ao poder e à glória. Declarar frente ao mundo que a soberania de Deus é a realidade atemporal: “assim como era no princípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos” foi uma atitude impressionante. As doxologias representavam, portanto, tanto uma confiança marcante quanto uma fé ilimitada com relação à vitória certa do Deus triúno sobre os poderes visíveis da história. Elas implicitamente desafiam o mundo na confiança de que o Deus que expia os pecados dos homens é também seu escudo e defensor, o Senhor do tempo e da eternidade. 6. ÉFESO: A CONDENAÇÃO DO CULTO AO HOMEM Embora tenham sido convocados pelos imperadores, uma das características mais evidentes dos concílios era sua independência teológica. Jamais se permitia que o Estado regesse a igreja, e a intrépida independência dos teólogos ortodoxos estava além de qualquer questionamento. E, embora posteriormente a vitalidade teológica fosse transferida para o Ocidente, a predominância inicial do Oriente era notória. Uma das contínuas persistências humanistas dentro igreja era o culto ao homem. O culto ao imperador havia sido, obviamente, culto ao homem, porém, num sentido mais amplo, todo humanismo também o é; e esta era a fé essencial da Antiguidade. Alguns dos ataques contra os cristãos buscaram destruir a fé orientada a Deus que é própria do cristianismo insistindo que também a igreja era humanista e cultuava a um homem, Jesus. Por que, então (argumentava-se) deveria a igreja assumir uma postura hostil ao culto ao império e ao imperador? Num documento siríaco sobre o martírio de um diácono, Habib, o governador aludiu ao fato de que Habib havia se recusado a oferecer sacrifício ao culto oficial: O governador disse: Como é isto que tu adoras e honras um homem, mas se recusa a adorar e honrar a Zeus aqui? Habib disse: Eu não adoro a um homem, porque as Escrituras me ensinam: “Maldito o homem que confia no homem”, mas sim a Deus, que tomou para si um corpo e tornou-se um homem, (a este) eu adoro e glorifico.[52] Tentou-se de todas as formas introduzir o culto ao homem na igreja. Tendo Deus Filho se encarnado, os humanistas focavam seu ataque usando Jesus Cristo como o veículo para o culto ao homem. Esse humanismo foi introduzido por diversos meios na igreja, mas a estratégia básica se desenvolveu em duas formas. Primeiramente, a divindade de Jesus Cristo poderia ser negada, como fez o arianismo, porém com a possibilidade de se insistir na adoração a Cristo. Isto significava claramente que um homem Jesus, e não Deus Filho, estava sendo adorado. Em segundo lugar, sustentava-se que Jesus não era literalmente Deus encarnado, mas um homem que unira sua vontade com a de Deus, de modo a tornar-se um com ele. Para essa perspectiva, Jesus era um com Deus não por nascimento e natureza, mas por vontade moral, o que dava lugar, pois, a uma divinização da criatura. O terceiro concílio ecumênico, o Concílio de Éfeso, em 431 d.C., teve de lidar com essa questão do culto ao homem na forma do nestorianismo. Chrystal resumiu em três pontos principais a apostasia de Nestório: primeiramente, a negação da encarnação do Verbo Divino; em segundo lugar, a adoração de um ser humano, isto é, um homem chamado Jesus; em terceiro lugar, “reduzindo a Eucaristia à adoração do pão e vinho como sendo a humanidade de Cristo e ao canibalismo de comer a carne real de Cristo e beber seu sangue real durante o rito”. No âmago desses erros estava aquele que era fundamental: o culto ao homem e a negação da divindade de Cristo. De acordo com Berkhof, Em vez de fundir as duas naturezas numa única autoconsciência, o nestorianismo colocou-as um ao lado da outra com nada mais do que uma união moral e simpática entre si. O homem Cristo não era Deus, mas o portador de Deus, theophorus, um possuidor da Divindade. Cristo é adorado não porque é Deus, mas sim porque Deus está nele. [53] Para Nestório, segundo Landon, “o Verbo estava, de fato, unido ao homem, mas não se fez homem. Cristo não nasceu da Virgem, e jamais sofreu a morte”.[54] Em 428, Nestório tornou-se patriarca de Constantinopla. Imediatamente Nestório tentou alcançar a reputação de defensor zeloso da fé ao perseguir as formas anteriormente condenadas de arianismo e outras heresias, embora, ao mesmo tempo, lidando cordialmente com os pelagianos. O historiador da igreja, Sócrates Escolástico, não acreditava que Nestório realmente “negasse a Divindade de Cristo”; porém via nele antes um homem ignorante e ambicioso, “pois sendo um homem de natural fluência como orador, era considerado bem instruído, embora, na realidade, fosse lastimavelmente inculto”.[55] Sócrates talvez estivesse certo, embora a ignorância de Nestório seja algo improvável; permanece, porém, o fato de que, seja por ignorância ou deliberadamente, Nestório era um humanista cujo motivo religioso básico era o culto ao homem. Que ele se mantinha próximo ao trono e era um homem ambicioso, é algo que fortalece sua perspectiva essencialmente antropocêntrica. A atitude do concílio foi de total rejeição da adoração à criatura, seja o homem perfeito Jesus, a Virgem Maria, apóstolo, profeta ou santo. O princípio da adoração à criatura foi absolutamente rejeitado. A carta menor de Cirilo, bispo de Alexandria, a Nestório afirmava a posição do concílio: Pois não é verdade que ele primeiramente nasceu como um homem comum da Virgem santa, e que então a Palavra desceu sobre ele, mas sendo unido à carne no próprio ventre, é dito que ele vivenciou um nascimento na carne, porque ele afirma como seu o nascimento de sua própria carne. Desse modo, dizemos que ambos “sofreram” e “ressuscitaram”, não que a Palavra de Deus sofreu em sua própria Natureza [Divina], sejam as escoriações, sejam as perfurações dos pregos ou outras feridas, pois sua Divindade não sofre, e porque esta não possuía um corpo; todavia, aquele que havia sido feito seu próprio corpo sofreu essas indignidades, diz-se queele próprio, nesse sentido, sofreu [essas coisas] por nós. Pois [a Palavra] impassível estava num corpo passível. E é desse mesmo modo que compreendemos que ele morreu. Pois em sua Natureza, a Palavra de Deus é imortal e incorruptível, e ele é Vida e o Doador da Vida. Porém, visto que seu próprio corpo, “pela graça de Deus”, como diz Paulo”, provou a “morte por todos”, ele próprio — é-nos dito — sofreu essa morte por nós, não que pertença à sua Natureza [divina] experimentar a morte, pois dizer ou pensar isso seria loucura; no entanto, como já disse, sua carne provou a morte. Assim, novamente, porque sua carne ressuscitou, essa ressurreição é atribuída a ele [o Verbo], não que ele [o Verbo] tenha caído sob o poder da corrupção [Deus não permita]; mas porque seu corpo ressurgiu novamente.[56] A distinção é fundamental: se Jesus Cristo fosse reduzido a um homem notável que se uniu à Divindade, tornando-se, nesse sentido, Deus, então abrir-se-ia a porta para a redivinização deste mundo, de suas ordens e do Estado. Novamente imperadores podem se tornar deuses, e homens grandiosos unem-se à divindade a fim de se tornarem a expressão da vontade de Deus para sua época. A aproximação a Deus dá-se, assim, por meio do homem; este se esforça em direção a Deus, e o cerne da questão não é a graça, a condescendência de Deus ao homem, mas as obras — a ascensão do ser humano a Deus. A questão em risco era a sobrevivência do cristianismo. Cirilo assinalou com precisão essa diferença: Pois as Escrituras afirmam não que o Verbo uniu-se a uma pessoa humana, mas que ele “se fez carne”. Porém, “o Verbo se fez carne” não significa nada mais que, como nós, ele tomou parte da carne e do sangue, e fez um corpo semelhante ao nosso, todo seu, e veio de uma mulher, não abandonando seu ser como Deus, e sua geração [anterior] a partir de Deus Pai, porém ele permaneceu, desde que assumiu a carne, exatamente como ele era anteriormente. Isto, a doutrina da fé exata, por toda parte (a fé) é anunciada e defendida.[57] O nesterioanismo implica a capitulação total do cristianismo, e o concílio de Éfeso estava agudamente consciente disso. A despeito da eminência de Nestório e do favor imperial para com ele, o concílio anatematizou-o. Antes disto, porém, Nestório respondeu a carta de São Cirilo, declarando que esta havia lhe ofendido. Ele acusou Cirilo de sustentar “que a divindade consubstancial é passível de sofrer”. Nestório negou abertamente a encarnação; fazendo uma distinção entre o homem (que, por união moral, tornou-se um com Deus, transformando-se no “Ungido”) e Deus: Ao longo de todas as Escrituras de Deus, quando se faz menção à encarnação do Senhor, comunica-nos o nascimento e o sofrimento não da Divindade, mas da humanidade do Ungido, de modo que a Virgem Santa deve ser chamada mais precisamente com o título “Mãe do Ungido [Cristo]”, e não “Mãe de Deus”.[58] Nestório usou o termo encarnação, mas apenas para negá-lo. Por meio de um equívoco e de uma tradução deturpada, o concílio de Éfeso tem sido visto como se defendesse ou possibilitasse o culto à Virgem Maria, quando, na verdade, condenou todo culto à criatura. Theotokos tem sido traduzido como a “Mãe de Deus”, e Nestório tem sido visto perversamente como opositor à exaltação de Maria. Porém, Theotokos, conforme Chrystal assinala, significa a “produtora de Deus”, isto é, a Virgem Maria produz Deus Filho em sua encarnação. Nestório faria de Maria simplesmente a produtora de Cristo, o Ungido, um homem que deveria ser adorado como Deus.[59] Em vez de encarnação, Nestório afirmou uma conjunção (ou ligação) de Deus e homem, e acusou seus inimigos de serem arianos, apolinarianistas e, pior, pagãos, enquanto declarava sua fé como aquela dos Pais e das Escrituras. É, portanto, reto e digno do legado do Evangelho confessar que o corpo é o templo da Divindade do Filho, e um templo unido por certa conjunção sublime e divina, de modo que a Natureza da Divindade apropria [para si] das coisas desse corpo: mas atribuir à expressão “apropriação” as propriedades também da carne que toma parte nessa conjunção — isto é, nascimento e sofrimento, e morte — pertence de fato, irmãos, às opiniões equivocadas dos pagãos, ou os erros de Apolinário que bateu a cabeça, e de Ário, e daqueles com as mentes afetadas com outras heresias, ou antes, com quaisquer coisas piores. Pois necessariamente há de ser que esses tais serão corridos pelo termo “apropriação”, e por causa dessa “apropriação”, eles farão com que o Deus Verbo tome parte na amamentação, compartilhe do crescimento gradual e do temor na hora do sofrimento, e seja alguém que necessite do socorro dos anjos. E eu me silenciarei quanto à circuncisão, ao sacrifício, ao suor, à forma e à sede; coisas que, na medida em que se deram em sua carne em prol de nós, devem ser conjugadas para serem adoradas. Entretanto, essas declarações acerca da Divindade serão recebidas como mentiras e também tornar-se-ão a causa de nossa justa condenação como caluniadores. Essas são as tradições dos santos Pais. Essas são as proclamações das Escrituras de Deus.[60] Nestório acreditava na impossibilidade de aceitar uma encarnação literal. Crer que Maria trouxe à luz o Deus encarnado e o amamentou, e que este Deus encarnado foi circuncidado, cresceu e tomou parte das provações da humanidade, era ofensivo para Nestório. Para ele, a resposta era uma união moral. A solução de Nestório ao desafio cristológico é significativa e, de fato, humanista. A iniciativa é reservada ao homem: Deus é passivo, o homem, ativo. Não é Deus que alcança o homem na encarnação, mas o homem que, por meio de suas obras, alcança um ponto de progresso e realização morais pelos quais se encontra unido a Deus. A história é determinada não por Deus, mas pelo homem; pelo tempo, não pela eternidade. Nestório depôs alguns sacerdotes ortodoxos com acusações de maniqueísmo, e naquele momento acusava Cirilo de ser influenciado por esses homens e por essa mesma doutrina.[61] Na votação em relação à epístola de Nestório a Cirilo, a hostilidade do concílio com relação ao primeiro era notória. Eles claramente reconheceram sua negação da ortodoxia. Como Chrystal observou, “a essência mesma do cristianismo estava envolvida, isto é: 1) a verdade da encarnação do Verbo; 2) a questão do culto a um homem, uma criatura, isto é, o Homem que o Verbo assumiu, contrariamente à lei fundamental estabelecida pelo próprio Cristo em Mateus 4.10 e Lucas 4.8”.[62] A longa epístola de São Cirilo a Nestório expressava a decisão do concílio de Éfeso e foi inserida nas atas. Após revisar o credo, Cirilo declarou: Seguindo em todos os pontos as confissões que os Santos Pais fizeram (com o Espírito Santo falando por eles), e seguindo o escopo de suas opiniões, e prosseguindo, por assim dizer, no caminho régio, confessamos que o Verbo Unigênito de Deus, gerado da mesma substância que o Pai, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, Luz da Luz, por meio de quem todas as coisas foram feitas, as coisas no céu e as coisas na terra, descendo à terra para nossa salvação, esvaziando-se, encarnando-se e fazendo-se homem; isto é, tomando da carne da santa Virgem, e tendo feito isto no ventre, sujeitou-se a nascer por nós, e veio como homem a partir de uma mulher, sem deixar de ser o que era; mas embora tenha assumido a carne e sangue, permaneceu o que era, Deus em essência e em verdade. Também não dizemos que sua carne alterou-se para a natureza da divindade, nem que a natureza inefável do Verbo de Deus foi posta de lado pela natureza da carne; pois ele não mudou e é absolutamente imutável, sendo o mesmo sempre, de acordo com as Escrituras. Pois embora visível e uma criança envolta em fraldas, e mesmo no ventre de sua Virgem Mãe, ele enchia toda a criação como Deus, e reinava junto àquele que o gerou, pois a Divindade não tem quantidade nem dimensão, e portanto não pode ter limites. Confessando que o Verbo se tornou um com a carne de acordo com a substância, adoramos um Filho e Senhor Jesus Cristo: não dividimos Deus dohomem, nem o separamos em partes, como se as duas naturezas fossem mutualmente unidas nele somente por meio de um compartilhamento de dignidade e autoridade (pois esta é uma inovação e nada mais), nem damos separadamente ao Verbo de Deus o nome de Cristo e este mesmo nome separadamente a um outro diferente nascido de uma mulher; na verdade, conhecemos apenas um Cristo, o Verbo do Pai com sua própria carne.[63] Cirilo não somente declarou a realidade da encarnação, mas, com a aprovação do concílio, declarou que as duas naturezas estavam em verdadeira união sem confusão; esta foi afirmada como a fé ortodoxa. Portanto, aquilo definiu-se ainda mais formalmente em Calcedônia já era a fé ortodoxa. Cirilo prosseguiu a fim de esclarecer que Cristo não era um homem divinizado: “não dizemos que a Palavra de Deus habitava nele como num homem comum nascido da Virgem Santa, para que não se pense em Cristo como um portador da Divindade”. Pelo contrário, “ele se fez carne”, encarnou-se verdadeiramente, embora sem confusão das naturezas. Não era “como se um homem tivesse alcançado tal conjunção com Deus como se consistisse numa unidade apenas de dignidade ou de autoridade”. A posição de Nestório fez do culto ao homem o culto a Deus. “Em relação a isto, é horrível afirmar o seguinte: ‘O assumido, assim como o que assumiu tem o nome de Deus’. Pois esta afirmação novamente divide Cristo em dois, e coloca o homem e Deus separadamente por si mesmos. Pois tal afirmação também nega abertamente a Unidade de acordo com a qual um não é adorado no outro, nem Deus existe juntamente com o outro; porém Jesus Cristo é considerado como o Único, o Filho Unigênito, que deve ser honrado com um culto juntamente com sua própria carne”.[64] A doutrina ensinada por Nestório supostamente preservava o ser de Deus para si, mas na verdade transformava o homem em Deus, visto que possibilitava que um homem se tornasse Deus por meio de um ato de vontade. A resposta de Nestório às convocações finais do concílio foi bater a porta na cara dos bispos visitantes e pregar ainda mais desbragadamente suas doutrinas particulares. Teódoto, bispo de Ancira, conta que Nestório declarou que “não deveríamos atribuir a Deus a amamentação com leite, nem o nascimento por meio de uma virgem. E da mesma forma, frequentemente dizia que não devemos dizer que Deus teve dois ou três meses de idade”.[65] Para Nestório, era impossível que o “Móvel imóvel” passivo se tornasse o agente ativo ou se encarnasse. O homem podia tornar-se deus, mas Deus não podia tornar-se homem. O concílio, lendo a opinião dos Pais da Igreja, perceberam que a opinião de Nestório era claramente designada de heresia. Portanto, Gregório Nazianzeno, em sua primeira epístola a Cledônio, escreveu: “Se alguém diz que o homem foi formado e Deus, em seguida, o assumiu, seja condenado: pois não se trata de trazer à tona Deus [a partir de uma mulher], mas um impedimento de trazê-lo à tona”.[66] Nestório deixou claro que Jesus era apenas homem por natureza, e que também deveria ser adorado: “Adoro aquele [o homem, isto é, a humanidade de Cristo] que é revestido em nome daquele [Deus, o Verbo] que reveste. Curvo-me perante o que é visto em nome daquele [Deus, o Verbo] que está oculto. Deus é inseparável dele [do homem] que é visível. Por esta razão, não separo a honra do Inseparável. Separo as Naturezas, mas unifico a adoração”.[67] Porém, o concílio enfatizou que apenas Deus poderia ser adorado; nem mesmo a humanidade de Cristo, mas somente sua divindade. A humanidade de Cristo não é nem pode jamais ser deificada. As duas naturezas são sem confusão, mesmo em sua encarnação singular. Nestório sustentava “a conjunção não mista das [duas] Naturezas. Adoremos o homem co-reverenciado juntamente ao Deus todo- poderoso na conjunção divina”.[68] Por meio da união moral, Cristo, tendo se tornado um com Deus por meio de sua excelência moral e obras, deveria, então, ser adorado como Deus. Abriu-se, pois, a porta para que qualquer homem ou Estado que, por meio da excelência moral ou obras, se unisse a Deus fosse adorado como Deus. Procurando defender a honra de Deus, Nestório usurpou o culto a Deus para o homem. Quando, no período medieval, o humanismo helênico aprisionou a igreja, essa exaltação do homem assumiu a proeminência na igreja. Inocêncio III afirmava que “o papa detém o lugar do verdadeiro Deus”, e Marcelo, no concílio de Latrão, com a total aprovação deste, designou Júlio de “Deus na terra”. O cardeal Belarmino sustentava que “o papa pode transubstanciar o pecado em dever, e o dever em pecado”, colocando-o, pois, acima de Deus e sua lei, e também tornando o homem ativo e Deus passivo.[69] O modernismo protestante, de semelhante modo, tem rebaixado Jesus a uma união moral com Deus, exaltando assim o homem (e a si mesmo) a uma posição de união potencial com Deus e a um juízo efetivo (donde uma superioridade) acima da Palavra de Deus. O concílio, portanto, aprovou os “Doze anatematismos contra Nestório”, de São Cirilo. O primeiro anátema ou capítulo declaravam: “Se alguém não confessar que o Emanuel é Deus no sentido verdadeiro e que, portanto, a santa Virgem é deípara (pois gerou segundo a carne o Verbo que é de Deus e veio a ser carne), seja anátema”.[70] Nestório, por seu turno, lançou um primeiro contra-anátema: Se alguém diz que aquele que é o Emanuel é Deus Verbo, e não Deus conosco [Mateus 1.23], isto é, que ele [Deus Verbo] habitou na natureza que é semelhante à nossa, isto é, que ele [Deus Verbo] habitou na natureza que é semelhante à nossa, de modo que se uniu à nossa massa [Romanos 1.16] que tomou da Virgem Maria, e assim designa a Virgem Maria de Mãe de Deus Verbo e não daquele que é Emanuel, e afirma que o próprio Deus Verbo tornou-se carne, que ele assumiu para a demonstração de sua própria Divindade, para que assumisse a forma de um homem [Filipenses 2.8], seja anátema.[71] O segundo anátema afirmava: “Se alguém não confessar que o Verbo saído do Pai é unido segundo a hipóstase à carne e que Cristo é um só com sua própria carne, quer dizer, Deus e homem juntamente, seja anátema”.[72] Como resposta, Nestório tentou identificar a posição ortodoxa ao apolinarianismo e sabelianismo, afirmando que ela “coextendou a carne, infinitamente e sem qualquer circunscrição, à Natureza Divina”, embora Cirilo e o Concílio de Éfeso tenham deixado claro que não havia confusão entre as duas naturezas. O deus desencarnado de Nestório não era diferente do deus oculto dos arianos: o aspecto remoto e a impossibilidade desse deus necessariamente levaram à busca de um deus real neste mundo. Nestório negou, primeiramente, a encarnação, e em segundo lugar, ofereceu adoração ao homem Jesus diretamente, e a Deus Verbo somente de forma indireta, ou seja, relativamente, conforme Chrystal demonstrou. O segundo contra- anátema de Nestório rezava: Se alguém afirma que, nessa conjunção [meramente externa] de Deus Verbo que se fez carne, deu-se uma mudança da Essência Divina de uma ponta a outra, e que a carne é capaz de conter sua Natureza Divina, e que esta foi unida à carne no nascimento; ou, ainda, [se afirma que] a carne co-estende-se infinita e ilimitadamente à Natureza Divina para conter Deus, e diz que a mesma natureza é tanto Deus quanto homem, seja anátema.[73] A doutrina ortodoxa afirmava a união sem confusão das duas naturezas, uma união por encarnação. Nestório afirmava uma união moral, com uma separação rigorosamente desencarnada das duas naturezas, mas uma adoração e portanto deificação tácita da natureza humana. O terceiro anátema de Cirilo e do Concílio declarava: “Se alguém dividir, no único Cristo, depois da união, as hipóstases, coligando-as com a simples conexão da dignidade ou da autoridade ou do poder, e não, antes, pela conjunção segundo a união de natureza, seja anátema”.[74] A posição nestoriana fazia com que Cristo, por natureza, em nada se diferenciasse dos profetas, embora recebesse a adoração do homem e a autoridade de Deus. O terceiro contra-anátema de Nestório declarava: “Sealguém não afirma que Cristo é um por uma conjunção [meramente externa], que é também o Emanuel [no primeiro contra-anátema é dito que o Emanuel é um simples homem], mas que é um por uma natureza que é constituída de cada uma das duas substâncias, isto é, a substância do Deus Verbo e a do homem que ele assumiu; e que não confessa absolutamente a coligação [meramente externo] de um Filho, que mesmo agora preservamos sem qualquer mistura [das duas Naturezas], seja anátema”.[75] Para Nestório, a encarnação era a ofensa principal, e sua hostilidade a ela é marcante. O quarto anátema de Cirilo declarava: “Se alguém repartir entre duas pessoas ou hipóstases as expressões contidas nos escritos evangélicos e apostólicos, ou ditas pelos Santos sobre o Cristo, ou por ele sobre si mesmo, e algumas delas atribui ao homem, considerado distinto do Verbo de Deus, outras, ao contrário, como dignas de Deus, só ao Verbo que é de Deus Pai, seja anátema”.[76] Esse anátema tinha em vista os ataques contra os dois grandes teólogos de Alexandria, Atanásio e Cirilo, e também os ataques contra os concílios desde Niceia a Éfeso, em razão de sua aprovação da doutrina da apropriação econômica. Esta doutrina afirmava as duas naturezas em verdadeira união sem confusão. Proibia a atribuição de certos atos à humanidade de Cristo e outros à sua divindade, pois essas atribuições implicariam assumir uma consciência alternada e uma falsa união. Na verdadeira união, “devemos atribuir economicamente a ele, Deus Verbo, todos os nomes e expressões humanos usados no Novo Testamento acerca desse homem, a fim de evitarmos ser conduzidos, como foram os nestorianos, a adorar uma simples criatura, contrariamente a Mateus 6.10”.[77] Visto que a natureza divina é infinitamente superior e governante no Filho encarnado, devemos economicamente atribuir a ele as atividades e palavras de sua totalidade, pois, embora Deus Filho tenha realmente se encarnado, a determinação de todas as coisas jamais veio da eternidade para o tempo, nem de Deus para o homem. Atanásio levantou esse ponto em sua argumentação contra os arianos. “Pois convinha que a redenção se desse por meio de nenhum outro senão ele que é o Senhor por natureza, para evitar que, embora criados [isto é, como novas criaturas em Cristo] pelo Filho, designássemos outro Senhor, caindo assim na loucura ariana e grega, servindo à criatura, e não ao Deus que criou todas as coisas.”[78] Seria “loucura grega”, humanismo, se a salvação do homem fosse primariamente obra de Cristo, o homem. Pela doutrina da apropriação econômica, a supremacia de Deus, sua soberania e decreto foram afirmados. Atanásio posteriormente disse: Tornou-se Senhor ao revestir-se da carne humana, ao revestir- se de sua totalidade, incluindo as afeições que lhe são próprias; ora, conforme dizemos que o corpo era seu mesmo, assim também dizemos que as afeições do corpo pertenciam a ele somente, embora não lhe influenciasse no que diz respeito à sua Divindade. Se então o corpo fosse de outrem, a este também seriam atribuídas as afeições; mas se a carne é do Verbo (pois o Verbo se fez carne), necessariamente então as afeições são também da carne que foi designada a ele, que é sua própria carne. E a quem as afeições foram atribuídas, por exemplo a condenação, o açoite, a sede, a cruz, a morte e outras moléstia do corpo, a este pertence também o triunfo e a graça. Por esta razão, portanto, consistente e apropriadamente essas afeições não são atribuídas a nenhum outro, mas ao Senhor; que a graça também provém dele, e que podemos tornar-nos não adoradores de outrem, mas verdadeiramente devotos de Deus, porque não invocamos algo originado, nem homem comum, mas o Filho natural e verdadeiro de Deus, que se tornou homem, contudo não é menos Senhor, e Deus, e Salvador.[79] São Cirilo citou essa passagem de Atanásio ao defender seu décimo segundo anátema. De Niceia em diante, tornou-se claro que a adoração à criatura era intolerável à ortodoxia, e desde os primórdios da igreja a adoração a Cristo como homem foi anatematizada. Santo Epifânio (em Ancoratus, seção 50) declarou a genuflexão um ato de culto religioso e portanto uma prerrogativa de Deus; não pode ser oferecido ao homem. “E que eles não acumulem inutilmente blasfêmias para si mesmos. Pois se o Filho é uma criatura, não devemos nos curvar perante ele... Porque curvar-se a uma criatura é loucura e anular o primeiro mandamento.”[80] Epifânio, escrevendo em os Ariomaníacos [Heresia 61, seção 31], acusou os arianos de fazer de Cristo um ídolo, na medida em que, para eles, Cristo era uma simples criatura que eles transformaram num falso deus, um deus criado, quando o único Deus verdadeiro é o Deus triúno e incriado. Até mesmo o Unigênito é tão julgado entre vós, e pensais tão vergonhosamente em relação àquele que vos redimiu, se é que de fato vos redimiu? Mas não sois mais de seu aprisco, pois negastes vosso Salvador e Redentor. Pois se ele não é realmente Deus, então não se deve curvar perante ele: e se ele é uma criatura, logo não é Deus. E se não se deve curvar perante ele, por que então é chamado de Deus? Cessem, pois, de exercer vossa índole babilônica, pois estabelecestes a semelhança e imagem de Nabucodonosor, e soastes esse grande alarido de trombetas para reunirdes guerreiros, e com música e címbalos e instrumentos de cordas fizestes os povos caírem por meio de vossas palavras enganosas, pois levaram- nos a servir uma imagem em vez do Deus e da verdade. E que outro é [Deus] verdadeiro tal como o Filho de Deus o é?[81] Nestório não poderia acusar legitimamente o partido ortodoxo de introduzir uma inovação. Desde o princípio, a adoração à criatura fora combatida, e a união sem confusão [entre as naturezas de Cristo], afirmada. Em sua réplica, contudo, ele insistiu em acusar Cirilo e o Concílio de apolinarianismo e de negarem a encarnação. O quarto contra-anátema de Nestório declarava: Se alguém compreende que essas expressões nos Evangelhos e nas epístolas apostólicas escritas no tocante a Cristo, que possui duas naturezas, dizem respeito a somente à Natureza Una, e tenta atribuir os sofrimentos da carne, bem como os da Divindade, ao próprio Verbo de Deus, seja anátema.[82] O quinto anátema afirmava: “Se alguém ousar dizer que o Cristo é um homem portador de Deus e não, antes, Deus na verdade, como Filho único e por natureza, visto que o Verbo veio a ser carne e, de modo semelhante a nós, participou do sangue e da carne, seja anátema”.[83] O quinto contra-anátema de Nestório dizia: “Se alguém se ventura a dizer que, mesmo após ter assumido a natureza humana, há um Filho de Deus, que o é por natureza, embora seja (visto que assumiu a carne humana) certamente o Emanuel, seja anátema”.[84] As implicações são novamente que as únicas alternativas são a união moral de Nestório ou uma posição monofisista. O sexto anátema declarava: “Se alguém disser que o Verbo <provindo> do Pai é Deus ou Senhor do Cristo, e não antes confessar que ele é Deus e homem ao mesmo tempo, porquanto segundo as Escrituras o Verbo veio a ser carne, seja anátema”.[85] O sexto contra-anátema nestoriano dizia: Se alguém, após a encarnação, chama outro que não Cristo de Verbo, e ventura-se a dizer que a forma de servo é igual ao Verbo de Deus, sem princípio e incriada, em vez de dizer que é criada por ele como seu Senhor e Criador natural e Deus, a qual ele prometeu ressuscitar nestas palavras: “Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”, seja anátema.[86] Nestório nesse ponto entendia que seus oponentes advogavam uma transubstanciação da natureza humana à substância de Deus Verbo. Ademais, entendia que seus adversários afirmavam que a natureza humana veio não da Virgem Maria, mas diretamente de Deus, sendo, pois, uma carne sem princípio e incriada. Para Nestório, não poderia haver primazia de Deus na encarnação sem que houvesse uma destruição do homem; daí ele negou a encarnação a favor da união ou conjunção moral a fim de preservar a primazia para o homem. O sexto e sétimo anátemasde Cirilo condenaram, primeiramente, a opinião nestoriana de que Cristo era simplesmente um homem inspirado, não Deus de Deus, e que Cristo fora simplesmente animado pelo Espírito Santo. Em segundo lugar, Cirilo condenou a transferência da glória de Deus Verbo para Jesus enquanto homem. No sétimo anátema, Cirilo declarou: “Se alguém afirmar que Jesus [apenas] como homem foi [apenas] movido no seu agir pelo Verbo que é de Deus e que a dignidade de unigênito lhe foi atribuído [somente como homem] como a um outro existindo ao lado dele, seja anátema”.[87] O sétimo contra-anátema de Nestório declara: Se alguém diz que o homem que foi formado da Virgem é o Unigênito, que nasceu do seio do Pai antes da estrela d’alva (Salmo 110.3),[88] e antes não confessa que ele obteve a designação de Unigênito por conta de sua associação com ele que é, por natureza, o Unigênito do Pai; e, além disso, se alguém chama qualquer outro que não o Emanuel de Cristo, seja anátema.[89] A acusação aqui manifesta é contra a transubstanciação da humanidade de Cristo na divindade. Nestório interpretava a doutrina da apropriação econômica como se fosse transubstanciação. Ele tinha implicitamente uma diferente doutrina de apropriação econômica. Para ele, em primeiro lugar, Deus não poderia encarnar-se. Em segundo lugar, todos os atributos que se manifestavam no cenário temporal e na história tinham de ser economicamente apropriados pelo homem, já que este é o agente primário no tempo e na história. Em terceiro lugar, segue-se que tudo concernente a Deus que se manifesta no cenário humano, no tempo e na história, deve ser apropriado pelo homem, porque, por definição, não pode ser Deus encarnado, ou Deus essencialmente, mas sim Deus em união moral com o homem enquanto agente primordial. O oitavo anátema de Cirilo e do concílio declaravam: Se alguém ousar dizer que o homem assumido <pelo Verbo> deve ser co-adorado com Deus, o Verbo, con-glorificado e con- denominado Deus, como de um com o outro (de fato, o “com” que sempre se acrescenta [por parte dos nestorianos] faz pensar nisso) e não honra com uma única adoração o Emanuel, atribuindo-lhe um único e mesmo louvor, visto que o Verbo veio a ser carne, seja anátema.[90] Ao adorar o Filho, adoramos, portanto, não sua humanidade, mas somente sua divindade. Quando somos proibidos de adorar a humanidade do Deus encarnado, segue-se necessariamente que toda adoração e genuflexão cultual à criatura são absolutamente proibidas. Consequentemente o concílio opunha-se nitidamente à veneração de Maria e dos santos e percebeu que havia erigido uma barreira teológica a toda adoração da criatura. O oitavo contra-anátema de Nestório declarava: Se alguém diz que a forma de servo deveria, por si própria, isto é, no tocante à sua própria natureza, ser reverenciada, e que é o governante de todas as coisas, e não que deva ser reverenciada [somente] em razão de sua ligação com o santo e com a natureza em si universalmente governante do Unigênito, seja anátema.[91] Nesse ponto, Nestório supostamente renuncia a adoração da criatura ao declarar que aqueles que dizem que Cristo é o governante de todas as coisas e que deve ser adorado estão equivocados; para Nestório, Cristo deve ser adorado ou reverenciado, embora sendo homem, por conta de sua “ligação” com Deus! Portanto, para Nestório, Cristo não pode ser adorado como Deus, mas pode ser adorado como um homem ligado a Deus! Conforme São Cirilo observou em uma de suas obras: “Somente Deus é livre e absoluto. Pois, por assim dizer, ele exige tributos de todos, e, por força de expressão, também recebe adoração de todos. E se Cristo é o fim da Lei e dos Profetas [Romanos 10.4], mas é [somente] um Homem inspirado, não podemos dizer que o fim das predições proféticas trouxe a nós o crime de adorar um homem?”.[92] Este mesmo tópico foi abordado pelo quinto concílio ecumênico[93] (em 553), em seu nono anátema, que declarava: “Se alguém diz que Cristo é adorado em duas naturezas, introduzindo com isto duas adorações, uma própria do Deus Verbo e outra própria do homem; ou se alguém fala fantasiosamente sobre a supressão da carne ou a confusão da divindade e da humanidade, ou de uma só natureza ou substância dos elementos unidos, e assim adora o Cristo, mas sem venerar com única adoração o Deus Verbo encarnado junto com a sua carne, como a Igreja de Deus recebeu <por tradição> desde o início, seja anátema”.[94] O nono anátema do Concílio de Éfeso, por sua vez, declarava: Se alguém disser que o único Senhor, Jesus Cristo, foi glorificado pelo Espírito no sentido de ter usado a força que dele <recebera> como <uma força> alheia, e que dele recebeu a capacidade de operar contra os espíritos imundos e de realizar para os homens os sinais divinos, em vez de dizer que lhe é próprio o Espírito pelo qual operou os sinais divinos, seja anátema.[95] O nono contra-anátema de Nestório dizia: Se alguém diz que a forma de um servo é de semelhante natureza ao do Espírito Santo, e não que deve antes sua união com o Verbo que existia desde a concepção, por cuja mediação opera curas milagrosas entre os homens, e possui o poder de expulsar demônios; seja anátema.[96] Chrystal resumiu habilmente as três visões concernentes à adoração da humanidade de Cristo. Para os nestorianos, “ambas as naturezas em Cristo devem ser adoradas, sua divindade absolutamente, sua humanidade apenas relativamente. Cada Natureza é separada, e contudo a adoração a ambas deve ser unida”. Os monofisitas passaram a afirmar que “há uma única Natureza em Cristo desde a União, isto é, a Divina, e esta apenas deve ser adorada. Mas o ortodoxo responde que, de fato, a natureza humana de Cristo realmente permanece e, portanto, ao adorar Cristo em sua totalidade como Deus absolutamente, os proponentes de uma só Natureza eram na verdade adoradores da criatura”. O ortodoxo sustentava que “apenas uma das duas Naturezas de Cristo deveria ser adorada, isto é, a Divindade, e esta absolutamente. E um antigo escritor assim coloca: ‘Há duas Naturezas em Cristo — uma Divina e perante a qual deve-se curvar, e uma humana, perante a qual não se deve curvar’”.[97] A questão concernente ao Espírito Santo estava também envolvida. Cristo havia declarado em João 16.14-15 que “tudo quanto o Pai tem é meu”. O Espírito Santo, portanto, procedia tanto do Pai quanto do Filho. Para Nestório, consequentemente, em vez de ser o Deus encarnado que operava milagres pelo seu próprio Espírito, Jesus era um homem que operava milagres por meio de sua autoridade moral sobre o Espírito. Cirilo condenou a opinião de que um Cristo meramente humano operava milagres e reservou esse poder ao Filho de Deus encarnado intermediado pelo seu próprio Espírito. No décimo anátema, Cirilo e o concílio lidaram com a obra de Cristo como mediador e salvador: A divina Escritura diz que o Cristo se fez apóstolo e sumo sacerdote da fé que nós professamos [cf. Hb 3,1] e se ofereceu por nós em odor de suavidade a Deus Pai [cf. Ef 5,2]. Por isso, se alguém disser que quem se fez nosso sumo sacerdote e apóstolo, quando se fez carne e homem como nós, não é o próprio Verbo que é de Deus, mas como se fosse outro, distinto dele, especificamente um homem <nascido> de mulher; ou se alguém disser que ofereceu o sacrifício também para si e não somente por nós (pois quem não conhece o pecado não tem necessidade de sacrifício), seja anátema.[98] O decimo contra-anátema de Nestório dizia: Se alguém sustenta que a Palavra, que é desde o princípio, tornou-se o sumo sacerdote e apóstolo de nossa confissão, e ofereceu-se por nós, e não diz antes que é obra do Emanuel ser um apóstolo; e se alguém, de igual modo, divide o sacrifício entre aquele que uniu [o Verbo] e aquele que foi unido [a humanidade] referindo-se a uma filiação comum, isto é, não dando a Deus aquilo que é de Deus e ao homem aquilo que é do homem; seja anátema.[99] Deus Verbo é nosso mediador, não um simples homem. Abrir as portas ao homem, como Nestório fez, era permitir também qualquer criatura,santos, anjos ou mártires a tornarem-se mediadores, e Santo Cirilo enfatizava isso em seu Contra as contradições e blasfêmias de Nestório (livro 3, seções 1-3). Nestório fazia da mediação uma obra do homem. A salvação tornara-se pois obra humana, e não da graça divina. A doutrina ortodoxa da apropriação econômica reserva a Deus a supremacia, primazia, autoridade e atividade em todas as coisas. A doutrina nestoriana da apropriação econômica, por sua vez, reserva-as todas ao homem, e, para piorar a situação, afirmava fazê-lo em defesa da glória de Deus. Nas confissões da Reforma, a doutrina ortodoxa da mediação, até então longamente subvertida, foi restaurada e enfatizada. O décimo primeiro anátema de Cirilo e o concílio declarava: Se alguém não confessar que a carne do Senhor é vivificante e própria do Verbo mesmo que provém do Pai, mas como que de um outro, distinto dele, coligado a ele pela dignidade ou só por ter recebido a divina habitação, e não, antes, que ela é vivificante, como dissemos, por ter sido própria do Verbo que pode vivificar todas as coisas, seja anátema.[100] Por sua vez, o décimo primeiro contra-anátema dizia: “Se alguém afirma que a carne que está unida a Deus Verbo o está pelo poder de sua própria natureza vivificante, embora o próprio Senhor diga: ‘O Espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita’ (São João 6.63), seja anátema”.[101] A referência nesse excerto é ao sacramento da comunhão. Santo Cirilo deixara claro, em seus ensinamentos, que sua posição não era a consubstanciação nem a transubstanciação, conforme veio a acreditar-se depois. Ademais, nos elementos, não é a substância da divindade de Cristo que é recebida, nem se come e se bebe do corpo e sangue reais de Cristo. Impediu-se assim também a idolatria da adoração da divindade ou humanidade de Cristo nos elementos. O anátema condenava aqueles que sustentavam que os simples carne e sangue humanos podem vivificar espiritualmente alguém, quando é a Palavra que nos vivifica na Eucaristia por meio de seu Espírito vivificante. Receber os simples carne e sangue (ensinava Cirilo) não vivifica ninguém espiritualmente, e comer da carne e beber do sangue é canibalismo e impiedade.[102] Os nestorianos defendiam uma presença real da carne e sangue humanos de Cristo, embora o negassem. Cirilo, contudo, não aceitou essa negação como válida.[103] O décimo segundo anátema de Cirilo e do concílio declarava: Se alguém não confessar que o Verbo de Deus sofreu na carne, foi crucificado na carne, sofreu a morte na carne e se tornou o primogênito dentre os mortos, visto que, como Deus, é vida e é vivificante, seja anátema.[104] O décimo segundo contra-anátema de Nestório, como de hábito declarava seu humanismo em nome da preservação da dignidade de Deus: Se alguém, confessando os sofrimentos da carne, atribui este também ao Verbo de Deus como o faz à carne em que se manifestou, e assim não distingue a dignidade das naturezas; seja anátema.[105] Nesse ponto novamente é a realidade da encarnação e a doutrina da apropriação econômica que está em risco. O contra-anátema de Nestório tem como alvo essas doutrinas. Não somente essa doutrina fora afirmada pelo terceiro concílio, mas também o quarto concílio ecumênico sancionou o termo apropriação econômica ao aprovar a “Epístola a João de Antioquia”, escrita por Santo Cirilo, que dizia em certa passagem: E, além disso, confessamos todos que a Palavra de Deus não é sujeita ao sofrimento, ainda que se veja ele próprio, ao gerir com toda a sabedoria o mistério (da redenção), atribuir a si mesmo os sofrimentos que sucederam à sua própria carne. E por esta mesmíssima razão o muito sábio Pedro disse que Cristo sofreu na carne [1 Pedro 4.1], e não na Natureza de sua inefável Divindade. Pois a fim de que se possa crer nele como o Salvador de todos, ele remete os sofrimentos de sua própria carne a si mesmo por meio da apropriação econômica. Eis algo que implica que a doutrina é aquilo que fora predito por meio de uma sentença profética, como vinda dele próprio: “Ofereci as costas aos que me feriam e a face, aos que me arrancavam os cabelos; não escondi o rosto aos que me afrontavam e me cuspiam” [Isaías 50.6].[106] Assim, embora a divindade em si mesma não sofra, por meio da apropriação econômica, o sofrimento é atribuído a ela. Teódoto, bispo de Ancira, relatando a resposta de Nestório às convocações finais, disse: “Eu com efeito me condoo por meu amigo. No entanto, honro a piedade antes que qualquer amizade”.[107] O concílio não foi marcado por hostilidade pessoal a Nestório; antes, foi marcado por uma preocupação pela fé ortodoxa, e Nestório, em razão de sua arrogante rejeição a ela, trouxe para si sua condenação, “a saber, que nosso Senhor Jesus Cristo, que havia sido blasfemado, decreta pelo Santo Sínodo que Nestório seja excluído da dignidade episcopal e de toda comunhão sacerdotal”.[108] O concílio havia sido paciente com o homem, embora hostil à heresia. Apesar de o imperador ter favorecido a Nestório, este por fim foi excluído de seu ofício. Quando o Concílio de Éfeso foi convocado, Santo Agostinho, bispo de Hipona, deveria tê-lo presidido, mas morreu em fins do ano 430. O concílio, entretanto, realizou algo muito importante para Agostinho: condenou-se o pelagianismo, ou, nas palavras do relatório do sínodo, “pelagianos e celestianos” — sendo estes últimos uma referência a Celéstio, um seguidor de Pelágio — foram condenados. Pelágio, um monge nascido na Britânia, fez da salvação uma questão de obras morais do homem, não da graça de Deus. O comentário de Percival é bastante apropriado: “A única ‘graça’ cuja existência ele admitiria era aquilo que podemos chamar de graça externa (e.g. o exemplo de Cristo, o ensino de seus ministros e afins)”.[109] Isto era humanismo declarado. Pelágio e Celéstio tinha encontrado refúgio em Nestório, fundindo assim suas heresias. Anteriormente, o bispo de Roma não havia visto nenhuma heresia em Nestório, porém a obra de teólogos ortodoxos, encabeçados por Cirilo, Agostinho e outros, alertaram firmemente a igreja a essas heresias. O cânone 4 do Concílio de Éfeso afirmava: “Se qualquer um dos clérigos dispersar-se e pública ou privadamente presumir que possam adotar as doutrinas de Nestório ou Celéstio, o Santo Sínodo declara que eles também devem ser depostos”.[110] O pelagianismo já havia sido condenado no Ocidente, de modo que Éfeso, por conseguinte, não entrou nos detalhes da questão como o fez em relação ao nestorianismo. Além disso, tendo Nestório sido condenado, as heresias que ele abrigara consigo também foram derrubadas. Os duzentos bispos que se reuniram em Éfeso fizeram um importante trabalho. O concílio foi duramente contestado, e subsequentemente sua história foi a de uma autoridade contestada. Os scholars modernos têm sido frequentemente defensores de Nestório. O Concílio de Calcedônia, no entanto, confirmou o de Éfeso, e o falso concílio de Éfeso de 449, o Concílio dos Salteadores, foi condenado. No Concílio dos Salteadores, vários bispos foram impedidos de falar no encontro dominado pelo patrono de Êutiques, Dióscoro de Alexandria, que induziu o imperador Teodósio II a convocar a reunião. Dióscoro era supostamente um seguidor de Cirilo, quando na verdade era um monofisita e líder deste partido. Os monofisitas enfatizavam a natureza divina; negavam que havia duas naturezas após a encarnação, e mesmo o corpo de Cristo era divino. Os atributos humanos foram todos transferidos ao “Logos humanizado”. Nas palavras de Schaff, Êutiques “afirmava, por um lado, a capacidade de sofrimento e morte na personalidade-Logos, e, por outro, a deificação do humano em Cristo”.[111] Tratava-se de humanismo em nome do anti-humanismo. A humanidade fora absorvida na Trindade em nome da religião teocêntrica! Em lugar da apropriação econômica, os monofisitas afirmavam a real absorção da humanidade à divindade. Dióscoro presidia e governava com a ajuda de monges violentos e soldados armados. A posição da ortodoxia fora mantida coma adoção dos Doze Anátemas de Cirilo, embora, na realidade, outra doutrina tenha sido afirmada. A fé na dupla natureza de Cristo (diofisismo) fora condenada, assim como Flaviano, seu defensor. O procônsul Próclo, com soldados armados e cadeias, adentrou no recinto para coagir os bispos a assinarem a condenação. Após intensa violência, noventa e seis deles assinaram, estando muitos severamente feridos. Flaviano, bispo de Constantinopla, morreu três dias depois pelas sevícias que lhe foram infligidas. É dito que os monges o chutaram selvagemente, e que Dióscoro pulou em cima de Flaviano quando este jazia no chão. O Concílio dos Salteadores obteve uma vitória selvagem e impressionante de curto prazo, mas condenou a si próprio por sua vergonhosa conduta. As vitórias do verdadeiro Concílio de Éfeso foram penosamente obtidas na arena da fé, do pensamento teológico consistente. As vitórias do falso concílio basearam-se na violência e tiveram vida curta. Passados dois anos, o Concílio de Calcedônia os denunciou, mas, antes disso, a opinião de todos os verdadeiros cristãos havia condenado o Concílio dos Salteadores. [112] O Concílio ecumênico de Éfeso realizou uma tarefa muito importante porém difícil. Afirmou a realidade da encarnação e a primazia de Deus Filho nessa encarnação. Esse ponto sutil era crucial. Os humanistas viam claramente como o cristianismo poderia ser convertido em humanismo. Em primeiro lugar, a realidade da encarnação poderia ser negada, como Nestório a negava. Em segundo lugar, a encarnação poderia ser afirmada, mas poder- se-ia dar prioridade à humanidade de Jesus Cristo em detrimento de sua divindade. Se, na encarnação, a humanidade recebesse ascendência e controle sobre a divindade, então a humanidade seria introduzida a uma posição de poder e determinação eternos sobre Deus. O tempo governaria então a eternidade, e o homem governaria sobre Deus. Embora afirmasse nominalmente uma doutrina central da fé, essa doutrina da afirmação da encarnação seria na verdade uma afirmação do humanismo, do homem. Por pressão contra a fé nesse ponto, os humanistas supostamente afirmariam a realidade da encarnação contra o tratamento equivocado que os ortodoxos davam a esse tema. A defesa da fé lidava obviamente com um ponto extremamente sutil, que, embora crucial, pareceria aos simples e iletrados meramente minúcias teológicas. Até hoje, a doutrina da apropriação econômica permanece uma vitória quase esquecida. Continua sendo, no entanto, uma vitória necessária. Em contraposição às renovadas investidas do humanismo, não pode haver defesa segura da fé à parte da armadura das Escrituras e seus defensores no Concílio de Éfeso. 7. O CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA: FUNDAMENTO DA LIBERDADE OCIDENTAL Por razões várias, e especialmente por causa do Concílio de Calcedônia, o ano de 451 é uma das datas mais importantes de toda a história. Tão importante quanto a Batalha de Avarair foi em destruir o avanço rumo ao oeste do pensamento dualista e do imperialismo, o concílio de Calcedônia, de modo ainda mais fulcral, estabeleceu o fundamento cristão da cultural ocidental e possibilitou o desenvolvimento da liberdade. Calcedônia desferiu a maior derrota ao estatismo na história humana. O problema se centrava na definição das duas naturezas de Cristo e a união de ambas. Por trás do problema, espreitava a ressurgência da filosofia helenista num disfarce cristão, assim como as reivindicações do Estado de ser a ordem divina na terra, a encarnação da divindade na história. A fé helênica afirmava um conceito do ser radicalmente diferente daquele da fé bíblica. A distinção cristã entre o ser incriado de Deus e o ser criado do homem e do universo instalava um abismo infinito entre os dois, um abismo intransponível pela natureza, mas transponível somente pela graça — pela graça para a salvação e pela graça que possibilitava uma união ou comunidade de vida, não de substância. Para os gregos, assim como para as religiões não cristãs em geral, todo o ser é um ser único indiviso; as diferenças no ser são de grau, não de espécie. Nessa grande cadeia do ser, é uma questão de lugar na escala ou escada do ser, ao passo que, para a fé cristã, a diferença é entre o ser divino e incriado e o ser mortal e criado. No que diz respeito à perspectiva grega, a salvação não é um ato de graça, mas sim de autodivinização. Além disso, o Estado torna-se a instituição central na história, porque, sendo o ponto mais alto do poder na história, manifesta a divindade nascente ou encarnada do ser, seja no corpo político, os governantes, ou em seus ofícios. De várias formas, essa fé era a subestrutura de todo estatismo pagão. Desse modo, a questão mesma definia- se entre Cristo e César. No princípio da era cristã, o mundo foi confrontado com duas epifanias, um em Belém e outra em Roma. Como Ethelbert Stauffer, em Christ and the Caesars [Cristo e os Césares], assinala, Augusto via a si mesmo como “o salvador do mundo que estava por vir”. Quando, no ano 17 a.C., “uma estranha estrela brilhou nos céus, ele percebeu que a hora cósmica havia chegado, e inaugurou uma celebração do Advento que se estendia por doze dias, uma proclamação aberta da mensagem de júbilo do poeta Virgílio: ‘O ponto de viragem das eras chegou’”. A ordem política incorporava e manifestava a divindade inerente ao ser, e a salvação dava-se, portanto, na e por meio deste ápice do poder, César. “A salvação está em nenhum outro senão Augusto, e não há outro nome dado aos homens pelo qual importa que sejam salvos.”[113] O conflito entre Cristo e César era, portanto, inescapável. Roma estava inteiramente disposta a reconhecer a igreja e conceder-lhe sua aprovação enquanto religião legítima, contanto que a igreja admitisse a jurisdição superior do Estado e da ordem política como a manifestação genuína e primária do divino. Como observou Francis Legge, “na época de perseguição, os oficiais do Império Romano tentaram forçar os cristãos a sacrificar não para quaisquer deuses pagãos, mas para o Gênio do Imperador e para a Fortuna da Cidade de Roma; e por todas as vezes a recusa cristã era considera não como ofensa religiosa, mas política”.[114] Quando o império se tornou cristão, a teologia estatista romana reafirmou-se de diversas formas. De fato, Cristo era, de alguma forma divino, contudo, o império, mais do que a igreja, era tido como a voz de Deus. O reconhecimento da igreja pelo império foi imediatamente sucedido pela perseguição da ortodoxia, conforme vemos em Atanásio, que sustentava a divindade e supremacia de Cristo. O problema era: quem é o salvador do homem — Deus ou homem, Cristo ou o Estado — e como a divindade se encarnou? O Concílio de Calcedônia se reuniu em 451 para lidar com a questão quando esta se focou num ponto crítico — a cristologia. Se as duas naturezas de Cristo se confundiam, isto significava que estava aberta a porta para a divinização da natureza humana; o homem e o Estado eram, portanto, potencialmente divinos. Se a natureza humana de Cristo fosse reduzida ou negada, seu papel como o salvador encarnado do homem seria reduzido ou negado, e o Estado tornava-se novamente o salvador da raça humana. Se a divindade de Cristo fosse reduzida, então seu poder salvador tornava-se nulo. Se sua humanidade e divindade não estivessem realmente unidas, a encarnação não teria sido real, e a distância entre Deus e o homem permanecia tão imensa quanto antes. Este era o problema. A pessoa que emergiu nesta crise foi São Leão, ou Leão, o Grande, cuja célebre carta, “O Tomo”, defendendo a fé ortodoxia, conquistou a vitória. A São Leão, um papa cujas habilidades teológicas foram criativas e conduziram a igreja, também não faltava as competências administrativas que a função normalmente demanda. Ademais, como Trevor Jalland assinalou, “Leão não era um caçador de heresias”.[115] Sua preocupação era pastoral: a defesa do rebanho de Cristo contra o mal, e o mal, neste caso, era teológico. De modo significativo, o “Tomo” começava com uma severa reprimenda ao grandemente admiradoEutiques, um arquimandrita ancião de um monastério muito popular, devido à sua presunção de ser um líder numa área onde era um noviço: “o que é mais iníquo do que sustentar opiniões blasfemas, e não dar lugar àqueles que são mais sábios e mais doutos?”. São Leão insistia na integridade da encarnação, verdadeiro homem de verdadeiro homem, e verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, duas naturezas em união sem confusão. Além disso, o que Cristo assumiu em sua encarnação foi a humanidade, a natureza — não aquela pecaminosa do homem caído, mas a natureza reta. “O que se assumiu da mãe do Senhor foi a natureza, não a falta; nem o milagre do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto nascido do ventre da virgem, implica que sua natureza é diferente da nossa. Pois aquele mesmo que é verdadeiro Deus é também verdadeiro homem.” A resposta do concílio à carta é bastante conhecida. Levantou-se o clamor com fortes aplausos: “Essa é a fé dos pais! Essa é a fé dos apóstolos! Assim todos cremos! Assim os ortodoxos creem! Anátema àquele que crê de outro modo! Por meio de Leão, Pedro falou. E assim também ensinou Cirilo. Essa é a verdadeira fé”. A Definição ou Fórmula de Calcedônia resumiu a doutrina ortodoxa de Cristo: Seguindo, pois, os santos Padres, com unanimidade ensinamos que se confesse que um só e o mesmo Filho, o Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade, semelhante em tudo a nós, menos no pecado [cf. Hb 4,15], gerado do Pai antes dos séculos segundo a divindade e, nestes últimos dias, em prol de nós e de nossa salvação, de Maria, a virgem, a Deípara, segundo a humanidade; um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, reconhecido em duas naturezas, sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação, não sendo de modo algum anulada a diferença das naturezas por causa da sua união, mas, pelo contrário, salvaguardada a propriedade de cada uma das naturezas e concorrendo numa só pessoa e numa só hipóstase; não dividido ou separado em duas pessoas, mas um único e o mesmo Filho, unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo, como anteriormente nos ensinaram a respeito dele os Profetas, e também o mesmo Jesus Cristo, e como nos transmitiu o Símbolo dos Padres. [116] Essa definição do quarto concílio universal ou ecumênico permaneceu como a pedra de toque da ortodoxia. Sua influência sobre a teologia foi decisiva. Por exemplo, é impossível compreender João Calvino à parte de sua fidelidade ao concílio de Calcedônia. Porém, a influência de Calcedônia na filosofia e na política não foi menor. A cultura ocidental é, em grande medida, um produto desse concílio, e as crises recorrentes tanto na igreja quanto no Estado refletem seus respectivos afastamentos ou insurreições contra Calcedônia. Primeiro de tudo, Calcedônia separou a fé cristã nitidamente dos conceitos grego e pagão de natureza e ser. Deixou claro que não se poderia associar o cristianismo com todas as demais religiões e filosofias. O natural não ascende rumo ao divino ou ao sobrenatural. A única ponte entre ambos (o natural e o divino) é a revelação e a encarnação de Jesus Cristo. Portanto, a salvação não se dá por parte do homem, nem por meio das políticas humanas, nem por qualquer outro esforço do homem. Em segundo lugar, ao negar a confusão do humano e do divino, Calcedônia estabeleceu um padrão contra a corrente pagã do misticismo que buscava justamente a união das substâncias divina e humana em um só ser. Tal misticismo implicitamente tornava irrelevante a obra de Cristo, e de fato sua própria pessoa, na medida em que cada homem se tornou potencialmente seu próprio Cristo por meio da absorção na Divindade. A igreja também, é claro, se tornou irrelevante por esse misticismo. Mais ainda, Calcedônia impediu que as instituições humanas se professassem como as encarnações da deidade e como capazes de unir os dois mundos em sua existência. O Estado foi reduzido à ordem humana, subordinado a Deus, negando sua antiga reivindicação de divindade para corpo político, para o governante, ou para os ofícios. Calcedônia, portanto, interpôs uma barricada dupla contra as pretensões místicas do homem. Por meio da afirmação da encarnação singular de Cristo, sem confusão ou mudanças das duas naturezas, primeiramente, o misticismo pessoal foi barrado; e, em segundo lugar, o misticismo coletivo também foi impedido. Nem o indivíduo nem o Estado poderiam, por meio de suas obras, experiências, crescimento ascendente ou evolução, unir-se e ser absorvido na Divindade. A singularidade da encarnação foi uma prevenção, e a insistência de que não havia mudança das duas naturezas, nem confusão delas na encarnação, significou que nenhuma igreja ou Estado poderiam reivindicar legitimamente que, tal como a humanidade de Cristo, também adentraram na sua divindade. Se a definição de Calcedônia não tivesse feito o teste da ortodoxia, então o humanismo poderia ter utilizado legitimamente a encarnação, com sanção teológica, para conduzir o povo de Cristo, seja como igreja, Estado, escola ou indivíduos, para uma alteração de naturezas: da humanidade para a divindade. Ser um cristão, em sentido pleno, significaria, desse modo, a divinização; a participação no sacramento da comunhão significaria a participação mais do que na nova humanidade de Jesus Cristo, juntamente com a benção do acesso, por meio dele, a Deus Pai. Antes, o sacramento tornar-se-ia a participação na divindade de Cristo. O homem cearia Deus para tornar-se Deus. O humanismo e o paganismo triunfariam sobre o cristianismo bíblico. Enquanto prevaleceu a antiga perspectiva pagã, o Estado poderia ser a ordem divino-humana. A divindade, portanto, tornar-se-ia tão imensamente imanente ou encarnada no Estado, que não haveria apelo para além deste. O Estado era, ao menos naquele momento, a ordem suprema. Neste esquema de coisas, o homem era simplesmente um animal político, um animal social: definível com base no grupo, o corpo político. Para o homem, não havia transcendência real nem qualquer fundamento para apelo contra o Estado. Nestas condições, a liberdade era inexistente. Existia a permissão, por parte do Estado, para que os homens exercessem certas de atividades, mas não uma liberdade à parte e além do Estado, fundamentada na criação do homem por Deus. O Estado, evidentemente, recusou-se a aceitar com compostura o golpe disferido por Calcedônia. As reivindicações de divindade assumiram formas mais sutis e supostamente mais cristãs. Gerhart B. Ladner descreveu um desses projetos mais notórios. De acordo com Ladner, a premissa da iconoclastia era a afirmação de que o Império Oriental fosse a verdadeira encarnação da divindade, o Reino de Deus visível e manifesto nesta terra. “Não somente porque as imagens tinham tamanha importância na Igreja Bizantina, teológica e liturgicamente, de modo que um ataque contra elas era ipso facto um ataque contra a Igreja, mas também, e ainda mais, porque, conforme veremos, os imperadores demonstraram inequivocamente que, ainda que sustentassem a crença no governo supremo e sobrenatural de Cristo, eles não permitiriam, nesta terra, outra imagem, ou mais exatamente imaginário, senão aquele de seu próprio mundo imperial natural.” Leão III escreveu ao Papa Gregório II: “Eu sou Rei e Sacerdote”. O Império Oriental era geralmente conveniente “às heresias que atacavam a unidade perfeita ou à totalidade das naturezas divina e humana em Cristo (arianismo, nestorianismo, monofisismo, monotelismo); pois a dissolução dessa unidade ou diminuição da totalidade de cada natureza, ao reduzir a extensão do governo de Cristo no mundo humano, ampliou a extensão da governança do imperador”. Ao solapar a encarnação e ao promover a confusão entre as duas naturezas, essas heresias, assim como seus proponentes imperiais, tornou-se novamente possível a ressurgência da “visão de que o Estado é a mais elevadaforma visível de vida na terra”.[117] O Império Ocidental também enfrentou uma dificuldade semelhante. De fato, o vicarius Dei era um título reivindicado por vários imperadores ocidentais. Otão III considerava-se como o sucessor de São Paulo, e assinava suas cartas com a fórmula paulina, chamando a si mesmo de servu Jesu Christi. E, como Eugen Rosenstock-Huessy assinalou, Otão acreditava que “fora confiada a ela a Pomba da Inspiração”, o Espírito Santo. Tempos depois, o próprio imperador Maximiliano (1493-1518) planejou em 1512 tornar-se papa.[118] Mas esses esforços não se restringem ao período dos impérios, antes, é endêmico à história ocidental, com impérios e Estados guerreando contra a liberdade de Calcedônia, e o Estado buscando tornar-se a ordem salvífica. Nos Irmãos Karamazov, o stáret declarou: “Não a Igreja tornando-se Estado, mas o Estado tornando-se a Igreja, note bem”.[119] No Antigo Testamento, sacerdote e rei eram dois ofícios distintos em Israel. A tentativa do rei Uzias de exercer o ofício sacerdotal trouxe sobre si o juízo divino na forma da lepra (2 Crônicas 26). Os dois ofícios não deveriam formar uma união imanente, mas somente transcendente. Visto que a igreja e o Estado foram ordenados por Deus como os ministros da graça e da justiça, e porque a graça e a justiça se assentam ambas sobre a retidão, santidade e misericórdia de Deus, o quadro de referência deles é o sobrenatural. Eles são unidos somente em Cristo, que declarou a Pilatos que seu “reino não é deste mundo” (João 18.36), isto é, não proveniente deste mundo, mas sim um reino eterno e divino, proveniente do Deus triúno. Em vez de um reino eterno, o Estado pagão busca um reino puramente histórico, ou seja, um reino que provém inteiramente da história, manifestando nesta apenas a divindade inerente. Retomemos a Definição de Calcedônia. Cornelius Van Til, em The Defense of the Faith [A defesa da fé], descreveu o propósito da fórmula: tornar conhecimento o sentido da encarnação, e preservar a integridade da união. “Cristo veio para trazer o homem de volta a Deus. Para isto, ele era e tinha de ser verdadeiramente Deus.” “Ele era a segunda Pessoa da Trindade ontológica, que, no que diz respeito à sua essência, é plenamente igual ao Pai, de modo que existia desde toda a eternidade com o Pai, que, na encarnação, assumiu a natureza humana.” Na encarnação, Jesus Cristo era verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. O Credo de Calcedônia expressou tudo isso ao dizer que em Cristo as naturezas divina e humana relacionam-se de modo a serem “duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”. Os dois primeiros atributos salvaguardam contra a ideia de que o divino e o humano são, de algum modo, mescláveis; os dois últimos asseveram a plena realidade da união.[120] Esse ponto é de extrema importância. Não apenas declarou-se a realidade das duas naturezas “sem confusão, sem mudança”, mas a realidade de sua união, “sem divisão, sem separação” foi igualmente asseverada. A tentativa da teologia estatista de divinizar a natureza foi declarada como anátema, mas de semelhante modo sua tentativa de diminuir a realidade da encarnação. Na proporção mesma em que a realidade da encarnação era diminuída, o Estado novamente reforçava sua reivindicação ao senhorio total sobre o homem e a sociedade enquanto salvador e redentor de ambos. O pensamento monofisista, ao diminuir ou destruir a realidade da humanidade de Cristo, fazia com que ela se tornasse um elemento irreal, e a encarnação fosse um fato vago e nebuloso. Jesus Cristo, como verdadeiro homem de verdadeiro homem, era o novo e último Adão (1 Coríntios 15.45), e sua igreja é, portanto, a nova e redimida humanidade. A membresia no corpo de Cristo, como visível nos elementos da comunhão — seu corpo e sangue —, é a membresia na nova humanidade, a humanidade redimida, os herdeiros da criação que foram predestinados em Cristo. Os cristãos são, portanto, uma nova raça, por vezes chamada de “a terceira raça”, isto é, uma superação das antigas divisões de judeus e gentios, gregos e bárbaros, romanos e não romanos. Essa nota ressoa ao longo das liturgias de São João Crisóstomo e Basílio, o Grande: “Bendita e venerável és Tu, ó Mãe de Deus, em cujo seio se encarnou aquele que visitou o inferno, libertando Adão e Eva da maldição, destruindo a morte e dando a vida a todos nós. Por isso bendirei o Cristo em qualquer tempo, e sempre o seu louvor estará em minha boca”. As liturgias falam “da raça dos cristãos”. Numa ante-festa [preortia] da natividade de Cristo, lemos: “Hoje a virgem vem à gruta para dar à luz, de modo inefável, ao Verbo que existiu antes dos séculos. Rejubila-te, ó terra, ao ouvir esta boa nova, e glorifica com os anjos e os pastores, aquele que quis se fazer criança. Ele, o Deus anterior aos séculos”. “Rejubila-te, ó terra.”[121] As pessoas que convocavam o universo à dança em alegria pela encarnação, as quais sabiam que eram a nova humanidade de Deus, unida a Cristo e a seu sacramento numa nova comunidade de vida com sua divindade, não estavam dispostas a dobrar seus joelhos a César como se este fosse o Cristo. Pelo contrário, eles desejavam um Estado cristão — uma igreja e Estado igualmente sob Cristo, o Rei. O monifisismo supostamente exaltava Cristo diminuindo sua humanidade, mas isto simplesmente ameaçava ou destruía a realidade da encarnação. Reduziu o reino da igreja ao âmbito espiritual, que ficou esparsamente relacionado com o mundo, e novamente entregou o mundo material a César. O nestorianismo transformou Cristo num homem divinizado em vez do Deus encarnado, e desse modo simplesmente fortaleceu a teologia estatista. Qualquer cristologia subordinacionista, que dava a Deus Filho um status menor na Trindade, de igual modo minorizava a igreja enquanto corpo de Cristo. A teologia estatista assentava-se sobre o predomínio da natureza como a voz e manifestação de Deus — e o ápice do poder da natureza na história é o Estado. A teologia estatista, pois, estava pronta a acomodar a graça ao conceder a ela um papel subordinado, valendo-se dela para reforçar a natureza. Assim criou a dialética natureza-graça, que era a retomada da dialética grega da forma-matéria e, portanto, anticristã. Em tal teologia, Cristo é simplesmente um apoio para o Estado em vez de Senhor sobre a igreja e o Estado. George Huntston Williams assinala que “Cristo como rex et sacerdos é divinamente Rei e apenas humanamente um Sacerdote”.[122] O resultado foi uma teologia política subordinando a igreja ao Estado. Porém uma verdadeira cristologia não é dialética, mas trinitariana. Ela se assenta não sobre a dialética da natureza versus graça, mas na crise moral, pecado versus graça. A natureza caída necessita de redenção. Cristo entra no mundo para estabelecer uma nova humanidade na qual ele cria, por meio de seu poder regenerador e santificador, uma nova natureza, unida em comunhão consigo. Deus não está em guerra contra a natureza; o conflito não é contra ela, mas sim contra o pecado. Na humanidade redimida, Cristo governa sobre todas as coisas, incluindo o Estado e a igreja. A dialética moderna é a natureza versus liberdade, um desenvolvimento ulterior da fórmula dialética mais antiga, a forma versus matéria. Nessa nova dialética, portanto, a acomodação dá lugar à hostilidade com relação a Cristo. A teologia estatista não necessita mais dele. Como o poder manifesto e encarnado do homem e da natureza, o Estado se apresenta como a verdadeira liberdade do homem, a esperança do homem pela graça, por assim dizer, por meio do qual o paraíso será restaurado. Desse modo, o Estado também se afirma como a verdadeira igreja e o verdadeiro Cristo do homem. As raízes dessa afirmação encontram-se na Antiguidade pagã, porém elas também penetraram profundamente o período medieval. Ernst H. Kantorowicz descreve o misticismo primitivo do Parlamento: Antes do encerramento do Parlamento em 1410, o Auditor da Câmara dos Comuns julgou adequado comparar o corpo político do reino com a Trindade:o rei, a Câmara dos Lordes espiritual e temporal, e a Câmara dos Comuns unidos formavam uma trindade na unidade e uma unidade na trindade. Na mesma ocasião, o Auditor comparou os procedimentos do Parlamento com a celebração de uma missa: a leitura da Epístola e a exposição da Bíblia na abertura do Parlamento se assemelhava às orações iniciais e as cerimônias preliminares à santa ação: a promessa do rei em proteger a Igreja e observar as leis comparava-se ao sacrifício da missa; por fim, o intervalo entre as sessões do Parlamento tem sua analogia no Ite, missa est, na dispensação da corte, e no Deo gratias, que concluía a santa ação. Embora essas comparações não signifiquem muito por si mesmas, elas, contudo, refletem o clima intelectual e demonstram em que medida o pensamento político na era do “alto gótico” gravitava em direção à misticização do corpo político do reino.[123] Posteriormente, como assinala Kantorowicz, e conforme o Cardeal Pole fez naquela época, Henrique VIII “tratou a igreja como um simples corpus politicum, e, portanto, como parte e parcela do reino da Inglaterra”.[124] As referências conservadoras modernas a “Deus e a pátria” preservam essa antiga forma de teologia estatista. Em sua forma moderna, a teologia estatista vai mais fundo: ela não somente ignora Cristo e a igreja, mas começa a negar o direito deles à existência. Um campo de batalhas acirrado é, por exemplo, a questão da taxação. O Estado moderno assume a posição de que possui o direito de taxar a igreja enquanto um corpus politicum, e então magnanimamente abre mão desse direito com base na afirmação de que a igreja é uma instituição de caridade ou sem fins lucrativos. A premissa oculta é que a igreja está sob o Estado e existe pela sua permissão. Porém, toda a reivindicação da teologia calcedoniana tem sido que a igreja, diretamente subordinada a Cristo, o Rei, é um domínio independente, assim como o Estado é, e que a igreja não pode ser taxada porque possui direitos extraterritoriais, por assim dizer. É um domínio separado, com seu próprio reino da lei, e o Estado não tem sobre este reino nenhuma jurisdição. Assim como nem a igreja nem o Estado são, em si mesmos, o Cristo, do mesmo modo eles não podem usurpar a soberania sobre o reino de Cristo: eles podem apenas exercer autoridade na jurisdição que lhes foi respectivamente designada por Cristo, o Rei. O longo esforço da igreja para alcançar independência da jurisdição e, em seguida, para mantê-la, embora alheio ao nosso presente propósito, precisa de ser reestudado e enfatizado entre os cristãos, à medida que rapidamente esses movem para outro estágio do conflito: a tentativa, por parte do novo paganismo, de negar à igreja qualquer jurisdição independente. Há supostamente vozes cristãs reivindicando a taxação das igrejas. De modo significativo, essas mesmas pessoas negam a teologia calcedoniana. Para eles, Jesus Cristo não é verdadeiro Deus de verdadeiro Deus e verdadeiro homem de verdadeiro homem, imutável, inseparável e inconfundivelmente unido no Filho unigênito, nosso Salvador. E para eles, o reino expressivo e decisivo não é o sobrenatural, Deus, mas sim o natural, o homem; não a eternidade, mas o tempo. Thomas J. J. Altizer afirmou abertamente o princípio implícito do modernismo: “a ‘historicidade’ significa uma imersão total no tempo histórico, uma imersão que é totalmente isolada de qualquer sentido ou realidade que possa se encontrar além de nós”. Isto implica para o homem “uma autonomia absoluta que por fim o encapsula dentro do próprio momento concreto”.[125] Para o Concílio de Calcedônia, Jesus Cristo, como a segunda pessoa da Trindade, reinava no céu como o criador e ordenador de todas as coisas, mesmo quando ele andava na terra. Como São João declarou: “O Verbo era Deus... todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (João 1.1,3). Nessa cristologia, o tempo é governado pela eternidade, e o homem, por Deus. A teologia estatista, no entanto, exige que o tempo governe a eternidade, e que o homem governe qualquer deus existente, ou, antes, seja seu próprio deus. Qualquer teologia que enfraqueça a Definição de Calcedônia enfraquece a primazia do Deus triúno sobre a história, e qualquer teologia que nega a Calcedônia deve necessariamente afirmar a história enquanto a área primeira de determinação. Somente o tempo, portanto, é a fonte do elemento histórico, ao passo que o sobrenatural é negado. Nessa perspectiva, Deus Filho não somente não determina o tempo e a história, mas a ele é negada a historicidade, porque ele exige a referência à Trindade ontológica, à eternidade, a fim de ser compreendido. O único Cristo permitido é um Cristo totalmente humano, um totalmente imerso no tempo, exclusiva e absolutamente um produto da história. Eis o “Jesus histórico” da alta crítica. A crítica “desmitologizante” tem um objetivo semelhante: reduzir Jesus à história, a um sentido absoluto dentro da história. Porém, a busca pelo Jesus “histórico” e “desmitologizado” configura-se como uma impossibilidade. O Jesus das Escrituras somente é passível de compreensão em cada uma de suas palavras ou de seus atos com base no decreto e propósito eternos do Deus triúno. A história da crítica moderna é a história pós-kantiana, uma abstração filosófica, não a história real da criatura homem num mundo criado por Deus. O Jesus real da história é anunciado nas Escrituras e definido por Calcedônia. De modo significativo, a mensagem característica do modernismo é o evangelho e a ação sociais. O modernismo é a teologia estatista do homem contemporâneo. Seu evangelho, suas boas-novas, é que o Estado possui uma resposta para todos os problemas do homem. Seja um fardo do corpo ou da alma, pobreza, privação cultural, saúde mental, doença, ignorância, problemas familiares, e tudo o mais, o Estado tem um programa e um plano de salvação. A Carta das Nações Unidas, em seu preâmbulo, também reflete essa esperança: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra...”. Estão “resolvidos a preservar”, e sua meta é um mundo “sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” em sua ordem social (9.55; 1,1.1.3, etc.). O objetivo da política hoje é messiânico; seu propósito é o paraíso reconquistado, uma ordem mundial perfeita por meio do direito e da tecnologia. Considera-se que o problema do homem não é o pecado, mas um meio defasado que a ciência pode corrigir. A teologia estatista concebe que todos os problemas são respondidos pela ação estatista; a meta de todos os homens de boa vontade deve ser, portanto, a legislação social. Deve-se dar mais poder ao Estado a fim de trazer à tona a Cidade do Homem. Os pais no Concílio de Calcedônia pensaram sua definição contra “as pessoas que tentavam anular a pregação da verdade”, e o propósito do concílio era “excluir todo artifício contra a Verdade”. Para eles, tudo estava em jogo nesse ponto da encarnação. Se a realidade da união sem confusão fosse negada, então não apenas a realidade da salvação desapareceria, mas também a realidade da realeza e lei de Cristo. Os concílios ecumênicos promulgaram “cânones”. Bright, em suas Notes on the Canons [Notas sobre os cânones], assinalou que “o sentido original de cânone, ‘uma vara reta’ ou ‘linha’ determina todas suas aplicações religiosas, que começam com o uso que São Paulo faz do termo para uma esfera fixada de antemão para o trabalho apostólico (2 Coríntios 10. 13,15), ou um princípio regular da vida cristã (Gálatas 6.16)”.[126] Cristo, o Rei, tem um cânone, um princípio regular, uma lei, para igreja e Estado, e a negação da realidade da encarnação era também a negação desse princípio regular e lei. Se a definição de Calcedônia não fosse verdade, então não haveria cânone. Deus, caso existisse, estava distante do homem e incapaz de suprimir o abismo que o separava do homem. A lei dada a Adão, Noé e Moisés pressupunha a realidade da encarnação: o Deus triúno que criou o mundo é também o Deus encarnado queo redime e o restaura à sua lei e domínio. O sentido disto é claro: sem Cristo, sem lei. Os cânones promulgados pelo Concílio de Calcedônia assentava-se da Definição de Calcedônia, visto que pressupunham a realidade da encarnação conforme fora definida e, de igual modo, também o poder da lei de Cristo. Um Deus que não é o criador é um estranho ao universo: é sua própria lei em evolução. Um Deus que é verdadeiramente o salvador do mundo é necessariamente seu criador: ele o fez, e seu único bem-estar possível deste mundo encontra-se em sua restauração à comunhão com Deus. Sua lei, portanto, é o único princípio regulador para o mundo. Havia então uma questão legal em jogo. Na teologia estatista, e para o racionalista, a lei é lógica; para o empirista, a lei é experiência. Em qualquer um dos casos, é essencialmente um produto da natureza, do homem e da história. É totalmente imanente e sem nenhum quadro de referência transcendental. A teologia estatista dirigiu-se gradualmente para o positivismo legal, para uma afirmação de que a única lei verdadeira é a lei positivista, a lei do Estado. Não há, portanto, suprema corte para apelo além do Estado. O universo tornar-se um universo fechado, sem uma lei superior ou uma verdade absoluta. O homem está encerrado no mundo e na “verdade” relativa do Estado. Em Calcedônia, os pais, atentando-se para o segundo concílio ecumênico (o I Concílio de Constantinopla, em 381 d.C.) referiram-se à fórmula da doutrina do Espírito Santo como um anteparo “contra aqueles que buscavam destruir sua soberania”. Uma defesa semelhante encontrava-se então em jogo, pois a união sem confusão, imutável, indivisível e inseparável implicava a soberania de Cristo. Ora, soberania, dever e lei estão inseparavelmente unidos. A fonte da lei em qualquer sistema é não apenas o lócus da soberania, mas também o deus deste sistema. Somente Deus é o verdadeiro soberano e a fonte genuína da lei. O feudalismo cristão não tinha um conceito de soberania humana, e o federalismo americano, um reflorescimento protestante do feudalismo, começaram com uma abstenção do uso da palavra “soberania”. Sua aplicação apropriada era apenas em relação a Deus. Ao definir Cristo como Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, em união real mas sem confusão com homem e portanto verdadeiro homem de verdadeiro homem, o Concílio de Calcedônia declarou, por meio disso, que Cristo é a única fonte genuína de um princípio regular, um cânon, sendo a Palavra de Cristo, por conseguinte, instrução e lei para o homem, igreja, Estado e todas as demais ordens. Ao preservar a união da confusão, Calcedônia preservou também o cânone de tornar-se uma realização potencial do homem. Cristo, enquanto homem, como o último Adão, observou perfeitamente a lei, a fim de manifestar sua perfeita obediência — como homem — à lei de Deus. Cristo, enquanto Deus, era e é a eterna fonte do cânon, sendo todas as coisas por ele criadas; “e sem ele nada do que foi feito se fez” (João 1.3). Se tivesse sido permitida a crença na confusão das naturezas, isto significaria que o homem poderia tornar-se um aspecto de seu próprio Deus, aspirando transformar-se, em sua união com Cristo, seu próprio legislador e co-criador. A humanidade teria sido conduzida à divindade, não numa comunidade de vida, mas numa comunidade de substância. Porém, disseram os pais, qualquer outra coisa que não o Cristo em perfeita união e sem confusão é “outra fé”, e “depois de termos estabelecido tudo com toda a possível acríbia e diligência, o santo Sínodo ecumênico decidiu que ninguém pode apresentar, escrever ou compor uma outra forma de fé ou crer e ensinar de outro modo”.[127] O Concílio de Calcedônia tornou possível a liberdade ocidental. É possível falar de verdadeira liberdade como um produto da fé cristã, visto que a Antiguidade concebia a cidade-Estado ou o Estado imperial como uma entidade religiosa, uma manifestação visível da ordem divina. Como Fustel de Coulagens observou: “Toda cidade era um santuário; toda cidade podia ser chamada santa”. A cidade representava a ordem santa e divina e tinha uma “onipotência” e um “império absoluto que exercia sobre seus membros. Em uma sociedade estabelecida sobre tais princípios, a liberdade individual não podia existir. O cidadão ficava submetido, em tudo e sem reservas, à cidade; pertencia-lhe inteiramente”. Uma vez que o Estado abarcava a totalidade da vida, incluindo o culto, e era a manifestação ou encarnação da ordem divina, o homem deveria submeter-se ao Estado como seu deus visível. “O homem nada tinha de independente. Seu corpo pertencia ao Estado, e destinava-se à sua defesa.”[128] Platão não estava sozinho ao defender, em sua obra Leis, que “as crianças pertencem menos aos pais do que à cidade”.[129] Este era habitualmente o caso. A unidade da vida era absolutamente imanente, plenamente realizada no corpo político. O Estado era o uno, a unidade do ser. Tendo em vista que a vida do homem era abarcada pelo Estado, a particularidade era menos um aspecto do homem que do Estado ou dos Estados. O uno e o múltiplo deveriam ser conhecidos apenas no que diz respeito às unidades políticas. Na fé calcedoniana, o uno e o múltiplo supremos não poderiam ser localizados na criação, mas somente no Deus triúno — um Deus, três pessoas —, no qual o uno e o múltiplo tinham igual supremacia. Ademais, uma vez que a teologia calcedoniana, em razão de sua doutrina de Cristo, preservara a integridade da Trindade, ela também sustentava a resposta bíblica para o problema do uno e do múltiplo. Quando a unidade e a particularidade (ou individualidade) encontram-se em sua fonte transcendental suprema e estão firmemente ancoradas no Deus triúno, a realização, por parte do homem, da unidade e da individualidade está liberta da presença opressiva do Estado enquanto ordem realizada. Na visão cristã, a vida do homem não é compreendida pelo Estado, mas sim pelo Deus triúno. A unidade do homem somente é de fato realizável em Deus e em seu reino; a individualidade do homem também só se realiza em e por meio de Deus. Isto significa que o destino eterno do homem está predestinado e vinculado à graça do Uno e do Múltiplo supremos — a Trindade. Mas também significa que a vida presente do homem encontra-se livre da predestinação do Estado. A autorrealização do ser humano não está no Estado, mas em Deus. O sentido disto não se perdera na Igreja Primitiva. Bispos e pregadores repreendiam o imperador e o Estado por ousarem em sua presunção, por reivindicarem uma autoridade que pertencia somente a Deus. O cristianismo tornou-se uma religião reconhecida tão logo seus pensadores ortodoxos começaram a repelir as reivindicações do Estado. Ora, o Estado era visto como o ministro da justiça (Romanos 13.1-8); ele não poderia declarar-se como a ordem suprema ou abrangente. O ser humano, sendo uma criatura de Deus, transcende o Estado em razão de sua cidadania no reino eterno de Deus. A cidade antiga, de acordo com Coulanges, “imperava sobre a alma e o corpo do homem”, e sendo “infinitamente mais poderosa que o Estado moderno, reunia em si a dupla autoridade, que hoje vemos dividida entre a Igreja e o Estado”.[130] O Estado era o veículo da vontade dos deuses, quando não sua encarnação. A igreja então minou essa declaração ao afirmar que Deus se manifestou mediante Cristo, o Filho, e pela palavra escrita, seu cânone da verdade. Na Antiguidade, o ser humano esteve vinculado ao Deus, mas “liberto” de Deus. O cristianismo ortodoxo libertou o homem do Estado ao vinculá-lo a Deus, que é o verdadeiro fundamento da liberdade e realização do homem. A fonte dessa liberdade cristã é o trinitarianismo, com seu concomitante lógico, a cristologia calcedoniana. São Leão insistia nessa relação imperiosa. O antitrinitarianismo implicava também hostilidade à verdadeira união. No Sermão 23, “Natal do Senhor, III”, São Leão declarou: O mistério, pois, da força unida à fraqueza, permite que o Filho, em sua natureza humana, se diga menor do que o Pai, embora em sua natureza divina lhe seja igual,pois a divindade da Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só. Na Trindade o eterno nada tem de temporal, nem existe dissemelhança na divina natureza: lá a vontade não difere, a substância é a mesma, a potência igual, e não são três Deuses, unidade verdadeira e indissociável é essa, onde não pode existir diversidade. Nasceu pois numa natureza perfeita e verdadeira de homem o verdadeiro Deus, todo no que é seu e todo no que é nosso.[131] Também no Sermão 75, “Sermão sobre Pentecostes, I”, São Leão sublinhou que o erro de Sabélio deveria ser evitado. As três Pessoas são a Trindade real: Na Trindade, com efeito, nada é dissemelhante, nada é desigual, e todas as coisas que se possam pensar a respeito dessa substância não se distinguem pela excelência, pela glória ou pela eternidade. É verdade que, conforme as propriedades das Pessoas, um é o Pai, outro o Filho, outro o Espírito Santo, mas não há divindade diferente, natureza distinta. Assim como o Filho precede do Pai, igualmente o Espírito Santo é Espírito do Pai e do Filho. Não como as criaturas, que são também do Pai e do Filho, mas como alguém que, como ambos, vive, é poderoso e existe eternamente, desde que existem o Pai e o Filho.[132] A igual supremacia do uno e do múltiplo e o ato de situá-los na Trindade foram, pois, estritamente garantidos por São Leão. Foram posteriormente resguardados por sua insistência no criacionismo. No Sermão 22, “Sobre o Natal do Senhor, II”, São Leão declarou que Deus “criou o universo a partir do nada, e moldou por seus métodos todo-poderosos a substância da terra e do céu nas formas e dimensões que lhe aprouve”.[133] Visto que Deus criou todas as coisas, ele as governa absolutamente. São Leão afirmava — conforme revela o Sermão 67, “Sobre a Paixão, XVI” — “a ordem imutável dos decretos eternos de Deus, em quem as coisas que devem ser decididas já estão determinadas, e em quem aquilo que será já foi cumprido”.[134] Deus é, portanto, a causa primeira em toda a história; a causalidade humana é secundária. O Estado, pois, é disposto sob Deus; a iniciativa na história é retirada do homem e do Estado e dada a Deus; nega-se ao Estado a encarnação, tornando-a exclusiva de Jesus Cristo e sem a confusão das naturezas. O centro da história está além da história, e os cristãos são a nova “raça escolhida” de Deus em Jesus Cristo (Sermão 33, “Sobre a Festa da Epifania, III”).[135] Sobre o fundamento de Calcedônia — a formulação da cristologia bíblica —, fundou-se a liberdade ocidental. A ignorância e a negligência para com esse Concílio foi um dos pontos essenciais para o declínio da igreja. Vozes estranhas na cristandade afirmam a necessidade de uma relevância cristã, mas a relevância que têm em mente não é para Cristo e seu reino, mas para a teologia estatista pagã rediviva e para as tentativas por parte desse Estado humanista pagão de conduzir o homem para um paraíso sem Deus. Porém a redução do homem às dimensões do Estado, às dimensões do tempo e da história, é a escravidão mesma do homem, e não sua libertação. É necessário que a cristandade ecoe a decisão dos pais de Calcedônia, os quais, após terem apresentado a definição, afirmaram que “esta é a fé dos apóstolos: por ela todos nós nos mantemos firme: assim todos nós cremos”. A alternativa é Cristo ou César, liberdade ou escravidão, Deus ou homem. A salvação do homem é alcançada ascendendo-se da terra ao céu ou descendo do céu à terra? A resposta de Calcedônia é energicamente a favor de Deus e da liberdade. A liberdade ocidental começou quando a declaração do Estado de ser o salvador do homem foi negada. O Estado, portanto, segundo as Escrituras, tornou-se ministro da justiça. Mas onde quer que Cristo cesse de ser o salvador do homem, aí a liberdade perece, conforme o Estado novamente assevera suas declarações messiânicas. O homem encontra-se em tribulações, e a história é o registro de sua tentativa de encontrar salvação. O homem precisa de um salvador, e trata-se simplesmente de uma escolha: Cristo ou o Estado? Ninguém pode escolher um sem negar o outro, e todas as tentativas de conciliá-los são uma ilusão. 8. O CREDO ATANASIANO: O UNO E O MÚLTIPLO Na Igreja Primitiva, havia duas variedades de credos: batismais e conciliares. Os credos batismais eram afirmação da fé no batismo, credos de introdução à fé. O Credo dos Apóstolos é o credo batismal básico. Embora outros credos batismais tenham precedido e procedido ao Credo dos Apóstolos, particularmente os dois credos de Santo Epifânio (ca. 310-403 d.C.), esse credo permaneceu sendo a declaração confessional básica para os convertidos.[136] Os credos conciliares eram testes de ortodoxia e, portanto, neles habitualmente constavam anátemas. O Credo Niceno, em sua forma constantinopolitana desenvolvida, tornou-se o credo batismal da Igreja Oriental e é, por conseguinte, um credo tanto conciliar quanto batismal. À vista disso, o Credo Anatanasiano não é, num sentido estrito, um credo em qualquer um desses dois sentidos, visto que não é obra de um concílio nem é um credo batismal. Clarke chamou-o “não propriamente um credo, mas um hino sobre o Credo, como o Te Deum”.[137] Contudo, embora não seja obra de um concílio, é no entanto produto da luta da igreja contra a heresia; e é um teste de ortodoxia, de modo que está intimamente relacionado às confissões conciliares e, nesse sentido, é propriamente um credo. O credo carrega o nome de Santo Atanásio, ou Atanásio, o Grande, embora definitivamente não seja de sua autoria. Visto que Atanásio fora, em Nicéia, o grande campeão da doutrina ortodoxa da Trindade, esse credo que afirma tal doutrina recebeu seu nome, apesar de que é mais diretamente fruto da influência de Agostinho do que de Atanásio. Atanásio (299-373 d.C.), a despeito de não ser um guia confiável no tocante à doutrina da expiação, foi um defensor fiel da fé trinitariana, e já na época de Epifânio, recebeu o título de “pai da ortodoxia”. Sua oposição ao arianismo fez dele alvo de perseguição política, e assim foi condenado ao exílio por cinco vezes. Durante um exílio de seis anos, viveu no deserto egípcio com monges. Certa feita, assassinos foram contratados para se livrarem de Atanásio. Os estatistas nomearam Jorge da Capadócia, um bispo ariano, para substitui-lo. Jorge tomou posse de seu ofício com tropas imperais e começou a perseguir ferozmente os crentes ortodoxos e a pilhar os templos pagãos. Os pagãos, porém, prenderam Jorge, exibiram-no amarrado a um camelo, ao longo da cidade, e então queimaram-no junto com o animal. De acordo com Schaff, a legenda ariana fez dele um santo, primeiramente transformando Atanásio num mago inimigo, e em seguida num dragão que “São Jorge” venceu.[138] Todo tipo de acusação fora feito a Atanásio; acusaram-no de ter assassinado Arsênio, que estava vivíssimo num esconderijo; acusaram-no de ter estuprado uma virgem que acabou se revelando uma prostituta que jamais vira Atanásio e que fracassou em sua tarefa ao identificar outro homem como sendo Atanásio. A vida deste homem foi atribulada e perseguida ao longo de anos. O credo com justiça o honra como o primeiro grande campeão conciliar do trinitarianismo. A princípio, o credo era simplesmente designado “a fé católica”, e recebeu o título de “Atanasiano” durante a controvérsia ariana na Gália, quando invocaram as origens atanasianas da controvérsia. As tendências ocidentais ao subordinacionismo foram assinaladas pelos arianianos como contra-ataque à ortodoxia. Santo Agostinho ensinou vigorosamente contra o subordinacionismo e em prol da unidade e igualdade da Trindade, e, nesta perspectiva, embora enfatizado primeiramente no Oriente, passou a criar as verdadeiras raízes no Ocidente, como resultado da obra de Agostinho. O Credo Atanasiano resumiu essa fé latina. Agostinho ensinou a processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, assim como a perfeita unidade essencial das hipóstases. Schaff viu o Credo Atanasiano como a expressão em forma clássica da doutrina agostinianada Trindade, “para além da qual o desenvolvimento ortodoxo da doutrina nas igrejas romana e evangélica até os dias de hoje [1867] ainda não avançou”.[139] Esse credo incorpora passagens da obra de Agostinho sobre a Trindade (415 d.C.) e do Comonitório de Vicente de Lérins (434 d.C.). O credo data provavelmente de 450 d.C. ou de um período pouco posterior; provém da Gália, da escola de pensamento agostiniano. Sua influência no cristianismo ocidental foi enorme. Lutero considerava-o a maior e mais soberba obra da igreja desde o tempo dos apóstolos. A Igreja da Inglaterra excluiu seu uso compulsório em 1867, e a Igreja Protestante Episcopal da América, em sua convenção de 1785 na Filadélfia, excluiu os credos niceno e atanasiano, retirando também do Credo dos Apóstolos o artigo “Ele desceu à região dos mortos”. A pressão por parte dos arcebispos da Cantuária e de York trouxe à América a restauração, em 1786, de todos esses credos, com exceção do atanasiano. As cláusulas condenatórias eram a razão para essa hostilidade. A Igreja Oriental jamais aceitou formalmente o credo, embora tenha havido um uso limitado dele.[140] O Credo Atanasiano, conforme aparece na liturgia luterana, e em outras igrejas, declara: (1) Todo o que quiser ser salvo, antes de tudo é necessário que mantenha a fé católica (isto é, universal, cristã); (2) se alguém não a conservar íntegra e inviolada, sem dúvida perecerá para sempre. (3) A fé católica é que veneremos um só Deus na Trindade e a Trindade na unidade, (4) não confundindo as pessoas, nem separando a substância; (5) pois uma é a pessoa do Pai, outra a [pessoa] do Filho, outra a [pessoa] do Espírito Santo; (6) mas uma só é a divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo, igual a glória, coeterna a majestade. (7) Qual o Pai, tal o Filho, [e] tal o Espírito Santo: (8) incriado o Pai, incriado o Filho, incriado o Espírito Santo; (9) incomensurável o Pai, incomensurável o Filho, incomensurável o Espírito Santo; (10) eterno o Pai, eterno o Filho, eterno o Espírito Santo; (11) e, no entanto, não três eternos, mas um só eterno; (12) como também não três incriados nem três incomensuráveis, mas um só incriado [incomensurável] e um só incomensurável [incriado]. (13) Semelhantemente, onipotente o Pai, onipotente o Filho, onipotente o Espírito Santo; (14) e, no entanto, não três onipotentes, mas um só onipotente. (15) Assim Deus o Pai, Deus o Filho, Deus o Espírito Santo; (16) e, no entanto, não três deuses, mas um só Deus. (17) Assim Senhor o Pai, Senhor o Filho, Senhor o Espírito Santo, (18) e, no entanto, não três Senhores, mas um só é o Senhor: (19) pois, como somos obrigados pela verdade cristã a professar cada pessoa em sua singularidade como Deus e Senhor, (20) assim a religião católica nos proíbe falar de três Deuses ou Senhores. (21) O Pai não foi feito por ninguém, nem criado nem gerado; (22) o Filho é só pelo Pai, nem feito nem criado, mas gerado; (23) o Espírito Santo <é> do Pai e do Filho, nem feito, nem criado, nem gerado, mas procedente. (24) Portanto, um só Pai, não três Pais; um só Filho, não três Filhos; um só Espírito Santo, não três Espíritos Santos. (25) E nesta Trindade nada é antes ou depois, nada maior ou menor, (26) mas todas as três pessoas são entre si coeternas e coiguais. (27) De modo que, em tudo, como já foi dito acima, deve ser venerada e a unidade na Trindade e a Trindade na unidade [a Trindade na unidade e a unidade na Trindade]. (28) Quem, pois, quiser ser salvo pense assim a respeito da Trindade. (29) Mas é necessário para a salvação eterna que também creia fielmente na encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo. (30) É, portanto, reta fé que creiamos e professemos que nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, é Deus e homem [tanto Deus como igualmente homem]: (31) é Deus gerado antes dos séculos da substância do Pai, e é homem nascido no século da substância da mãe; (32) perfeito Deus, perfeito homem, subsistente de alma racional [dotada de razão] e carne humana; (33) igual ao Pai segundo a divindade, inferior ao Pai segundo a humanidade; (34) ele, apesar de ser Deus e homem, contudo não é dois mas um só Cristo; (35) um só, porém não pela transformação da divindade em carne [na carne], mas pela assunção da humanidade em Deus; (36) absolutamente um só, não por confusão da substância mas pela unidade da pessoa. (37) Pois, como o homem uno é alma racional [dotada de razão] e carne, assim o Cristo uno é Deus e homem. (38) Ele padeceu pela nossa salvação, desceu aos infernos, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos, (39) subiu aos céus, está sentado [sentou-se] à direita do Pai, de onde virá para julgar os vivos e os mortos. (40) À sua vinda, todos os homens devem ressuscitar com [em] seus corpos e hão de prestar contas de suas ações; (41) e os que fizeram o bem irão para a vida eterna, aqueles, porém, que <fizeram> o mal, para o fogo eterno. (42) Esta é a fé católica: se alguém não crer nela fiel e firmemente, não poderá ser salvo.[141] Uma leitura desse credo torna óbvia a razão de sua impopularidade. É longo, e as pessoas são impacientes para com credos longos; a adoração (para elas) deve ser breve. Os outros credos têm certa beleza no fraseado, e uma qualidade musical, ao passo que o credo atanasiano é precisa e logicamente teológico. Permanece o fato, entretanto, que esse credo é extremamente importante e representa uma grande vitória do cristianismo ocidental. Para o cristianismo ocidental, a teologia bíblica assenta-se firmemente num fundamento trinitário, sem subordinação. Na teologia, os atributos ou propriedade de Deus são divididos em incomunicáveis e comunicáveis. Os atributos incomunicáveis, que manifestam Deus em sua transcendência, são, primeiramente, a asseidade ou independência, pelo que Deus é absoluto, suficiente para si próprio. Em segundo lugar, a imutabilidade de Deus significa que, uma vez que Deus é absoluto e portanto não depende de nada além de si mesmo, ele não muda nem pode fazê-lo. Em terceiro lugar, Deus é infinito. Com relação à infinidade de Deus, Van Til assinala: No que se refere à questão do tempo, falamos da eternidade de Deus, ao passo que, no tocante ao espaço, falamos da onipresença de Deus. Com o termo “eternidade” queremos dizer que não há princípio, nem fim nem sucessão de momentos no ser ou consciência de Deus (Salmos 90.2; 2 Pedro 3.8). Essa concepção de eternidade é particularmente importante na apologética porque envolve toda a questão do sentido do universo temporal: envolve uma filosofia definitiva da história. Com o termo “onipresença” queremos dizer que Deus não está incluído no espaço nem está ausente dele. Deus está acima de todo espaço e, contudo, presente em cada parte dele (1 Reis 8.27; Atos 17.27).[142] O quarto atributo incomunicável de Deus é a unidade. Conforme assinalou Van Til, “distinguimos entre a unidade de singularidade (singularitatis) e a unidade de simplicidade (simplicitatis). A unidade de singularidade refere-se à unidade numérica. Há e só pode haver um Deus. A unidade de simplicidade significa que Deus não é, em sentido nenhum, composto de partes ou aspectos anteriores a si mesmo (Jeremias 10.10; 1 João 1.5).[143] Os atributos comunicáveis de Deus são aqueles que enfatizam sua imanência e são, em primeiro lugar, a espiritualidade; Deus é um Espírito (João 4.24); em segundo lugar, invisibilidade; em terceiro lugar, onisciência. A doutrina da Trindade declara que as três pessoas são cosubstanciais: “nenhuma é derivada em sua substância da outra ou de ambas as outras pessoas. Entretanto, há três pessoas distintas nessa unidade; a diversidade e a identidade são igualmente não derivadas”.[144] Agostinho, escrevendo em sua Da Trindade, enfatizou a unidade, igualdade e igual supremacia das três pessoas da Divindade: Estabeleçamos como fundamental o seguinte: tudo quanto se refere a si mesma, naquela excelsa e divina Sublimidade, refere-se à substância; mas o que se diz em referência a alguma coisa, não se diz substancialmente, mas relativamente. É tão forte o conceitode mesma substância no Pai, no Filho e no Espírito Santo, que se atribui não no plural coletivo mas no singular tudo o que diz de cada uma substancialmente. Dizemos assim pois, que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo igualmente é Deus, o que ninguém nega falando na ordem substancial. Mas não dizemos que há três deuses, mas um só Deus na sublime Trindade. Do mesmo modo: o Pai é grande, o Filho é grande e o Espírito Santo é grande, mas não há três grandes, mas um só grande. A frase: Tu és grande, só tu és Deus (Salmos 85.10), refere-se ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, não somente ao Pai como erradamente opinam alguns. Bom é o Pai, bom o Filho e bom o Espírito Santo, mas não há três bons, mas um só bom, do qual está dito: Ninguém é bom, senão só Deus. Pois o Senhor Jesus, com a intenção de impedir que aquele homem que lhe dissera: bom Mestre (Lucas 18.18,19), abordando-o como se ele fosse apenas homem, não o considerasse apenas como homem, não lhe disse: “Ninguém é bom, senão só o Pai”, mas: ninguém é bom, senão só Deus. Visto que sob o nome do Pai, compreende-se apenas o Pai; e sob o nome de Deus, porém, também o Filho e o Espírito Santo, porque a Trindade é um só Deus. Os acidentes que designam posição, hábito, lugar e tempo, aplicam-se a Deus não no sentido próprio, mas no metafórico e como uma comparação [...] Assim, Deus é onipotente, o Filho é onipotente e o Espírito Santo é onipotente; mas não são três onipotentes, mas um só onipotente, do qual, por quem e para quem são todas as coisas. Glória a ele (Romanos 11.36). Portanto, tudo o que se diz de Deus com relação a si mesmo, afirma-se também de cada uma das pessoas, isto é, do Pai, do Filho e do Espírito Santo; e ao mesmo tempo da Trindade, não no plural, mas no singular. Pois para Deus não são realidades diferentes ser e ser grande, porque nele se identificam o ser e a grandeza, e assim como não dizemos três essências, não devemos dizer três grandezas, mas uma essência e uma grandeza. Falo em essência, que os gregos denominam “ousía”, e nós chamamos mais usualmente substância.[145] A influência dessa passagem de A Trindade (400 d.C.) sobre o Credo Atanasiano é bastante evidente. Agostinho deixou claro que a única subordinação na Trindade é econômica e relativa, não essencial. As três pessoas da Trindade são igualmente supremas em sua particularidade, assim como em sua unidade. Sua individualidade e sua unidade são ambas reais; são de fato três pessoas, um Deus. O nome Deus aplica-se de igual modo às três pessoas. É uma heresia arminiana reservar o nome de Deus somente ao Pai. Este uso comum faz com que o arminianismo se aproxime mais do arianismo e do nestorianismo do que do cristianismo ortodoxo. O Credo Atanasiano declara que os atributos de Deus pertencem às três pessoas sem diferenças de nenhum tipo. “É apenas os epítetos: ‘ingerado’, ‘gerado’, ‘pelo Pai’ e ‘procedente’ que estão associados respectiva e exclusivamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito.”[146] O nome Deus, portanto, refere-se ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo; e quaisquer duas pessoas dentro da Trindade não são maiores que a terceira, nem são todas as três pessoas juntas maior que cada uma separadamente. Conforme Agostinho escreveu: Dissemos em outro lugar que os diferentes nomes aplicados a cada uma das três pessoas na Trindade, traduzem relação recíproca, tais como: Pai e Filho, e o Dom de ambos, o Espírito Santo. Com efeito, não se pode dizer que o Pai é a Trindade, ou que o Filho é a Trindade, nem o Dom ser a Trindade. O que é dito, porém, de cada um dos três em relação a si mesmo, é dito não no plural, mas no singular, pois referente a uma única realidade: a própria Trindade. Assim: o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. O Pai é bom, o Filho é bom, o Espírito Santo é bom. O Pai é onipotente, o Filho é onipotente, o Espírito Santo é onipotente. Não são três deuses, três bons ou três onipotentes, mas um só Deus bom e onipotente, o qual é a mesma Trindade. Diga-se o mesmo em relação a todo outro termo que se afirma não em razão das relações mútuas, mas o que é dito de cada uma das pessoas, em relação a si mesma. Pois todos os atributos referem-se à essência, visto que em Deus, o ser identifica-se com o ser grande, ser bom, ser sábio e com todo outro qualificativo que de cada uma das pessoas ou da própria Trindade se possa dizer, em referência a si mesma. Portanto, pode-se dizer três pessoas ou três “substâncias”, não para expressar uma diversidade de essência, mas para tentar responder, com alguma palavra, a esta pergunta: o que são esses três? Ou: o que são essas três realidades? Tão perfeita é a igualdade no seio da Trindade que não somente o Pai não é maior que o Filho no tocante à divindade; nem o Pai e o Filho juntos são uma realidade maior que o Espírito Santo; tampouco qualquer das pessoas em particular é inferior à própria Trindade.[147] A importância desse ponto no tocante à Trindade aparece quando analisamos o problema do uno e do múltiplo. Conforme Van Til assinalou, para o cristão há uma distinção entre o Uno-e-Múltiplo Eterno e o uno e múltiplo temporal. Para as filosofias não cristãs, não existe tal distinção, visto que para elas todo ser é um ser. Para a filosofia cristã, como Van Til demonstrou, o pensamento ortodoxo sustenta que “o uno e o múltiplo eterno formam uma unidade autossuficiente. Deus é personalidade absoluta e portanto individualidade absoluta. Ele existe necessariamente. Ele não tem não-ser com o qual possa, em comparação, definir-se; ele é internamente autodefinido”.[148] Para o pensamento cristão ortodoxo, há uma supremacia igual do uno e do múltiplo na Trindade, isto é, a unidade das coisas é tão derradeira quanto a individualidade e particularidade das coisas. A unidade de Deus não é superior às suas três Pessoas, nem suas três Pessoas são superiores à sua unidade. Para citar novamente Van Til, cuja obra o colocou diretamente na grande tradição de Atanásio, Agostinho e Calvino: “a unidade em Deus não é mais essencial que a diversidade, e a diversidade em Deus não é mais essencial que a unidade. As Pessoas da Trindade abarcam-se mutuamente umas às outras. O Filho e o Espírito estão ontologicamente em pé de igualdade com o Pai”. A doutrina cristã da Trindade evita as armadilhas de um universal (ou uno) abstrato e de particulares abstratos, na medida em que nem os universais — ou unidades das coisas — são uma abstração dos particulares concretos, nem são os particulares meras abstrações de um concreto universal. “É somente na doutrina cristã do Deus triúno, conforme vemo-nos obrigados a crer, que temos realmente um universal concreto. No ser de Deus não há particulares que não estejam relacionados ao universal e não há nada universal que não esteja plenamente expresso nos particulares.”[149] O uno e o múltiplo temporais são inteiramente criação de Deus; tudo que há é criação divina, e “o não-ser é o campo da ação possível de Deus. Visto que o não-ser não é nada em si mesmo para Deus, Deus teve de criar, caso desejasse absolutamente criar ‘a partir do nada’”.[150] O uno e o múltiplo temporais são, pois, criados por Deus, e ele é a lei de sua criação. Por conseguinte, a ordem temporal deve conceber uma relação semelhante entre o uno e o múltiplo tal como existe no Uno-e-Múltiplo Eterno. A filosofia não cristã desvia-se de uma ênfase sobre o uno para [uma ênfase sobre] o múltiplo; do — para dizê-lo em termos políticos — totalitarismo ao anarquismo; de uma insistência de que a unidade é verdade para uma insistência de que a individualidade é a verdadeira ordem. Encontra-se, portanto, em constante conflito: o Estado ou o homem; o marido e a esposa como indivíduos, ou o casamento como uma instituição; o grupo ou a pessoa? O que representa a verdadeiro ordem? Todo pensamento não cristão advogava a supremacia ou do uno ou do múltiplo, e consequentemente se volta do totalitarismo para o anarquismo. Ele só pode manter um equilíbrio entre os dois dialeticamente, por pouco tempo e numa tensão que entãoconduz ao colapso. O cristianismo ortodoxo, por meio de sua doutrina da Trindade, evita o problema fundamental da filosofia. O Estado não é mais importante que o cidadão, nem o cidadão o é mais que o Estado; ambos são igualmente fundamentais para a ordem de Deus e igualmente estabelecidos por sua lei. O casamento, enquanto instituição, está sob Deus e de acordo com sua palavra, mas o homem e mulher estão igualmente sob Deus e protegidos por sua lei, de modo que o casamento não é sacrificado aos desejos individuais, nem os indivíduos são sacrificados a uma instituição. Ambos são igualmente estabelecidos e vivem sob a ordem legal de Deus. Uma filosofia que enfatiza o uno ou os universais tornará os indivíduos abstratos e irreais em contraposição ao universal concreto: os cidadãos são assim sacrificados ao Estado, e o homem e a mulher não são nada em contraposição à instituição do casamento. Uma filosofia que sustenta que o múltiplo é real, e que os universais são abstrações, destruirá o Estado a fim de libertar o particular concreto, o homem anarquista, e negará que o casamento como instituição tenha qualquer reivindicação válida sobre os desejos e caprichos do homem e da mulher. O cristianismo ortodoxo sempre se apegou à globalidade da fé trinitariana, e o Credo Atanasiano é a clássica expressão dessa doutrina. Toda heresia na igreja foi subordinacionista, de uma maneira ou de outra. Se, por exemplo, por Deus, o Criador Todo-Poderoso, entende-se exclusivamente o Pai, e o Filho e o Espírito são vistos no máximo como algum tipo de deuses júniores, a consequência é a prioridade da ordem natural sobre a ordem revelada. A lei natural (ou lei positiva, como um desenvolvimento posterior) assume uma posição de ascendência sobre a lei revelada. A ordem natural é vista como a ordem fundamental, ao passo que a ordem revelada passa a ser um tipo de adição, um complemento para uma ordem já funcional. Em heresias desse tipo, o Estado torna-se a ordem fundamental do homem, e a igreja é periférica e subordinada ao Estado. O verdadeiro vicário de Cristo nessa situação é o Estado e sua cabeça, o qual se torna a ordem salvífica do homem, o reino de Deus na terra. Essa teologia torna-se uma forma da antiga teologia imperial, e a política novamente se transforma na fonte da ética. No cristianismo ortodoxo, a ética deriva-se da religião, da teologia; mas, no paganismo e nas heresias subordinacionistas, a ética deriva-se da política, visto que o homem é governando por uma teologia política, isto é, o Estado é a voz operacional e a agência de seu deus. O Credo Atanasiano fechou meticulosa, completa e precisamente — e em linguagem agostiniana — o caminho para o subordinacionismo, relegando-a ao status de heresia. Jamais fora uma fé aceitável, mas agora se declarava: “Todo o que quiser ser salvo, antes de tudo é necessário que mantenha a fé católica”, isto é, essa doutrina anti-subordinacionista da Trindade, pois “esta é a fé católica: se alguém não crer nela fiel e firmemente, não poderá ser salvo”. Essas frases condenatórias foram atacadas virulentamente por críticos do Credo Atanasiano. Inferiu-se que todos que estão abaixo do nível de Santo Agostinho estão excluídos do céu e designados ao inferno por não serem capazes de compreender a doutrina global da Trindade. Diz-se que fazer desse credo longo, complexo e filosófico um teste de fé é limitar o cristianismo a um punhado de intelectuais ortodoxos. A acusação é totalmente infundada. O credo define a doutrina ortodoxa da Trindade; o crente humilde deve crer nela, não a compreender em todas suas implicações. A obrigação é aceitar a fé, recebê-la, e não se tornar um expositor erudito dela. O ponto crucial é este: se o trinitarianismo expresso pelo Credo Atanasiano não for afirmado, então afirmar-se-á outro Salvador que não Cristo, e nenhum homem que se apega a outro salvador pode ser salvo. O subordinacionismo foi o instrumento pelo qual a doutrina imperial de salvação novamente adentrava a igreja. Os subordinacionistas modernos sustentavam a salvação política, e, na área subordinada da religião, crê-se que todos os bons budistas, muçulmanos, hindus, canibais e todos os demais são salvos com base em suas próprias premissas. O resultado inevitável de todo subordinacionaismo é outro salvador, algo que tanto Atanásio quanto Santo Agostinho perceberam. Para eles, o próprio cristianismo estava em risco nas controvérsias de sua época. Cada aproximação ao unitarianismo ariano era também uma aproximação ao universalismo religioso. O cristianismo cessaria de ser cristianismo, e tornar-se-ia mais uma das muitas fés sincretistas da época. O subordinacionismo faz de Deus Pai, o Criador que não se revelou plena ou verdadeiramente em Jesus Cristo, o uno e universal supremos. Não há, portanto, nenhum particular que seja também derradeiro: apenas unidade suprema. Ademais, visto que esse uno criador opera melhor na ordem criada que na revelação, segue-se que todas as religiões o revelam melhor que a Bíblia e Cristo. Atribui-se, pois, dignidade a todas as religiões, e Cristo é reduzido a um dentre os muitos empenhos em direção à unidade final. “Libertar” o homem da doutrina ortodoxa da Trindade é “libertá-lo” de Deus. Por meio desta doutrina, a soberania de Deus é mantida, e seu decreto eterno, declarado: tempo e história são determinados por Deus. Sem essa doutrina, Deus novamente se torna o deus silencioso do arianismo, um ser inconsciente e informe que se silencia porque não é capaz de revelar-se. Um deus como esse só é supremo enquanto ser original a partir do qual todo o ser evolui, e não como o criador e determinador de todas as coisas. Deste deus, bem e mal emergiram igualmente e são, pois, igualmente supremos. De acordo com Agostinho, em O livre-arbítrio, conforme assinala Van Til: Foi-lhe uma grande dádiva quando os maniqueístas lhe disseram, quando jovem, que ele poderia viver como lhe agradasse, visto que não era o responsável final por seus atos. Havia uma força suprema do mal, algo demoníaco, mais abrangente e mais coercitivo que a vontade do homem, o qual fazia os homens pecarem. Mas depois, como cristão, Agostinho sabia que ele mesmo, esse homem, e não uma força supraindividual, era o responsável pelo pecado.[151] As formas dessa “liberação” variam, e o maniqueísmo é apenas uma delas. Em cada uma de suas formas, no entanto, sempre que se nega a doutrina da Trindade — conforme declarada pelas Escrituras e resumida no Credo Atanasiano —, surge em seguida uma filosofia da “morte de Deus” no seu processo de formação. Sendo assim, é claramente “necessário” que todo aquele que há de ser salvo apega-se a essa fé trinitariana, pois “esta é a fé católica: se alguém não crer nela fiel e firmemente, não poderá ser salvo”. 9. CONSTANTINOPLA II: A FALÁCIA DA SIMPLICIDADE Um perigo antigo e recorrente é a falácia da simplicidade. Há um agudo ressentimento por parte de muitos homens contra o conhecimento que está além de suas capacidades. Consequentemente, sempre que um impulso democrático governa a teologia, ele busca o menor denominador comum. O ignorante e o tolo devotamente balem pelo “evangelho simples de antigamente”, quando a realidade é que esse evangelho simplório é uma invenção moderna. Embora certas doutrinas fundamentais da Bíblia sejam descomplicadas, a Bíblia como um todo não é um livro simples e não nos dá garantia de contornar suas complexidades a fim de permanecer em seus elementos mais singelos, porque ambos os aspectos são inseparáveis. Ninguém pode dizer que os profetas são uma leitura fácil, nem que as epístolas de Paulo são elementares, e os escritos de ambos constituem uma grande porção da Bíblia, e todavia não exaurem a complexidade desta. A exigência por simplicidade é usualmente uma exigência de perversão, e não nos surpreende, pois, que o evangelho de uma era democrática seja também um evangelho pervertido. Mas a exigência por simplicidade não é somente uma exigência de perversão; é também uma exigência de suicídio, e o povo, igreja ou instituiçãoque a buscam traçaram um caminho para a morte certa. Bark acertamente chamou atenção para o fracasso cabal da mentalidade romana: “eles confundiam simplicidade com força, como se uma não pudesse existir sem a outra”. O socialismo é um excelente exemplo da falácia da simplicidade. Conforme uma sociedade torna-se mais complexa, ela consequentemente precisa de maiores descentralização e especialização. Quanto maior a complexidade de uma sociedade, maior é sua necessidade para o livre crescimento no que diz respeito a suas habilidades cada vez mais refinadas e especializadas. O socialista, contudo, reconhece apenas uma forma válida e independente de especialização — a dos controladores ou gestores estatistas. Sua resposta à complexidade social é uma simplicidade imposta, uma regressão implementada a uma economia doméstica. Numa casa simples e fronteiriça, em breves períodos na história, e por questões de necessidade, um homem assumia a maior parte das grandes funções econômicas e fazia da família um mundo independente. Essa condição foi, contudo, infrequente e primitiva. A especialização significa a liberdade para buscar-se o próprio chamado sem a necessidade de realizar inúmeras tarefas para as quais outros são mais bem preparados. O socialismo, a falácia política e econômica da simplicidade, é também, por natureza, suicida. Os quatro primeiros concílios ecumênicos declararam fielmente a complexidade da fé bíblica no tocante a certas doutrinas. Naquela época como agora, pessoas intelectualmente relapsas ressentiam qualquer doutrina que estava além de sua inteligência. As doutrinas da fé tiveram de ser reduzidas ao nível da indolência do homem. A obra fundamental havia sido feita pelos quatro primeiros concílios. O quinto concílio, o Concílio de Constantinopla II (533), teve de lutar tanto contra a hostilidade civil e religiosa quanto contra a falta de compreensão das complexidades da doutrina cristã. Justiniano I, um imperador capaz e bem-intencionado, convocou o concílio na esperança de que este abrandaria as diferenças entre as escolas teológicas em disputa, com isso unificando religiosamente o império. O concílio, por sua ênfase nos detalhes das complexidades teológicas, serviu apenas para dividir o império. No geral, a reação ao concílio não foi favorável, tendo sido aceito de má vontade. E a atitude dos cristãos, desde então, tem sido de negligência ou fastio para com seus detalhes. A “Sentença do Concílio” afirmou o forte senso de responsabilidade do concílio em falar contra a impiedade: Nosso Grande Deus e Salvador Jesus Cristo, conforme aprendemos da parábola no Evangelho, distribui talentos a cada homem de acordo com sua habilidade, e no devido tempo exige contas do trabalho feito por todo homem. E se aquele a quem se confiou apenas um talento é condenado porque não o investiu mas somente o guardou sem perdê-lo, quão maior e mais horrível juízo será sujeito aquele que não somente é negligente para consigo mesmo, mas também coloca uma pedra de tropeço e causa de ofensa no caminho dos outros? Visto que é manifesto a todos os fiéis que, sempre que surge qualquer questão concernente à fé, não apenas o ímpio é condenado, mas também aquele que tem o poder de corrigir a impiedade nos demais e no entanto é negligente. Nós, portanto, a quem se confiou o governo da igreja do Senhor, temendo o curso que pesa sobre aqueles que negligentemente realizam a obra do Senhor, somos diligentes em preservar pura a boa semente da fé do joio da impiedade que está sendo semeado pelo inimigo.[152] O imperador podia esperar por paz e unidade, o concílio, porém, estava determinado a posicionar-se com base na fé. O imperador, essencialmente um devoto, não tentou anular o trabalho do concílio. Em certa medida, o édito de Justiniano que precedeu o concílio havia designado sua tarefa ao pedir por uma condenação das obras de Teodoro de Mopsuéstia, mestre de Nestório, de Teodoreto de Ciro, e da carta de Ibas de Edessa. A esperança de Justiniano era que uma condenação da teologia da escola de Antioquia pudesse agradar os monofisitas, que então dominavam a escola de Alexandria. O concílio de fato condenou a teologia de Antioquia, mas sem recuar da posição de Calcedônia, de modo que tanto Antioquia quanto Alexandria se separaram da fé ortodoxa. Teodoro de Mopsuéstia (ca. 350-428 d.C.) defendia uma doutrina semi- pelagiana do homem. Para ele, o pecado era a consequência, e não a causa, da mortalidade, de maneira que o problema essencial do homem, assim como raiz de seu pecado e queda, era a finitude. O pecador tem livre arbítrio e autodeterminação, de modo que o papel de Cristo como salvador não é o fato determinante na sua vida. A graça não é preveniente, mas cooperativa, isto é, o homem salva a si próprio com a cooperação de Deus. Para Teodoro de Mopsuéstia, qualquer confusão entre as duas naturezas de Cristo era inconcebível, mas as razões para isso não eram ortodoxas. Para ele, não havia união substancial entre Deus e homem na encarnação, mas antes uma união voluntária, que teve início na concepção. A habitação de Deus em Cristo deu-se pela boa vontade, não por substância nem operação. Havia fortes elementos de universalismo no pensamento de Teodoro de Mopsuéstia, e a plenitude da salvação para ele implicava a plenitude da união suprema com Deus.[153] Seu pensamento representava uma versão moderada da filosofia que governava a escola de Antioquia. Os sentimentos dos monofisitas para com essas ideias antioquianas assemelhavam-se aos sentimentos de Stálin em relação a Trotsky. O ódio era amargo e intenso, mas tratava-se de uma briga familiar. Os monofisitas afirmam, conforme indica seu nome, a natureza una de Cristo. Para eles, como Rainy apontou, “Cristo é composto de duas naturezas, mas não tem duas naturezas”.[154] Supostamente, eles estavam resguardando a doutrina de Deus e da divindade de Cristo. Porém, como observado por Rainy, “o que era essa ‘natureza’ que não era simplesmente natureza divina nem simplesmente natureza humana?”.[155] Concebia-se, pois, que Cristo possuía uma única natureza que não era a natureza divina simples nem a mera humanidade. Isto conduziu Cristo perigosamente perto da posição da cristologia de Ário. Ou o Cristo do pensamento monofisita não era Deus nem homem mas uma figura intermediária, ou era um Deus em cujo ser a humanidade fora absorvida. Em qualquer um dos casos, a confusão das duas naturezas era imensa. No primeiro caso, Jesus Cristo não é consubstancial nem a Deus nem ao homem, e, no outro, o homem torna-se consubstancial a Deus. Uma seita monofisita, os aphthartodocetae, afirmava que o corpo de Jesus Cristo tornara-se incorruptível não por virtude de sua ressurreição, mas por conta de sua união com a natureza divina, isto é, por meio da comunicação das propriedades da natureza divina à natureza humana. Na era moderna, o pensamento monofisita era visível na obra Life of Christ, de Henry Ward Beecher, e no swedenborguianismo — e em ambos os casos o humanismo é posto em evidência. Esses eram os problemas prementes no Concílio de Constantinopla II. Schaff referiu-se a esse concílio como “um mero suplemento ao terceiro e quarto [concílios]”.[156] Suplementos são, no entanto, em geral necessários e importantes. A fé essencial com relação à Trindade havia sido definida: os erros agora tinham de ser corrigidos e prevenidos. O concílio declarou quatorze anátemas. Embora os traços da doutrina da virgindade perpétua de Maria não sejam aceitos por todos os protestantes ortodoxos, esse concílio foi aceito por todos os ramos ortodoxos da igreja. O primeiro anátema declarava: Se alguém não confessa uma única natureza ou substância, uma única força e poder, uma Trindade consubstancial e uma única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, devendo ser adorada em três hipóstases ou pessoas, seja anátema. Um, de fato, é Deus Pai, de quem tudo, um o Senhor Jesus Cristo, por quem tudo, um o Espírito Santo, em quem tudo.[157] Essa é simplesmente uma insistência na doutrina ortodoxada Trindade. Ora, a Trindade não é um Deus, com três pessoas, porém, que não são iguais nem possuem igualmente uma única natureza, poder e força. Variações da doutrina ortodoxa caem no triteísmo e unitarismo. Não há possibilidade de sobrevivência para a igreja enquanto corpo cristão, se os desvios do trinitarianismo não são anatematizados. O segundo anátema dizia: Se alguém não confessa que dois são os nascimentos do Verbo de Deus, um pelo Pai, antes dos séculos, fora do tempo e incorporal, o outro, nestes nossos últimos tempos, quando ele desceu dos céus e se encarnou da santa e gloriosa deípara e sempre virgem Maria e dela nasceu, seja anátema.[158] Jesus Cristo como Deus verdadeiro é, pois, eternamente existente, “fora do tempo e incorporal”, gerado eternamente do Pai e um Deus com ele. Em sua humanidade, Jesus Cristo é homem verdadeiro de verdadeiro homem, nascido da Virgem Maria. A realidade de sua humanidade e divindade é declarada nesse trecho. O terceiro anátema declarava: Se alguém diz que o Verbo de Deus que opera milagres não é o próprio Cristo que sofreu, ou que o Deus Verbo está junto com o Cristo nascido de mulher [cf. Gl 4,4], ou que ele está nele como um ser em outro; mas não que um só e mesmo nosso Senhor Jesus Cristo é o Verbo de Deus encarnado e feito homem, ao qual pertencem tanto os milagres como os sofrimentos que voluntariamente suportou na sua carne, seja anátema.[159] Essa afirmação ressalta tanto as declarações de Calcedônia quanto de Éfeso. Uma vez que a encarnação foi real e a união das duas naturezas foi verdadeira, é impossível tratar Cristo como duas pessoas, atribuindo certos atos à natureza divina e outros à natureza humana. Há duas naturezas, mas uma pessoa, e atribuir os milagres e sofrimento a qualquer uma delas em vez de a uma única pessoa (Jesus Cristo) é negar a encarnação. A afirmação, portanto, é claramente hostil a uma união nestoriana das duas naturezas, na qual a pessoa de Deus e a pessoa de Jesus permanecem distintas, mas também é claramente hostil a uma negação monofisita da humanidade após a encarnação. O entendimento é que há duas naturezas na pessoa una em perfeita união. Não há base, portanto, para enxergar nesse ponto tentativas de conciliação com os monofisitas nesses anátemas, conforme é a posição atual de alguns acadêmicos; antes, é uma posição que ataca ambas as frentes. Condena-se a confusão e absorção da humanidade na Divindade: aqueles que dizem que “o Deus Verbo está junto com o Cristo nascido de mulher [cf. Gl 4,4], ou que ele está nele como um ser em outro” estão condenados. O quarto anátema declara: Se alguém diz que a união do Verbo de Deus com o homem aconteceu só na ordem da graça, ou da operação, ou da igualdade de honra, ou da autoridade, ou da relação, ou do afeto ou da força; ou, então, segundo o beneplácito, como se o Verbo de Deus se tivesse comprazido no homem, porque teve dele uma boa e bela estima, como no seu devaneio afirma Teodoro; ou, então, segundo a homonímia pela qual os nestorianos atribuem ao Deus Verbo o nome de Jesus e de Cristo, enquanto chamam o homem separadamente de Cristo e Filho, falando evidentemente de duas pessoas, e <assim> de modo fingido falam de uma só pessoa e de um só Cristo somente quanto ao nome, a honra, a dignidade e a adoração; mas não confessa que a união do Verbo de Deus com a carne animada por uma alma racional e intelectiva tenha acontecido segundo a composição, isto é, segundo a subsistência, como têm ensinado os Santos Padres, e por isso <não confessa> uma só hipóstase nele, que é o nosso Senhor Jesus Cristo, um da santa Trindade, seja anátema. De fato, a unidade (enosis) é concebida de muitos modos: uns, seguindo a impiedade de Apolinário e de Êutiques e admitindo a anulação dos elementos que formam a unidade, falam de uma união por confusão, outros, seguindo as ideias de Teodoro e de Nestório, são favoráveis à separação e falam de uma união de relação. A santa Igreja de Deus, rejeitando a impiedade de uma e outra heresia, confessa a união de Deus Verbo com a carne segundo a composição, ou seja, segundo a hipóstase. Esta união por composição não somente conserva, no mistério de Cristo, sem confusão, os elementos (as duas naturezas) que concorrem à unidade, como também não admite sua divisão (das pessoas).[160] Essa declaração mais uma vez anatematiza tanto os nestorianos quanto os monofisitas. A encarnação é uma verdadeira união, sem confusão ou mudança, das duas naturezas em uma pessoa, Jesus Cristo. Tratar da união como simplesmente uma identificação moral, ou como uma união de atividade ou operação, é negar a encarnação. Êutiques, especificamente mencionado, era um precursor do pensamento monofisita. Seu ensino e todos os demais que declaravam o desaparecimento de uma natureza após a união, ou a confusão entre ambas, foram condenados. O nestorianismo e o monofisismo são “heresias”. Esse anátema denuncia aqueles que falam “de modo fingido falam de uma só pessoa e de um só Cristo”, mas na verdade falam “evidentemente de duas pessoas”. O quinto anátema proclama: Se alguém entende a única hipóstase de nosso Senhor Jesus Cristo como se abrigasse o sentido de muitas hipóstases, e destarte tentar introduzir no mistério de Cristo duas hipóstases ou duas pessoas; e, depois de haver introduzido duas pessoas, falar de uma só pessoa quanto à dignidade, a honra e a adoração, como escreveram em seus devaneios Teodoro e Nestório; e se acusar o santo Sínodo de Calcedônia, sustentando que este usou a expressão “uma só substância” neste ímpio sentido; e não confessa, ao invés, que o Verbo de Deus se uniu à carne segundo a hipóstase e que, portanto, há somente uma hipóstase, ou seja, uma só pessoa; e que é neste sentido que o santo Sínodo de Calcedônia confessou uma só hipóstase do Senhor Jesus Cristo, seja anátema. A santa Trindade, de fato, não recebeu acréscimo de pessoa ou hipóstase, nem mesmo depois que se encarnou um da santa Trindade, Deus Verbo.[161] Novamente a condenação ataca ambas as frentes, e a definição de Calcedônia torna-se o teste da ortodoxia. O caminho para unidade dos monofisitas e ortodoxos é por meio da submissão de todos à definição de Calcedônia. Esse anátema dificilmente conciliaria os monofisitas, no entanto não se buscava conciliação ao custo da verdade. O sexto anátema declara: Se alguém diz que a santa gloriosa e sempre virgem Maria é deípara somente em sentido impróprio e não verdadeiro, ou que ela o é por atribuição, como se dela tivesse nascido um simples homem e não o Verbo de Deus enquanto unido ao homem no momento de seu nascimento; e se ele acusa o santo Sínodo de Calcedônia de chamar a Virgem deípara nesse sentido ímpio imaginado por Teodoro; ou se alguém a chama hominípara ou cristípara como se Cristo não fosse Deus, mas não a confessa, propriamente e segundo a verdade, deípara desde o momento em que o Deus Verbo, gerado pelo Pai antes dos séculos, nestes últimos tempos, se encarnou nela, e não reconhece que é com este sentimento de veneração que o santo Sínodo de Calcedônia a proclamou deípara, seja anátema.[162] Ora, insiste-se na realidade da encarnação em oposição ao nestorianismo e a Teodório de Mopsuéstia. Tendo o nestorianismo sido condenado, os humanistas retiraram-se para a posição então ainda não condenada de Teodoro em busca de um porto seguro. O concílio agora condenava a raiz e o fruto, igualmente. Tentativas de interpretar-se o Concílio de Calcedônia com base no pensamento de Teodoro também foram condenadas: quando Calcedônia e os concílios anteriores referiam-se à Maria como theotokos, eles o fazia com base na cristologia ortodoxa, não no que diz respeito a uma união voluntária. O sétimo anátema diz: Se alguém, ao dizer “em duas naturezas”, não confessa que na divindade e na humanidade se deve reconhecer nosso Senhor Jesus Cristo, no sentido de indicar a diversidade das naturezas na qual se realizou a inefável unidade sem confusão — sem que o Verbo se mudasse na natureza da carne e sem que a carne se transformasse na naturezado Verbo (pois ambos permanecem o que são por natureza também depois que se realizou a união segundo a hipóstase); mas entende tal expressão como uma divisão em partes no mistério de Cristo; ou se, ao admitir o número das naturezas no mesmo e único nosso Senhor Jesus Cristo, Deus Verbo encarnado, não entende a diferença das naturezas constitutivas em nível de teoria somente, não sendo supressa pela união (porque um <é> em ambos e ambos em um), mas serve-se do número para considerar as naturezas como separadas e tendo hipóstase própria, seja anátema. O sexto anátema tratava daqueles que distorcem a doutrina ortodoxa e falam do encarnado “como se Cristo não fosse Deus”. No sétimo anátema, citou-se mais alguns estratagemas, e estes foram respondidos com base em Calcedônia. O resultado substancial das heresias era a negação da encarnação. Ou as duas naturezas eram tão divididas de modo que não ocorria uma união verdadeira, mas apenas uma associação voluntária; ou as duas naturezas estavam tão confusas entre si, de maneira que a humanidade era absorvida na divindade. O resultado prático e filosófico tanto do nestorianismo quanto do monofisismo era a apoteose do homem; ambos representavam o triunfo do humanismo pagão e da teologia imperial. A liberdade ocidental é o produto da cristologia calcedoniana e do trinitarianismo do Credo Atanasiano. O humanismo explícito ou implícito tentará ou separar o homem Jesus da pessoa de Deus, exceto por uma associação voluntária aberta a todos, ou dar-lhe uma divindade acessível a todos os homens. O anátema do concílio aplica-se a todos os que assim creem. O oitavo anátema diz: Se alguém, confessando que a união foi feita das duas naturezas, da divindade e da humanidade, ou falando de uma só natureza encarnada do Deus Verbo, não entende estas expressões segundo o sentido do ensinamento dos Santos Padres, isto é, que da natureza divina e da natureza humana, pela união segundo a hipóstase, se fez um só Cristo, mas antes com esta expressão tenta introduzir uma só natureza ou substância da divindade e carne de Cristo, seja anátema. Ao dizer, de fato, que o Verbo unigênito se uniu à carne segundo a hipóstase, não afirmamos que se tenha operado uma recíproca confusão das naturezas, mas antes entendemos que o Verbo se uniu à carne, mesmo se uma e outra <natureza> permanecem o que são. Em consequência, um é também o Cristo Deus e homem, consubstancial ao Pai segundo a divindade, consubstancial a nós segundo a humanidade. Por isso, a Igreja de Deus rejeita e anatematiza aqueles que dividem ou cortam em partes o mistério[163] da divina economia de Cristo, bem como aqueles que o confundem.[164] Novamente, enfatiza-se as declarações de Calcedônia, e condena-se a confusão monofisita das naturezas. As doutrinas sofisticadas dos monofisitas não eram capazes de ocultar seu impulso essencialmente helenista e humanista. Para o confessionalismo atanasiano e calcedoniano, o Deus triúno é o verdadeiro universal. Ao introduzir uma confusão de naturezas na pessoa de Cristo, a humanidade torna-se una com os universais, com as realidades últimas do universo. A humanidade torna-se por meio disso seu próprio deus. A soberania é transferida de Deus ao homem, e a salvação torna-se também progressivamente obra humana, na medida em que o ser humano se transforma então no novo universal. A liturgia copta monofisita já chegou a um estágio de celebração do homem e Deus, igualmente. Num hino antigo, que embora ainda preste honra à “Trindade Santa e igual”, a congregação canta: Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, a Trindade Santa e igual. Digna, digna, digna, a Santa Virgem Maria. Dignos, dignos, dignos, teus servos, os cristãos.[165] As doutrinas da justificação, predestinação e graça soberana levantadas pela Reforma são simplesmente o complemento lógico e necessário de Calcedônia e do Credo Atanasiano, e todos estes juntos são meramente a fé bíblica. O humanismo faz do homem o novo universal, e o Estado torna-se o deus unificado na terra. Consequentemente, embora possa reter-se a forma da doutrina cristã, o coração dessa doutrina pode ser negado ao introduzir-se o homem na Divindade e tornando-o o novo universal. Quando o escolasticismo reintroduziu o humanismo de Aristóteles na história ocidental, a consequência foi o declínio do cristianismo ortodoxo e sua resposta trinitária ao problema do uno e do múltiplo, e dos universais. Os universais do escolasticismo tornaram-se as ideias ou formas helênicas, e a própria Trindade foi reavaliada com base nessas formas, tornando-se substância (o Pai), estrutura (o Filho) e processo (o Espírito), de modo que a Trindade se transformou simplesmente no ser comum do universo analisado em seus aspectos. Os universais manifestavam-se intensamente na imanência, e o conflito da Europa medieval passou cada vez mais a ser uma competição entre candidatos ao título de universal concreto, isto é, a expressão imanente da ordem suprema. Igreja, Estado e a universidade reivindicavam igualmente a supremacia e a soberania, como fizeram grupos anárquicos e pautados na supremacia do indivíduo — por exemplo, os adamitas e outros movimentos da época. Os místicos também reivindicavam a mesma realização do universal em sua experiência. Quaisquer e todos afastamentos da fé dos Concílios de Éfeso e Calcedônia, assim como do Credo Atanasiano, era uma jornada ao humanismo, e uma suplantação de Deus pelo homem. O nono anátema proclama: Se alguém diz que Cristo é adorado em duas naturezas, introduzindo com isto duas adorações, uma própria do Deus Verbo e outra própria do homem; ou se alguém fala fantasiosamente sobre a supressão da carne ou a confusão da divindade e da humanidade, ou de uma só natureza ou substância dos elementos unidos, e assim adorar o Cristo, mas sem venerar com única adoração o Deus Verbo encarnado junto com a sua carne, como a Igreja de Deus recebeu <por tradição> desde o início, seja anátema.[166] Nesse nono anátema, várias formas de perversão da fé de Calcedônia são citadas e condenadas. Primeiramente, alguns adoravam ambas as naturezas de Cristo, sua humanidade e igualmente sua divindade, introduzindo assim ao cristianismo a adoração ao homem em nome da obediência à fé. Em segundo lugar, outros confundiam as duas naturezas e por conseguinte adoravam o homem, introduzindo a humanidade na natureza da Divindade. Em terceiro lugar, outros ainda reduziam as duas naturezas a uma somente mediante a absorção, destruindo, pois, novamente a distinção bíblica entre Deus e homem e entre seus seres distintos. A distância entre o ser incriado de Deus e o ser criado do homem poderia ser intermediada unicamente — e sem confusão — em Jesus Cristo; tentativas de naturalizar essa intermediação por meio da confusão ou absorção tinham como objetivo e propósito obliterar a distinção entre Deus e homem. Essa obliteração serve para tornar o homem seu próprio deus. O décimo anátema dizia: Se alguém não confessa que nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado em sua carne, é verdadeiro Deus, Senhor da glória e um da santa Trindade, seja anátema.[167] Deus pode ser eliminado de uma filosofia ou religião não somente por meio da confusão com a humanidade, de modo que Deus e homem tornem-se fundamental ou potencialmente unos, mas também mediante um isolamento radical e total de ambos. Se Deus se transforma no “totalmente Outro”, um deus oculto que não se revela (como o é para o arianismo e para a neo- ortodoxia), ele cessa de ser deus sobre o homem. Um deus oculto que não falou nem pode fazê-lo, que não tem revelação nem uma palavra infalível, deve necessariamente entregar o universo nas mãos do homem. O homem ao menos fala; ao menos tem algum tipo de palavra, de modo que, falando, substitui o deus silencioso pelo senhor do ser. Negações da realidade da encarnação e da realidade da crucificação de Cristo, embora supostamente tentem salvaguardar Deus do mundo da mutabilidade e paixão, estavam na verdade resguardando o homem da interferência da parte de Deus. Seo Cristo crucificado e ressurreto é simplesmente um homem notável, então prenuncia um mundo novo de potencialidade para o homem como o senhor da criação. Se este Cristo crucificado e ressurreto é Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, assim como verdadeiro homem de verdadeiro homem, segue-se que o homem está sob o governo e decreto de Deus enquanto criatura. O décimo primeiro anátema expressa: Se alguém não anatematiza Ário, Eunômio, Macedônio, Apolinário, Êutiques e Orígenes juntamente com seus ímpios escritos, bem como todos os outros hereges condenados pela santa Igreja católica e apostólica e pelos quatro supracitados concílios, e também os que professaram ou professam doutrinas semelhantes àquelas dos supraditos hereges e persistem na própria impiedade até a morte, seja anátema.[168] Não basta ser contra as heresias; é preciso ser contra hereges. A noção de que se pode odiar o pecado e amar o pecador é uma contradição. Pode alguém odiar o roubo e amar o ladrão que lhe roubou, ou odiar o assassinato, mas amar o assassino de sua família, ou ainda odiar o estupro, porém amar o estuprador que violou seus entes queridos? De fato, a ideia de que isso é possível é lugar-comum, mas é uma evidência de degeneração moral. O Concílio nomeou vários hereges, condenou-os e exigiu que os crentes ortodoxos se unissem na condenação em relação a eles. Aqueles que se recusam a condenar os hereges são eles mesmos culpados de impiedade e são, pois, anátema. Ou os homens se separam da heresia e dos hereges com base na fé, ou são separados da fé e dos fiéis. O décimo segundo anátema proclama: Se alguém defende o ímpio Teodoro de Mopsuéstia, que diz: um é o Deus Verbo e outro o Cristo que, molestado pelas paixões da alma e os desejos da carne, foi apartado pouco a pouco dos sentimentos inferiores e que, melhorando com o progredir das obras e se erguendo perfeito pelo modo de viver, foi batizado como um simples homem no nome do Pai do Filho e do Espírito Santo e por meio do batismo recebeu a graça do Espírito Santo e foi julgado digno da adoção divina; e que, assim como acontece a uma imagem do imperador, recebe adoração destinada à pessoa de Deus Verbo; e que, depois da ressurreição, se tornou imutável nos seus pensamentos e de todo impecável. O ímpio Teodoro disse também que a união do Deus Verbo com o Cristo é semelhante à união do homem e da mulher, de que fala o Apóstolo: “Os dois formarão uma só carne” [Ef 5,31]. Entre outras inumeráveis blasfêmias, ele ousou dizer que depois da ressurreição, quando o Senhor soprou sobre os seus discípulos, dizendo: “Recebei o Espírito Santo” [Jo 20,22], não lhes deu o Espírito Santo, mas soprou só a modo de figura. Ele disse também que a confissão de Tomé, quando, após apalpar as mãos e o lado do Senhor, depois da ressurreição exclamou: “Meu Senhor e meu Deus” [Jo 20,28], não foi pronunciado por Tomé a respeito de Cristo, mas que, no seu estupor pelo milagre da ressurreição, Tomé glorificou a Deus que havia ressuscitado Cristo. E, o que é pior, no seu comentário aos Atos dos Apóstolos, o mesmo Teodoro, comparando o Cristo a Platão, a Mâni, a Epicuro, a Marcião, afirma que, como cada um destes inventando uma doutrina própria fez que seus discípulos se chamassem platônicos, maniqueus, epicureus e marcionitas, do mesmo modo, tendo inventado Cristo uma doutrina, é segundo ele que são denominados os cristãos. — Se, portanto, alguém defender o ímpio supracitado Teodoro e os seus escritos sacrílegos, nos quais despeja as blasfêmias já recordadas e inumeráveis outras contra o grande Deus e Salvador Jesus Cristo, e não o anatematiza com os seus ímpios escritos, bem como a todos aqueles que o aceitam, ou o defendem, ou afirmam a ortodoxia de sua doutrina, ou aqueles que escreveram a seu favor e partilham seus pensamentos, ou que, partilhando os seus pensamentos, estão escrevendo a favor dele e dos seus ímpios escritos, bem como os que pensam ou outrora pensaram como ele e perseveraram em tal impiedade [heresia] até o fim, seja anátema.[169] Ao analisar os ensinamentos de Teodoro de Mopsuéstia, o concílio focou-se incisivamente em seu humanismo essencial. Jesus Cristo fora reduzido à categoria de um mestre dentre muitos, sendo, no máximo, um grande homem que por meio da excelência moral tornara-se uma imagem ou ícone de Deus, assim como as imagens de um imperador representam este e são adoradas. Esta referência “assim como acontece a uma imagem do imperador” é significativa, na medida em que as imagens dos imperadores se tornaram novamente centrais na controvérsia iconoclasta. É também significativo que uma imagem ou ícone não é a substância; mas o imperador ou deus representado o são. Cristo, como ícone (nesse sentido acima) do Pai, é apenas um ícone ou imagem possíveis dentre muitos, assim como um mestre possível dentre vários. Portanto, afirmando adorar Cristo como a imagem do Pai, aqueles que estavam usando a terminologia de Teodoro de Mopsuéstia para resguardar seu nestorianismo estavam na verdade rebaixando Cristo, ainda que o adorassem. Quando se abre as portas para várias imagens e mestres, todos são supostamente exaltados, quando, na realidade, são rebaixados, visto que a verdade não é propriedade de nenhum deles. Um deus não revelado implica uma verdade não revelada; de igual modo, um deus não revelado é também possivelmente um deus e uma verdade inexistentes. O homem então se torna seu próprio caminho, verdade e vida, e a verdade objetiva é substituída pela verdade subjetiva. O décimo terceiro anátema declara: Se alguém defender, contra a verdadeira fé, contra o primeiro e santo Concílio de Éfeso, contra são Cirilo e seus doze capítulos, os ímpios escritos de Teodoreto e tudo o que mesmo Teodoreto compôs em defesa dos ímpios Teodoro e Nestório e dos outros que professam o pensamento dos supraditos Teodoro e Nestório e os acatam juntamente com sua impiedade; e <se> por causa deles chamar de ímpios os doutores da Igreja que professam a união segundo a hipóstase do Verbo de Deus; e se, portanto, não anatematiza os sobreditos ímpios escritos e aqueles que pensam ou pensaram como eles e quantos têm escrito contra a fé ortodoxa e contra Cirilo, homem santo, e seus doze capítulos, bem como aqueles que findaram em tal impiedade, seja anátema.[170] Os escritos do bispo e historiador da igreja, Teodoreto, um amigo de Nestório, foram também sujeitos ao escrutínio e condenação. Teodoreto tem muitos defensores modernos. Permanece o fato, contudo, que sua defesa do nestorianismo foi nítida e sua posição, não ortodoxa. A condenação de homens mortos há muito tornou-se necessária no concílio, visto que muitos hereges então contemporâneos se refugiavam nas opiniões de Teodoro, Teodoreto, Ibas e outros, a fim de escaparem da acusação de nestorianismo. O décimo quarto anátema assim proclama: Se alguém defende a carta, que dizem ter sido escrita por Ibas ao persa Máris, na qual se nega que Deus Verbo, encarnado na santa deípara e sempre virgem Maria, se fez homem; <carta> que afirma que dela nasceu um simples homem, que ele chama de templo, de modo que um seja o Deus Verbo, outro o homem; que acusa são Cirilo, que pregou a verdadeira fé cristã, de ser herege e de ter escrito de igual modo que o ímpio Apolinário; que reprova o primeiro santo Sínodo de Éfeso por ter, sem suficiente discussão, condenado Nestório — e esta mesma ímpia carta define os doze capítulos de são Cirilo ímpios e contrários à verdadeira fé e toma a defesa de Teodoro e de Nestório, bem como das suas doutrinas e escritos ímpios; se, portanto, alguém defende a referida carta e não a anatematizar juntamente com os que a defendem, mas diz que ao menos em parte é ortodoxa; e <se não condenar> aqueles que escreveram e escrevem a seu favor ou a favor das aí contidas impiedades e se atrevem, em nome dos Santos Padres e do santo Sínodo de Calcedônia, a vindicá-la ou as impiedades nela contidas, nisto perseverantes até o fim: seja anátema. Depois de ter assim professado o que recebemos tanto da Sagrada Escritura como doensinamento dos Santos Padres e das definições em torno da única e mesma fé formuladas pelos sobreditos quatro santos sínodos; depois de ter pronunciado a condenação contra os hereges e sua impiedade, e contra aqueles que vindicam ou tentam vindicar os supraditos três capítulos e perseveraram e continuam perseverando em seu próprio erro; se alguém tentar transmitir, ensinar ou escrever alguma coisa contra o que piedosamente temos definido, se for bispo ou clérigo, por agir de modo incompatível com o sacerdócio ou o estado eclesiástico, será despojado da sua dignidade episcopal ou clerical; se for monge ou leigo, será anatematizado.[171] O Ibas mencionado era o bispo que presidiu em Edessa, Síria, de 435 a 457; Ibas traduziu as obras de Teodoro de Mopsuéstia para o siríaco e distribuiu-as extensivamente por toda Pérsia e Síria. Ele foi acusado de nestorianismo e por duas vezes foi absolvido; porém o Concílio dos Salteadores em Éfeso (449) o depôs. O Concílio de Calcedônia reestabeleceu Ibas após um exame, tal como fizeram com Teodoreto após este por fim anuir aos anátemas contra Nestório. O Segundo Concílio de Constantinopla evitou condenar Teodoreto e Ibas, mas condenou somente seus escritos que ensinavam erros específicos. No caso de Ibas, a carta em questão citada como aquele “que dizem ter sido escrita por Ibas ao persa Máris” sugere dúvida. A carta continha declarações como: “Aqueles que afirmam que o Verbo se encarnou e fez-se homem são heréticos e apolinarianistas”.[172] A posição de Ibas, no entanto, à exceção dessa carta, era suspeita. O Segundo Concílio de Constantinopla defendeu, pois, habilmente a obra dos Concílios de Éfeso e Calcedônia. Não representou um desenvolvimento, mas sim uma competente defesa da fé, realizando o que se mostrou necessário. Ora, ao lidar com o perigo, não basta evitá-lo citando o fato de que alguém já tratou com a questão no passado. Se um inimigo ataca hoje, deve-se combatê-lo hoje, mas sem abdicar das vitórias passadas. Uma igreja não pode dizer: “Se os homens se levantarem dentre nossas fileiras para negar a infalibilidade das Escrituras, não podemos lidar com eles hoje, porque a confissão já tratou dessa questão séculos atrás”. Antes, deve afirmar a antiga confissão por meio de uma nova condenação dos hereges. É isto que o Segundo Concílio de Constantinopla fez. O Concílio, ademais, não tinha receios quanto à complexidade e refinamento da doutrina. A bem da verdade, traçou a linha nitidamente, pois a alternativa era apagar ou ao menos esfumar a linha entre cristianismo e humanismo. Um recuo à simplicidade da fé é uma retirada em direção à morte. O escárnio que os homens reservam àqueles cujos ensinos se mostram difíceis não é evidência de caráter; antes, de seus pulmões já se ouvem os estertores de uma igreja e de uma cultura. As igrejas atuais que traçam essa linha com nitidez são congregações pequenas e solitárias, que crescem apenas com dificuldades, ao passo que os modernistas e arminianos que apagam a linha da transgressão e introduzem o humanismo na igreja parecem florescer. Mas seu crescimento é simplesmente o crescimento da corrupção, e sua única luz é a fosforescência da decomposição. 10. A DOUTRINA DA GRAÇA No pelagianismo, o humanismo assumiu proeminência com sua doutrina do homem. Pelágio asseverava franca e abertamente a habilidade plenária do homem de viver sem pecado: “Afirmo que o homem é capaz de viver sem pecado e que é capaz de observar os mandamentos de Deus”.[173] Pelágio advogava, primeiramente, que todos podem livrar-se do pecado caso queiram, e que muitos de fato o fizeram. Em segundo lugar, ensinava que cada homem nasce sem qualquer obstrução ou consequência do pecado ou fraqueza moral de Adão ou mesmo de seus ancestrais. Em terceiro lugar, o homem não tem a necessidade da graça para vencer o pecado.[174] Conforme notou Matheson, “o paganismo desconhece por completo o pecado; conhece apenas pecados: não possui conceito do princípio do mal, mas compreende apenas um agregado de atos malignos”. A isso Warfield acrescenta: “isto também é pelagianismo”.[175] Diz-se que Pelágio, esse monge britânico que foi o expoente dessa forma de humanismo, chamava-se originalmente Morgan. Os anos de sua morte e de seu nascimento são desconhecidos, porém ele veio a Roma por volta de 400 d.C. e começou a ensinar suas doutrinas. O grande defensor da ortodoxia contra o pelagianismo foi Santo Agostinho. Visto que escapa ao nosso propósito uma análise das controvérsias e dos homens e escritos nelas envolvidos, antes nos interessa apenas os movimentos confessionais e conciliares, não cabe discutir aqui a grande obra de Santo Agostinho. O concílio que confrontou o pelagianismo foi o Segundo Sínodo em Orange (Aráusio) no sul da Gália, em 3 de julho de 529. Schaff designou esse concílio como uma vitória do semi-agostinianismo,[176] e isto é em grande medida verdade; mas, tendo sido uma vitória do semi-agostinianismo, foi também uma vitória do semi-pelagianismo. O texto dos vinte e seis cânones encontram-se em Leith, e sumários desses cânones, com o texto integral em latim, podem ser consultados em Hefele.[177] O sumário de Landon oferece o ponto essencial desses vinte e seis cânones de modo mais acessível, ao resumir os centrais: 1. Condena aqueles que afirmam que o pecado de Adão afetou somente o corpo do homem ao torná-lo mortal, mas não afetou de igual modo a alma. 2. Condena aqueles que sustentam que o pecado de Adão prejudicou apenas a si próprio, ou que a morte do corpo é apenas efeito de sua transgressão que foi legada à sua posteridade. 3. Condena aqueles que ensinam que a graça é concedida em resposta à oração do homem e aqueles que negam que é por meio da graça que o homem é trazido à oração. 4. Condena aqueles que ensinam que Deus aguarda por nosso desejo de purificarmo-nos do pecado, e não que, pelo seu Espírito, concede-nos o desejo de sermos purificados. 5. Condena aqueles que advogam que o ato de fé, pelo qual nós que cremos nele somos justificados, não é obra da graça, mas que somos capazes de realizá-lo por nós mesmos. 6. Condena aqueles que afirmam que o homem pode pensar ou fazer algo bom, sem a graça, no tocante à sua salvação. 7. Condena aqueles que defendem que alguns podem vir à graça do batismo por seu próprio livre arbítrio, e outros mediante o auxílio sobrenatural da misericórdia divina.[178] Os dezoitos cânones restantes são essencialmente sentenças retiradas das obras de Santo Agostinho e Próspero. Outras três proposições são acrescentadas aos vinte e cinco cânones, as quais afirmam: 1. Que todas pessoas batizadas podem, caso o queiram, desenvolver sua salvação. 2. Que Deus não predestinou ninguém à condenação. 3. Que Deus, por sua graça, dá-nos o princípio da fé e caridade, sendo o Autor de nossa conversão.[179] Em alguns aspectos, portanto, o concílio foi um retrocesso. As vitórias conquistadas por Agostinho e seus seguidores foram erodidas. O comentário de Fisher a esse respeito é pertinente: O Concílio afirmou a necessidade da graça preveniente e a necessidade da graça a cada estágio da renovação da alma, afirmando também que a graça imerecida precede as obras meritórias, que todo bem, incluindo o amor a Deus, é dom divino, e que mesmo o homem não caído necessitava da graça. Mas não apenas nega-se a predestinação ao pecado, mas também não se afirma a eleição incondicional ou a graça irresistível. Ademais, diz-se que o livre arbítrio foi “enfraquecido” em Adão e restaurado por meio da graça do batismo. O credo é anti-pelagiano, porém as doutrinas do semi-pelagianismo são apenas em parte explicitamente condenadas. O credo foi aprovado pelo bispo de Roma, Bonifácio II.[180] E mais: já que Agostinho afirmou claramente a dupla eleição — para a condenação e para a salvação —, ele próprio foi de fato condenado pelo Concílio de Orange. O agostinianismo estrito teve seus aderentes nos séculos seguintes, em homens como Beda, Alcuíno de Iorque e Isidoro de Sevilha, no entanto a igreja afastou-se progressivamentedo agostinianismo até os tempos da Reforma. As consequências são imensas. O pelagianismo é essencialmente a afirmação da habilidade do homem em salvar a si próprio; é uma crença de que o homem não precisa de Deus para alcançar a vida perfeita. As implicações dessa doutrina tanto para a igreja quanto o Estado, bem como para todas as demais esferas, são imensas. Se o homem é capaz, então o Estado, a igreja e a universidade são capazes de salvar o homem. Na teoria política, o pelagianismo significou que o Estado não se restringe ao papel de um ministro da justiça. O Estado torna-se o mediador e salvador do homem. O Estado pelagiano oferece segurança do nascimento à morte. Encara todo problema com a confiança de que, dados tempo e poder suficientes, ele proverá a resposta. O Estado pelagiano tem confiança de que pode abolir a doença e enfermidade, pobreza e fome, crime e desordem, e, por meio da ciência nacionalizada, possivelmente até a própria morte. O pelagianismo assevera a habilidade total do homem de salvar-se, e o Estado pelagiano crê nesse poder plenário do Estado em salvar o homem e criar o paraíso na terra. Uma vez que o Estado pelagiano crê em sua habilidade plenária, ele trabalha para alcançar esse poder plenário que afirma como necessário para o exercício de suas habilidades e planos. Consequentemente, o pelagianismo na política é inescapavelmente totalitário. Não é capaz de impor restrições ao Estado, nem de suspeitar justificadamente dele, já que não há uma doutrina real do pecado, apenas um catálogo de atos pecaminosos. O declínio da doutrina da graça soberana é marcado pela ascensão do Estado soberano. No que diz respeito à doutrina da igreja, o pelagianismo tem também consequências de grande escopo. Conforme o pelagianismo se desenvolve, a igreja do mediador torna-se progressivamente o próprio mediador. A autoridade e a soberania que pertencem legitimamente a Cristo passam a ser creditadas à igreja pelagiana; e a infalibilidade de Cristo e de sua palavra escrita são paulatinamente transferidas à igreja. A igreja pelagiana enfraquece a dependência dos homens para com Deus e sua graça, e aumenta sua dependência à instituição da igreja. Graça e poder são transferidos da obra de Cristo para a obra da igreja, e a igreja torna-se cada vez mais o poder e sociedade salvadores. O interesse na cristologia ortodoxa definha, e o interesse na eclesiologia pelagiana aumenta. Uma vez que o poder reconhecido pela igreja pelagiana é essencialmente poder humano, ela busca o recrudescimento deste poder. Isto é feito de dois modos: em primeiro lugar, a igreja pelagiana busca força numérica por meio da união com outras igrejas pelagianas e mediante padrões mais laxos, a fim de apresentar uma forte vanguarda em relação à avaliação humana. Em segundo lugar, a igreja pelagiana busca poder por meio de uma aliança com o Estado. Seu objetivo é essencialmente o mesmo, um paraíso na terra mediante o esforço humano; e em conformidade a isso, o Estado e igreja pelagianos formam uma fronte comum para destruir cada traço do Estado e igreja cristãos. O objetivo comum é uma ordem mundial no qual o sonho de Pelágio, a perfectibilidade do homem pelo próprio homem, seja realizada. Visto que a igreja pelagiana crê cada vez mais abertamente no homem enquanto seu próprio deus, ela passa de um desdém a Deus para um esforço para aboli-lo e proclamá-lo como morto. A igreja pelagiana, assim como seu Estado, é essencialmente totalitária: é seu próprio deus e lei. O pelagianismo não é menos evidente na academia do que o é na igreja e Estado. A educação hoje em dia é em grande medida um pelagianismo aplicado.[181] A educação, nessa perspectiva, torna-se um programa de salvação. Por meio dela, todos os problemas humanos serão resolvidos. Conhecimento é poder, e o educador é, pois, a chave para a regeneração social do ser humano. A escola pelagiana concebe a ignorância — e não o pecado — como o obstáculo e problema essenciais do ser humano, e por conseguinte busca remover esses impedimentos. O homem deve ser desperto de sua ignorância para o vasto mundo de suas potencialidades. A escola é a instituição pela qual o ser humano pode tomar posse de seus poderes divinos e dominar a si e ao mundo. A escola pelagiana é, portanto, hostil ao Estado cristão e à igreja cristã tanto quanto à escola cristã, e busca a destruição de todos eles. Por meio da aliança com o Estado e igreja pelagianos, trabalha para criar o paraíso na terra. Mas o pelagianismo infecta todas as esferas. O artista crê no poder regenerador da experiência estética. As mulheres pelagianas passam a acreditar no poder de seu sexo para a salvação da humanidade, e o resultado disto é o feminismo. Os economistas têm planos pelos quais prestidigitações monetárias criarão prosperidade perpétua, e assim por diante. A habilidade plenária significa planejamento plenário, controle plenário e tiranos e tirania plenários. As consequências sociais e históricas do pelagianismo têm sido sempre desastrosas. Falando em nome da exaltação do homem, esses planejadores têm-no degradado. Somente a doutrina da graça soberana oferece um bastião para a liberdade, pois a graça soberana, fielmente crida e aplicada, implica também uma restrição soberana sobre as pretensões do homem. A Deus somente pertence o domínio. Ou Deus predestina, ou o homem e o Estado o fazem. Se Deus não é soberano, o Estado será. Os fundamentos da liberdade estão assentados com materiais agostinianos. É Cristo ou o Estado; um homem não pode ter dois senhores ou dois salvadores. O triunfo do pelagianismo é sempre a escravização do homem. Assim como o subordinacionismo foi uma contemporização que abriu mão do trinitarianismo ortodoxo ainda que estando próximo a ele, assim também o Concílio de Orange abriu mão da doutrina da graça ao transigi-la, mesmo que tenha defendido o agostinianismo em grande medida. A verdade é exata e precisa, e o desvio mais sutil da verdade é sua substituição pela falsidade. Os longos cânones de Orange são, de modo geral, excelentes, mas foram comprometidos pelo elemento do erro. 11. A PROCESSÃO DO ESPÍRITO SANTO O subordinacionismo, em seu sentido mais amplo, tinha uma implicação dupla: primeiramente, tratava o Pai como o verdadeiro Deus, mas concedia um status inferior ao Filho e ao Espírito Santo, de modo que, embora nominalmente trinitariano, era incompatível com o trinitarianismo. Em segundo lugar, como resultado de seu subordinacionismo, a ordem revelada, isto é, a revelação de Deus Verbo e sua palavra escrita, a Bíblia, assumia um lugar inferior ao mundo natural de Deus, a criação, e sua ordem de poder — o Estado. No subordinacionismo, o mundo tornou-se o domínio do Estado, e o elemento da revelação foi visto antes como um acréscimo do que uma parte necessária da vida do homem. No e por meio do subordinacionismo, o Estado messiânico reintroduzia suas reivindicações. O desenvolvimento agostiniano que culminou no Credo Atanasiano era hostil a esse subordinacionismo. Como conclusão lógica desse desenvolvimento, acrescentou-se ao Credo Niceno o Filioque, a cláusula concernente à processão do Espírito Santo do Filho, assim como do Pai: “que procede do Pai e do Filho”. A frase está ausente nas formas primitivas do credo, porque a questão não havia surgido ainda, mas o conceito estava inteiramente nos Credos Niceno e Atanasiano. A primeira inclusão conhecida do Filioque deu-se no Concílio de Toledo, na Espanha, em 589 d.C., que selou o triunfo da ortodoxia sobre o arianismo naquela região. A cláusula não apareceu nos credos mais antigos porque a questão não havia vindo à tona. Anteriormente havia um assentimento mais geral à processão do Espírito Santo do que tempos depois, quando os pensamentos monofisita e ariano desenvolveram suas implicações mais plenamente. Em João 14.16-18, 26-27, o Espírito Santo, o Consolador, é visto como proveniente tanto do Pai quanto do Filho, e o verso 18 é considerado nesse sentido pelos comentaristas bíblicos. Isto também se davana Igreja Primitiva. A sofisticação da dúvida veio tempos depois. O Segundo Concílio de Toledo, em 447 d.C., adotou este cânone: “O Pai é, portanto, não-gerado; gerado é o Filho; não gerado é o Paráclito, mas procede do Pai [e do Filho]”.[182] Mas naquele momento, embora se opusessem às crenças arianas, as palavras não foram adicionadas ao credo. O Concílio de 589 (Terceiro Concílio de Toledo) reuniu-se quando o rei Recaredo I tornou-se ortodoxo e trouxe os godos da Espanha à ortodoxia. Ele pediu que o concílio ou sínodo citasse e anatematizasse as heresias arianas e instruísse o povo. Formulou-se, pois, uma confissão geral com vinte e três anátemas, e acrescentou-se o Filioque ao credo. Assim, a confissão declarava: 1. Se alguém ainda sustenta a doutrina e comunhão com os arianos, seja anátema. 2. Se alguém não confessa que o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, é gerado da substância do Pai sem princípio, é co-igual e co-substancial ao Pai, seja anátema. 3. Se alguém não crê que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e é co-eterno e co-igual ao Pai e ao Filho, seja anátema. 4. Se alguém não distingue as pessoas na Trindade, seja anátema. 5. Se alguém declara que o Filho e o Espírito são inferiores ao Pai, seja anátema. 6. Se alguém não crê que o Pai, Filho e Espírito são de uma só substância, uma onipotência e eternidade, seja anátema. 7. Se alguém sustenta que o Filho desconhece algo, seja anátema. 8. Se alguém atribui um começo ao Filho ou ao Espírito, seja anátema. 9. Se alguém mantém que o Filho, em sua Divindade, era visível ou passível de sofrimento, seja anátema. 10. Se alguém não declara o Espírito Santo enquanto Deus todo-poderoso, assim como o Pai e o Filho, seja anátema. 11. Se alguém declara qualquer outra fé que a de Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia como a fé católica, seja anátema. 12. Se alguém separa o Pai, Filho e Espírito no que se refere à glória e Divindade, seja anátema. 13. Se alguém crê que o Filho e Espírito não devem ser honrados juntamente com o Pai, seja anátema. 14. Se alguém não diz: Gloria et honor Patri, et Filio, et Spiritui Sancto [Glória e honra ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo], seja anátema. 15. Se alguém defende ou pratica o rebatismo, seja anátema. 16. Se alguém considera como bom o abominável tratado que compusemos no décimo segundo ano de Leovigildo, a fim de desviar os romanos para a heresia ariana, seja anátema. 17. Se alguém não condena o Concílio de Arímino de todo seu coração, seja anátema. 18. Confessamos que, de todo nosso coração, nos convertemos da heresia ariana para a Igreja Católica. A fé que nosso rei confessava antes do Sínodo nós também confessamos e ensinamos às nossas congregações. Se alguém não sustenta essa fé, seja anátema. Maranata (1 Coríntios 16.22). 19-22. Se alguém rejeita a fé dos Sínodos de Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia, seja anátema. 23. Subscrevemos a essa condenação da heresia ariana com nossas próprias mãos. Subscrevemos à definição desses Sínodos de Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia. Eles contêm claramente as verdadeiras doutrinas da trindade e encarnação. Se alguém falseia essa santa doutrina e separa-se mais uma vez da comunhão católico que agora temos, é culpado perante Deus e mundo.[183] A referência no número 16 é ao sínodo herético, ariano, realizado em Toledo por volta de 581 ou 582, tendo sido convocado por Leovigildo, rei dos visigodos, um ariano que perseguia severamente a ortodoxia. Este sínodo publicou um libelo para perverter a ortodoxia, e os bispos então anatematizaram seu trabalho anterior. Esse mesmo fator, a condenação da coerção num sínodo, é evidente no número 17. O Concílio de Arímino (359) reuniu-se em Arímino (Rimini) na antiga România.[184] Enquanto o Concílio esteve livre, mostrou-se anti-ariano e ortodoxo. Quando sua ortodoxia ficou evidente, valeram-se da força para trazer à tona uma conclusão ariana. Usaram também de estratagemas, uma vez que o imperador Valente inseriu uma declaração de que o Filho não era uma criatura como as demais criaturas. Os bispos mais humildes interpretaram essa declaração como uma condenação do arianismo, quando se tratava na verdade de uma afirmação da criaturalidade do Filho, embora diferente daquela das demais criaturas. Pouco tempo depois, o Concílio de Arímino foi universalmente condenado. Aqueles que ressaltam o fato de que os concílios primitivos eram muitas vezes convocados por um rei ou imperador deixam de notar este fato mais significativo: os concílios eram livres das ordens do Estado, e um concílio coagido era um concílio falseado. O Estado poderia sugerir ou aconselhar, mas não ditar o concílio. Conforme Schaff apontou, o Filioque não era um acréscimo acidental, mas um desenvolvimento necessário da fé ortodoxa, a implicação inevitável da cristologia ortodoxa: A dupla processão segue-se inevitavelmente da consubstancialidade do Pai e do Filho, e da identidade do Espírito de Deus e do Espírito de Cristo. Forma também um elo entre a trindade e cristologia, assim como entre a cristologia e antropologia, ao trazer o Espírito Santo e sua obra a uma ligação imediata com Cristo e, por meio dele, com a igreja e o crente. Não era pois acidental que o mesmo Agostinho, que primeiramente ensinou de modo claro a dupla processão, desenvolveu também suas profundas reflexões sobre o pecado e a graça, que se enraizaram permanentemente no Ocidente, mas não tiveram influência no Oriente.[185] A depreciação ariana e dos hereges em geral no tocante à depreciação e subordinação de Jesus Cristo era uma depreciação da revelação. Na medida mesma em que a revelação foi desconsiderada, a natureza foi apresentada como a ordem primordial e essencialmente autossuficiente. Deus então tornou-se, no máximo, a primeira causa da natureza, e o humanismo grego novamente triunfou. Se a natureza é essencial e a ordem derradeira, e se Jesus é no melhor dos casos um produto da natureza, segue-se que o Estado é a verdadeira ordem do mundo — a ordem salvífica. Ademais, a determinação da história passou da Trindade para o Estado, da eternidade para o tempo, do sobrenatural para o natural. A cristologia subordinacionista era uma cristologia imperial; e as doutrinas imperiais — posteriormente cesaropapistas — sobre Deus concebiam-no essencialmente como o autor de uma natureza primária e de uma agência regente, isto é, o Estado. A voz segura de Deus era, portanto, a voz natural, o Estado. A obra da graça e da revelação tornou-se, pois, um tipo de acréscimo à natureza. O conceito escolástico de donum superadditum era basicamente humanista e de igual modo antibíblico. As implicações da escolástica eram por conseguinte subordinacionistas. As doutrinas agostinianas do pecado e da graça assentavam-se na perspectiva bíblica, numa cristologia anti-subordinacionista e no trinitarianismo. Yeomans assinala que O Filioque está vitalmente associado com o avanço da igreja ocidental em direção a uma antropologia vigorosa (em sua relação com a doutrina do pecado e graça), ao passo que o Oriente estacou num pelagianismo tíbio e numa perspectiva sinergista, rudimentar e pouco desenvolvida. A processão apenas de Patre per Filium [do Pai por meio do Filho] colocaria a igreja a uma distância segura, por assim dizer, em relação a Deus: isto é, para além de Cristo, numa extremidade, ou para uma periferia do reino da divina vida, ao invés de no centro e seio desse reino, em que todas as coisas lhe pertencem. O Filioque coloca a igreja, que é o templo e órgão do Espírito Santo na obra de redenção, antes entre o Pai e o Filho, participante da própria comunhão que há entre eles, de acordo com a grande oração de intercessão do próprio Cristo. Ele coloca a igreja no ponto de encontro ou no circuito vivo de interação da graça e natureza, do divino e humano, dando assim amplo escopo para as poderosas doutrinas da graça e natureza, assim como para uma doutrina vigorosa da própria igreja.[186] Devido ao subordicionacionismo, o desenvolvimento do Estado foi mais fortementepromovido no Oriente; e em razão do anti- subordinacionismo, o desenvolvimento da igreja tornou-se possível no Ocidente, de modo que tanto a alta doutrina da igreja da Europa Medieval quanto a Reforma são produtos desse trinitarianismo ortodoxo e antisubordinacionista. A ordem revelada e a ordem natural são ambas colocadas direta e totalmente abaixo da Trindade; igreja e Estado são ministros de Deus, igualmente responsáveis perante aquele cujos decretos governam todas as coisas. O Estado é o ministro da justiça, e a igreja é o ministro da Palavra e sacramentos; ambos são igualmente designados pela Trindade e encontram-se sob a autoridade do Deus triúno. Deus e Cristo não estão sustentando ordens rivais (como o subordinacionismo no melhor dos casos implicava), sendo a ordem de Deus suspostamente superior. Antes, somente o Deus triúno tem jurisdição universal; à igreja e ao Estado, respectivamente em suas áreas de justiça e da palavra e sacramentos, Deus concedeu autoridade limitada e subordinada. Em todas as coisas, ambos estão sujeitos a Deus. Como Gelásio I (492-496), papa e santo da igreja romana, declarou ao imperador: Há dois poderes que têm governo soberano sobre o mundo: as autoridades espiritual e temporal: a autoridade sagrada dos bispos é tão maior que no dia do juízo [final] deverão prestar contas pelos atos dos reis. Sabeis, magnânimo imperador, que vossa dignidade supera a dos demais príncipes da terra: entretanto, sois obrigados a submeter-vos ao poder dos ministros nas coisas sagradas, pois é a eles que vos dirigis para conhecer quais são as fontes de vossa segurança e as regras que deveis seguir ao receber os sacramentos, assim como na disposição das coisas da religião. Os bispos persuadem o povo de que Deus vos concedeu um poder soberano sobre as coisas temporais, e fazem-no submeter-se às vossas leis. Em retorno, deveis obedecer, com inteira submissão, aqueles que estão destinados a distribuir-vos os santos sacramentos. Se os fiéis devem seguir cegamente as ordens dos bispos que conduzem dignamente em suas funções, quanto mais devem receber o decreto do pontífice de Roma, a quem Deus estabeleceu como o primeiro dos bispos, e a quem a Igreja sempre reconheceu como seu supremo chefe.[187] Nessa citação, numa forma imperfeita e primitiva, está a primeira grande formulação do conceito de soberania de esferas, ou lei das esferas, que se desenvolveu plenamente com o calvinismo e, particularmente, com Abraham Kuyper. De acordo com esse conceito, cujas origens remontam ao Antigo Testamento, Deus estabeleceu leis para as várias esferas da criação, e essas esferas de leis estão coordenadas. A jurisdição universal não pertence a nenhuma das muitas esferas, mas somente ao Deus triúno. Nem a igreja, nem o Estado, escola ou qualquer outra esfera pode reivindicar legitimamente jurisdição universal (embora declarações desse tipo já tenham sido feitas), pois a soberania e o domínio pertencem exclusivamente a Deus. O anti-subordinacionismo tornou inevitável a doutrina da justificação durante a Reforma. Ora, o subordinacionismo concedia a primazia à natureza e portanto às habilidades naturais do homem. Consequentemente, o homem tornou-se com efeito seu próprio salvador, e a graça, graça cooperante, e não preveniente. Se o Espírito Santo procede apenas do Pai, então o Espírito Santo, num sistema que atribuiu primazia à natureza, é absorvido na natureza. Torna-se o ato da natureza — um ato carismático, mas essencialmente um ato natural, visto que o carisma ou é naturalizado ou é transformado num apêndice à natureza. Um exemplo disto é o santo russo São Serafim, “asceta contemplativo e pneumatófaro”. São Serafim “considerava que o fim principal de um cristão é ‘adquirir’ o Espírito Santo”.[188] O Espírito Santo, nessa linha de pensamento, é uma posse que pode ser obtida pela atividade humana em sua evolução ascendente natural. Como S. Bulgakov disse: “O homem é o logos do mundo, e por meio dele o mundo pensa e aprende a conhecer por si mesmo”. O mundo desenvolve-se de forma ascendente; essa fé religiosa é o alcance ascendente da natureza. “O homem é um microcosmo; ele unifica dentro de si o mundo; a humanidade contém a imagem do mundo; é o eikon dos eikons, pois é a imagem de Deus.”[189] O mundo da natureza e Deus são praticamente idênticos nessa perspectiva. “A imagem do mundo” e “a imagem de Deus” são, para Bulgakov, termos correlativos. A obra do Espírito Santo é promover a obra de ascensão do homem em direção à deificação. “A fé ortodoxa vê na igreja, isto é, a Igreja histórica concreta, a concentração do processo teantrópico.”[190] O Estado é a verdadeira ordem do homem, e a igreja é a área concentrada na qual o processo social de deificação, o processo teantrópico, se dá — onde humanidade e o Estado ascendem. O Cristo quenótico do pensamento da igreja oriental abandona sua divindade no mundo a fim de conduzir o homem, mediante sua união e exemplo, ao longo do caminho da deificação. A liturgia russa declara acerca de Cristo: “Tornaste-te pobre como nós, e deificaste o terreno por meio de tua união com ele”.[191] Estas são conclusões lógicas da naturalização do Espírito Santo. Embora a oposição da Igreja Oriental ao Filioque tenha sido original e primariamente técnica (isto é, o acréscimo foi feito sem um concílio geral) e somente secundariamente teológica, nos dias de hoje tornou-se essencialmente teológica. Certo teólogo greco-ortodoxo, Rhosse, afirma: “Não é só tecnicamente ilegal e ilegítimo, mas essencialmente errado... Mesmo como opinião teológica é perversa e inadmissível”.[192] É uma expressão bem forte chamar o Filioque de “perverso”. E por que “inadmissível”? Mesalora disse-nos: “Uma coisa é evidente — há apenas um princípio ou fonte na Divindade... A isto o acréscimo ocidental do Filioque opõe-se diametralmente... A crença num princípio singular na Divindade é algo que a concepção lógica do Deus triúno exige”.[193] O que está explícito e implícito na declaração de Mesalora? Em primeiro lugar, Mesalora e a Igreja Ortodoxa Grega são formalmente trinitarianos; “Deus triúno” é formalmente afirmado. Em segundo lugar, considera-se que “há apenas um princípio ou fonte na Divindade”, e também que “a crença num princípio singular na Divindade é algo que a concepção lógica do Deus triúno exige”. Em terceiro lugar, esse “único princípio”, esse “princípio singular”, é identificado a Deus Pai. Qualquer “concepção lógica do Deus triúno” exige a inclusão de toda a Trindade nas atividades da Trindade; a economia da Trindade pode envolver, de várias formas, as três pessoas, mas a grande obra de Santo Agostinho enfatizou as operações co- iguais de toda a Trindade na criação, redenção e providência. “Funções e atos, como as teofanias no Antigo Testamento, que eram atribuídas ao Filho, foram atribuídas por parte de Agostinho à Trindade como um todo (De Trinitate, L.11,9-18). Por meio dele, a unidade numérica das pessoas no tocante à substância foi ensinada de modo inequívoco”.[194] Retirar o Filho da processão do Espírito Santo era não apenas biblicamente incorreto, mas filosoficamente unitarista, em sua aplicação. A kenosis do Filho foi transferida do tempo (instância à qual havia sido equivocamente designada) para a eternidade. Deus Filho foi esvaziado de sua Divindade, e Deus Pai tornou-se “o princípio único na Divindade”, em detrimento do Filho. Em quarto lugar, a posição subordinou também o Espírito Santo, visto que Deus era visto como o princípio. Na perspectiva agostiniana, o ato de processão envolve — sem subordinação — todas as três pessoas da Trindade; ao Espírito Santo dá-se economicamente um papel distinto do Pai e do Filho, mas a autoridade, soberania, poder e glória permanecem os mesmos, em essência e em ato. Esse anti-subordinacionsimo do Ocidente conduziu à Reforma. O trinitarianismo de Agostinho implicava, conforme já notamos, sua visão bíblica da graça e do pecado. O subordinacionismo tornou a natureza soberana; porém, se a natureza é soberana, a graça não pode sê-lo. Acontínua irrupção das doutrinas da graça e da predestinação na igreja ocidental deu-se em razão de seu trinitarianismo ortodoxo. Uma vez que a fé não foi comprometida nesse ponto crucial nas confissões litúrgicas, a resistência à falsa doutrina não desfaleceu, e revoltas eclodiram repetidas vezes em afirmações da graça soberana. Em 1875, em Bonn, Alemanha, um sínodo ou “Conferência de União” de igrejas católicas, orientais e anglicanas reuniu-se por cinco dias, a partir de 12 de agosto daquele ano. O encontro adotou certas resoluções cujo propósito básico era uma maior união entre as várias igrejas, de modo que o elemento de pacificação, e não a defesa direta da fé, mostrou-se um dos principais fatores nas deliberações. As resoluções declaravam: Resoluções Preliminares 1. Concordamos juntos em receber os símbolos ecumênicos e as decisões doutrinais da antiga Igreja indivisa. 2. Concordamos juntos em reconhecer que o acréscimo da cláusula Filioque ao Credo não se deu de modo eclesiasticamente regular. 3. Reconhecemos em todos os aspectos a representação da doutrina do Espírito Santo, conforme expressa pelos Pai da Igreja indivisa. 4. Rejeitamos toda proposição e método de expressão que, de algum modo, possam conter o reconhecimento dos dois princípios de arché e aitai na Trindade. Sobre a Processão do Espírito Santo Aceitamos o ensino de São João Damasceno concernente ao Espírito Santo, conforme é expresso nos seguintes parágrafos, no sentido desse ensino da antiga Igreja indivisa. 1. O Espírito Santo procede do Pai como o Princípio, a Causa e a Fonte da Divindade. 2. O Espírito Santo não procede do Filho, porque há na Divindade apenas um Princípio, uma Causa, por meio da qual se produz tudo que se encontra na Divindade. 3. O Espírito Santo procede do Pai por meio do Filho. 4. O Espírito Santo é a Imagem do Filho, que é a Imagem do Pai, procedendo do Pai e permanecendo no Filho como a força que irradia dele. 5. O Espírito Santo é a Produção pessoal a partir do Pai, pertencendo ao Filho, mas não partindo do Filho, porque ele é o Espírito da Boca da Divindade, que pronuncia a Palavra. 6. O Espírito Santo forma a mediação entre o Pai e o Filho, e está ligado ao Pai por meio do Filho.[195] A despeito da intenção direta de contemporização, essa declaração traz consigo a surpreendente premissa de que somente os símbolos e doutrinas que eram produto “da antiga igreja indivisa” (isto é, dos seis, ou, diriam alguns, sete primeiros concílios) deveriam obrigatoriamente ser seguidas pelas igrejas. Essa premissa é frequentemente citada, mas nenhum ramo da igreja jamais considerou essa limitação como válida sobre si. Ademais, a premissa ultrapassa a autoridade das Escrituras em favor da autoridade dos concílios. É humanismo implícito, na medida em que admite que, se um concílio indiviso se reunir novamente, pode-se legítima e infalivelmente definir-se a fé. Trata-se simplesmente da substituição da infalibilidade papal pela infalibilidade conciliar. Em qualquer destes dois casos, é a autoridade humana, e não a palavra de Deus, o elemento determinativo. Além disso, a terceira das “Resoluções Preliminares” não tem nenhum sentido. Os pais de Niceia não deram nenhuma aprovação ao subordinacionismo ariano, tal como a “Conferência da União” o fez, e Agostinho certamente ofereceu forte testemunho em prol da processão a partir do Filho. O que a conferência destacou foi antes a transigência doutrinária e o retorno do arianismo que uma contribuição significativa ao desenvolvimento doutrinal. A história subsequente das igrejas envolvidas dá ainda mais evidência de seu desvio em relação à ortodoxia. A razão para essa contemporização cavalheiresca da conferência foi a apostasia teológica. Em 1861, Stanley escreveu o seguinte sobre a doutrina da dupla processão: “É um excelente espécimen da raça das ‘controvérsias extintas’”. Após mil anos de controvérsia, disse Stanley, “agora deixou-se a questão de lado por completo. No Ocidente jamais é discutida seriamente. No Oriente é lembrada e talvez jamais será esquecida; mas é mais como uma questão de honra que de fé”.[196] Quando uma controvérsia se baseia em questões reais e fundamentais, os princípios nela envolvidos jamais se extinguem, porém os homens que os negligenciam sim. E essa extinção ronda muitas igrejas ocidentais. Em 1967, a Igreja Episcopal dos Estados Unidos, em sua nova forma de liturgia para comunhão, voltou suas costas para o Ocidente. O Credo Niceno foi alterado para conformar-se ao uso do Oriente: “Cremos”, e a processão do Espírito Santo foi limitada ao Pai, abandonando-se a cláusula Filioque.[197] De uma confissão pessoal, individual, a nova liturgia passou a uma confissão coletiva. O crente não estava mais ligado à fé confessada: tratava-se de uma afirmação coletiva ao invés de um testemunho pessoal essencial à vida da pessoa e sua comunidade de fé. 12. LEI CANÔNICA A expressão “lei canônica” soa desagradável aos ouvidos modernos: traz a conotação de “tirania” da igreja, a Idade Média, opressão e que tais. Na verdade, contudo, o conceito de lei canônica implica liberdade. Em geral diz-se que Calvino era um feroz opositor da lei canônica. Na Instituição da religião cristã, livro 4, capítulo 10, Calvino tratou acerca “Do poder da Igreja em promulgar leis. De que modo o papa e os seus têm exercido crudelíssima tirania e carnificina sobre as almas”. Mas Calvino não tinha em mente a genuína lei canônica, mas seus abusos: “Na linguagem comum chama-se tradição humana a toda norma relativa ao culto divino estabelecida pelos homens à margem de sua Palavra”.[198] Tratando de “leis humanas”, isto é, leis que não têm fundamento na palavra de Deus, Calvino disse: “Se tais leis forem dadas com o intuito de obrigar a consciência, como se o fato de guardá-las fosse em si mesmo necessário, sustentamos, nesse caso, que as consciências são oneradas sem motivo. Porque nossa consciência deve ser dirigida por Deus, e somente a ele deve prestar contas, e não aos homens”.[199] Não há necessidade de o homem acrescentar nada à lei divina, porque, “em sua lei, o Senhor resumiu tudo aquilo que concerne à regra perfeita do bem viver, e o fez de tal modo que aos homens nada restasse para acrescentar”.[200] O “nosso único legislador” é Deus, e os homens não podem assumir legitimamente para si essa honra.[201] A hostilidade de Calvino não era à lei canônica enquanto tal, mas a seus abusos. O próprio Calvino estava simplesmente tentando restaurar o império da verdadeira lei canônica. Ora, a lei canônica, em seu aspecto real, implica não apenas a liberdade da igreja, mas também a liberdade do homem e da sociedade. Para compreender as implicações da lei canônica, é necessário entender que a sociedade antiga era unitária e tinha uma única e visível soberania humana. Era totalitária na prática e na fé. Uma autoridade “divina” visível governava a totalidade da vida e não admitia a existência de uma ordem independente. Para o Estado antigo, aquilo que não estava sob seu controle era seu inimigo, e aquilo que controlava era-lhe sujeito. Nenhum homem nem suas atividades e instituições possuíam qualquer domínio livre, incontrolado e independente sobre o qual o Estado não tivesse jurisdição. A soberania do Estado implicava que o homem era criatura do Estado, sendo-lhe inteiramente sujeito. Mas a fé bíblica afirma antes a soberania de Deus e a supremacia de seus decretos e lei, de modo que o homem, o Estado e toda instituição estavam sob a autoridade divina e de sua lei. Em vez do Estado soberano que providencia abrigo absoluto para todas as coisas, o Deus soberano é o suserano, e todas as instituições do homem estão diretamente sob a autoridade de Deus e seu palavra. Em vez de um Estado medianeiro, Cristo é o mediador do ser humano. A Bíblia provê um mandato legal para as instituições, e o Estado é feito ministro da justiça, e a igreja, ministro da palavra e dos sacramentos. A família está sob a lei de Deus, como estão a agricultura, comércio, ciência, educação etodas as demais coisas. Nem a igreja, nem o Estado, nem qualquer outra instituição tem um poder total legítimo de controle. Mas, na Antiguidade, e ainda hoje, o Estado exerceu o papel absoluto de Deus, o soberano sobre todos domínios e com poder essencial e supremo sobre eles. O Estado pode permitir ou conceder a seus filhos ou criaturas certos privilégios, mas não pode tolerar que neguem sua autoridade soberana. Portanto, o fato de a igreja promulgar cânones que colocam os cristãos sob os cânones de Cristo, sob as leis de Deus, equivalia a uma negação da soberania do Estado e de seus cânones. Era uma desintegração do conceito do Estado unitarista totalitário. Ora, Calvino não tinha desejo de destruir a lei canônica, mas sim restaurar a Genebra o cânone ou regra verdadeiros, a palavra de Deus. A independência da igreja o exigia. O absolutismo político, contudo, à época e atualmente, mostrou-se hostil à lei canônica. Em vez de múltiplas ordens legais e variedades de cortes, que caracterizavam a era do feudalismo cristão, o absolutismo no Estado esforçou-se firmemente para reduzir toda sociedade humana a uma única ordem legal, o Estado. Todos os outros domínios devem sujeitar-se ao Estado em vez de a Deus: a igreja, economia, ciência, educação, agricultura, as artes, todas as coisas se tornam aspectos da vida do Estado (em vez de aspectos do homem sob a autoridade de Deus) e portanto sob o governo do Estado. A suposição do Estado em seu absolutismo é dupla. Em primeiro lugar, ao afirmar soberania e jurisdição totais, o Estado está usurpando o poder e prerrogativa de Deus. O Estado faz de si mesmo o criador e legislador supremos em lugar de Deus. Em segundo lugar, o Estado declara-se como o verdadeiro homem, assim como o verdadeiro deus. O Estado declara que todo aspecto da vida do homem delegado por Deus é sua criação e também um aspecto de sua vida. Quando o Estado faz da religião, economia, ciência, educação, agricultura, artes e todas as demais esferas de lei aspectos de sua vida, ele está negando que é apenas uma das muitas esferas de lei na qual o homem opera, e com isso o Estado declara-se como o verdadeiro homem para quem essas esferas de lei existem, as quais lhe servem e promovem seu domínio. Com isso o Estado afirma efetivamente que é o homem real, de modo que, fora dele, não há verdadeiro homem. Essa fé era comum na Antiguidade. A destruição do conceito de lei canônica é essencial para o êxito do totalitarismo. O Estado não pode governar absolutamente, a menos que possa reduzir o ser humano a uma única esfera de lei — o Estado —, e negar jurisdição legítima a todas as demais esferas de lei. Essa destruição já foi levada a cabo em grande medida, e em cada ramo da igreja a lei canônica está não somente sobrecarregada com tradições humanas, mas é também considerada como uma relíquia do passado. E o Estado, por sua vez, é considerado a verdadeira esfera legal humana. Na esfera política, o homem deve alcançar a boa vida e a genuína fraternidade; e a esperança do mundo encontra-se na política. Quando o papa Paulo VI, numa segunda-feira (4 de outubro de 1965) apresentou-se perante as Nações Unidas para fazer seu pedido por uma ordem mundial pacífica, ele, com efeito, abandonou a lei canônica, na medida em que concebeu como a ordem salvadora — a verdadeira ordem humana — não o reino transcendental de Cristo, mas uma ordem mundial imanente e unida. Falando como o “Pontífice de Roma” e “portador de uma mensagem para toda a humanidade”, ele disse: “Podemos chamar nossa mensagem de uma ratificação, uma solene ratificação moral dessa grandiosa instituição” (isto é, as Nações Unidas).[202] Visto que as Nações Unidas declaram jurisdição internacional, e uma vez que elas reduzem todas as religiões a um nível de igualdade ao proibir quaisquer discriminações com relação a credo, o discurso do papa na verdade declarou que o verdadeiro reino é o reino humano das Nações Unidas, e em vez de defender a declaração de Cristo da supremacia de seu reino sobre todos os domínios e instituições (João 19.11, Mateus 26.64), o papa reduziu o reino que Cristo pode possuir a um apêndice do reino humano. O evangelho social é igualmente uma negação da lei canônica. Concebe um reino uno e indiviso, o Estado, como se fosse a verdadeira ordem de Deus e homem. Ao Estado é dado a jurisdição e soberania globais sobre igreja, escola, família, negócios, agricultura e todas as demais coisas que pertencem a Deus. A função essencial do evangelho social é dar todas as coisas a César e nenhuma a Deus. A verdadeira lei canônica é a aplicação do cânone ou regra das Escrituras aos problemas da vida. Acerca do termo “cânone”, Pelliccia disse que “os escritores da história romana o usavam para descrever um rol de soldados e seu comissariado”.[203] Os cânones genuinamente bíblicos são o rol de defensores da fé, protetores dos fiéis e aplicações das Escrituras aos problemas cotidianos. Quando os cânones se restringem à organização civil formal da igreja e nada diz acerca da aplicação da doutrina aos problemas do mundo, perde-se a função real da lei canônica, e não resta nada senão um Regras de Ordem de Robert Atualizadas eclesiástico. Quando, por exemplo, as igrejas passam resoluções em apoio à violência civil, igualitarismo, organizações comunitárias para piquetes e manifestações, elas estão claramente violando a lei bíblica e atuando com base em tradições humanas. Aplicaram um falso cânone ou regra à vida, um cânone que não a palavra infalível de Deus.[204] A aplicação de um cânone válido é visível numa medida tomada em 1966 por uma igreja em Wisconsin, que infelizmente, porém, está destinado a ser negligenciado. A medida em questão designava o problema e aplicava a lei de Deus a ele: O Concílio da Igrejas Cristãs Reformadas de Racine propõe ao Presbitério de Wisconsin para que proponha ao Sínodo: I. Reafirmar sua decisão conforme articulada nos Atos do Sínodo de 1912 no tocante ao socialismo, a saber, que se trata de um erro e um desvio de nossos princípios. (ver Atos dos Sínodo de 1912, Art. 47, p. 38, que diz o seguinte: “Os consistórios tomarão a mesma atitude com relação a essas pessoas [socialistas] que tomam contra todos os desvios de nossos princípios”). A. Argumento formal: Essa decisão foi lançada ao esquecimento e tornou-se completamente desconhecida à maioria de nossos líderes. B. Argumentos materiais: 1. O socialismo está em conflito com o fato de o homem ser portador da imagem de Deus, que, enquanto tal, é uma criatura responsável individualmente perante Deus. O cristão não pode abster-se de qualquer faceta de suas responsabilidades pessoais e pactuais designadas por Deus ao transmiti-las ao Estado. 2. O socialismo está em conflito com o Primeiro Mandamento da Lei Moral, na medida em que dá prioridade ao Estado acima de Deus enquanto a autoridade suprema sobre o homem. Deus é o grande benfeitor, e não o Estado. O socialismo é o oposto disso ao fazer do Estado o distribuidor de riquezas e regulador da vida. Os homens são então forçados pelas circunstâncias a olhar para o Estado — em vez de para a Providência Divina — como a fonte de seu sustento material diário. 3. O socialismo está em conflito com o Oitavo Mandamento da Lei Moral que insiste sobre a legitimidade da propriedade privada, proíbe qualquer forma de roubo dessa propriedade e exige do indivíduo a mordomia fiel sobre ela. 4. O socialismo está em conflito com o Décimo Mandamento da Lei Moral, que proíbe toda cobiça das posses do próximo e todas as noções de redistribuição estatista das riquezas, que é a posição declarada do socialismo. 5. O socialismo promove a ideia de centralização do poder, que é o propósito mesmo de Satanás e também das bestas que emergem do mar e da terra, como anunciado em Apocalipse 13. Ademais, apregoa o “mundo unido” que certamente estará sob a autoridade do anticristo, o qual não podemos defender ou apoiar em qualquer grau ou forma. II. Fazer o máximo para disseminar o conhecimento dessa posição bíblica com fundamentos aolongo de toda a denominação no modo que o Sínodo acredita ser o mais efetivo. Argumentos: 1. Muitos cristãos reformados ignoram nosso posicionamento eclesiásticos que, conforme citado acima, foi imensamente ignorado e esquecido com a passagem do tempo. 2. A deriva gradual em direção ao socialismo e bem-estar estatal nos Estados Unidos e Canadá tornou-nos inconscientemente vulneráveis aos desvios desses princípios bíblicos. 3. A atual adoção acelerada e as medidas de bem-estar estatal nos Estados Unidos e Canadá faz com que seja uma questão de importância primordial que nosso povo esteja consciente de nossa posição denominacional e veja o socialismo por aquilo que é, um mal diabólico. III. Exigir de todos nossos ministros, professores, mestres e empregados da denominação e todos em posições de liderança que estão sinceramente comprometidos à nossa posição, que eles adiram estritamente a essa posição na vida de sua igreja e conduta privada, e que fielmente defendam essa posição e alertar nossa circunscrição contra todos os desvios dela. Argumentos: 1. Eles têm uma grande influência sobre a membresia da denominação cristã reformada. 2. Eles exercem um papel estratégico na moldação e formação do pensamento futuro da membresia de nossa denominação em virtude da grande influência que exercem sobre nossa juventude pactual. 3. Eles operam como um importante segmento do testemunho cristão geral que Deus exige que nossa denominação apresente neste vale de trevas. Nessa declaração, é a palavra de Deus que oferece o cânone, não o humanismo, filosofia grega ou outro princípio qualquer. Dooyeweerd demonstrou como os conceitos legais romanos alteraram essencialmente o conceito da igreja medieval de lei canônica.[205] De uma perspectiva biblicamente instruída, todas as coisas estão sujeitas às leis de Deus. Toda área da lei é uma esfera que é separada das demais, de modo que um Estado não tem direito de interferir na esfera da igreja, ou, por exemplo, na esfera aritmética. As leis da matemática, assim como as leis da igreja e do Estado, são igualmente criação de Deus, e nenhuma esfera pode arrogar para si o poder criativo de Deus e a soberania geral. Se o Estado reivindica seu domínio sobre matemática, igreja ou economia, ele viola seu mandato e garante o desastre social. Embora as esferas apresentem uma interdependência, pois nenhuma delas é completa em si mesmas, nem é um mundo vivo por si próprio, essa interdependência assenta-se sobre o fato de sua criação comum por parte de Deus para oferecer um mundo de liberdade possível para o homem. A vida não é números, nem o é o Estado, a escola, igreja, a economia, a ciência ou qualquer uma das outras esferas, e uma esfera de lei tentar oferecer a soberania e unidade sobre tudo é reduzir o homem à escravidão a um aspecto limitado da vida. Para que o homem seja livre, portanto, a lei canônica deve ser aplicada como um princípio regulador a fim de limitar o homem em cada esfera e relação. A lei canônica cessa de ser realmente canônica quando deixa de dispor essas limitações sobre o homem em todas suas atividades. A lei assim tem outro cânone que não as Escrituras. 13. CONSTANTINOPLA III: A ABOLIÇÃO DE DEUS O sexto concílio ecumênico, o Terceiro Concílio de Constantinopla, reuniu-se em 680-681 d.C. É o último dos concílios reconhecidos tanto pelas igrejas orientais quanto pelas igrejas ocidentais, assim como pelo protestantismo ortodoxo. O sétimo concílio ecumênico, o Concílio de Niceia II, 787 d.C., não é reconhecido pelos protestantes, em razão de sua defesa das imagens. Novamente o problema era a heresia humanista. Para alguns, essa declaração peca por reducionismo, por uma simplificação exacerbada; insiste-se em ver boa-fé em todos os lados, porém com equívocos intelectuais dominando alguns ou todos os teólogos e bispos participantes. O problema, é- nos dito, era complexo; agravou-se por conta de diferenças de sentido ocasionadas pelos termos gregos e latinos; posteriormente se tornou ainda mais grave por causa de concepções psicológicas questionáveis, oriundas do mundo clássico, que governou as definições conciliares de Cristo. Assim (muitos sugerem), não podemos tão prontamente concordar com essas definições conciliares de ortodoxia e heresia. A resposta ao problema, pois, é que, no domínio da fé bíblica, o problema básico do homem não é conhecimento inadequado, mas o pecado. O homem pecou deliberada e voluntariamente contra Deus: ele buscou fazer de si — e não Deus — a fonte suprema de verdade e lei, o ponto essencial e a estrutura de referência. Conforme Van Til escreveu, “como pecador, o ser humano busca fazer de si, ao invés de Deus, o fim derradeiro, assim como o padrão supremo na vida”. Ele ainda acrescentou: “eis portanto o cerne da questão: em Adão o homem colocou de lado a lei de seu Criador e com isto se tornou uma lei para si mesmo. Ele não há de submeter-se a ninguém senão ele próprio. Busca ser autônomo, mas sabe que é uma criatura e deve submeter-se à lei de seu Criador”. Porém o homem revolta-se contra isso. “Ele faz de si mesmo o ponto final de referência em toda predicação.”[206] O homem pecador não é neutro; seu conhecimento é apropriado a um só fim: estabelecer sua própria autonomia. O único relacionamento que ele há de tolerar para com Deus é democrático: nessa concepção arminiana, apresentando o voto decisivo contra Deus e Satanás ao votar em si mesmo, o homem considera Deus tolerável. É ridículo assumir que há neutralidade no homem quando se aproxima de Cristo. Cada fibra (não neutra) de seu ser pecaminoso treme conforme se achega a Cristo e busca ou eliminá-lo ou integrá-lo a seu sistema. O Concílio de Constantinopla III teve sucesso em lidar com o monotelismo, uma tentativa de integrar Jesus Cristo numa perspectiva implicitamente não cristã. O monotelismo concedeu a vitória ao Concílio de Calcedônia; julgou que a doutrina das naturezas [de Cristo] era essencial para a respeitabilidade religiosa, porém insistiu que Cristo estava sujeito a uma vontade apenas, tendo a volição humana se fundido com a divina ou sido absorvida por esta. A doutrina representou uma tentativa por parte do imperador Heráclio em unir os eutiquianos e monofisitas aos ortodoxos, trazendo assim unidade ao império. No curso de sua história, o monotelismo recebeu muitos defensores proeminentes. Sérgio, patriarca de Constantinopla, fez o trabalho teológico para Heráclio e seus sucessores; Pirro, Paulo e Pedro continuaram-no. Honório, papa de Roma, também defendeu essa doutrina. Outros célebres lideres eclesiásticos monotelitas foram Teodoro de Faran, Ciro de Alexandria, Macário de Antioquia, e Estevão, seu discípulo; todos foram condenados por nome no sexto concílio. Sofrônio, um monge palestino, foi desde cedo um líder contra o monotelismo. Martinho I, papa de Roma, também conduziu a batalha contra a heresia e foi banido para a Crimeia pelo imperador. Quando o papa Martinho se apresentou perante as autoridades civis em Constantinopla num julgamento, foi-lhe negado o direito de salientar as heresias dos monotelitas: “Não misture as coisas aqui com nada relativo à fé, tu estás em julgamento por alta traição. Nós também somos cristãos e ortodoxos”. Martinho replicou: “Deus quisera que fôsseis! Mas mesmo nessa questão testificarei contra vós, no dia do terrível julgamento”. Um abade grego, Máximo, também se destacou na batalha contra o monotelismo, e por conta desta falsa doutrina foi açoitado e teve sua mão direita e sua língua cortadas por ordem do imperador, morrendo pouco depois por isso, em 13 de agosto de 662. São Máximo havia sido outrora secretário de Heráclio, antes de pertencer à igreja. Máximo foi responsável pelo sínodo de Latrão de 649 d.C., convocado por Martinho I e redigiu sua condenação ao monotelismo. E assim, para impedi-lo de escrever e falar pela fé, o imperador Constante II ordenou que se cortasse publicamente a mão direita e a língua de Máximo, que rejeitou toda lisonja e ameaça para silenciá- lo. Os homens que defendiama fé estavam conscientes dos perigos. Eles não estavam imunes ao temor do homem, mas estavam ainda mais sujeitos ao temor de Deus. No meio de cada concílio estavam dispostos os Santos Evangelhos, a fim de indicar não apenas a autoridade das Escrituras, mas também a presença de Jesus Cristo como o cabeça soberano de todo verdadeiro concílio e reunião cristãos. A profunda seriedade dos representantes e sua hostilidade ao mais sutil desvio da fé assentavam-se na crença de que a heresia representava não uma falta de entendimento, mas uma tentativa deliberada de subverter e destruir a fé, de atacar e abolir Deus. O Iluminismo distorceu tanto a perspectiva humana que os homens agora acreditam que a salvação é conhecimento, e o pecado é portanto ignorância; a vontade do homem é, pois, governada pela sua mente e pela informação disponível à mente. Entretanto, essa psicologia é estranha à fé bíblica: a natureza pecaminosa do homem governa sua mente e vontade e curva-as a seus propósitos. O problema do ser humano não é ignorância, mas o pecado; não uma carência de conhecimento, mas uma vontade de abolir Deus do mundo. O homem irregenerado é governado pelo desejo de ser seu próprio deus e por uma vontade pela morte de Deus. Deus pode ser abolido da consideração filosófica por três maneiras diversas. Primeiramente, é possível uma negação direta de Deus; pode-se defender que Deus não existe e que o conceito é desnecessário. Em segundo lugar, em vez de uma negação de Deus, pode-se usar uma negação do homem a fim de abolir Deus. Se o homem é reduzido a simples sensações ou a um animal cujos processos mentais não têm valor, segue-se que não é capaz de conhecer a Deus, já que, por definição, não pode conhecer nada. Negar Deus significa negar também o homem, e assim essas duas abordagens caminham lado a lado.[207] Charles Darwin fiava-se nessa negação do homem. Ele não negava que Deus era aparentemente um conceito e realidade inescapáveis, que não era possível explicar o mundo à parte dele; porém, em vez de reconhecer Deus, Darwin negou ao homem qualquer validade a seu pensamento e mente. Sua própria admissão a esse fato é bastante reveladora de sua indisposição em aceitar qualquer pensamento que conduziria a Deus. Numa carta a W. Graham, de 3 de julho de 1881, Darwin disse-lhe: No entanto, tu expressaste minha profunda convicção, embora de modo mais vívido e claro do que eu poderia tê-lo feito, de que o Universo não é resultado do acaso. Mas então surge sempre em mim uma terrível dúvida, qual seja, se as convicções da mente do homem, que se desenvolveram a partir da mente de animais inferiores, possuem algum valor ou são confiáveis. Alguém acaso confiaria nas convicções da mente de um macaco, caso houvesse convicções nessa mente? [208] Darwin não concluiu dessa inconfiabilidade da mente humana que suas próprias hipóteses científicas eram indignas de confiança. Não lhe ocorreu que a ciência e a evolução seriam invalidadas por essa visão do homem: na verdade, esta foi usada apenas contra Deus. Trata-se, é claro, de um pensamento pueril, mas, ainda mais claramente, pensamento pecaminoso. Em terceiro lugar, Deus pode ser negado por uma afirmação de Deus que, no entanto, faz dele um acessório ou mesmo um cativo do homem. Deus pode então ser louvado extravagantemente, mas a glória e poder são sutilmente transferidos ao homem. Os monotelitas estavam efetivamente abolindo Deus por meio de uma afirmação que introduzia a humanidade na Divindade e tornava o homem um com Deus, anulando assim o cristianismo. Eles o fizeram em nome do cristianismo, porém as consequências foram a atrofia humanista. No sexto concílio, a carta do papa Ágato foi uma importante declaração do argumento contra o monotelismo. Ágato afirmou vigorosamente a posição de Calcedônia: Mas quando fazemos uma confissão relacionada a uma das três Pessoas da Santa Trindade, do Filho de Deus ou Deus Verbo, e do mistério de sua adorável dispensação segundo a carne, afirmamos que todas as coisas são duplas no único e igual Senhor nosso e Salvador Jesus Cristo, de acordo com a tradição evangélica, o que significa dizer: confessamos suas duas Naturezas, a saber, a divina e a humana, das quais e nas quais ele, mesmo após a união maravilhosa e inseparável, subsiste. E confessamos que cada uma dessas naturezas tem sua respectiva propriedade natural, e que a divina tem todas as coisas que são divinas, sem qualquer pecado. E reconhecemos que cada uma (das duas naturezas) desse único e mesmo encarnado, isto é, a Palavra de Deus humanada (humanati), encontra-se nele sem confusão, inseparável e imutavelmente, com a inteligência, sozinha, discernindo uma unidade, para evitar o erro da confusão. Pois detestamos igualmente a blasfêmia da divisão e da mescla. Pois quando confessamos as duas naturezas e as duas vontades, as duas operações naturais em nosso uno Senhor Jesus Cristo, não afirmamos que elas são contrárias ou opostas entre si (como aqueles que se desviam do caminho da verdade acusam a tradição apostólica de fazer...).[209] Para o helenismo, a confusão e a mescla eram naturais e necessárias; daí seu humanismo. A matéria representava o mundo do ser confuso, ao passo que a forma representava o ser divino, sendo o universo o produto da fusão de ambos. A perspectiva bíblica do ser criado e do ser incriado e criador de Deus era totalmente estranha ao helenismo. A filosofia grega era capaz de compreender a confusão e mescla absolutas; não, porém, a encarnação. Consequentemente, quando se aproximava da doutrina da encarnação, tentava forçá-la ao molde da mescla e confusão como o passo logicamente necessário. Nessa concepção, Cristo é a forma suprema que deve necessariamente combinar à matéria a fim de prover a estrutura lógica, ou logos, para todos os homens e todas as filosofias. Os monofisitas insistiam pois numa natureza única: combinação e confusão davam-se nessa natureza. Mas os Concílios de Calcedônia e Constantinopla II impediram que essa ideia fosse levada em consideração ao declará-la como heresia. A tradição helênica, e em especial a neoplatônica, exigia a confusão e mescla, e estas reapareceram no monotelismo, a doutrina das duas naturezas, mas uma só vontade. Caso essa doutrina tivesse triunfado, a igreja teria ou se estagnado ou se tornado um novo canal para o re-desenvolvimento do helenismo. Ambas as coisas aconteceram, mas a condenação do monotelismo possibilitou a sobrevivência da ortodoxia. Da perspectiva helênica, a salvação do homem envolve a ascensão na hierarquia do ser rumo à deificação. O homem progressivamente deve abandonar o mundo da matéria em prol do mundo da forma, isto é, do espírito. Onde o helenismo prevaleceu, aí também prevaleceram o ascetismo e monasticismo. Na igreja ocidental, o ascetismo e o monasticismo, após um triunfo inicial, declinaram e estão cada vez mais se tornando relíquias ao invés de uma força central. Nas igrejas monofisitas, as ordens monásticas controlavam todos os altos oficiais porque estes representavam, por definição, a verdade e poder superiores da igreja. A definição de fé do concílio referiu-se à carne e vontade da humanidade de Cristo como “deificada”, mas com isto buscava dizer que, de acordo com a doutrina das apropriações econômicas, a carne e vontade humanas eram totalmente governadas pela natureza e vontade humanas, estando assim unidas, porém sem confusão, com a divindade.[210] Era, dizia a definição, uma “conversação econômica”. Após rever as conclusões dos cinco concílios anteriores, a definição declarou: Do mesmo modo, proclamamos nele, segundo o ensinamento dos santos Padres, duas vontades ou quereres naturais e duas operações naturais, sem divisão, sem mudanças, sem separação ou confusão. E as duas vontades naturais não estão — longe disso! — em contraste entre si, como afirmam os ímpios hereges, mas a sua vontade humana segue sem oposição ou relutância, ou melhor, é submissa à sua vontade divina e onipotente... Nós louvamos no mesmo nosso Senhor Jesus Cristo, nosso verdadeiro Deus,duas operações naturais sem divisão, mudança, separação ou confusão: isto é, uma operação divina e uma operação humana, conforme com toda clareza afirma o divino pregador Leão: “Cada natureza opera em comunhão com a outra segundo o que lhe é próprio; o Verbo opera o que é próprio do Verbo, o corpo cumpre o que é próprio do corpo”. Não atribuiremos, decerto, uma só natural operação a Deus e à criatura, para que não elevemos a criatura até a substância divina, nem rebaixemos a sublimidade da natureza divina ao nível que convém à criatura; pois reconhecemos que tanto os milagres como os sofrimentos são de um só e mesmo, segundo as respectivas propriedades das naturezas de que é composto e nas quais tem o seu ser, como com divina eloquência disse Cirilo. Conservando, portanto, inteiramente o que é inconfuso e indiviso, resumimos tudo nesta única expressão: crendo que é um da santa Trindade, também depois da encarnação, o Senhor nosso Jesus Cristo, nosso verdadeiro Deus, afirmamos que duas são as suas naturezas a resplandecer na sua única hipóstase, na qual, durante toda sua permanência salvífica entre nós, tanto mostrou os prodígios quanto os sofrimentos, não na aparência, mas verdadeiramente; já que na única e mesma hipóstase se reconhece a diferença das naturezas, porque cada natureza quer e o opera em comunhão com a outra o que lhe é próprio; e, por esta razão, louvamos também as duas vontades naturais e operações, que juntas concorrem à salvação do gênero humano.[211] Segundo o claro pronunciamento do concílio, o monotelismo fazia duas coisas: primeiramente, exaltava “a criatura até a substância divina”, e, em segundo lugar, rebaixava “a sublimidade da natureza divina ao nível que convém à criatura”. Contra essa confusão humanista o concílio foi ferrenho. Ao expor sua definição ao imperador, o concílio, declarando que Satanás “levantou os próprios ministros de Cristo contra ele”, explicou sua decisão no Prosphoneticus: E assim como reconhecemos as duas naturezas, também reconhecemos as duas vontades naturais e duas operações. Pois não ousamos dizer que alguma das naturezas que estão em Cristo em sua encarnação não possui uma vontade e operação: com o receio de não anular as propriedades das naturezas, acabamos por anular as naturezas das quais [a vontade e operação] são as propriedades. Pois não negamos a vontade natural de sua humanidade, nem sua operação natural: para que também não neguemos aquilo que é o elemento central da dispensação para nossa salvação, e para que não atribuamos paixões à Divindade... Portanto, declaramos que nele há duas vontades naturais e duas operações, que procedem em comum e sem divisão... [212] Os monotelitas, ao absorver a vontade humana na divina, abriram as portas para absorção semelhantes das vontades de todos os homens redimidos à vontade divina, de modo que a santificação tornou-se deificação progressiva. No tocante a isso, Neander observou: A questão das mútuas relações das vontades humana e divina em Cristo estava ligada também num aspecto digno de atenção, com a questão referente à relação das vontades humana e divina no redimido em seu estado de perfeição. Ao menos muitos entre os monotelitas supuseram que o resultado final do desenvolvimento perfeito da vida divina nos crentes seria neles, como no caso de Cristo, uma absorção total da vontade humana na vontade de Deus; de modo que haveria, em todos, uma identidade tanto subjetiva quanto objetiva da vontade, que, se conduzida de maneira consistente, levaria à noção panteísta de um total absorção de toda individualidade da existência no espírito original uno. Máximo compreendeu bem isso, e combateu vigorosamente essa noção.[213] Em 711 d.C., um monotelista, Filipico (ou Bardanes), tornou-se imperador, e assim deu-se continuidade à perseguição da ortodoxia por dois anos, até Anastásio II destroná-lo e pôr fim à perseguição. João Damasceno (680-764) foi o último teólogo oriental a dar atenção necessária à questão. Em sua “Exposição da fé ortodoxa”, João deixou claro que qualquer outra posição além da ortodoxa equivalia a uma negação da encarnação: Mas se aqueles que declaram que Cristo tem apenas uma natureza dissessem também que essa natureza é simples, eles devem admitir ou que ele é Deus pura e simplesmente, e isto reduz a encarnação à mera aparência, ou que ele é apenas homem, de acordo com Nestório. E o que dizer então de seu ser “perfeito em divindade e perfeito em humanidade?”. E quando pode-se dizer que Cristo possui duas naturezas, se afirmam que ele possui uma natureza compósita após a união? Pois está certamente claro a todos que, antes da união, a natureza de Cristo era uma só.[214] O Concílio de Constantinopla III deixou claro que a encarnação não era um fingimento: antes, era real. O Concílio deixou igualmente claro que o suposto cristianismo dos monotelitas era um simulacro: tratava-se de um humanismo que com efeito abolia Deus, e nenhum teólogo poderia ignorar suas implicações. Eles, de sua parte, declaravam: “para que não elevemos a criatura até a substância divina, nem rebaixemos a sublimidade da natureza divina ao nível que convém à criatura”. A posição dos monotelitas era perigosa, e, a despeito da sinceridade de alguns de seus humildes adeptos em certos pontos na história dos monotelitas, assim como os monofisitas, tratava- se de uma posição de esterilidade e decadência. Não era cristianismo ortodoxo, e não tinha nada do vigor da fé bíblica. Não era um humanismo honesto e aberto, e assim não poderia desenvolver-se com base em seu sentido real. Seu vigor básico encontrava-se na hostilidade, e seu destino foi a decadência e morte. 14. ICONODULISMO O sexto concílio ecumênico, o Concílio de Constantinopla III, reuniu-se nos anos 680-681 d.C. Pouco mais de um século depois, o sétimo concílio ecumênico, o Concílio de Niceia II, deu-se em 787 d.C. Embora, com exceção de dois delegados papais enviados de Roma, esse sétimo concílio tenha-se limitado à igreja oriental, Roma reconheceu-o como ecumênico, e apenas a Igreja Galicana no Ocidente suspendeu por um tempo o reconhecimento. No século entre o sexto e sétimo concílios, a atmosfera mudou; a mudança esteve por muito tempo em andamento, mas nesse período citado governou a igreja. O neoplatononismo predominava então como a filosofia subjacente à teologia, ao monasticismo, à eclesiologia e à ciência política. Para o neoplatonismo, o universo é uma grande escada do ser — da matéria bruta ao espírito puro e divino. O homem pode olhar para cima ou para baixo, e pode- se mover de alto a baixo na escada do ser. Pode desenvolver a divindade de sua alma ou espírito ao ascender rumo ao espírito puro, ou pode degradar essa centelha de divindade ao voltar-se para o mundo de sensações e matéria. O conhecimento racional tem como meta as realidades ou Ideias do ser; e o plano das Ideias é a Mente ou o Divino. O objetivo do conhecimento é a união mística com o Uno, a Alma do Mundo. A influência do neoplatonismo, especialmente por meio de Plotino, estendeu-se ao pensamento árabe, assim como aos pensadores judeus e cristãos. O monasticismo era uma aplicação do neoplatonismo. Exigia uma ascensão na escada do ser ao despojar-se do mundo material em prol do espiritual. A ideia de que a vida espiritual era de algum modo superior à vida material não tinha fundamento no pensamento bíblico. Para a Bíblia, tanto alma quanto corpo foram criados inteiramente bons por Deus, e ambos foram igual e extensivamente depravados por conta da queda do homem; corpo e alma, o homem integral, estão envolvidos na tentativa humana de ser como Deus. E ambos são igualmente redimidos em Jesus Cristo e têm nele um glorioso destino. O monasticismo voltou-se do monismo para um semi- maniqueísmo. No monismo, a totalidade do ser é um só ser; a diferença encontra-se no fato de que algumas formas (por exemplo, a matéria) representam uma tenuidade do ser, e o espírito representa um ser superior, mais puro e mais concentrado. No semi-maniqueísmo, o espírito ébom e a matéria é má; o ser real é espiritual e o ser falso, material. O neoplatonismo infectou tanto a igreja quanto o Estado. Para o neoplatonismo eclesiástico, a igreja, enquanto o reino do espírito, representava a ordem superior, ao passo que o Estado, na condição de agência do mundo material, representava uma ordem inferior. Para o neoplatonismo político, o Estado representa o logos ou estrutura do ser. O Estado é, portanto, a manifestação superior do ser no mundo material, e seu governante é o representante da Ideia do ser. Instalado num contexto cristão, com o neoplatonismo, tanto a igreja quanto o Estado viram-se como continuações da encarnação. A teologia calcedoniana percebeu que a lacuna entre o ser criado e o ser incriado de Deus só pode ser suprimida em Jesus Cristo, sem confusão e sem mudança. Para o neoplatonismo, todo ser era visto como um só ser, e Jesus Cristo era o líder no processo de ascensão. Em Jesus Cristo, o processo de acessão dirigiu-se a um foco aberto, institucional, na história; a Ideia fez-se carne e estava conduzindo os homens à mesma realização da Ideia, a manifestação da Ideia na história como meio de superação da própria história. A imagem ou ícone da Ideia manifestou-se na instituição da igreja ou Estado. O homem, segundo a Bíblia, foi criado à imagem de Deus; desse modo, o ser humano é um ícone de Deus. Ora, a imagem ou ícone de Cristo poderia também manifestar-se de diversos modos, basicamente em imagens esculpidas e pintadas, e numa instituição. A imagem era um aspecto da encarnação contínua. Os santos eram representados em ícones como aspectos da Ideia encarnada; assim como encarnavam a Ideia, de igual modo seus ícones os encarnavam. Os ícones dos santos eram vistos como suficientemente reais para serem apresentados como padrinhos em batismos. Acreditava-se que algumas imagens foram feitas sem o auxílio de mãos humanas, que algumas de fato haviam sido milagrosamente produzidas pelo próprio Cristo.[215] A imagem do imperador também esteve sujeita à ampla veneração religiosa. Esta veneração era anterior à queda de Roma. A imagem do imperador era conduzida em processões religiosas e aclamada com gritos como “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Os líderes eclesiásticos estavam cada vez mais de acordo com isso, e, em 602 d.C., o papa Gregório I colocou as imagens do ímpio imperador Focas I no Palácio de Latrão. Estátuas de Constantino eram adoradas e recebiam sacrifícios, velas, incenso e genuflexão.[216] Havia portanto duas encarnações institucionais no mundo — a igreja e o Estado —, e tanto no Oriente quanto no Ocidente havia um conflito da parte de ambos a fim de limitar a extensão da encarnação no outro. A controvérsia iconoclasta era a forma que o conflito assumiu no Oriente. Ambos os lados eram iconófilos, veneradores de ícones; o partido imperial simplesmente se tornou iconoclasta no tocante à igreja. Como Ladner assinalou, o partido imperial, no que se refere à igreja, percebeu que “o estreitamento da extensão do governo de Cristo no mundo ampliava a adoração ao imperador”.[217] A controvérsia iconoclasta foi uma fase de um programa imperial maior. Conforme Finlay notou: “Abarca um longo e violento conflito entre o governo e o povo, com os imperadores buscando o poder central mediante a aniquilação de cada concessão local, e mesmo do direito de opinião privada entre seus súditos... Os imperadores desejavam constituir-se as fontes da legislação eclesiástica de forma tão cabal quanto da legislação civil”.[218] A filosofia subjacente a esse conflito era o helenismo. [219] A primeira vez que as imagens surgiram relacionadas à igreja foi entre os seguidores gnósticos dos carpocratas, que chamavam a si próprios primeiramente de gnósticos. Estes gnósticos faziam uso religioso das “imagens dos filósofos do mundo”, isto é, Pitágoras, Platão, Aristóteles, Cristo e outros.[220] A imagem representava a continuidade do ser entre céu e terra. O verdadeiro santo era o homem que havia transcendido as limitações da matéria a fim de tornar-se um ente espiritual. O neoplatonismo fez do ascetismo uma virtude intelectual e espiritual, uma ascensão no ser e portanto também no conhecimento e na virtude. O ascetismo é então considerado como um indicativo de superioridade. Conforme Pickman observou: “[O ascetismo] foi a arma escolhida do humanitário. Eis a razão por que, pouco tempo depois, um médico que não se tornasse um monge perdia sua prática”. [221] Tanto a igreja quanto o Estado reivindicavam ser a verdadeira extensão da encarnação e, consequentemente, os únicos portadores legítimos da imagem. Para a igreja, os ícones imperiais representavam a idolatria. Para o partido imperial, eram antes os ícones da igreja os ídolos. Para o partido imperial, o imperador era o verdadeiro vicário de Cristo. As moedas de ouro de Bizâncio muitas das vezes figuravam a cabeça de Cristo coroada com o diadema imperial e seu busto vestido com os trajes do imperador. Leis eram promulgadas em nome do “Senhor Jesus Cristo, nosso Mestre”. Ao lado do trono imperial havia outro, que estava vazio a não ser pelo evangelho, perante o qual os homens se curvavam: “É o trono de Cristo, nosso verdadeiro Soberano”. O imperador era o Cristo presente enquanto Senhor. O palácio do imperador era, pois, uma igreja no sentido real do termo, até mesmo com um porteiro ordenado como sacerdote. O trono estava instalado numa abside. “Suas recepções não eram audiências, mas revelações. Ele não fazia uma simples aparição, mas manifestava-se.” Suas refeições “eram repletas de sutis alusões à Última Ceia”. Visto que toda a refeição era um ritual religioso, não se permitia nenhum erro. Qualquer um que deixasse cair um prato era decapitado, e “os convidados que testemunharam tamanho sacrilégio tinha de ter seus olhos arrancados”. Qualquer tentativa de assassinar o imperador era um crime contra Deus, embora uma tentativa exitosa fosse então a vontade de Deus. O imperador era absoluto em sua soberania, e “seu poder, teoricamente universal, não se limitava às fronteiras do Império. Como a igreja, e pela mesma razão, seu governo era ecumênico”.[222] Liutprando de Cremona, em seu Antapódose, dá-nos um retrato vívido de ostentação e pompa das audiências do imperador. [223] O ouro era usado em peso em Bizâncio — domos de ouro nas igrejas e cruzes douradas. O imperador vivia numa cúpula de ouro, e com suas vestimentas entrelaçadas de ouro, porque o livro de Apocalipse falava da Jerusalém celestial como uma cidade de ouro.[224] A coroação do imperador, por exemplo a de Nicéforo, era a coroação de Cristo, e “ele ergueu-se como a imagem do próprio Cristo”.[225] O partido imperial estava pois atrelado ao conceito do império como a continuação da encarnação, sendo a igreja um simples braço seu e o imperador o verdadeiro vicário e representante de Cristo. Os líderes eclesiásticos que se opunham a essa posição percebiam suas implicações. Teodoro Estudita escreveu: “A menos que o Imperador esteja sujeito à lei, há apenas duas hipóteses possíveis: ou ele é Deus, pois somente a divindade transcende a lei; ou nada resta senão anarquia e revolução”.[226] Teodoro defendia os ícones da igreja e afirmava que havia divindade não apenas na imagem, mas também no artista. O artista vertia sua divindade ao criar a imagem, assim como Deus supostamente verteu sua divindade em sua Criação. A defesa por parte da igreja era, da mesma forma, neoplatonismo. Os imperadores iconoclastas eram hereges, e seu contexto era em grande medida monofisista. Os imperadores que deram fim à controvérsia iconoclasta, assim como Constantino IV e Irene que convocaram o sétimo concílio ecumênico (o Concílio de Niceia II, 787 d.C.), eram supostamente ortodoxos, mas sua decisão pouco alterou em essência o Estado; a igreja tinha simplesmente mantido o uso de ícones. Também não alterou a posição do imperador ou do império. Embora o conflito não tenha terminado até 19 de fevereiro de 842, um dia que passou a ser celebrado como o Triunfo da Ortodoxia, a decisãode 787 prevaleceu em grande medida. O comentário de Percival é instrutivo no que se refere aos elementos essenciais da ação do concílio em 787: O concílio decretou que se deveria prestar veneração e honra semelhantes às representações do Senhor e dos santos, assim como já era hábito no que dizia respeito à “laurata” e tábuas representando os imperadores cristãos, a saber, que se deveria curvar-se perante eles, saudá-los com beijos, oferecer-lhe círios e incenso. Porém o Concílio foi mais explícito ao declarar que isso era simplesmente uma veneração de honra e afeição, tal como a que é permitida à criatura, e que sob nenhuma circunstância poder-se-ia prestar-lhes a adoração do culto divino, mas a Deus somente.[227] Teodósio, um dos bispos presentes no concílio, declarou: Pois se o povo se desloca com luzes e incenso para encontrar- se com a laurata e imagens dos imperadores quando estas são enviadas às cidades ou aos distritos rurais, eles certamente honram não a tábua coberta com cera, mas o próprio imperador. Ainda mais imperioso, portanto, é que, nas igrejas de Cristo, nosso Deus, a imagem de Deus, nosso salvador, e de sua imaculada Mãe e de todos os pais e ascetas santos e benditos sejam também pintadas![228] Essa declaração indica a natureza da determinação final. O conflito girou em torno do uso religioso dos ícones imperais versus o uso religioso dos ícones eclesiásticos, com ambas as instituições afirmando-se como a verdadeira extensão da encarnação. Ora, retirou-se a designação de culto no tocante aos ícones, e seu uso permitiu mutuamente o poder e soberania do Estado, sem quaisquer perturbações. Perto do encerramento da primeira sessão, “João, o bispo mais respeitado e delegado dos altos sacerdotes orientais, disse: Essa heresia é a pior de todas as heresias. Ai dos iconoclastas! É a pior das heresias, pois subverte a encarnação de nosso Salvador”.[229] A encarnação, nessa perspectiva, exigia continuação, e os ícones cumpriam, pois, esse papel de continuidade; assim, a negação dos ícones era a subversão da encarnação. Isto significava que se permitia implicitamente estas duas encarnações continuadas — uma no Estado, a outra na igreja. O conciliabulum iconoclasta em Constantinopla em 754 condenou os ícones como uma violação das resoluções de Calcedônia e dos demais seis concílios. Esse concílio intitulava a si mesmo o sétimo concílio ecumênico, mas posteriormente foi condenado como um falso concílio. Nenhum patriarca se fazia presente, nem quaisquer deputados enviados de Roma, Alexandria, Antioquia ou Jerusalém, mas 338 bispos orientais estiveram lá. Esse concílio foi convocado pelo imperador Constantino Coprônimo (Constantino V, 741- 773), que havia designado um décimo terceiro apóstolo por meio de um sínodo eclesiástico subserviente. Esse concílio de 754 aboliu todas as imagens e figuras das igrejas. A argúcia teológica desse concílio estava em conformidade com os concílios anteriores e representava um pensamento mais elucidado em relação ao concílio reconhecido de 787. O concílio de 754 declarava: Após termos examinado cuidadosamente seus decretos sob a orientação do Espírito Santo, concluímos que o ato ilegítimo de pintar-se criaturas vivas blasfemava a doutrina fundamental de nossa salvação — a saber, a encarnação de Cristo, e contradizia os seis santos Sínodos. Estes condenaram Nestório porque ele dividia o Filho uno e Verbo de Deus em dois filhos, e, por outro lado, Ário, Dióscoro, Êutiques e Severo, porque eles defendiam uma mistura das duas naturezas do Cristo uno. Por conseguinte, julgamos acertado demonstrar, em nossa presente definição, com todo rigor o erro daqueles que fazem e veneram essas pinturas, pois é doutrina unânime de todos os santos Pais e dos seis Sínodos Ecumênico, que não se pode imaginar qualquer tipo de separação ou mistura em oposição à união insondável, inefável e incompreensível das duas naturezas na hipóstase ou pessoa una. Que proveito, pois, tem a loucura do pintor, que pelo amor pecaminoso ao ganho representa aquilo que não deveria ser representado — isto é, com suas mãos conspurcadas tenta moldar aquilo que deveria ser apenas crido no coração e confessado com a boca? Ele faz uma imagem e chama-a de Cristo. O nome Cristo significa Deus e homem. Consequentemente é uma imagem de Deus e do homem, e portanto o pintor, em sua mente tola e em sua representação da carne criada, representou a Divindade que não pode ser representada, misturando desse modo o que não pode ser misturado. Portanto, faz-se culpado de dupla blasfêmia — uma ao fabricar uma imagem da Divindade, e outra ao misturar a Divindade com a humanidade. Cometem semelhante blasfêmia aqueles que veneram a imagem... Aquele, portanto, que faz uma imagem de Cristo ou representa a Divindade que não pode ser representada, e mescla-a com a humanidade (como os monofisitas), ou representa o corpo de Cristo como se não tivesse sido feito divino e separado e como uma pessoa à parte, como os nestorianos. A única figura admissível da humanidade de Cristo, no entanto, é o pão e vinho na santa Ceia. Esta e nenhuma outra forma, este e nenhum outro tipo, ele escolheu para representar sua encarnação. Ele ordenou que se trouxesse o pão, mas não como uma representação da forma humana, para que a idolatria não viesse à tona. E como o corpo de Cristo torna-se divino, assim também essa figura do corpo de Cristo, o pão, torna-se divina pela descida do Espírito Santo; torna-se o corpo divino de Cristo pela mediação do sacerdote que, separando a oblação daquilo que é comum, santifica-o. ... O cristianismo rejeitou a totalidade do paganismo, e não somente os sacrifícios pagãos, mas também o costume pagão de adoração de imagens.[230] Essa declaração indica a consciência dos problemas: a definição de Calcedônia subjaz a todos os concílios, e é heresia confundir as duas naturezas, como os iconodulos o faziam implicitamente. Mas ainda ignorava- se o ponto: o exemplo de que pintar a imagem de Cristo mesclava as duas naturezas acabou tornando a questão mais confusa. Como poderiam as duas naturezas confundir-se num retrato de Cristo, quando ambas estiveram presentes nele? Assim, o concílio de 754 trouxe confusão ao sacramento, “a única figura admissível da humanidade de Cristo”. O pão torna-se então o “corpo divino de Cristo pela mediação do sacerdote”. Nessa questão mais uma vez o neoplatonismo adentrou, e o caminho estava claramente preparado para a doutrina medieval da hóstia. A encarnação estendida foi transferida das imagens aos elementos do sacramento. Em vez de um concílio subserviente, o concílio de 754 estava implicitamente mais próximo da Roma medieval em sua doutrina da igreja do que o concílio de 754 estava em sua eclesiologia. O concílio de 754 também declarou que “nenhum príncipe ou oficial secular há de usurpar as igrejas, como alguns fizeram em tempos anteriores, sob o pretexto de destruir imagens”.[231] A integridade da igreja como um domínio separado estava nitidamente sugerida. O Decreto do Concílio de Niceia II, 787, dizia em parte: Resumindo nossa confissão, mantemos inalteradas todas as tradições eclesiásticas que nos foram legadas, sejam em formas escritas ou verbais, uma das quais é a feitura de representações pictóricas, em conformidade à história da pregação do Evangelho, uma tradição útil em muitos aspectos, mas especialmente neste: que assim a encarnação da Palavra de Deus é demonstrada como real e não simplesmente fantasmática, pois estes aspectos têm mútuas indicações e sem dúvida têm também mútuos sentidos. Como que prosseguindo sobre a via régia, seguindo a doutrina divinamente inspirada pelos nossos santos Padres e a tradição da Igreja católica — pois reconhecemos que ela é do Espírito Santo que a habita —, nós definimos com todo o rigor e cuidado que, à semelhança da figura da cruz preciosa e vivificante, assim as venerandas e santas imagens, quer pintadas, quer em mosaico ou em qualquer outro material adequado, devem ser expostas nas santas igrejas de Deus, sobre os sagradosutensílios e paramentos, sobre as paredes e painéis, nas casas e nas ruas; tanto a imagem do Senhor Deus e Salvador nosso Jesus Cristo como a da Imaculada nossa Senhora, a santa Deípara, dos venerandos anjos e de todos os santos e justos. De fato, quanto mais <os santos> são contemplados na imagem que os reproduz, tanto mais os que contemplam as <imagens> são levados à recordação e ao desejo dos modelos originais e a tributar a elas, beijando-as, respeito e veneração; não, é claro, a verdadeira adoração própria de nossa fé, reservada só à natureza divina, mas como se faz para a representação da cruz preciosa e vivificante, para os santos evangelhos e os outros objetos sagrados, honrando- os com a oferta de incenso e de luzes segundo o piedoso uso dos antigos. Pois “a honra prestada à imagem passa para o modelo original”, e quem venera a imagem venera a pessoa de quem nela é reproduzido.[232] O primeiro ponto nesse decreto é bem expresso. Se a encarnação é real, pode ser representada; uma encarnação irreal, uma que seja “simplesmente fantasmática”, não pode ser retratada. Valendo-nos de termos modernos, um Cristo verdadeiro e real pode ser fotografado; um Cristo mítico não. O segundo ponto é igualmente válido. A honra prestada ao retrato é honra prestada ao retratado. Desprezar um símbolo é desprezar aquilo que é simbolizado. Dessa forma, o monge Estefano trouxe sobre si a própria prisão ao insultar deliberadamente a imagem imperial. Ele tomou uma moeda, numa audiência imperial, e, chamando atenção para a efígie do imperador, pisou-a dizendo: “Que sofrimento devo sofrer, devo espezinhar esta moeda que porta a imagem do imperador? Julguem a partir disso que punição merece aquele que insulta Cristo e sua mãe em suas imagens”.[233] Como o concílio estava ciente, o tabernáculo possuía imagens entalhadas, nomeadamente, os querubins na arca, romãs, etc., e a Bíblia proibia o culto, não o uso decorativo dessas figuras. Porém os entalhes do tabernáculo jamais foram objeto de genuflexão religiosa, de incenso, círios ou que tais. O concílio justificava a veneração de imagens citando, em sua carta ao imperador e à imperatriz, os exemplos bíblicos de veneração de homens: E por fim, aqueles que buscam obter alguma dádiva veneravam os que estão acima de si, como Jacó venerou Faraó. Portanto, uma vez que esse termo tem muitos significados, quando as Escrituras divinas nos ensinam: “Venerarás o Senhor teu Deus, e somente a ele servirás”, elas dizem simplesmente que a veneração deve ser prestada a Deus, mas não acrescenta a palavra “somente”; pois sendo uma palavra de amplo sentido, veneração é um termo ambíguo; mas as Escrituras prosseguem dizendo: “e somente a ele servirás”, pois somente a Deus devemos render latria. [234] O argumento admite que veneração e adoração são a mesma coisa. Deus é venerado ou adorado, e as imagens também o são; diz-se que o mandamento permite uma latitude maior à veneração, mas o culto é restrito a Deus. A justificativa alegadamente bíblica é bastante fraca, na medida em que os termos “somente” e “servir” modificam e explicam o ato de veneração ou adoração. E a veneração de pessoas superiores, monarcas e pais era uma exigência da lei, um respeito antes para com as autoridades instituídas por Deus do que para as pessoas investidas enquanto meros humanos. As imagens eram necessárias porque a igreja, por meio delas, apresentava-se como a encarnação continuada. O ascetismo era uma forma desse mesmo tipo de encarnação, na medida em que os monges ascendiam a cadeia do ser e tornavam-se praticamente pequenos Cristos; os monges do Monte Athos no século XIV em momentos de êxtase afirmavam ter alcançado a luz da glória divina, a essência incriada de Deus. Esta experiência não era cristã nem na sua forma, menos ainda em seu conteúdo, pois resultava de jejuns e de meditações concentradas no próprio umbigo. Quando Barlaão condenou essa prática da contemplação do umbigo [omphaloskepsis] como uma prática ímpia e anticristã, convocou-se um sínodo e Barlaão e seu partido foram citados como heréticos e condenados. Atualmente, no Domingo da Ortodoxia (ou Triunfo da Ortodoxia) na Igreja Grega, o nome de Barlaão é um dos primeiros mencionados na lista dos anatematizados por heresia. Os indivíduos que Barlaão chamava de “aqueles que têm a alma no umbigo” [onfalopsíquicos] haviam triunfado.[235] A liturgia da Igreja Oriental é dramática e entusiástica, projetada para promover a possessão por parte de Deus, estender a encarnação mais profundamente na vida da igreja; e o clero monástico, com sua dedicação a essa liturgia, representa um elemento permanentemente entusiasta. A importância da encarnação continuada de Niceia II manifesta-se claramente no cânone 7: Que às igrejas consagradas sem qualquer depósito das relíquias dos Santos, corrija-se essa imperfeição. Paulo, o divino Apóstolo, diz: “Os pecados de alguns homens são notórios e levam a juízo, ao passo que os de outros só mais tarde se manifestam”. Os primeiros são os pecados primários, os últimos os pecados que se seguem. Seguindo os passos da heresia dos detratores dos cristãos, vieram juntamente outras impiedades. Pois conforme retiraram das igrejas a presença das veneráveis imagens, de igual modo lançaram fora outros costumes que devemos agora restaurar e preservar em conformidade com a lei escrita e não escrita. Decretamos, portanto, que as relíquias sejam colocadas no serviço habitual nos templos sagrados que foram consagrados sem as relíquias dos Mártires. E se algum bispo de qualquer época doravante consagrar um templo sem relíquias santas, será deposto como transgressor das tradições eclesiásticas. [236] Nesse cânone igualou-se as relíquias e imagens, e ambas são vistas como necessárias à igreja; desse modo, uma igreja é imperfeita, conforme declarado, caso não possua relíquias, e um bispo que consagra uma igreja sem relíquias deve ser “deposto como transgressor”. As relíquias dos santos, mais ainda que suas imagens, representam sua condição santa. As relíquias eram veneradas, e, por volta do século IX, acreditava-se que tinham poderes curativos. Pelliccia discutiu esse tema em seu capítulo “Da Canonização (Apoteose) dos Santos”. Apoteose, é claro, significa deificação. Pelliccia mencionou o costume da Antiguidade de deificar-se os heróis e governantes falecidos. Tratava-se, segundo ele, de um excelente plano “para infudir nos homens incentivos e estímulos à virtude”. Este costume, numa nova forma, “foi, ao longo do tempo, e com o mais excelente juízo, adotado na religião cristã”.[237] “Algumas pessoas na Idade Média irreverentemente colocavam as relíquias dos Santos no mesmo receptáculo da Eucaristia, mas isto foi proibido pelos concílios no século XVI.”[238] Essa prática não era de todo surpreendente; tratava-se antes de um desenvolvimento lógico. Visto que as relíquias eram uma extensão da encarnação, e sendo a própria Eucaristia uma encarnação, reunir as duas era simplesmente uma conclusão da lógica devocional. A igreja não era realmente uma igreja — não estava apta a ser consagrada — caso tudo que tivesse fosse uma Bíblia; precisava de relíquias, a presença visível de um poder invisível. A igreja havia mudado. O helenismo triunfara na igreja, e o humanismo neoplatonista tornara-se sua ortodoxia. Aqueles que contemplavam seus umbigos encontravam mais apoio na igreja do que aqueles que criam e estudavam a palavra de Deus. 15. A ASCENSÃO E A SESSÃO O Credo dos Apóstolos declara que Jesus Cristo não apenas ressurgiu dentre os mortos, mas que “subiu ao céu, e está sentado à mão direita de Deus Pai Todo Poderoso”. As duas doutrinas intimamente relacionadas são aqui citadas: a ascensão e a sessão. A ascensão é a translação visível de Cristo da terra para o céu na presença de seus discípulos. Aconteceu no Monte das Oliveiras, quarenta dias após a ressurreição (Marcos 16.19; Lucas 24.50-51; Atos 1.1-11). A ascensão fora predita pelo Antigo Testamento (Salmos 24, 68, 103, 110), e por Cristo (João 6.62; 20.17).Foi prefigurada pela translação de Enoque (Gênesis 5.24; Hebreus 11.5) e de Elias (2 Reis 2.11). O Novo Testamento lida doutrinariamente com a ascensão em 2 Coríntios 13.4, Efésios 2.6, 4.10, 1 Pedro 3.22, 1 Timóteo 2.16 e Hebreus 6.20. Nem a doutrina nem as profecias preditivas, nem o evento serão aceitos por aqueles que, como uma questão de fé humanista, negam a palavra infalível. O quarto dos Artigos de Religião da Igreja da Inglaterra e da Igreja Episcopal Protestante diz: “Cristo verdadeiramente ressuscitou dos mortos e tomou de novo o seu corpo, com carne, ossos e tudo o mais pertencente à perfeição da natureza humana; com o que subiu ao céu, e lá está assentado, até que volte a julgar todos os homens, no último dia”. O Catecismo maior de Westminster lida com esse tema por meio de várias perguntas. Em duas delas, declara: P. 51. Qual é o estado de exaltação de Cristo? R. O estado de exaltação de Cristo compreende a sua ressurreição, ascensão, o estar sentado à destra do Pai, e a sua Segunda Vinda para julgar o mundo (1Co 15.4; Lc 24.51; Efésios 4.10, e 1.20; Atos 1.11). P. 53. Como foi Cristo exaltado na sua ascensão? R. Cristo foi exaltado na sua ascensão em ter, depois da sua ressurreição, aparecido muitas vezes aos seus apóstolos e conversado com eles, falando-lhes das coisas pertencentes ao seu reino, impondo-lhes o dever de pregarem o Evangelho a todos os povos, e em subir aos mais altos céus, no fim de quarenta dias, levando a nossa natureza e, como nosso Cabeça triunfante sobre os inimigos, para ali, à destra de Deus, receber dons para os homens, elevar os nossos afetos e aparelhar-nos um lugar onde ele está e estará até à sua Segunda Vinda no fim do mundo (At 1.2-3; Mt 28.19; Hebreus 6.20; Efésios 4.8,10; Atos 1.9; Salmos 68.18; Colossenses 3.1,2; João 14.2-3; Atos 3.21). O bispo John Pearson, em seu comentário sobre o credo, tratou da ascensão como sendo transiente — como o meio —, e da sessão como sendo permanente — como o fim. Pearson acrescentou: Portanto, quando dizemos que Cristo ascendeu, entendemos por isso uma subida literal e local não de sua Divindade (que ocupa todos os lugares e portanto não está sujeita, em qualquer parte, à imperfeição de ser-lhe removida qualquer espaço), mas de sua humanidade, que, estando num lugar, não estava em outro: assim, quando dizemos que o lugar para o qual ascendeu era o céu, e da exposição dos apóstolos deve-se entender com isso o céu dos céus, ou o céu superior, segue-se que cremos que o corpo com a alma de Cristo passaram para bem acima de todos os corpos celestiais que vemos, e que vemos como uma presunção rasteira a opinião de que ele deixou seu corpo no sol.[239] A última referência de Pearson — de Cristo deixando seu corpo no sol — era a uma doutrina ensinada pelos hermianos, uma seita herética do século II que negava que o batismo nas águas tivesse sido ensinado por Cristo. Os hermianos afirmavam que a alma do homem era feita de fogo e espírito e que o verdadeiro batismo era pelo “fogo”. Os seleucianos, seguidores de Seleuco, um filósofo da Galácia, que adotou o gnosticismo valentiniano por volta de 380 d.C., ensinava que Jesus adotara um corpo apenas de aparência, e não um corpo real de carne e sangue. O mundo não havia sido criado por Deus, mas (acreditavam) era eterno. A alma era fogo animado, criado por anjos. Cristo, diziam os seleucianos, não estava em sessão com o Pai, mas havia deixado seu corpo no sol. Eles, conforme dito, também negavam o batismo nas águas. Para eles, todos os prazeres da felicidade são deleites físicos, corpóreos. A posição de ambos os grupos era basicamente maniqueísta, um ponto levantado por Gregório Nazianzeno e Agostinho (Epist. I ad Cledonium; Tract 34, in Ioan 2, respectivamente). O ataque maniqueísta visava a ascensão enquanto o caminho para a sessão, isto é, impedir a exaltação centrada em Deus dos santos redimidos de Cristo, a fim de possibilitar a exaltação autônoma do homem. A doutrina da sessão é a presença perpétua da natureza humana de nosso Senhor na glória suprema do céu, à destra de Deus Pai. O corpo de Jesus Cristo está, pois, local e fisicamente presente no céu, e é de lá que ele envia o Espírito Santo aos homens. O resultado dessa exaltação da sessão é que ela traz os redimidos a Deus, à presença divina, na comunhão mais íntima. Possibilitou a exaltação de todos santos à comunhão dos céus, “para que, onde eu estou, estejais vós também” (João 14.2-3). A sessão é repetidamente citada nos Evangelhos e Epístolas, mas a narrativa de Marcos sobre a ascensão é singular ao citar a sessão naquele contexto (Marcos 16.19).[240] Nas Escrituras, a ascensão, sessão e a Segunda Vinda estão todas intimamente entrelaçadas à ressurreição e ao Juízo Final. Elas são parte da exaltação e vitória de Jesus Cristo. Davies, comentando acerca do fato de que, para Paulo, Cristo é Senhor em virtude de sua ressurreição e ascensão, afirmou: Desse modo, intimamente ligada a essa concepção da ascensão com relação à qual é quase indistinguível está a crença mais desenvolvida de que a ascensão conduz à entronização de Cristo em majestade messiânica como o Rei à destra de Deus; “porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés” (1 Coríntios 15.25). Assim, por meio da ascensão, Cristo tornou-se o vice-regente de Deus sobre o universo, contudo seu reino não é de paz, mas de glorioso combate conforme ele continua a “subordinar a si todas as coisas” (Filipenses 3.21).[241] Por meio da ascensão, Deus exaltou Jesus Cristo ao status de Senhor: “Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Filipenses 2.9-11). Antes da encarnação, os homens de fé viam a mão de Deus na história e aceitavam-na, mas seu sentimento de desolação e solidão foi expresso por Davi no salmo 22; esse isolamento foi experimentado no seu máximo grau por Jesus na cruz, e terminou com sua ascensão e sessão. O homem é agora restaurado à comunhão com Deus em Cristo, e a comunhão é mais íntima do que a do Éden. O homem na pessoa de Jesus Cristo põe-se em sessão com o Deus triúno, em guerra contra o mal e em julgamento sobre ele. O tema de Apocalipse é a “ira do Cordeiro” (Apocalipse 6.16) contra os opressores de seu povo. Declara-se que a ascensão de Cristo é a oferta das “primícias” da nova humanidade a Deus Pai (1 Coríntios 15.23). O primeiro fruto de todas as coisas pertencia a Deus, de acordo com a lei, a fim de indicar que tudo — homens, animais, colheitas — pertencia-lhes em sua totalidade. As primícias portanto representavam a dedicação simbólica de todo o fruto. Ademais, “e, se forem santas as primícias da massa, igualmente o será a sua totalidade” (Romanos 11.16), isto é, a inteireza participa do caráter do representante. Cristo é as primícias da nova criação, da nova humanidade criada por Deus; ele é o segundo e último Adão (1 Coríntios 15.47-49). Portanto, “também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (Romanos 8.23). Na ascensão, o corpo do eleito em sua inteireza é apresentado ao Pai, santo nas primícias, Jesus Cristo. Na sessão, o corpo do eleito em sua inteireza é apresentado à destra de Deus Pai, declarando guerra aos ímpios e buscando recompensação pelos males que praticaram. Essa vitória que o eleito busca é assegurada pela ascensão, “que marca a substituição do veredito do homem sobre Jesus de Nazaré pelo veredito de Deus”.[242] Esse ensino foi vigorosamente enfatizado pela Igreja Primitiva. Justino Mártir enfatizava a doutrina da eleição juntamente com a ascensão, declarando: Agora escutai o que disse o profeta Davi sobre o fato de que Deus, Pai do universo, levaria Cristo ao céu, depois de sua ressurreição dos mortos, e retê-lo-ia consigo até ferir os demônios,seus inimigos, e até se completar o número dos que por ele, de antemão conhecidos como bons e virtuosos, em respeito dos quais justamente ainda não foi levada a cabo a conflagração universal. As palavras do profeta são estas: “Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés. O Senhor te enviará o cetro de poder de Jerusalém, e tu dominarás em meio aos esplendores de teus inimigos. Contigo o império no dia de tua potência, em meio aos esplendores de teus santos. Do meu seio, antes do astro da manhã, eu te gerei”. Portanto, o que ele diz, “enviar-te-á de Jerusalém o cetro de poder”, era anúncio antecipado da palavra poderosa que, saindo de Jerusalém, os apóstolos pregaram por toda parte e que nós, a despeito da morte decretada dos que ensinam ou absolutamente confessam o nome de Cristo, em todo lugar também a abraçamos e ensinamos. E se também vós ledes como inimigos estas nossas palavras, além de matar-nos, como já dissemos antes, nada podeis fazer. A nós, isso nenhum dano causará; a vós, porém, e a todos os que injustamente nos odeiam e não se convertem, trazer-vos-á castigo de fogo eterno.[243] É bastante evidente aqui a confiança da Igreja Primitiva: Cristo ascendeu para o triunfo; embora os inimigos de Cristo possam matar os cristãos, são os inimigos que devem temer, caso não se arrependam, porque Cristo é o grande Senhor e juiz sobre todos os homens. A ascensão de Cristo é a exaltação de todos os eleitos. Atanásio declarou: “E a expressão à lume, “soberanamente exaltado”, não significa que a essência da Palavra fora exaltada, pois ele sempre foi e é ‘co-igual a Deus’, mas a exaltação é da humanidade”.[244] Crisóstomo disse acerca dessa exaltação: “Nós que nos mostramos indignos da terra fomos conduzidos hoje aos céus: nós que não éramos dignos da primazia nas regiões inferiores ascendemos ao Reino superior: escalamos os céus: alcançamos o trono real, e essa natureza, por conta da qual o querubim guardava o paraíso, está hoje assentada acima do querubim”.[245] “Assim, a ascensão é o prelúdio necessário para a intercessão”, assinalou Davies.[246] Por meio da ascensão, os crentes intercedem junto a Deus contra os malignos, e sua vitória é garantida por Cristo. Acerca da Festa da Ascensão, um pregador anônimo declarou: “Todas as festas cristãs condenam o diabo, mas esta em especial”.[247] No tocante à sessão e intercessão, os teólogos do Catecismo maior de Westminster declararam: P. 54. Como é Cristo exaltado em sentar-se à destra de Deus? R. Cristo é exaltado em sentar-se à destra de Deus, em ser ele, como Deus-homem, elevado ao mais alto favor de Deus o Pai, tendo toda a plenitude de gozo, glória e poder sobre todas as coisas no céu e na terra; em reunir e defender a sua Igreja e subjugar os seus inimigos; em fornecer aos seus ministros e ao seu povo dons e graças e em fazer intercessão por eles (Filipenses 2.9; Atos 2.28; João 17.5; Efésios 1.22; Mateus 28.18; Efésios 4.11-12; Romanos 8.34). P. 55. Como faz Cristo a sua intercessão? R. Cristo faz a sua intercessão apresentando-se em nossa natureza continuamente perante o Pai no céu, pelo mérito da sua obediência e sacrifício cumpridos na terra, declarando ser a sua vontade que seja aplicado a todos os crentes respondendo a todas acusações contra eles; adquirindo-lhes paz de consciência, não obstante as faltas diárias, dando-lhes acesso com confiança ao trono da graça e aceitação das suas pessoas e serviços (Hebreus 9.24 e 1.3; João 17.9, 20,24; Romanos e 5.1-2, 1 João 2.1-2; Hebreus 4.16; Efésios 11.6; 1 Pedro 2.5). Assentar-se à destra é estar assentado na posição de confiança e poder; Pearson escreveu que “a destra de Deus significa sua majestade gloriosa... o poder exaltado e infinito de Deus”. É a “destra do poder” (Mateus 26.64; Marcos 14.62; Lucas 22.69). Dentre seus vários sentidos, significa “a destra da magistratura”, de modo que Cristo é com isso “manifesto e declarado como o grande juiz dos vivos e mortos”. É a herança que cabe a Cristo, no sentido pleno da promessa, do trono de Davi (Atos 2.36). Tanto os inimigos temporais quanto espirituais serão feitos “estrados” (Hebreus 10.12-13). De acordo com Pearson, “Cristo foi exaltado à destra de Deus para a destruição desses poderes, e por seu ofício régio julga-os e destrói-os todos”. Cristo destrói os poderes do pecado em seus santos e subjuga o réprobo a seu poder absoluto eternamente. A morte também é destruída por Cristo (1 Coríntios 15.26). “Inimigos todos fomos; sob seus pés terminaremos, quer adotados, quer subjugados.” Não há limitação ao poder de Cristo. A sessão “significa um poder onipotente, capaz de fazer todas as coisas sem limitação”.[248] As atividades apóstatas do homem são imitativas, porque o homem não é Deus; seu pensamento, portanto, não é criativo, mas analógico. A sabedoria do homem é pensar os pensamentos de Deus após ele, entender o universo e a si próprio com base no propósito criativo de Deus e em intepretação prévia. O homem apóstata planeja uma ordem mundial tomando-se em consideração o reino de Deus, porém sem Deus. Primeiramente, o sonho humano do reino é imanente; o reino, um paraíso na terra, é inteiramente deste mundo; origina-se no homem e deve ser seu mundo privado e sua possessão, uma área mantida sem o beneplácito de Deus, aliás, com Deus mantido à distância. Ao invés de uma unidade transcendental, o homem busca uma unidade temporal. Nessa concepção, portanto, uma vez que a verdadeira ordem pertence ao homem, a unidade e autoridade dessa ordem necessariamente se situa e é sustentada dentro da história por parte do homem. Em segundo lugar, esta ordem mundial é a exaltação do homem pela exaltação, e esse sonho humanista exige a exaltação do homem em desprezo a Deus e como uma ação ofensiva contra ele. A simples exaltação do homem nesta perspectiva envolve guerra contra Deus como o fundamento mesmo da exaltação do homem. Em terceiro lugar, a doutrina humanista da sessão vê o homem como o senhor da história. Os planejadores científicos de elite, como o epitome do homem livre, devem assentar-se em posição de onipotência e poder e governar os seres humanos e a natureza. A história envolve, portanto, uma guerra inescapável. Tendo criado o homem à sua imagem, Deus ofereceu-lhe uma posição de vice-regente da criação sob sua autoridade. O homem buscou essa mesma posição na autonomia em relação a Deus e em rebelião a ele. Deus, em Cristo, reestabeleceu o homem, restaurou-o à graça e abriu um novo caminho pela recriação do homem no destino glorioso de Cristo. A sessão divina é a onipotência e governo únicos e absolutos da Trindade sobre toda a criação. Ao homem é dado uma posição favorecida na sessão divina, uma posição possibilitada pela graça e recebida pela submissão e obediência totais de Jesus Cristo. A própria exaltação do ser humano no reino eterno envolve sua própria santificação perfeita após a morte. O governo pertence a Deus, não ao homem, e a posição deste em perfeita obediência é a de um vice-regente, não a de Deus. O propósito do humanismo, de todo movimento não cristão e de toda heresia e apostasia é tomar o trono para o homem, de colocar o homem no lugar de Deus e criar uma sessão antropocêntrica sobre toda criação e história. O poeta unitariano William C. Gannett via a realização do homem na ascensão do ser humano para tornar-se um deus. Escrevendo em 1871, ele declarava que o sobrenome de todas as pessoas é Deus: É Maria, Marta e Katy, João-Deus e Willie-Deus.[249] Para Frederick L. Hosmer, escrevendo em 1904, a Cidade dos Homens, “a comunidade do homem”, é “a Cidade de nosso Deus!”.[250] Em 1918, Gannett viu a conferência de paz vindoura como um novo Sinai: Humildes e condescendentes as nações todas Hão de juntas buscar um Sinai virgem Ouvir uma Nova Lei na Cúpula dos Pacificadores, Que, para os povos de Deus, Novo Mundo forjem![251] Em 1904, Gannett viu a “glória vindoura” como a “Glória do Homem Absoluto!”. Esse novo homem-deusprosseguiria “avante, ascendente e pelas eras/Moldando a Natureza a seus planos”.[252] Essa era uma expressão romântica do sonho apóstata. A demonstração prática da mesma esperança é menos poética. Durante a Revolução Francesa, fez-se planos para despovoar a França matando de doze a quinze milhões de franceses a fim de efetuar uma “transfiguração revolucionária”. O esquema foi até mesmo explanado na imprensa. Defendeu-se que a “despovoação era essencial”. “Guffroy, em seu diário, expressou a opinião de que se deveria permitir que apenas cinco milhões de pessoas sobrevivessem, embora tenha- se relatado que Robespierre dissera que uma população de dois milhões seria mais do que suficiente.” Outros afirmavam que “oito milhões era o número que os líderes em geral decidiam conjuntamente”.[253] A ordem humanista reivindica para si o direito absoluto de julgamento que pertence legitimamente apenas a Deus. A exemplo disso, Joshua Lederberg, PhD, Professor de Genética em Stanford, afirmou, em defesa do aborto: “Não podemos insistir em direitos absolutos à vida a um pedaço de tecido só porque ele guarda uma semelhança com a humanidade”.[254] A implicação direta é que o Estado deveria ter esse direito absoluto. A menos que se confesse a ascensão e sessão de Jesus Cristo, os homens hão de buscar sua própria ascensão à onipotência e sua própria sessão do poder absoluto sobre o homem. Para qualquer indivíduo, confessar Cristo e abraçar o estatismo ou socialismo é envolver-se em grave contradição e negação prática de Cristo. A sessão divina e a sessão estatista, socialista, são mutualmente exclusivas e incompatíveis. Calvino, tratando sobre a ascensão e sessão, disse que implicavam que Cristo tinha sido “consagrado no domínio do céu e da terra”.[255] A essência do Estado humanista e socialista é a entronização do homem ao governo do céu e da terra. A consequência é o conflito contra Deus e Cristo. Não há vitória possível para os homens que travam guerra contra Deus. Mas também não há esperança para os homens que, na linha direta do fogo, falham em reconhecer que uma guerra está em andamento. 16. O JUÍZO FINAL O Credo dos Apóstolos, após declarar a sessão divina, diz, no tocante a Cristo, que “há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos”. O Credo de Niceia afirma: e subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim”. O veredito na história virá de fora da história, assim como sua resolução da história provém da eternidade, do Deus triúno, pois, nas palavras de Stauffer, “nada pode acontecer sem a vontade de Deus, sem que ele queria que aconteça, e que o queira de antemão”.[256] Conforme Stauffer, de modo nenhum ortodoxo, escreveu: Não se trata de fatalismo. O fatalista vê tudo que acontece no mundo e sua história sujeitos à coerção opressiva de um fado impessoal, ao passo que os escritores bíblicos conhecem a vontade diretriz de um Deus pessoal que ouve e responde nossas orações. Isto não é determinismo. O determinista entende que a decisão humana é realizada por fatores casuais sub-pessoais que são alheios à vontade. Isto reduz a vontade a uma aparência (como se dava entre os essênios, de acordo com Josefo em Antiguidades, 13. 172). Em contrapartida, as Escrituras entendem que nossa vontade é condicionada por uma vontade de tipo sobrenatural, pela vontade de Deus, que deseja a vontade do homem, e que por sua vontade primeiramente desperta o homem para sua realidade específica.[257] Ademais, conforme Stauffer notou, “Cristo veio uma vez à terra como o rex triumphaus, o deus salvator revelatus”.[258] A história é uma sucessão de julgamentos, nos quais Deus vem em meio às nuvens de seu juízo; e todas essas crises e julgamentos são para abalar as nações, destruir os reinos réprobos dos homens e estabelecer, por meio da triagem, os fiéis de Cristo em seu reino. Como Deus declarou por meio de Ezequiel: “A ruínas a reduzirei, e ela já não será, até que venha aquele a quem ela pertence de direito; a ele a darei” (Ezequiel 21.27). O propósito dessa destruição, de acordo com São Paulo, é “a remoção dessas coisas abaladas, como tinham sido feitas, para que as coisas que não são abaladas permaneçam” (Hebreus 12.27). Os sucessivos julgamentos têm como propósito a remoção, por meio da destruição “das coisas como tinham sido feitas”, isto é, as ordens humanista e apóstata da história, de modo que o reino de Cristo, que não pode ser abalado, permaneça. Estes são todos julgamentos parciais, precursores do Juízo Final. O humanismo, no entanto, não ignorou a doutrina do juízo. A parábola de Mateus 25.31 ss. foi usada pelos humanistas para converter o Juízo Final num triunfo do humanismo! Joachim Jeremias oferece um exemplo notável disso. Para ele, a parábola da separação entre as ovelhas e os bodes fornece o critério pelo qual os pagãos serão julgados. A parábola na verdade diz respeito ao julgamento da igreja professante. Jeremias, pelo contrário, vê-la como um julgamento não do próprio rebanho do Senhor, mas de outro rebanho. Porém Jeremias em seguida se contradiz quando afirma que “separar” é um “termo técnico dos pastores de rebanhos” utilizado ao dividir os bodes das ovelhas ao fim do dia na Palestina. Em outras palavras, é o rebanho do pastor, a igreja de Cristo, que está sendo julgado. No entanto, Jeremias ainda o vê como o julgamento dos pagãos: Em ligação a uma palavra como Mt 10,32s, onde Jesus diz que ele se apresentará em favor daqueles de seus discípulos que o confessaram na vida, poder-se-ia perguntar-lhe: Então com que critério serão julgados os pagãos, com os quais não encontraste? Jesus responde: Também com os pagãos eu me encontrei como o Messias escondido — nos meus irmãos; quem lhes prestar amor, a mim o prestam, a mim, o redentor dos pobres. Por isso os pagãos, no dia do juízo, serão interrogados acerca do amor ativo que me terão prestado na pessoa dos oprimidos, e eles vão receber o dom da graça da participação no reino de Deus, se tiverem cumprido o mandamento do amor, a lei do Messias (Tg 2,8). Também no caso deles dá-se a justificação pelo amor, e portanto ser-lhes-á pago também o resgate (Mc 10,45).[259] Primeiramente, a ideia de que descrentes tivessem qualquer direito à salvação jamais ocorreu a qualquer um na era neotestamentária, e jamais foi um tema de interesse de Cristo ou dos apóstolos. Em segundo lugar, Jeremias faz de uma preocupação inteiramente humanista o fundamento da salvação. Não Cristo, mas o homem é o teste. A fé é direcionada ao homem, não a Deus. Em terceiro lugar, dá-se à justificação um fundamento não cristão — o amor humanista —, em lugar da graça de Deus. Desse modo, não apenas o homem é o objeto da fé e o objeto de interesse religioso, mas é também a fonte da graça e salvação. Em quarto lugar, conforme assinalado, Jeremias escolhe desconsiderar o fato de que o juiz está julgando e dividindo seu próprio rebanho, a igreja, e não os pagãos de fora. É a separação dos descrentes na igreja e a igreja, e o fundamento desse juízo é o próprio pastor. Em quinto lugar, a parábola é parte de um discurso sobre o julgamento da igreja, dos verdadeiros cristãos em contraposição aos nominais. Mateus 24.42-51 conclui a declaração concernente à queda de Jerusalém, e em seguida os tempos finais, ambos exemplos de julgamento, alertando a igreja a estar preparada para o julgamento por meio da fé e obediência verdadeiras. Três parábolas, pois, ilustram a distinção entre os crentes verdadeiros e os membros eclesiásticos nominais: a primeira, a parábolas das virgens prudentes e das virgens néscias; a segunda, a parábola dos talentos, isto é, os servos diligentes e os servos inúteis; a terceira, a separação das ovelhas e dos bodes (Mateus 25). Nesta última parábola (Mateus 25.31 ss.), uma profissão de fé tanto por parte das ovelhas quanto dos bodes é pressuposta; ambos são seguidores do Pastor e igualmente professam pertencer a seu rebanho. A questão aqui é de divisão com base na realidadede sua fé professada. A fé verdadeira é a fé salvadora: mesmo um copo de água fria dado em nome de Cristo tem pois sua recompensa (Marcos 9.41). O testemunho de fé exigido pelo Pastor é confessional, confessional na medida em que manifesta a fé e confessa-a sob pressão. A confissão tem um duplo aspecto: primeiramente, os frutos manifestam a árvore, e as obras confessam a fé; em segundo lugar, a igreja foi advertida de que a perseguição seria sua porção (Mateus 5.10-12; Lucas 6.22-23; 2 Coríntios 4.17; 2 Timóteo 2.12; 1 Pedro 4.13-14, etc.), porém o Senhor estaria com seus servos quando fossem levados às cortes (Mateus 10.19-20). Visitar cristãos em cadeias muitas das vezes demandava coragem, porque implicava identificar-se como crente, e, em perseguições da Igreja Primitiva, chamar esse tipo de atenção das fontes oficiais era bastante grave. São Paulo falou emocionadamente de Onesíforo, que “nunca se envergonhou das minhas algemas” (2 Timóteo 1.16), e esta palavra veio de um período anterior à grande perseguição aos cristãos. São Paulo referiu-se a “discernir o corpo do Senhor” de duas maneiras: a primeira, ao conhecer o sentido dos elementos da comunhão, entendendo e crendo em sua expiação e sua ressurreição; e, em segundo lugar, ao evitar as “divisões” pelas quais os irmãos cristãos não seriam reconhecidos nem compartilhariam da “ceia do Senhor” (1 Coríntios 11.17-34). Eles não seriam então reconhecidos como membros em Jesus Cristo, e o corpo do Senhor não seria discernido. Na parábola do julgamento, os “bodes” falharam em discernir o corpo do Senhor, porque não eram realmente seus membros; recusaram-se em reconhecê-lo (o Senhor) nas pessoas de seus santos oprimidos e sofredores, porque são “malditos” aqueles que não o conhecem. Não conhecendo Cristo, como poderiam ter comunhão com seus membros? Recusando-se a reconhecer Cristo em sua gloriosa pessoa, como poderiam, pois, reconhecê-lo nos seus santos sofredores e oprimidos? (Mateus 25.41-46). A audácia desses pecadores é notória: eles ousam contradizer Cristo no dia do juízo; os santos, em humildade, falham em reconhecer o escopo total de sua fé; os pecadores, por sua vez, negam a seriedade de seu pecado. A interpretação de Jeremias não é apenas uma interpretação estranha e humanista que é forçada às Escrituras, mas os próprios comentários de Jeremias contradizem-na. Dever-se-ia também acrescentar que esses intérpretes não creem na realidade do juízo bíblico. Para eles, os credos e as Escrituras são simplesmente mitos e símbolos. George Hedley, por exemplo, “defende” os credos como uma “tradição veneranda” que lida “não [com] eventos, mas valores”, e estes valores, por sua vez, “constituem a essência dos credos”. Condena-se o “literalismo infantil” por crer de forma literal nos credos e também o “literalismo adolescente” por negar os credos, pois “é somente no mito e no símbolo que o homem pode chegar perto de expressar o inexpressível. É na poesia dos antigos credos que a fé eterna da igreja ainda ressoa pelo mundo”.[260] Mas seria um grave equívoco dizer que esses humanistas não creem no juízo, nem num céu ou inferno; eles de fato creem, e de modo bastante literal, não num juízo bíblico, céu e inferno. Visto que foram estabelecidos por Deus como aspectos inescapáveis da história do homem, o julgamento, o céu e o inferno são também categorias inescapáveis de pensamento. Se um homem nega a versão bíblica, é apenas para criar uma versão humanista. Numa passagem muito importante, Karl Marx disse em parte: Para que uma revolução popular e uma emancipação de uma classe particular da sociedade civil se coincidam, para que uma classe represente a totalidade da sociedade, outra classe deve concentrar em si todos os males da sociedade, uma classe particular deve incorporar e representar um obstáculo e limitação gerais. Uma esfera social particular deve ser vista como o crime notório de toda a sociedade, de modo que a emancipação com relação a essa esfera apareça como uma emancipação geral. Para que uma classe seja a classe libertadora par excellence, é necessário que outra classe seja abertamente a classe opressora.[261] Para Marx, era necessário primeiramente que uma classe se identificasse como “a classe libertadora”, como a salvadora do homem. Em segundo lugar, “é necessário” identificar a outra classe como “a classe opressora”, como o diabo. Em terceiro lugar, Marx entendia que era preciso, como atestam muitos de seus escritos, que a revolução, culminando em julgamento, fosse exigida contra essa classe opressora demoníaca. A revolução mundial culminaria no Juízo Final. Em quarto lugar, haveria um inferno para os opressores — e a União Soviética tinha seus campos de trabalho forçado —, e um céu — a utopia comunista ou paraíso na terra — para os fiéis. Os detalhes divergem, mas toda cosmovisão e fé têm suas versões de juízo, céu e inferno. Para alguns, o inferno é a existência, e o céu é o nirvana e o nada. Porém as categorias básicas permanecem. Os relativistas, os niilistas e os existencialistas que negam todos os valores e leis absolutos exigem que Deus, lei e moralidade sejam julgados; o inferno para eles é um mundo de valores absolutos, contra o qual declaram guerra, e o céu é um mundo além do bem e do mal. Contudo, transferir o Juízo Final, o céu e o inferno da ordem eterna para o tempo é absolutizar a história e entronizar o homem como Deus. Significa a destruição da liberdade, já que a história deixa de ser o reino da liberdade e da provação, tornando-se pois o lugar do processo final. Tendo tornando o Juízo Final temporal, o humanista não pode permitir a liberdade, porque esta é hostil à finalidade; a liberdade pressupõe provação e erro, assim como a possibilidade de grave desobediência quando e onde o homem é pecador e imperfeito. A história não pode tolerar a provação e o erro ao mesmo tempo em que insiste na finalidade e no fim da provação e do erro. As utopias humanistas são todas elas prisões, porque insistem numa finalidade que o homem não possui. Consequentemente, as utopias socialistas exigem a “reeducação” do homem” no mundo pós-revolucionário, na era para além do julgamento. A “nova era” é o novo céu na terra: como pode um homem perverso habitar nela sem ser destruído pela “justiça revolucionária”, isto é, uma continuação ou extensão do Juízo Final? O resultado é a tirania perpétua, conforme o homem imoral e o homem piedoso dissidente são forçados à camisa de força do céu socialista. Nega-se assim o desenvolvimento tanto ao homem quanto à história. A autoconsciência epistemológica traz o desenvolvimento paralelo do trigo e do joio, dos santos e dos pecadores, e Deus não permite que qualquer conclusividade invada a história até o fim desta (Mateus 13.30). O humanista, no entanto, crê tão veementemente num Juízo Final que insiste em trazê-lo à história antes que esta possa desenvolver suas implicações. Dewey exigia a “Grande Comunidade”, os fabianos, sua “Grande Sociedade”, e cada outra versão e seita de humanistas têm seu apocalipse e Juízo Final. Os humanistas falharam em trazer à tona o céu, mas estabeleceram com sucesso o inferno na terra. Porém a história recusa-se em terminar segundo as ordens do homem, porque ela se desenrola no tempo de Deus, e não com base nos mitos do homem. Consequentemente, as ordens finais que os homens constroem tendem inevitavelmente à decadência, e a ordem que se afirma como a final garante sua própria destruição na medida em que o movimento da história a espezinha em sua incansável marcha à autoconsciência epistemológica. As ordens “finais” do homem apresentam-se com orgulho e deixam o recinto com vergonha e destruição, mas Jesus “de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim”. 17. A IGREJA Um artigo de fé de acordo com o Credo dos Apóstolos é: “A santa igreja católica”, ou, nas palavras do Credo de Niceia: “Creio na Igreja una, universal e apostólica”. Para muitos cristãos fiéis, este é hoje o único artigo difícildo credo; em vista da apostasia da igreja institucional e de sua obscena desobediência, é preciso por vezes um estômago forte para confessar o credo neste ponto. A mesma repulsa sentiu Jesus, que declarou à igreja de Laodiceia: “Assim, porque és morno e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca” (Apocalipse 3.16). Mas estas não são igrejas, mas sinagogas de Satanás (Apocalipse 2.9), não um artigo de fé, mas um inimigo necessário conforme a igreja divide-se tomando em consideração Cristo. A Confissão de fé de Westminster, capítulo 25, “Da Igreja”, define a igreja claramente: I. A igreja católica ou universal, que é invisível, consta do número total dos eleitos que já foram, dos que agora são e dos que ainda serão reunidos em um só corpo sob Cristo, seu cabeça; ela é a esposa, o corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todas as coisas (Efésios 1.10, 22-23; Colossenses 1.18). II. A igreja visível, que também é católica ou universal sob o Evangelho (não sendo restrita a uma nação, como antes sob a Lei) consta de todos aqueles que pelo mundo inteiro professam a verdadeira religião, juntamente com seus filhos; é o Reino do Senhor Jesus, a casa e família de Deus, fora da qual não há possibilidade ordinária de salvação (1 Coríntios 1.2, e 12.12-13; Salmos 2.8; 1 Coríntios 7.14; Atos 2.39; Gênesis 17.7; Romanos 9.16; Mateus 13.3; Colossenses 1.13; Efésios 2.19, e 3.15; Mateus 10.32-33; Atos 2.47). III. A esta igreja católica visível Cristo deu o ministério, os oráculos e as ordenanças de Deus, para congregamento e aperfeiçoamento dos santos nesta vida, até o fim do mundo, e pela sua própria presença e pelo seu Espírito, os torna eficazes para esse fim, segundo a sua promessa (Efésios 4.11-13; Isaías 59.21; Mateus 28.19-20). IV. Esta igreja católica tem sido ora mais, ora menos visível. As igrejas particulares, que são membros dela, são mais ou menos puras conforme neles é, com mais ou menos pureza, ensinado e abraçado o Evangelho, administradas as ordenanças e celebrado o culto público (Romanos 11.3-4; Atos 2.41-42; 1 Coríntios 5.6-7). V. As igrejas mais puras debaixo do céu estão sujeitas à mistura e ao erro; algumas têm degenerado ao ponto de não serem mais igrejas de Cristo, mas sinagogas de Satanás; não obstante, haverá sempre sobre a terra uma igreja para adorar a Deus segundo a vontade dele mesmo (1 Coríntios 1.2, e 13.12; Mateus 13.24-30, 47; Romanos 11.20-22; Apocalipse 2.9; Mateus 16.18). VI. Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; em sentido algum pode ser o Papa de Roma o cabeça dela, mas ele é aquele anticristo, aquele homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e contra tudo o que se chama Deus (Colossenses 1.18; Efésios 1.22; Mateus 23.8-10; 1 Pedro 5.2-4; 2 Tessalonicenses 2.3-4).[262] Portanto, as marcas da verdadeira igreja são, em primeiro lugar, a pregação genuína da palavra de Deus, as Escrituras infalíveis; em segundo lugar, a administração correta dos sacramentos, isto é, em fidelidade às Escrituras; e, em terceiro lugar, o exercício fiel da disciplina com base nas Escrituras. Os meios de graça são a palavra e os sacramentos. Acerca do relacionamento da igreja com os meios de graça, Berkhof escreveu: A igreja não é um meio de graça lado a lado com a Palavra e os sacramentos, porque o seu poder de promover a obra da graça de Deus consiste unicamente na administração deles. Ela não é instrumento de comunicação da graça, exceto por meio da Palavra e dos sacramentos. Além disso, a fé, a conversão e a oração são, antes de tudo, frutos da graça de Deus, embora possam tornar-se instrumentos para o fortalecimento da vida espiritual. Não são ordenanças objetivas, mas condições subjetivas para a posse e o gozo das bênçãos da aliança.[263] Ademais, como Berkhof assinalou, os meios de graça não podem “por si mesmos, conferir graça, como se fossem dotados de poder mágico para produzir santidade”. Isso não significa que os meios de graça possam ser considerados “puramente acidentais e indiferentes”.[264] Embora sejam simplesmente os meios, não a fonte, eles são os meios de graça designados por Deus. A doutrina da visibilidade é um aspecto importante e central da definição da igreja. Como a confissão declara: “Esta igreja católica tem sido ora mais, ora menos visível”. A igreja católica ou invisível é definida na seção 1 como “o número total dos eleitos que já foram, dos que agora são e dos que ainda serão reunidos em um só corpo sob Cristo, seu cabeça”. Isto significa que a igreja invisível é um termo mais abrangente que a “igreja triunfante”, na medida em que abarca bem mais do que a igreja que está no céu. A igreja visível, contudo, está na terra; não é uma igreja perfeita, e “as igrejas mais puras debaixo do céu estão sujeitas à mistura e ao erro”. As igrejas puras são aquelas nas quais é “ensinado e abraçado o Evangelho, administradas as ordenanças e celebrado o culto público”. Visto que Jesus Cristo declarou que “as portas do inferno não prevaleceram contra” sua igreja (Mateus 16.18), “haverá sempre sobre a terra uma igreja para adorar a Deus segundo a vontade dele mesmo”. “As portas do inferno” significam os poderes, concelho ou autoridade do inferno, uma vez que o concelho da cidade nos tempos antigos reunia-se publicamente em frente aos portões; “prevalecer”, nesse versículo, tem o sentido de “suportar”, e a Versão Berkeley da Bíblia traduz assim: “as portas do inferno não resistirão contra a igreja”. Isto implica uma ação claramente agressiva contra o inferno por parte da igreja, e ação defensiva por parte do inferno. Trata-se de um pensamento herege considerar que a ação da igreja é defensiva; admitir que essa posição é uma retirada defensiva para o arrebatamento ou para a Segunda Vinda é perigoso e cria uma disposição favorável à entronização de Satanás. A igreja, por menor que seja, e ainda que seja um exército de Gideão, é quem ataca os poderes das trevas, que, em constante frenesi, tentam barricar-se, nas torres de Babel, contra o Deus soberano e onipotente. Quanto mais fiel a igreja, maior sua visibilidade, isto é, mais claramente testemunha a palavra e poder de Cristo neste mundo. Mas a verdadeira igreja não está sozinha reivindicando a visibilidade, ao afirmar-se como o representante visível da ordem invisível de Cristo. O Estado reivindica sua própria forma de visibilidade; ele se vê como a expressão visível da verdadeira ordem do homem e, por vezes, também de deuses quaisquer. Torna-se então uma disputa, primeiramente, acerca de quem há de representar a verdadeira ordem de Deus, e, em segundo lugar, sobre qual é a ordem a ser representada? A ordem humanista luta por visibilidade, em primeiro lugar, como a força dominante na sociedade humana, como o fato onipresente no cenário do homem; e, em segundo lugar, como a nova ordem de salvação. Consequentemente, a preocupação predominante do homem na era do humanismo é política, já que esta é a área em que a deidade oculta se torna visível. O século XIX foi, portanto, a era da visibilidade política; a religião da maioria das pessoas passou cada vez mais a tornar-se política. “Democracia” era a esperança do mundo presente em sua expressão messiânica culminante no sonho que Woodrow Wilson tinha de tornar o mundo seguro para a democracia por meio da guerra e diplomacia. Em especial após meados do século XX, a esperança do homem tornou- se cada vez mais político-econômica. U Thant, secretário-geral das Nações Unidas, declarou em 1967: “Neste século a ideologia política assumiu o lugar anteriormente ocupado pela religião enquanto fonte principal de conflito no mundo”. Para alcançar paz, devemos portanto transcender a ideologia política por meio do sincretismo e agirmos com base antes na economia. Afinal de contas, conforme assinalado por U Thant, “o cidadão mais simples pode apreender o fato de que uma fração do dinheiro que será gasto em armamentos em todo o mundo, só em 1967, poderia financiar programas econômicos e sociais,tanto nacionais quanto globais, numa escala até então jamais concebida”. Em outras palavras, se as pessoas deixarem de lado suas diferenças políticas e unirem-se com base na economia socialista, elas verão “rompantes” visíveis de desenvolvimento humano que fará com que o mundo “rivalize todas as utopias dos filósofos”.[265] Uma vez que a visibilidade que as falsas igrejas buscam é o surgimento da ordem socialista mundial, isto é, o estatismo social, parte de sua missão é o desmantelamento e desaparecimento da igreja. Diferentes planos são apresentados para eliminar-se segmentos da igreja, como um primeiro passo. Nesse sentido, o Dr. John Dillenberger, deão do Seminário Teológico de São Francisco, declarou: “Se vendermos cinco de cada seis instalações das igrejas neste país e colocarmos todo esse dinheiro para um melhor uso ao servir às necessidades das pessoas”, a missão da igreja não há de ser prejudicada, mas provavelmente promovida”.[266] Planos dessa espécie estão em ação nos países comunistas. A preocupação de Dillenberger é humanista, isto é, com a necessidade humana, não com a comissão bíblica. O propósito das sinagogas de Satanás é, pois, tornar a igreja invisível no sentido de ser inexistente enquanto igreja, e o Estado visível como a verdadeira ordem do homem. E contra isto, o cristão deve afirmar: “Creio na igreja católica e apostólica”, a igreja una e universal estabelecida na fé apostólica, e “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, pois “esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1 João 5.4). Uma vez que visibilidade significa poder, as falsas igrejas se esforçam por uma visibilidade que lhes dará poder mundano. A pseudovisibilidade é uma reivindicação de representar em habilidade plenária a infalibilidade e autoridade Deus. Seja protestante, católico romana ou oriental, a igreja então se identifica com a encarnação, e fala de acordo com seus próprios termos com autoridade plenária, declarando que seus sacramentos realizam aquilo que só Cristo é capaz de fazer. Em vez de ser Deus a Rocha na qual a igreja está fundamentada, a própria igreja se torna a rocha. Ora, nas Escrituras, o termo “rocha” é sempre um símbolo do Deus triúno, e seu uso em referência a Pedro por parte de Jesus confirma isso. Isto era do conhecimento da Igreja Primitiva, e mesmo nos tempos subsequentes, tendo sido inclusive bem pontuado por Elfrico de Eynsham numa homilia: Jesus então disse: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. Pedro o respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. A isto o Senhor respondeu: “Bem-aventurado és, Simão, filho da pomba [Barjonas]” (Beda, o expositor, desvela para nós a profundidade dessa lição). O Senhor disse a Pedro: “Tu és pedra” — pela força de sua fé e pela firmeza de sua confissão, ele recebeu esse nome; porque ele uniu-se com mente firme a Cristo, que é chamado Rocha pelo apóstolo Paulo. “E sobre esta pedra edificarei a minha igreja”; isto é, sobre a fé que tu confessaste. Toda a convocação de Deus está construída sobre a rocha, nomeadamente, sobre Cristo; pois ele é o sustentáculo de todas as estruturas de sua própria igreja. Todas as igrejas são levadas em conta nessa única convocação; e é construída com homens escolhidos, não com pedras mortas; e todo o edifício dessas pedras vivas assenta-se sobre Cristo; porque somos, por meio da fé, considerados seus membros e ele é nosso Cabeça supremo. Se alguém coloca outro fundamento sobre esse sustentáculo, sua obra ruirá, para sua grande perda. Jesus disse: “As portas do inferno não terão poder contra minha igreja”. Pecados e doutrinas equivocadas são as portas do inferno, porque conduzem o pecador como se por um portão ao tormento do inferno. Estes portões são muitos; mas nenhum deles terá poder contra a santa convocação, que está edificada sobre a firme rocha, Cristo; porque o crente, mediante a proteção de Cristo, escapa dos perigos das tentações demoníacas.[267] Bem cedo na história, reivindicava-se uma pseudovisibilidade por meio da doutrina da transubstanciação. Dentro das fileiras dos supostamente ortodoxos, Pascácio Radberto, abade de Corbie, defendeu essa visão; porém Bertram, monge de Corbie [Ratramo], a pedido do imperador Carlos, o Audaz, apresentou uma réplica por volta de 840, defendendo a doutrina da presença real contra a transubstanciação.[268] O catecismo do Concílio de Trento ensinava que na partícula consagrada havia nervos e ossos, assim como o corpo e sangue de Cristo. A verdadeira igreja — “esta igreja católica tem sido ora mais, ora menos visível”. Ora, quão manifesta é essa maior visibilidade? A visibilidade da igreja não está em sua presença institucional, mas no cumprimento de seu chamando. Quando a igreja realmente cumpre seu chamado, as consequências se manifestam na difusão e aplicação da ordem legal de Deus, de modo que cada área da vida é trazida ao domínio do Deus triúno. Uma árvore viva manifesta-se pelas folhas verdes e frutos; uma igreja viva é visível na medida em que produz fruto para Deus. Se a visibilidade que a igreja busca é a visibilidade do homem, ela há de produzir fruto para o humanismo e fará da prosperidade humana o teste de fé. Segundo Santo Agostinho, podemos, pois, dizer que duas cidades, impérios ou ordens buscam realizar-se na história, tentam tornar-se a ordem visível da história. Estes são a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. A estratégia da Cidade dos Homens é negar a antítese entre as duas ordens a fim de neutralizar e destruir a Cidade de Deus. O humanismo busca destruir o cristianismo e a igreja de diversas formas. Um meio comum é redefinir Deus num conceito humanista. Ora, assim escreveu certo humanista: Teístas e ateístas chegarão a um acordo e entendimento mútuo quando admitirem sua inabilidade de compreender a Causa Suprema do universo, e concordarem em dar-lhe um nome — chamá-la de DEUS. Chegou o momento de resgatarmos a palavra “Deus” de seus sentidos sórdidos por vezes dados a ela: isto é, um ser vingativo em forma humana, temperamental e ciumento de outros deuses semelhantes e misericordioso apenas para aqueles que se rastejam à sua frente. Respondamos às nossas crenças colocando Deus num pináculo de justiça imutável e de relações justas para com homens de todas as raças, cores e credos. Mas reconheçamos que tudo que é finito está além da identificação por parte da mente infinita.[269] O próximo passo é separar Deus da religião e igreja. Ora, um clérigo escreveu o seguinte, num livro dedicado a essa causa: “Estou na equipe de uma paróquia anglicana em Toronto. Declaro-me com um cristão e um anglicano; contudo, posso dizer, com toda seriedade, que Deus não existe”. Esse mesmo clérigo afirma: “Jesus, como Yahweh, é o grande Ateísta... Ele aproveitou-se da hospitalidade das pessoas, comeu de sua comida... andou nos melhores veículos que pôde conseguir, viveu entre bêbados e talvez tenha se embriagado”. Ademais, “é uma das descobertas da presente era que é possível ser um cristão e ao mesmo tempo um ateísta”. O culto cristão não é minimamente respeitado: “É óbvio que nossos cultos atuais são inúteis”.[270] Ao mesmo tempo, afirma-se que as igrejas devem afastar-se de qualquer tentativa de influenciar a vida social, porque o lugar da religião é na vida privada. A área do cristianismo (diz-se) é a vida pessoal do crente. Em outras palavras, a totalidade da vida social deve ser humanista, e somente a vida interior, cristã. Mas a verdadeira religião é uma preocupação absoluta; cada área que é abandonada por uma religião é simplesmente ocupada por outra religião, porque a totalidade da vida é inescapavelmente religiosa. À vista disso, pedir ao cristianismo para confinar-se à piedade pessoal é exigir que ele cometa suicídio, e o pietismo é de fato um passo em direção ao suicídio. A preocupação da igreja é a palavra de Deus, mas a palavra é proclamada à totalidade da vida. Se a proclamação do evangelho não for católica, então deixa de ser o evangelho; não são mais as boas-novas para cada área da vida e a reivindicação de Deus à soberaniaabsoluta. Os falsos deuses se vão, assim como as falsas igrejas, mas, sendo Deus soberano, sua palavra permanece para sempre; seus eleitos são nele inabaláveis, e sua igreja, destinada a conquistar. 18. A COMUNHÃO DOS SANTOS “A comunhão dos santos” é um artigo frequentemente negligenciado do Credo dos Apóstolos. Sendo uma adição tardia ao credo, o artigo não consta no Credo de Niceia, visto que não era uma doutrina contestada. Contudo, conforme Badcock notou, sua presença no credo não visava simplesmente afirmar uma verdade; mais do que isso, “afirma necessariamente um fundamento objetivo ou condição essencial para a salvação; e este fundamento ou condição não deve ser alterado; no sentido de ‘coisas a serem cridas’, a ‘fé’ tem sido a mesma desde o Pentecostes”. Ademais, a comunhão dos santos não pode ser apenas um estado de espírito entre os homens; antes, “deve expressar algum ato ou dom divinos”.[271] De acordo com a definição católica romana, a comunhão dos santos é a união entre a Igreja Triunfante (no céu), a Igreja Militante (na terra), e a Igreja Padecente (no purgatório). As três formam uma só igreja, cujo cabeça invisível é Jesus Cristo, e cuja cabeça visível é o papa. Uma atenção mais profunda a essa doutrina veio com a Assembleia de Westminster. O capítulo 26 da Confissão de fé de Westminster é intitulado “A comunhão dos santos”: I. Todos os santos que pelo seu Espírito e pela fé estão unidos a Jesus Cristo, seu Cabeça, têm com ele comunhão nas suas graças, nos seus sofrimentos, na sua morte, na sua ressurreição e na sua glória, e, estando unidos uns aos outros no amor, participam dos mesmos dons e graças e estão obrigados ao cumprimento dos deveres públicos e particulares que contribuem para o seu mútuo proveito, tanto no homem interior como no exterior (1 João 1.3; Efésios 3.16-17; João 1.16; Filemom 3.10; Romanos 6.56, e 8.17; Efésios 4.15-16; 1 Tessalonicenses 5.11, 14; Gálatas 6.10). II. Os santos são, pela sua profissão, obrigados a manter uma santa sociedade e comunhão no culto de Deus e na observância de outros serviços espirituais que tendam à sua mútua edificação, bem como a socorrer uns aos outros em coisas materiais, segundo as suas respectivas necessidades e meios; esta comunhão, conforme Deus oferecer ocasião, deve estender-se a todos aqueles que em qualquer lugar, invocam o nome do Senhor Jesus (Hebreus 10.24-25; Atos 2.42,46; 1 João 3.17; Atos 11.29-30). III. Esta comunhão que os santos têm com Cristo não os torna de modo algum participantes da substância da sua Divindade, nem iguais a Cristo em qualquer respeito; afirmar uma ou outra coisa, é ímpio e blasfemo. A sua comunhão de uns com os outros não destrói, nem de modo algum enfraquece o título ou domínio que cada homem tem sobre os seus bens e possessões (Colossenses 1.18; 1 Coríntios 8.6; 1 Timóteo 6.15-16; Atos 5.4). Visto que “a comunhão encontra-se na união”, esse capítulo cita, em primeiro lugar, “a união dos santos em Jesus Cristo, e em sua comunhão com ele; em segundo lugar, a união e comunhão dos santos reais uns com os outros; em terceiro lugar, a união dos santos por profissão [de fé], e a comunhão que devem manter”. Assim, Shaw resumiu o capítulo.[272] A Confissão cita três coisas como aspectos dessa comunhão dos santos na seção 2. Primeiramente, há o culto coletivo; em segundo lugar, tais “serviços espirituais que tendam à sua mútua edificação”; e, em terceiro lugar, “socorrer uns aos outros em coisas materiais, segundo as suas respectivas necessidades e meios”. O trabalho de pastores, mestres, viúvas e diáconos era o ministério oficial da igreja nessas áreas; todos os cristãos tinham também uma obrigação. Os crentes são, pois, membros e pares, santos companheiros, numa comunhão em Cristo. São santos em virtude da obra objetiva e expiatória de Cristo; a comunhão não é produto deles, mas de Cristo, e entram em comunhão entre si conforme são recebidos por Cristo. Mas comunhão não é absorção nem obliteração; também não é identidade. O crente em comunhão com Cristo permanece sendo ele mesmo, uma criatura; estando em comunhão com seus irmãos crentes, não se funde com eles, mas retém sua integridade enquanto pessoa e em sua família. Como Hodge pontuou, a comunhão dos santos não é “designada para suplantar os princípios fundamentais da sociedade humana, por exemplo os direitos de propriedade e os laços familiares”.[273] Assim, a seção 3 “adverte contra duas opiniões heréticas; uma relacionada à comunhão dos santos com Cristo; a outra, à sua comunhão uns com os outros”.[274] O propósito da salvação não é a destruição nem a transcendência do homem, mas sua restauração ao chamado e lugares que lhe foram designados por Deus. O homem pecou ao tentar ser como Deus (Gênesis 3.5); é a graça de Deus que capacita o ser humano a ser de fato humano, o vice-regente de Deus em Cristo na terra. Foi o pecado do homem que o conduziu e ainda conduz a buscar uma falsa comunhão com outros homens no comunismo; é a graça de Deus que capacita o homem a ser um homem genuinamente livre e independente em seu lugar designado. A falsa comunhão tem, pois, duas direções. Primeiramente, a falsa comunhão dos santos é a afirmação de que os homens são ou podem tornar-se uma única substância com Deus. Em algumas formas, como o mormonismo, afirma-se que os homens são deuses e nega-se a Trindade ontológica e transcendente. Em outras formas, como no misticismo, o homem transcende a humanidade e o mundo material por meio de sua experiência, a fim de tornar- se um com Deus. Em todas as variadas formas dessa crença, os santos são santos por seus próprios esforços e eleição, e são eles que estabelecem a comunhão com Deus ou com os deuses. A lei de sua ordem social advém portanto deles mesmos, de sua própria eleição, porque a determinação das coisas está em suas mãos. A história, consequentemente, deve ser apreendida pelo ser humano, conquistada mesmo quando os deuses e homens são levados pela tormenta. Até mesmo o papel de Deus é assim determinado pelo homem, que é o construtor de pontes entre si e Deus e entre seus iguais. A sociedade ou comunhão com Deus é pautada na exploração; Deus é outro vasto recurso natural a ser desenvolvido ou minerado, e “revelações” são disponibilizadas pelos santos reinantes conforme as necessidades da história exigem deles. No mormonismo (ou Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias), o poder da revelação é investido sobre o “apóstolo” vigente e seus associados, e assim as revelações têm sido sempre pragmáticas, isto é, serviram aos propósitos do homem na história ao invés de ao propósito de um Deus soberano na eternidade. O “Deus” cativo da experiência mística arrebata a alma do místico pela beleza absoluta, mas, num sentido diferente, é por sua vez arrebatado pelo místico, que em sua experiência e disciplina pode apropriar-se de “Deus”. O místico “nega” a história porque lhe é superior e é potencialmente seu mestre. Em vez de encontrar seu chamado designado por Deus na história, e de vê-la como o domínio apropriado do homem, o místico trata a história como um fardo, e tanto a história quanto seus fardos devem ser destruídos. Acerca disso a mística Ângela de Foligno escreveu: Eu escolhi andar pela senda espinhosa que é a senda da tribulação. Assim comecei por despojar-me das indumentárias e adornos finos que tinha, e da comida mais delicada e também da cobertura em minha cabeça. Mas ainda assim, fazer todas essas coisas foi-me difícil e vexaminoso, porque eu não sentia muito amor por Deus e estava vivendo com meu marido. Portanto, era-me muito amargo quando algo ofensivo era dito ou feito contra mim; mas suportava-o tão pacientemente quanto podia, e pela vontade de Deus morreu minha mãe, que era um grande impedimento para meu seguimento no caminho de Deus; meu marido também morreu; e pouco tempo depois morreram também todos meus filhos. E visto que começara a seguir a senda citada anteriormente, e porque havia orado a Deus para livrar-me deles, tive grande consolação por suas mortes,embora eu sentisse também certo pesar; por conseguinte, uma vez que Deus demonstrou-me essa graça, imaginei que meu coração estava no coração de Deus e em sua vontade, e que seu coração estava em meu coração.[275] É a psicologia de uma assassina, e uma assassina que se identifica com Deus. Ora, o místico pode abordar a história apenas a partir do alto, como senhor e deus. Evelyn Underhill aproximou-se assim de Cristo, isto é, a partir do alto. “Vim a Cristo por meio de Deus, embora de modo bastante óbvio muitos vêm a Deus por meio de Cristo.”[276] Para Underhill, a iniciativa é ascendente, do homem em direção a Deus, e a “revelação” de Deus não desce dos céus; antes, emerge deste mundo. A encarnação envolve, pois, “toda a humanidade”.[277] O homem ascende a partir da história pelo misticismo para tornar-se um com Deus e então desce com poder, como uma lei viva. O marxismo em si é um misticismo invertido, tendo a matéria se tornado o deus do sistema, de modo que o ser humano desce para identificar- se com a vontade geral das massas e das forças do materialismo, a fim de ascender com poder como a ditatura do proletariado. O misticismo é essencial para a tirania; envolve a identificação de uma elite enquanto deuses que encarnam a vontade e decreto da história em suas pessoas. Ora, a comunhão bíblica dos santos é a obra da graça de Deus por meio de Cristo. Não é ação do homem, mas obra de Cristo; e a comunhão é governada pela sua palavra e lei.[278] A segunda direção da falsa comunhão dos santos é voltada para o homem. Por toda parte, em contraposição à fraternidade da graça, os homens buscaram estabelecer uma fraternidade do mal. Ao longo dos séculos, organizações secretas tentaram estabelecer um elo invisível entre os membros, com símbolos e objetos secretos, com o intuito de dar fim à divisão e dispersão, desfazendo pois a confusão de Babel. Esses laços ocultos tiveram sucesso ao garantir uma vantagem aos homens, isto é, ao oferecer algo mais que a simples fraternidade provendo poder ou prazer. Nessa medida, portanto, a fraternidade entre eles é forçada e possui uma causa inconfessada. Sua abordagem ao conceito de uma fraternidade ou comunidade mundiais assenta-se, portanto, em meios estatistas. Ao longo da história as fraternidades secretas objetivaram o controle do Estado a fim de impor comunhão sobre todos os homens. O mesmo é verdade quanto aos defensores abertos da comunhão mundial; seu método é político e estatista. Eles acreditam numa comunidade mundial, supostamente; mas negam-na porque insistem numa comunhão implementada. Uma vez que são, por natureza, pecadores — em guerra com Deus e portanto em guerra com os homens —, eles não podem alcançar nem conceber nada senão uma comunhão implementada. Esses indivíduos buscam realizar os desígnios de Deus como deuses sem Deus. No entanto, a fraternidade do mal é uma fraternidade divisora, em guerra consigo mesma, composta de inúmeros aspirantes a Deus que conhecem apenas uma única lei além da própria vontade: a força bruta. A falsa comunhão dos santos autointitulados santos é, por conseguinte, uma tirania. É possível que se apresente por vezes sob formas cristãs, mas seu método e objetivo são a força e o Estado.[279] Os humanistas radicais dentro e fora da igreja e a escola de pensamento da “morte de Deus” advogam um conceito de comunhão que está além do bem e do mal e no qual a comunhão com homem é comunhão com deus. Erich Fromm escreveu: “Deus é uma das muitas diferentes expressões poéticas do mais sublime valor no humanismo, não uma realidade em si”.[280] A verdadeira comunhão para essa fé implica a negação da validade do bem e do mal enquanto padrões morais objetivos, e todos os indivíduos devem ser recebidos na comunhão como deuses, sem quaisquer considerações de seu estado moral. Desse modo, há uma “Litania” popular nesses círculos que identifica “Deus” com a cidade, com os “chicanos, negões, vagabundos, maconheiros e judeus”, com “todos os homens”, e convoca a comunhão com todos os indivíduos do modo como são. Algumas igrejas promoveram reuniões para homossexuais e trabalharam para promover a “comunhão” homossexual com seus membros. No domínio dessa nova fé, não há Deus nem Cristo no céu; Deus e Cristo devem ser encontrados em todos os homens, seus iguais, aceitos como são sem qualquer juízo moral ou censura. Esse conceito perpassa profundamente a chamada revolução dos “Direitos Civis”. Foi expressa por um criminoso e assassino degenerado momentos antes de sua execução. Aaron C. Mitchell foi levado aos gritos à câmara de gás em San Quentin, e suas últimas palavras foram: “Eu sou Jesus Cristo — olhe para o que fizeram comigo”.[281] Mas essa comunhão total sem a lei, a comunhão além do bem e do mal, milita contra tudo no homem. Jamais existiu uma sociedade sem classes ou castas. Quanto mais se nega as distinções sociais, mais se exige a força na sociedade para reunir os homens; e quanto mais a força prevalece numa sociedade, menos comunhão há. O aspecto mais prontamente discernível da sociedade soviética para os visitantes estrangeiros é o silêncio das pessoas nas ruas e nos espaços públicos;[282] as pessoas caminham em isolamento, porque o discurso público não é o mais sábio dos cursos de ação. Em oposição a essa coletivização forçada, que é hostil tanto à verdadeira comunidade quanto ao verdadeiro individualismo, está a comunhão dos santos. Primeiramente, a comunidade implementada do mal não tem em si uma comunidade genuína. Em segundo lugar, odeia também o indivíduo; nega-lhe a integridade de sua pessoa e de sua propriedade. A comunhão bíblica dos santos assenta-se numa comunhão dada por Deus com um elo interno. Pela graça de Deus, há, em primeiro lugar, uma lealdade a Cristo. O verdadeiro cristão vê o mundo com base na lei de Deus. Ele vê o mundo de acordo com uma dada perspectiva, uma estrutura de referência revelada, e quanto mais cresce na graça, mais perspicaz se torna seu pensamento governado por essa estrutura de referência bíblica. Ele é um membro de Jesus Cristo; tem uma cidadania no céu, uma cidadania prévia que governa todo relacionamento humano. Sua vida não lhe pertence, mas sim a Cristo. Em segundo lugar, uma vez que a força diretriz em sua vida é a graça crescente, é um elo interno que o liga a Cristo e a seus irmãos cristãos. Ora, os cristãos são unidos não com base em vantagens, e em geral ao custo mesmo de certo sacrifício, mas com base nesse elo interno. Eles têm uma vida comum em Cristo e portanto um futuro comum. São governados por uma unidade moral; agem no domínio da moralidade bíblica. E são dirigidos por uma unidade doutrinal, professando um Senhor, uma só fé e um só batismo em Cristo. Mas sua unidade não se restringe à fé e à prática; antes, é uma unidade no coração. Eles são um só povo. Estão mais próximos um do outro do que jamais os membros da fraternidade do homem poderão estar; porém essa unidade não se dá às custas de sua particularidade, de sua individualidade. A fraternidade do mal destrói derradeiramente tanto a unidade quanto a individualidade, tanto o uno quanto o múltiplo, mas a comunhão dos santos estabelece ambos em seu verdadeiro fundamento, o Deus triúno. Nele, eles são verdadeiramente um, e nele são verdadeiramente eles próprios, de modo que a unidade e a diversidade de vida alcançam sua completude. O uno e o múltiplo não são apenas um problema filosófico e social, mas também pessoal. O ser humano, sendo uma criatura de Deus, tem necessidade tanto de unidade na sociedade quanto individualidade e liberdade. As respostas não cristãs ao problema afastam-se da unidade enquanto coletivismo para a particularidade enquanto anarquismo, e assim destroem tanto a unidade quanto a particularidade. Davi, no entanto, descreveu a unidade dos santos, a comunhão dos santos, como a realização e mesmo batismo do indivíduo: Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! É como o óleo precioso sobre a cabeça, o qual desce para a barba, a barba de Arão, e desce para a gola de suas vestes.É como o orvalho do Hermom, que desce sobre os montes de Sião. Ali, ordena o SENHOR a sua bênção e a vida para sempre. (Salmos 133.1-3) Como Leupold assinalou: “O óleo simbolizava os ricos dons do Espírito”. Essa comunhão e unidade são uma bênção que o Senhor ordena; o autor “traça as benesses que resultam da unidade à bênção criadora de Deus”. [283] A comunhão dos santos é a bênção criativa do Deus triúno e a unidade oculta e intencional dentro da história. 19. O PERDÃO DOS PECADOS “O perdão de pecados” é um artigo do Credo dos Apóstolos, e consta no Credo de Niceia relacionado ao batismo: “reconheço um só batismo para remissão dos pecados”. A proclamação da “remissão dos pecados” é essencial ao evangelho. João Batista alertava todo o Israel sobre a vinda do Messias, aquele que haveria de salvar do pecado, ao declarar a relação dessa doutrina com o batismo. Como o sinal da nova aliança, o batismo, substituindo a circuncisão, anunciava a nova era, assim como o perdão dos pecados caracterizava a nova vida (Mateus 3.2,6; Marcos 1.4; Lucas 3.3-6). Sempre que se nega Jesus Cristo, o perdão dos pecados é evidentemente negado. Como dizia Inácio de Antioquia: “Aquele que descrê do Evangelho descrê de tudo que o acompanha”.[284] Ensina-se, do início ao fim nas Escrituras, uma doutrina do perdão, justificação, santificação e comunhão com Deus. Essa doutrina foi apresentada por meio de tipos nas ordenanças do Antigo Testamento e cumpridas em Jesus Cristo. O perdão no mundo do humanismo tornou-se um ato emocional e pessoal; na Bíblia, trata-se de um ato judicial e legal. Implica que as acusações formais e alegações foram retiradas porque prestou-se a devida satisfação, ou, em alguns casos, que as acusações foram deferidas por ora (Lucas 23.24).[285] Visto que o perdão é um termo jurídico, enfatiza-se ainda mais o fato de que provém inteiramente da graça de Deus por meio de Jesus Cristo, já que a expiação foi feita por Cristo e por ele somente. A pessoa do crente é aceita como justa não por conta de algo que tenha feito, mas sim em razão do que Cristo fez. A obediência e satisfação de Cristo são as bases do perdão do homem: Cristo prestou satisfação como o homem perfeito e o cabeça federal da nova humanidade que é por ele regenerada e chamada à sua intimidade. Conforme Robert Shaw assinalou, “a justificação é um ato judicial de Deus, e não uma mudança de natureza, mas uma mudança do estado do pecado em relação à lei”. A justificação é mais do que perdão de pecados. É também “um considerar e aceitar as suas pessoas como justas”, como diz a Confissão de Westminster.[286] A adoção é a mudança de estado para o homem justificado e é também o privilégio de todos que realmente creem em Cristo (Gálatas 3.26,28). A santificação é a destruição progressiva da totalidade do corpo do pecado naqueles que são efetivamente chamados e regenerados e com um novo coração e um novo espírito criados dentro de si. A santificação é alcançada pela palavra e pelo Espírito que habita no crente.[287] O pecador irregenerado está preocupado com o perdão, não com o perdão de seus pecados, mas de suas consequências. O que o pecador deseja que seja retirada é a acusação e sanção, mantendo-se sua liberdade para continuar em seu pecado. A jornada religiosa das religiões não cristãs é a busca de imunidade para com o fato da culpa e das forças ameaçadoras da retribuição. Um elemento que se mostrou essencial ao sucesso de Júlio César foi sua oferta geral da clementia, a misericórdia sem a graça e regeneração. O perdão de César estendeu-se a seus inimigos em casos sucessivos, de modo que Cícero teve de dizer: “Vós sois o único, Caio César, em cuja vitória ninguém perdeu a vida, exceto na batalha”.[288] César poderia suspender as acusações contra seus inimigos, mas não era capaz de mudar suas naturezas; ele não podia regenerá-los, nem a si próprio, e assim seus inimigos o assassinaram. Toda tentativa política de perdoar sem a graça leva somente à crescente desordem e caos, uma vez que o perdão sem salvação é simplesmente um subsídio para o pecado; é uma absolvição do pecado que efetivamente diz: “Vai e peques mais”. Mas salvadores políticos estão amiúde mais interessados em perpetuar o pecado do que em eliminá-lo. O pecado é um instrumento considerável e importante de poder político. Sobretudo nos regimes totalitários e em toda ordem social, a chantagem é um poderoso instrumento de poder. As pessoas que são suscetíveis ao suborno são também suscetíveis ao controle. Consequentemente, o pecado é politicamente encorajado e subsidiado. Diplomatas estrangeiros são moralmente expostos a fim de serem controlados, e legisladores e burocratas internos são cercados de tentação para mantê-los numa situação continuamente comprometida. O pecado é pois um instrumento básico de poder e controle políticos. Em segundo lugar, a religião é necessária ao poder político. Para que os homens sejam chantageados, o pecado deve ser repreensível ao público, de modo que os atos imorais de um legislador colocarão sua carreira em perigo. A religião apregoada não deve ser o cristianismo ortodoxo, não uma declaração intransigente do poder salvador de Deus e da liberdade gloriosa do homem em Jesus Cristo. A religião do Estado deve ser uma religião do moralismo. Deve fazer com que o pecado seja socialmente repreensível, sem, no entanto, libertar os homens dele. O Estado torna-se o grande patrono dessa religião do moralismo; seus sacerdotes, pregadores e evangelistas proclamam o programa do Estado como parte do evangelho e pregam o moralismo, a fim de tornar o pecado terrível e a graça remota. O efeito líquido da religião moralista é fazer com que os pecadores se sintam ainda mais culpados e aumentar o poder do Estado. Em terceiro lugar, o Estado-poder tem interesse em perpetuar o pecado, porque homens culpados são escravos. Um homem com uma consciência culpada não é livre; está em estado de servidão, e sua vida há de revelar sua escravidão interior. Não poucas esposas ocasionalmente tentaram sutilmente levar seus maridos ao adultério, certas de que um homem culpado é menos independente e menos confidente ao agir com base em sua autoridade e responsabilidade legítimas. Como o Hamlet de Shakespeare observou: “A consciência faz de todos nós covardes”.[289] Os efeitos de uma má consciência são escravizadores. O Estado-poder trabalha portanto a fim de promover a imoralidade, como se esta fosse um aspecto necessário da liberdade humana, e de destruir o cristianismo, eliminando assim o remédio para o pecado, o alívio e cura para uma consciência escravizada. Sem o poder libertador do cristianismo, o perdão de pecados por meio de Jesus Cristo, não há possibilidade de derrubar a tirania. O evangelho do Estado tirano torna-se a afirmação de que a liberdade é licenciosidade e pecado, e escravidão é a liberdade do autogoverno moral. Nesses Estados, as cortes e escolas decretam e interpretam autonomia como liberdade em relação à moralidade. As pessoas são iludidas a acreditar que são mais livres porque agora possuem uma licença para fornicar, cometer adultério, satisfazer-se desembaraçadamente com perversões, ler pornografia. Entrementes, conforme as pessoas chafurdam-se nessa “nova liberdade”, o Estado rapidamente estende seus poderes sobre o povo, sobre a vida familiar, economia, educação, negócios, trabalho, agricultura, igrejas, arte, ciência e todas as demais coisas. A promulgação da ideia de que a irresponsabilidade sexual e moral é liberdade é, pois, o prelúdio usual e necessário à destruição da liberdade e ascensão do estatismo. A “nova liberdade” produz a antiga escravidão. Onde não há perdão de pecados, há também contemporização de pecados. Uma sociedade pecaminosa vê-se indisposta a aceitar o fato do julgamento, porque é vulnerável a ele. Por conseguinte, a lei é constantemente subvertida. A pena capital perde vigor ou cai em desuso. O criminoso é tão favorecido na corte que a acusação fica debilitada. O direito criminal cada vez mais favorece