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Gostariadeexplorar,nesteartigo,duasmetáforasartísti- casparaarepresentaçãopolítica.Recorrera imagensdo mundodasartesnãoépropriamenteumaidéiaoriginalna tradiçãodopensamentopolítico,masbuscofazeralgones- sadireçãotendoemcontaumaelaboraçãomaisabstrata, realizadaemoutraocasião,sobremodosdeconceituara autoridadesoberanaeaboaordempolítica:oEstado,da tradiçãocontratualistamoderna,eaConstituiçãoMista,deri- vadadopensamentorepublicanoclássico,antigoemoder- no(Araujo,2004).Oobjetivoérelacionaressasidealizações comproblemasteóricosepráticosdarepresentação. Ao empregar tais metáforas, não pretendo exibir nenhumestudorigorosoeabrangentedasrepresentações artísticas.Aidéiadotextoédeixarqueelassimplesmente abramocaminhoparacertasnoçõesintuitivasqueaelabo- raçãoabstratanemsemprepermiteentrever,fazendodelas umaplataformaparadiscutir,sobrepondo-as,concepções REPRESENTAÇÃO,RETRATOEDRAMA1 CiceroAraujo 1.SougratoàsobservaçõesecríticasfeitasporAdriánGurzaLavalleaumaprimei- raversãodestetexto.Naturalmente,aslacunaseequívocosquepermaneceremno artigosãodeminhainteiraresponsabilidade. Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 230 de soberania e representação. Assim, inicialmente, farei umacaracterizaçãodasoberaniaestatal,inspiradonaforma clássica introduzidaporHobbes,elaborandoatravésdela noçõesderepresentaçãoquepensoapropriadasaessetipo desoberania.Voumevaler,nessaelaboração,dametáfora doretrato.Emseguida,examinootipodesoberaniasub- jacenteàConstituiçãoMista,edesdobronoçõesderepre- sentaçãocorrespondentes, guiadopelametáforadodra- ma.Finalmente,comparoasduasidealizaçõeseapontoos modosdiferenciadoscomqueoardilosoproblemadocon- troledarepresentaçãoseapresentaparacadauma.Apesar deestruturadopararevelarcertasvantagensdaConstitui- çãoMista,aintençãoprincipaldoartigoéexporasrazões dadiferençaesuasimplicações. Asmáscaraseapolítica Numsentidobemamplo,arepresentaçãoseconfundecom ainvençãodaprópriapolítica.Éverdadequeháumsenti- domaisestritonoqualelaéatributodapolíticamoderna. OsgregoseromanosdaAntigüidade,porexemplo,desco- nheciamasestruturasparlamentaresderepresentação.Mas RobertDahltemrazãoquando,aodiscutiroproblemada escalanachamada“democraciadireta”,afirmaque,mesmo numaassembléiadecidadãoscomoasqueosateniensesrea- lizavam,sendoimpossívelquetodospudessemfalar,osorado- restinhamdeexercersuashabilidadespara“representar”em seusdiscursosopensamentoalheio:“Alargemeeting–say,a thousandormorepeople–isinherentlyakindof‘represen- tative’systembecauseafewspeakershavetorepresentthe voicesofallthosewhocannotspeak”(Dahl,1989:228). ComoPitkindestaca(veroartigodaautoranestevolu- me), representar significa,emdiversas línguaseuropéias desde fins do Medievo, colocar-se no lugar de algo ou alguémou,paraenfatizarsuadimensãojurídicaepolítica, agirnolugarde2.Porém,antesdecolocaroacentodessa CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 231 atividadena substituição, comoacríticada representação modernacostumafazer,éprecisochamaratençãoparaa idéiadedeslocamentoqueela sugere.Aorepresentar,pro- curamosnosdistanciardenósmesmose, talvez, também daquelesquenossãomuitopróximos,para,atravésdeges- tos,discursosetc.abarcarouincorporaroestranho(seus pensamentos?desejos?interesses?).Masessabempodeter sidoaatividadeinauguraldapolítica:estudosdehistoria- dores-antropólogos,comooclássicotrabalhodeFustelde Coulanges,sugeremqueosurgimentodapolisgregapossibi- litouummododesuperarosaspectostribaisoudeclã(fun- dadosnagenosdaeraarcaica)deumaetapaanteriordesua civilização,eassimfundarumaassociaçãomaisinclusiva. Será coincidência que, mais ou menos nessa mesma época,oteatrogregotenhasidoinventado?Paraumteóri- coqueaparentementedetestavatantoapolíticaantiga,em particularademocraciaateniense,essaconexãonãodeixou deescaparaThomasHobbes.Aofalarda“pessoa”dosobe- ranocomoum“representante”,notãocitadocapítuloXVI doLeviatã,eisassuasobservaçõespreliminares: “Apalavra‘pessoa’édeorigemlatina.Emlugardelaos gregostinhamprósopon,quesignificarosto,talcomoem latimpersonasignificaodisfarceouaaparênciaexteriordeum homem,imitadanopalco.Eporvezesmaisparticularmente aquelapartequedisfarçaorosto,comomáscaraou viseira.Edopalcoapalavrafoitransferidaparaqualquer representantedapalavraoudaação,tantonostribunais 2.Anoçãoespecíficaderepresentarcomocolocar-seouagirnolugardealguém (outroserhumano)parecetersidoumpoucoposteriornalinguainglesa.Emseu livrosobreoassunto,Pitkinlembradiferençasrelevantesentrerepresentarcomo estarnolugarde(standingfor),queémaisapropriadaparaarepresentação“des- critiva”e“simbólica”,eagirnolugarouemnomede(actingfor).Oúltimoparece maisadequadoaoconceitopolíticodeautorização(Pitkin,1967:38ess.),sobre oqualfalareimaisaseguir. Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 232 comonosteatros.Demodoqueumapessoaéomesmoque umator,tantonopalcocomonaconversaçãocorrente. Epersonificarérepresentar,sejaasimesmoouaoutro;e daquelequerepresentaoutrodiz-sequeéportadordesua pessoa,ouqueageemseunome[...]Recebedesignações diversas,conformeasocasiões:representante,mandatário, lugar-tenente,vigário,advogado,deputado,procurador,ator,e outrassemelhantes”(Hobbes,1983,cap.XVI:96). Daqui a pouco devo enfocar a dimensão plástica da idéiademáscaraqueaparecenessapassagem.Antes,cabe insistirnessevínculoentre“pessoa”e“ator”marcadopor Hobbes,quedizocorrertantono“palco”quantona“con- versação corrente”. De fato, estamos colocados diante deumasituaçãohumanade interlocução,naqual se faz imprescindívelumaatitudedeaberturaintelectualemes- moemocionalentreaspartes,paraqueaprópriainterlo- cuçãopossaocorrer.Aconversa,porexemplo,dificilmente poderiaacontecersedecadapartenãohouvesseadisposi- çãoparatrazerparadentrodesiospensamentosalheios–e também(comoosteóricosmoraissetecentistasda“simpa- tia”vãoinsistir)ossentimentos–paraentãocompreendero queestariaemjogo.AnatolRosenfelddizquefoiexatamente essadescobertaquepossibilitouoteatrogrego,emparticu- lar,ainvençãodoator.Ousodamáscaraporumcoro,por exemplo,jáfeitoemfestivaisdionísicos–emqueseencena- vamosditiramboseosburlescos“autosdesátiros”–edepois aplicadonas(nadaburlescas)tragédias,marcavaclaramente aidéiadeautotransformaçãonecessáriaàatuaçãoteatral: “Aaparentecontradiçãodequeatragédiateriaresultado tantodosautossatirescoscomodosditirambosencontra soluçãoàbasedahipótesedequetaisditiramboseram cantadosedançados,numjogoritualemhomenagem aDioniso,porumcoro,cujosmembros(inicialmente CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 233 cinqüentacoreutas)seapresentavammascaradosdesátiros. Issocorrespondeaousofreqüentedamáscararitual, quetransmiteaosportadoresasforçasequalidadesdos demôniosoudeusesrepresentados;correspondetambémao fatodeDionisotersidoodeusdamáscarae,emextensão, dametamorfose,fenômenoessencialdaartecênica:tanto osatorescomoosespectadoresse‘transformam’nosseres representados,comungando,mercêdaidentificação,com seusdestinos”(Rosenfeld,1993:48).Emsuaanalogiaentreoatoreo“soberanorepresen- tante”,Hobbespropõeafigurado“autor”,queobviamen- tecomplementaadoator.Emambosospólosdaanalogia, porém,oautoréumafiguraquenãodeveapareceremcena: eleacria,possibilitaintelectualmente,porémnãoseapre- sentanela,permanececomoqueoculto.Naanalogiahobbe- siana,oautoréo“serrepresentado”,masquesemetamorfo- seiainteiramenteno“serrepresentante”,queentãopassaa fazertudono“lugarde”ou“emnomede”outro.Écurioso queHobbesnãofalenada,naquelapassagemcitada,sobre aspersonagensqueoautorteatralcria,afimderepresentar nacenaoutrascoisas–outraspessoas,humanasoudivinas, emesmoobjetos–enãoasimesmo,comoautor.Aanalogia pareceperdersuaforçanesseponto.Háquenotar,porém,a intençãohobbesianadeapresentarseumododeveradialé- ticadopúblicoedoprivado,quetambémcorrespondenão sóaumasubstituição–veremososmotivosdestamaisabaixo –masaumdistanciamento:entreaquiloquedeveservisí- velaosolhosdetodos(o“público”encarnadonapessoado soberano),eaquiloquedevepermanecerinvisível(o“priva- do”,istoé,seussúditos). Maisinteressanteainda:emHobbes,oautor,oserrepre- sentado,quedevepermaneceroculto,émenosumcriadordo queafontedaautoridadesoberana(daíaidéiada“autoriza- ção”paraagir).Eissonosremeteaumaoutradialética,mais Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 234 filosófica,paralelaadoautor/ator:adaaparênciaedaessên- cia.Éestranhofalarassimsobreumfilósofoquequasetodos osestudiososconsideram,emtermosontológicos,um“nomi- nalista”enãoum“essencialista”.Contudo,aessenominalista nãoseriaestranhopensarqueorepresentante(a“aparên- cia”)podeedevesubstituircompletamenteorepresentado (a“essência”),eque,naverdade,esseúltimonadapodeser semoprimeiro.Sequiséssemosradicalizaraidéia–demodo algumforadoespíritodateoriapolíticahobbesiana–,pode- ríamosdizermesmoque,nessestermos,oator-representante, emsuametamorfose,“recria”oautor-representado,inverten- doospólosdoprocessocriativo:afontedaautoridadepolí- tica,decriador,setornacriaturadesuacriatura.Precisamos agorarecorreraoretratoparaelaborarmelhoresseponto. Arepresentaçãocomoretrato Pensemosoretratonãocomoumareproduçãofieldetodas asparticularidadesdoretratado,nãocomoummeroespe- lhodele,mascomoumtrabalhodeconstruçãodoartista apartirdomaterialbrutoquetemdiantedesi.Supomos, assim,queoartistanãoquercapturaroretratadoemqual- quersituação,masnumaperspectivaespecial–digamos, numasituaçãosolenequeentãoécongeladanoretrato.Essa situação poderia ser aquela em que o próprio retratado desejasseservistopelaposteridade,seotrabalhoartístico lograsseidentificarouressaltaralgumaspectoessencialdasua personalidade,ouentãoidealizar,naperspectivaretratada, umtemaparasuapersonalidade. Emseuestudo sobreaconstruçãoda imagempúbli- cadeLuísXIV,Afabricaçãodorei,PeterBurkedestacaessa característicadosretratosreaisqueinvestigou,invocando aconscientenecessidadedeocultar,noretrato,apessoa comum–aquiloqueonivelariaatodososseussúditos– parasobressaltarapessoaespecialesuperior: CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 235 “Amaioriadaspinturasdoreiseenquadranogêneroa queoshistoriadoresdaartechamamde‘retratosolene’, construídassegundoa‘retóricadaimagem’desenvolvida duranteoRenascimentoparaapinturadepessoas importantes.Nessesretratossolenes,apessoaégeralmente apresentadaemtamanhonaturalouatémaior,depéou sentadanumtrono.Osolhosdoretratadoestãoacimados olhosdoespectador,parasublinharsuaposiçãosuperior.O decoronãopermitequeelesejamostradousandoasroupas dodia-a-dia.Usaarmadura,comosímbolodecoragem,ou roupasricas,comosinaldeposiçãosocialelevada,eestá cercadoporobjetosassociadosaopodereàmagnificência –colunasclássicas,cortinasdeveludoetc.Aposturaea expressãotransmitemdignidade”(Burke,1994:31). OautordessapassagemlembraqueLuísXIVnãoera representadoapenasnoretrato,masemvariadasmanifesta- çõesartísticas,inclusiveliterárias(poesia)eteatrais.Maso aspectoimportantequequeroressaltaraquiémenosotipo demanifestaçãoartísticadoqueaidéiaabstratade“retra- to”quetodasessasrepresentaçõesdoreiindicam.Empin- tura,escultura,literaturaouteatro,édaexposiçãodocará- terelevado,especial,dapersonalidadedosoberanoquese trata.Issoéoretrato.Sequisermos,éumacertainclinação aogênerolírico,maisdoqueaosgênerosépicooudramá- tico,queoretratoexpressa3.Éclaroquesemprepodemos encontraralgodelíricoouépiconumapeçadramática,e 3.“Háumacertaunanimidadeemconsiderarogênerolíricoomaissubjetivo[...] AessênciadaexpressãolíricaéafusãoentreEueMundo;nãohádistânciaentre sujeitoeobjeto.Umaeamesmaatmosferaenvolve,demodoindiferenciado,alma euniverso.Ogêneroépicoémaisobjetivo.OEuépico(ofoconarrativo),embo- rafaçapartedomundoimaginário,encontra-senitidamenteemfacedomundo narrado[...]Ogênerodramáticoseapresentacomoomaisobjetivo.Omundo fictícioépropostocomo inteiramenteemancipadodequalquer subjetividade. NenhumEulíricoouépicoseinterpõe.Aficçãoseapresentacomoabsolutae autônoma,pelomenosno‘dramarigoroso’”(Rosenfeld,1993:38-39). Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 236 vice-versa,assimcomoelementosdessestrêsgênerosclássi- cosemtodasasformasdeexpressão,plásticasounão.Esta- mosfalandoaquiapenasde“formaspuras”,enãodasmis- turascomplexasqueencontramosnasobrasconcretasehis- tóricasemcadaumadasgrandesartes.Ostermos“retrato” e“plástico”,nestetexto,traduzemapenasessepropósito. Porcerto,aatividadecriativadoartistaenvolveuma sondagemouinvestigaçãoemtornodo selfdoretratado. (Uso self menos no sentido psicológico moderno de um “ego”,masnosentidomoraldeumcaráterouumaquali- dadedecaráterdealguém:éassimqueosfalantesdelín- guainglesaousamdelongadata,segundoosdicionários. Ver,porexemplo,overbetenoWebster’sNinthNewCollegiate Dictionary.)Eprovavelmenteessasondagemtambémexige queelenãosedeixeconfundirpelamanifestaçãoostensiva, porémflutuante,doself“aparente”ou“empírico”queacaso oretratadoexibarotineiramente.Suacriação,pelocontrá- rio,devecavarumadistânciadessamanifestação,paraque possacaptar-lheseuself“profundo”ou“essencial”.Talvezo próprioretratadosótenhaumanoçãovagadoqueissosig- nifica;porém,mesmoquefossecapazdesugerirsuaidéia substantiva,careceriadosrecursosparacolocá-lanumafor- ma,poisoretratadonãonecessariamentedominaaarte.E aúltimapropõeresolverjustamenteesteproblemacrucial: daraoconteúdobrutoumaformaadequada.Nessesenti- do,opróprioreiéo“serrepresentado”,namedidaemque seumaterialéomesmodetodasaspessoascomuns,seus súditos.Sósetorna“serrepresentante”comopessoapúbli- ca,istoé,parausaraterminologiadeHobbes,quandodei- xadeserpessoanaturalparatransformar-seempessoaarti- ficial.Arte,artificialidadee“fabricação”,aliás,sãotermos bastantepróximos,e, contantoquenãoa interpretemos moralisticamenteoupelachavedocinismo,sugeremmuito bemocontextofilosóficomecanicistadopensamentohob- besiano.Porém,tantonocasodaartequantodapolítica, CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 237 indicamqueseuproblemafundamentalnãoéoconteúdobruto,queédado,massuasíntesenumaformaadequada. AteoriadosoberanodeHobbespretendeentãoresol- verdoisproblemasqueotrabalhodoretratotambémpre- cisaresolver:a)comorecolheromúltiplonumaunidade;e b)como,fazendoessasíntese,transcenderameraaparên- ciadacoisaapartirdaqualaobrasefaz.Aidéiadamáscara sugereadistinçãoentreoselfespontâneo,queéa“pessoa natural”dosoberano,eoselfqueafiguradosoberanoper- sonificaoficialmente,comorepresentantedossúditos.O queelepersonificaoficialmente,porém?Notrechocitado acima,Rosenfeld faladoator trágicopersonificandofor- çasouseresdivinos.EBurkelembraqueLuísXIV,bemna linhadochamado“direitodivinodosreis”,sefazpassarpor representantedeDeusnaTerra:“Luís tomavatambémo lugardeDeus,comofoiassinaladopelopregadordacor- teJacques-BénigneBossueteoutrosteóricospolíticos.Os soberanoseram‘imagensvivas’[imagesvivantes]deDeus, ‘osrepresentantesdamajestadedivina’[lesreprésentantsdela majestédivine]”(Burke,1994:21). Sabemos,poroutrolado,comofamosamenteLuísXIV seidentificoucomopróprioEstado.Énestepontoquea teoriadasoberaniadeHobbes,pelomenosemparte, se encaixa.SuaperspectivasecularistaolevavaapensaroEsta- donãocomoumaentidadedivina,mascomoumartefato humano,frutodavontadedecadaumdeseusprópriossúdi- tos.DaíqueoLeviatãsejaum“deus”mortal,nãooDeus divinodoscristãosoudosjudeus,masumprodutodeseres igualmente mortais. Porém, o modo como caracterizou seuestadodenaturezanãodeixavamargemparasepen- sarnumacomunidadehumanaestávelanterioràconstru- çãodosoberano.Ambos,soberaniaecomunidadepolítica, sãoobrasconcomitantes.Logo,ocaráterabsolutistadesua teoria:acomunidadepolíticatemdeestarsubordinadaao Estado,personificadonosoberano.Issoimplica,pararesga- Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 238 taroestudodeQuentinSkinnersobreosignificadomoder- nodestetermo,queoEstadosoberanovirtualmentesubsti- tuiacomunidade–coloca-senolugardela,oumelhor,age efalaemseunome. Assim,oselfqueasoberaniahobbesianapersonifica nãoé seupróprioEu,masoNós,a identidadedacomu- nidadepolítica,que,porsuavez,nãotemumaexistência naturalindependente,maséconstruídaatravésdaobrado soberano.Essainterpretação,creio,casa-serazoavelmente bemcomametafísicanominalistadoautor.Issosignifica queosoberanonãoéumsimplesreflexodeumserdado, mas tambémnãoéaocupação,porumsujeitoconcreto qualquerecomtodososseuscaprichos,deumlugarvazio, comoseaquelelugarnãoimplicassecertasobrigaçõeseres- ponsabilidadessubstantivas,inescapáveisaumaautoridade política.Naidealizaçãohobbesiana,temdehaverummeio- termoentreumanoçãoexcessivamente substantivistada soberania(algocomoum“populismo”)eseuopostoexces- sivamenteformalistaepersonalista. Seosoberanonãoéasimplesmanifestaçãodeseupró- prioEu,nãoétambémmeroporta-vozdeseussúditos.O Nósdacomunidadepolíticanãoésínteseempíricadavon- tadedeseussúditos.Paracomeçar,esseelementodeiden- tidadetemdesobreviveràprópriaexistênciaconcretados súditosdecarneeosso.OLeviatã,aocontráriodo“Estado imortal”(porquedivino)deBossuet,éumdeusperecível, mas suaconstruçãoéprojetadaparapersistir indefinida- mente,certamenteparamuitoalémdociclonormal,bioló- gico,decadageraçãodesúditosetambémdapessoanatural dosoberano.Aliás,LuísXIVfoi lembradodissoporBos- suet,oquenãodeixadematizaracélebresentençaemque identificavasuapessoacomoEstado:“Noentanto,repre- sentaroEstadonãoéomesmoqueseridentificadocom ele.Bossuetlembrouaoreiqueelemorreria,aopassoque seuEstadodeveriaserimortal,e,aoqueseconta,Luísfalou CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 239 emseuleitodemorte:‘Voupartir,masoEstadopermane- cerádepoisdemim’[Jem’envais,maisl’Étatdemeureraaprès moi]”(Burke,1994:21) Oque,portanto,afiguradoSoberanocaptura,etem decapturar,éessapermanência,quetraduzoaquinaidéia doretrato:osoberano-representanteàHobbesé,nofundo, amarcadeumselfessencial–oNósdacomunidadepolítica –comoalgodistintodoselfempírico,quepodeperfeita- mentevariaraolongodotempo,semqueooutrosofraa mesmavariação.EstaéafiguradoEstadosoberano. Aimagemhobbesianada“máscara”poderiaentãoser exploradanessesentidoplásticoqueindiqueiacima.Amás- caranãotomaorepresentadoemseumovimentoouemsuas flutuações,masocongela.Congela-o,porém,nãoemqual- quermomento,masnumasituaçãoouperspectivaespecial –aquelaquesupostamentelhecapturaaidentidade.Como umretrato,amáscaradeixadeladoasqualidadessecundá- riasdeseurosto,pararessaltaroudestacarsuasqualidades essenciais.Amáscaraéarepresentaçãodeum caráter,um aspectofixodapersonalidade.Aconstruçãodasoberania políticasupõeessetrabalhosutildepinturadoretrato,cujo pintoré,natradiçãodopensamentopolítico,idealizadonum “legislador”. Contudo,estaúltimafrasesugerequefaçamosalguma qualificaçãoàidéiadafixidezdapersonalidadepúblicado soberano.OlegisladorpõeasleisfundamentaisdoEstado, sua Constituição. Identifico essa figura com a do artista/ agentepolíticoquefornecea“doutrinaoficial”eaordem jurídicabásicaparaoEstadosoberano.Porém,assimcomo aformulaçãodessadoutrinaedessaordeméuma“arte”, tambémoseráasuainterpretaçãoaolongodotempo.De modoquepodemosfornecerumavisãodinâmicadametá- foraplástica,naqualoselfessencialnãoépostoapenasem suaconstrução inaugural,masrepostonotrabalho inter- mitentedesuainterpretaçãonofuturo,tarefaparaaqual Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 240 échamadonãosóumcorpoespecializadodeintérpretes (digamos,ocorpodejuízesdeum“SupremoTribunal”), maseventualmente–sequisermosdarumviésdemocrático àprópriavisãodeHobbes,oquecertamentenãoerasua intenção–ocorpodetodososcidadãosdacomunidade política,semqueissodeixedesignificarumasubordinação destaaoEstado,vistoagoracomorepresentaçãodaquela ordemjurídicabásica. Neste ponto, podemos compreender o quanto essa doutrinadarepresentaçãosedistanciadeumainterpreta- çãoexcessivamentepersonalistadosoberano.Seéverdade queademocracianãoestáemseuhorizonte,apostulação deumaordemjurídicacomoelementocrucialdeumateo- rianormativadoEstadosoberanoémuitoclaranavisão hobbesiana4.Nela,asleissupremasdoEstadosãoexpostas deummodobemgeneralizado,naformadas“leisdenatu- reza”(Hobbes,1983,ParteI,caps.XIVeXV).Éverdade queoautornuncadeixadelembrarocarátervoluntarista dasleiscivis,decretadaspeloSoberano,dadoqueasleis denaturezasãosubjetivamenteinterpretadasporsuapes- soa.MasHobbesfazquestãodedizerqueasleisdenatu- rezanãosãoidênticasaumavontadehumanacaprichosa evolúvel–sejaelaadeumhomemou“umaassembléia dehomens”–massão“certasconclusões,outeoremas”da razãoe,portanto,são“eternaseimutáveis”(Hobbes,1983, ParteI,cap.XV)5. Maso conhecimentodessas leisnãoéoprodutode umarevelaçãomilagrosa.Trata-se,comoelediznoDecive 4.Seiquefalardeuma“teorianormativadoEstado”emHobbesécontroverso, masnãoestranhoaosestudiososdoautor.VerotrabalhodeE.Curley(1989-1990: 187ess.),paraumbalançodaquestão. 5.Essaobservaçãopermitediminuiroimpactodacríticaà“authorizationview”,salien- tadaporPitkineoutros,daqualHobbesseriaumdosexpoentes.Háquereconhecerumelementodeformalismonessavisão,masemHobbeselaécomplementadapor certas“obrigações”substantivasdosoberano,derivadasdasleisdenatureza. CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 241 (On theCitizen, na tradução inglesa),deum trabalhoda razão,cujafaculdadeéverobemfuturo,enãoapenasdos sentidosexternos,quesóvêemobempresente(Hobbes, 1998,ParteI,cap.III:55).OSoberanoéguiado,assim,por princípiosquetranscendemdesejoseinteressespassageiros deseussúditos,edeseuspróprios,levandoemcontaacima detudoobempermanentedeles.Porisso,oSoberanonão temnenhumaobrigaçãodeatenderàquiloqueseussúditos reclamam,individualoucoletivamente,nesseounaquele momento,masapenasaoquesuapessoapúblicaconsiderar condizentecomaquelebem. ÉesseenfoquequevaipermitirSkinneraproximara visãohobbesianadadeoutrosteóricosdasoberaniaabsoluta doséculoXVII,etratá-locomooautorquemaisconsistente- menteprocurouresolverosproblemasconceituaisqueesse tipodeteoriatrazàtona.“Ogovernocivil”,dizSkinner,“não podeservisto[noenfoquehobbesiano]comoigualaospode- resdoscidadãossobumaoutraroupagem.Eledeveservisto comoumaformadistintadepoder,porrazõesqueHobbes anunciacomcompletasegurançanoDecive[...]:‘Embora umgoverno’,eledeclara,‘sejaconstituídopeloscontratos dehomensparticularescomparticulares,odireito[desse governo]nãodependedaquelaobrigaçãoapenas’.Aocons- tituirtalgoverno,‘aqueledireitoquecadahomempossuía antesdeusarsuasfaculdadesparasuasprópriasvantagensé agoratotalmentetraduzidoemumcertohomemoucon- selhodehomensparaobenefíciocomum’.Segue-seque todopoder instaladocomautoridadedeveserreconhe- cido‘comotendoseusprópriosdireitosepropriedades, de talmodoquenenhumcidadão,outodoseles juntos’ podemagoraserconsideradosseuequivalente”(Skinner, 1989:118). Comessaleitura,Skinnernãosómostraporqueocon- ceitomodernodeEstadotemdeaparecercomodevedorde umaidéiaderepresentaçãocomo“autorização”,mastam- Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 242 bémporqueosoberano-representantenãodeveserreduzi- donemàs“pessoasnaturais”dosocupantesdecargospúbli- cos(inclusiveadosupremomagistrado),nemaoconjunto deseuscidadãos. Arepresentaçãocomodrama Passemosagoraàmetáforadramática.Gostariadepensaro dramacomoarepresentaçãodeumasituaçãocrítica:ocon- flitosocial.Aocontráriodaperspectivadoretrato,nestao selfdacomunidadepolíticadeveaparecercomoproblemá- tico.Istoé,nãosetratadeconstruirumsoberanonoqual oself“essencial”sedestaquedesuamanifestação“empíri- ca”,porqueessadistinçãojáimplicaodesatardasituação crítica.Trata-seantesdepensarapersonalidadepúblicada comunidadecomorepartidaemdoisoumaisselves,coloca- dosnumapolarizaçãonãoresolvida.Essaformaderepre- sentaçãoéoqueodramapermiteexpressar. Quero,porém,usarametáforadramáticaparameapro- ximardanoçãotradicionalde“ConstituiçãoMista”,queé ummodoclássico-antigodeabordarotemadaboaordem política. A teoria da Constituição Mista tornou-se muito conhecida através da obra do historiador grego Políbio, pelainterpretaçãoqueofereciadosistemapolíticoroma- noepeloimpactoqueteveposteriormentenopensamento medievalemoderno.MaselaécertamenteanterioraPolí- bio.Ateoriaéumaelaboraçãoemtornodaidéiadequeo melhorregimepolíticoéumacombinaçãooumisturadas “formassimples”–osautoresvariamquantoàdesignação ecaracterizaçãodessasformas;Políbiofalaemtrês:reale- za,aristocraciaedemocracia.Comoessasformasoperam comprincípiosdistintos,mesmoantagônicos,aConstitui- çãoMistaétambémumateoriadoequilíbrioentreinstitui- çõesgovernamentaisoupoderesconstitucionais,cadaqual representandoessesdistintosprincípios.ComoobservaVon Fritz(caps.IVeVIII),provavelmenteoestudomaiscomple- CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 243 todotemaemPolíbio,aConstituiçãoMistaéumaespécie rudimentar,avantlalettre,dateoriadoschecksandbalancese, aomesmotempo,umateoriadoequilíbrioconstitucional entregruposouforçassociaisemcompetição.Voumeres- tringir,nestaseção,aesseúltimoaspecto,paradesenvolver umateoriadarepresentaçãoimplícitanele. Noestudoaquemereferinoiníciodesteartigo(Arau- jo,2004),partodanoção,predominantenopensamento antigo,dequeosgrupossociaiscompetidoressão“ordens” ou“estamentos”(nosentidoweberiano):nobreseplebeus, aristocraciaepovoetc.Contudo,porconsiderarqueateo- riapoderiaterrelevânciaparaacompreensãodapolítica moderna,amplioanoçãodemodoaabarcarclassessocioe- conomicamentedefinidas:ricosepobres,grandesepeque- nosproprietários,proprietáriosenãoproprietáriosetc.Ten- doemcontaessapossibilidademaisampla,diferenciouma versão“aristocrática”eumaversão“plebéia”daConstitui- çãoMista.NatradiçãodaAntigüidadeclássica,praticamen- tenãoencontramosumadefesadaúltima,dadaarecepção positivadaidéiadeumahierarquiafixadestatusentreas ordenssociais,presenteemquasetodososautoresclássicos quechegaramaténós.Maspensoqueopensamentoclássi- comoderno,quandoglosouateoriadaConstituiçãoMista tradicional,abriu-seàidéiadeumaversãoplebéia,especial- menteapartirdeMaquiavel,queadesenvolveunaperspec- tivadadesejabilidadedoconflitosocialabertonointeriorda comunidadepolítica6. Pensoqueaversãoaristocrática,emborapossaserapre- sentadana formadodrama,émenos “dramática”quea outra,desdequecolocaemcenadiferentesgrupossociais— ouseja,osdiferentesselvesnointeriordacomunidadepolí- 6.Esseponto,celebrementeformuladoemseusDiscursossobreaPrimeiraDécada deTitoLívio,LivroI,caps.1a6,tornou-sequaseumlugarcomumnaliteratura secundáriadeMaquiaveledispensacomentáriosaqui. Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 244 tica–naquelahierarquiafixadestatus.Naversãoplebéia, porém,adistinçãodestatusérejeitadaemproldeumideal deigualdadepolíticaque,aomesmotempo,écompatível comumcerto tipodeestratificaçãosocial.(Aplicooutra vezomoteweberiano:igualdadepolíticacomoeliminação dadiferença“estamental”,masnãonecessariamenteade “classes”.)Issosugereasituaçãocrítica,maisconflitivaque aaristocrática,queodramaprecisarepresentar/expressar. AConstituiçãoMistaplebéiaéumscript,umroteiroda representaçãoemsuaformamaisconflitiva,aserencenada naarenapública.Nessaarenadevemingressaratoresrivais, queencarnamdiferentespapéis.AprópriaConstituição, portanto,prevêoconflitoouasituaçãocrítica,eprescreve aosatoresrivaismaneirasdelidarcomela.Note-se,porém, para mergulharmos um pouco mais na metáfora, que o roteironãodeveserconfundidocomoprópriodrama,tra- tando-seantesdeumaindicaçãoparaacena,quenessesen- tidovalorizaodesempenhodosatores: “Oteatro,mesmoquandorecorreàliteraturadramática comoseusubstratofundamental,nãopodeserreduzidoà literatura,vistoserumaartedeexpressãopeculiar[...]o espetáculo,comoobraespecífica,pormaisqueseressalte aimportânciadaliteraturanoteatroliterário,passaater valorcênico-estéticosomentequandoapalavrafuncionano espaço,visualmente,atravésdojogodosatores[...]Oator, portanto,nãoégarçom.Participadopreparodoprato.A melhorprovadissoéofatodequequatrograndesatores, mesmointerpretandolealmenteotexto,criamquatro personagensprofundamentediversasaorepresentaremomesmoHamletliterário”(Rosenfeld,1993:27-28e33). Contudo,oobjetivodoroteiroedojogodosatoresé evitaraquiloque,semaarenapolítica,poderiaserincon- tornável:o“derramamentodesangue”,símbolonãosóda CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 245 violência,masdadissoluçãodacomunidadepolítica.Note- sequeateatralizaçãopolíticaoperacomumfimdistinto, porexemplo,doteatrotrágico,cujodesfechotradicionalé oderramamentodesangue,formaestéticaderesoluçãoda hybris,o“excesso”.Naarenapolítica,aocontrário,encena- seamoderação,porquecomelasepretendesuperar,“subli- mando”,aquiloqueameaçariaacomunidadetodavezque nãohouvesseaencenaçãopública(epolítica)doconflito: o“derramamentodesangue”. Podemosanalisaradiferençaentreasversõesaristocrá- ticaeplebéiadeConstituiçãoMistapelosdiferentesdesfe- chosquesugeremparaseus“roteiros”.Noprimeirocaso, idealiza-seaharmoniaentreosgruposdestatusatravésde umdesfechocompletoouperfeitododrama:umdesfecho “catártico”,emque todaaviolênciapotencialéabsorvida nos limites da encenação realizada na arena pública. A cenadoscidadãosrivaisdeumamesmacomunidadepolí- tica–chamemo-ladecenacivil–sebasta,eissoporque,ao fimeaocabo,cadaatorsabeexatamenteasuaposição,seu status.Oconflitosurgeapenasquandoumououtrotenta ultrapassaresselimite,quenoroteiroaparececomoavir- tualidadedeumdesequilíbrio,oqualsópodeserresolvido seoequilíbrioforrestabelecido;como?namedidaemque cadaatorreencontresuaposição“natural”nahierarquia dosgrupossociais. JáoroteirodaConstituiçãoMistaplebéiatemdeadmi- tirprecisamenteessa transgressão, semtratá-lacomoum desequilíbrio.Aqui,osatoresnãopodemrepresentarpapéis queindiquemumaposição“natural”numahierarquiafixa destatus.Nessesentido,odesfechodoroteironãopode sercompletoouperfeito.Eletemdeseapresentarcomo umaespéciedeobraaberta,suscetíveldetransformações aolongodaprópriaencenação.Desdequeoconflitosocial énãosóadmitido,masvalorizado,oproblemadecomo absorverummaiorexcedentede violência torna-semais Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 246 agudo.Nãoporacaso,autoresqueconsideropioneirosna elaboraçãodateoriadaConstituiçãoMistaplebéia,como Maquiavel,foramlevadosapensaracenacivil,quenaCons- tituiçãoaristocráticasebasta,comonãosuficienteparatal absorção,exatamenteporqueosgrupossociaisemconflito nãoseconformariamcomasituaçãoatualemqueseencon- trassem.Emoutraspalavras:asituaçãocrítica,oconflito,é geradoporesseinconformismo,eacenacivilsóemparte oresolveria.Daíapossibilidadedeumaoutracenaquea suplementasse,canalizandoaquiloquepermanecesseem excessonaprimeira:acenamilitar,o“teatrodeguerra”. Evidentemente,paraqueoroteirocomoumtodo“fun- cionasse”,seriaprecisoqueacenacivileacenamilitaresti- vessemperfeitamenteseparadas,detalmodoquenãopudes- semseapresentarnelasosmesmosatores.Nacenacivil,são grupossociaisque,dointeriordacomunidadepolítica,se deixamrepresentarporatoresdesarmados,osquaisbuscam deliberadamentesoluçõespacíficasparasuasdiferenças.Já nacenamilitarnão sãogrupos sociais,mascomunidades políticasinteirasquesedeixamrepresentaremsuarivalidade irredutível.Éaquiqueaprópriaviolênciaéencenada.Nãose trata,porém,dequalquerviolência,masdeviolênciaorganiza- da.Sefalodeguerracomoum“teatro”,éporquenatradição dopensamentopolíticoaguerracaracterizaumasituação crítica,conflitiva,entrecomunidadespolíticas,aqualtambém admiteumroteiro.Sóque,nessecaso,oobjetivodoroteiro militaréasupremacia(ou“vitória”)deumdoscontendores, enquantoodoroteirociviléoconvíviodoscontendores. Podemos interpretar a chamada “guerra civil”,nesse sentido,comosignodofracassodaConstituiçãoMistaple- béia.Aguerracivilsignificaaimplosãodacomunidadepolí- tica,aoesvaziarcompletamenteacenacivilemproldacena militar.Istoé,elaseráoresultadodaincapacidadedeos atoresdeumamesmacomunidadepolíticapersonificarem seusrespectivospapéisconstitucionais.Umapartefunda- CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 247 mentaldoroteiroésimplesmenteignorada,semqueaspar- tesconflitantesreconheçamumasàsoutrascomodiferen- tescomunidadespolíticas.Esemessereconhecimentonão épossívelsequerqueacenamilitarsejaencenada.(Estou sugerindo,portanto,quearepresentaçãodacenamilitar depende do sucesso da encenação do “roteiro civil”.) A guerracivilnãopodeserumaexpressãodasituaçãocríti- caidealizadapelaConstituiçãoMistaplebéia;trata-semais propriamentedeumasituaçãodelimbopolítico,naquala capacidademesmaderepresentarésuspensa7. Deixoparaumaoutraocasiãoadiscussãodosproble- masrelacionadosàcenamilitareàfacepropriamenteinter- nacionaldaConstituiçãoMistaplebéia,emespecialasobje- çõesnormativasquepoderíamosfazeràsoluçãomaquia- velianadetorná-laumaválvuladeescapeparaoexcedente deviolênciadoméstico.Voumeconcentraraquiapenasno ambienteinterno,civil,eesmiuçarumpoucomaisoque implicariaacapacidadederepresentarnumaConstituição Mistaplebéia.Queroressaltarosseguintesaspectos.Jáfoi indicadoqueorepresentanteésempreparteenãotodo.A síntesecomunitáriaéumaquestãoemaberto,queoscript constitucionalnãopodedeterminar.Nãocabeestabelecer nemquesedescubraumNósdacomunidadepolítica,dispo- nível,aindaqueemgerme,aumaapropriaçãopelaatividade representativa,nemqueseoconstruaatravésdessamesma atividade—comoéocasonafiguradosoberano-represen- tante.Nemessencialismo,nemnominalismo,portanto.Solu- çõesprovisóriassãodeixadasaodesempenhodosatores.O 7.Somostentados,nesseponto,afazeraproximaçõescomavisãohobbesianada guerracivilcomoestadodenatureza.Porém,Hobbesnãodistingueaguerracivil doestadodeguerraemgeral,oqualéidentificadocomoestadodenatureza.Por exemplo,aguerraentreduascomunidadespolíticasétambémqualificadacomo estadodenatureza(verHobbes,1983,cap.XIII:76-77).Éoquesequerevitaraqui. Diga-sedepassagem,acríticadeRousseauaessemodohobbesianodeveraguerra nosparecemuitopertinente.(Rousseau,1978,LivroPrimeiro,cap.IV:28.) Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 248 importanteéqueanenhumatorestáprevistaacapacidadede consumarasíntese.Osatoresnãocompetemoulutamentre siporcontadesseobjetivo.Elesofazemporqueexpressam pólosdistintos,geralmenteantagônicos,doespaçosocial,e esforçam-seporelaborá-losnaarenapública. Naverdade,háumaduplaaberturaaqueodesempe- nhodosatorestemdeestardisponível.Porumlado,écla- ro,aaberturaparaorepresentado,oimpulsionadordaati- vidaderepresentativa.Poroutro,enãomenosimportante, aaberturaparaoatoradversário.Dealgumaforma,essas duastêmdesecombinarouseajustarmutuamentepara queodesempenhosejabemsucedido.Oenfrentamento dessedesafio,porém,parecemaisplausívelsedeixarmosde ladoaidéiadequeorepresentantesimplesmentesubstitui orepresentadonaarenapública,oucoloca-seemseulugar ouageemseunome.Melhorseriapensá-locomoaexpressão deumpólosocialquepretenderepresentar.Usootermo expressãopararesgatarjustamenteametáforaartística,eque étãobemcompreendidoporCharlesTayloremseuestudo sobreaconcepçãodelinguagemdeHerder: “Sealínguaserveparaexprimirumnovotipode percepção,elanãopodesomentetornarpossívelumanovapercepçãodascoisas,acapacidadededescrevê-las,devendo igualmenteabrirnovasformasderesponderàscoisas,novas formasdesentimento.Se,aoexprimirnossospensamentos sobreascoisaspodemoschegaraternovospensamentos, então,aoexprimirnossossentimentos,podemoschegara tersentimentostransformados[...]Aidéiarevolucionária implícitaemHerderfoiadequeodesenvolvimentode novasmodalidadesdeexpressãonoscapacitaaternovos sentimentos,maispotentesoumaisaprimorados,epor certomaisautoconscientes.Aosermoscapazesdeexprimir nossossentimentos,damos-lhesumadimensãoreflexivaque ostransforma”(Taylor,2000:112). CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 249 Assim, transportando a elaboração acima para nos- soassunto,podemosdizerqueorepresentantecompletao representado,emvezdemeramentesubstituí-lo.Afigura dorepresentanteéresultadodeumacarênciapolíticado representado,dequeoprimeiroprocuradarconta.Dire- mos,então,paravoltaraoproblemadarepresentaçãona ConstituiçãoMista,assim:orepresentadoéafacesocialdo institutodarepresentação,enquantoorepresentante/atoré suafacepolítica,suaexpressãoatravésdeumaformaque buscatransformarapercepçãosocialdoconflito.Umanãoé nemdeveseroespelhodaoutra,esimsuasfacescomplemen- tares,aomesmotempoemcomunicaçãoetensãorecíprocas. Quehajacomunicaçãoéevidente.Masdeondeatensão? Eladerivadofatodequeoator/representanteemcenaestará empermanenteinterlocuçãocomosdemaisatores/represen- tantes.Sustentando,cadaqualaseumodo,oconflitosocial, elesterãodefazerdaengenhosidadedeseudesempenhoum fatorcrucialparamanteraqueleconflitoemseunívelcivil. Pode-sedizer,apropósito,queavirtude“soberana”dodesem- penhonaarenapúblicaédefatoacivilidade.8Hádeverespara comorepresentado,mastambémparacomosdemaisatores, eambosnemsempresãocoincidentes.Daíatensão9. 8.“Theidealofcitizenshipimposesamoral,notalegal,duty–thedutyofcivility –tobeabletoexplaintooneanother[...]howtheprinciplesandpoliciesthey advocateandvoteforcanbesupportedbythepoliticalvaluesofpublicreason. Thisdutyalsoinvolvesawillingnesstolistentoothersandafairmindednessin decidingwhenaccomodationstotheirviewsshouldreasonablybemade”(Rawls, 1996:217). 9.Achamada“representaçãocorporativa”nãomepareceseraúnicafórmula, nemamelhor,paraaConstituiçãoMistaplebéia,poiselafixaemdemasiaaposi- çãosocialdosrepresentados.Eessafixidezenrijecetambémodesempenhodos atoresnaarenapública.Nãoqueessafórmulanãotenhadeserpraticada:propria- mentedesenhado,ocorporativismoéumelementodeestímulo/problematização darepresentaçãopolítica.Masissosignificaqueascorporações,deprofissionais, setoreseconômicosetc.aindasesituamnoladosocialdarepresentação.E,por- tanto,obomdesempenhodoatorpolíticotambémdependedeumprudentedis- tanciamentodaquelas.Paraumexcelenteencaminhamentodotema,veroartigo deNadiaUrbinatinestevolume,p.191-228. Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 250 Duassoberaniaseacríticadarepresentação Comoindicadonoiníciodesteartigo,asmetáforasdoretra- toedodramaremetemaduasmaneirasdistintasdepensar asoberania. Nametáforadoretrato,osoberano-representanteéuma construçãoqueresultadeumaatividadedeintrospecçãoe síntese:apinturadoretratoéumasondagem,umaativida- dedediscernimentonadireçãodoselfdorepresentado,que oretratobuscacongelaresintetizarnumaforma.OEstado soberanoésuamanifestaçãopolítica.Porisso,gostariade chamaressetipodesoberaniadeintrínseca.Naperspectivado soberano-representantehobbesiano,acomunidadepolítica temdesedeixarabsorvercompletamentepeloEstadopara queestepossa,reapresentando-a,transcenderqualquercisão internapelahipóstasedeumacomunidadepolíticahomoge- neizada,o“Povo”–porissomesmocompostaporindivíduos, enãogrupossociais,“estamentos”,“classes”ouoquefor. Na metáfora do drama, contudo, coloca-se a rejeição mesmadoidealdesíntesequeoretratopropõe.Temosnela aexpressãodeummovimentoperpétuoqueimpossibilitaa identificaçãoeocongelamentodeumselfdacomunidade política.Aconstituiçãomistaplebéiaéumaordemnaqual duasoumais“semicomunidades”,naverdadegrupossociais emdisputa,buscamsustentarumamesmacomunidadepolí- tica–comunidadesocialmentecindida,portanto,semcondi- çõesdecriarparasiumúnicoeinequívocolocusdecisório. Issoquerdizerqueaconstituiçãomistaplebéiarenuncia aqualquernoçãodesoberania?Demodoalgum.Ocorreque anoçãosóemergequandomergulhamosessaordempolítica noambienteda“sociedadedasnações”.Asoberaniapermane- ce,portanto,conceitualmentedependentedessecontextoexter- no,emquesesupõequehajaentreascomunidadespolíticas10 10.Insisto:entre“comunidadespolíticas”,nãoentre“indivíduos”,comoocorrena teoriahobbesianadasoberania,que,portanto,nãodistinguequalitativamentea “guerradetodoscontratodos”daguerraentreEstados. CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 251 umarivalidadeque,nolimite,sejaresolvidano“teatrodeguer- ra”.Asoberania,nessesentido,éextrínseca.Semahipóstase deumentehomogeneizado,o“Povo”,deondeextrairum idealdebemcomum,aconstituiçãomistaplebéiaapresen- taseuselementosinternosnãosócomoantagônicos,mas empédeigualdade.Parafinsdedecisãocomum,seusinte- ressesesuaspretensõespolítico-moraisapresentam-secom pesoigual,emborarivais.Eissoinviabilizatambémachan- cedeextrairsuaidentidadedeumanoçãodebemcomum baseada na preferência aristocrática: se o ordenamento constitucionalnãopossuiumvértice,igualmentenãodis- põedeuma“escala”deexcelênciaqueoleveapriorizarum conjuntodevaloresemdetrimentodeoutros.Deumsiste- madecorposquegiramemtornounsdosoutros,atraindo- se,mastambémrepelindo-se,omáximoquesepodeespe- raremseuambienteinternoéqueapolíticacivilfaçasurgir uma“clareira”comumentreosgruposantagônicos–uma cenapúblicanaqualpossamintermitentementerepactuaros termosduradourosdesuaconvivênciasocialepolítica.Mas essaclareiranãoaparecedonada,esópodeemergirda suposiçãodeumambienteexternoque,comparativamente, esmaecearivalidadeinternaelheprojeta,apartirdefora, suaidentidade. Dequalquerforma,aidéiadeumacomunidadesocial- mente cindida sugere um desenho institucional no qual agênciasoupoderesconstitucionaisseparadoscompetem entresiereclamamdiferentesaspectosdasresponsabilida- despúblicas.Paraserexato,umadoutrinadadivisão/sepa- raçãodospoderesconstitucionais,dotipochecksandbalan- ces,tambémpodeseapresentarsoboinvólucrodaforma Estado.Contudo,ocaráterintrínsecodesuasoberaniatraz consigoanoçãodeumcumedoprocessodecisórioconsti- tucional,eissonãoseencaixabemnoespíritodadoutrina. Afiguradosoberanoestatalétambémafiguradaúltima instânciadecisória,contraaqualnãohárecursonemcon- Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 252 trole.Masaidéiadeumsoberanonormativamentelimitado oucontrarrestadoporoutrospoderes,comobemsublinha Hobbes(1983,cap.XXIX:194-195),écontraditóriacom esseconceito.Assim,sobosauspíciosdasoberaniaintrínse- ca,adoutrinadadivisãodospoderesacabatendodeapon- tarainstânciadeúltimorecursoquecumpraopapeldo soberano,casoospoderesnãoconvirjamparaummesmo ponto.Porém,oespíritodaseparaçãodospoderesépreci- samentedeixaressaquestãoemaberto.Dessaperspectiva,oproblemadocontroledarepresenta- çãoesbarraemdificuldadestalvezaindamaiores.Deixan- dodeladooimpassedaregressãoinfinitaqueaidéiada relaçãocontrolador/controladonoscoloca(quemcontrola ocontrolador?),vamosassumirumavariantedemocrático- representativadasoberaniaestatal.Nessa,eleitores-cidadãos (evidentemente,teriadeserumavastamaioriadapopula- çãoadultadeumacomunidade)escolhemrepresentantes paraumParlamento.Pelaóticadeumateoriahobbesiana “democratizada”,afunçãodaeleiçãoseriaautorizarocor- po legislativoaagire falaremnomedoscidadãosqueo elegerem.Comoaautorizaçãoéfeitaaosrepresentantesdo Parlamento,sededoPoderLegislativo,estedeveassumiro papeldeSoberano.Arigor,adaptarumateoriadademo- craciarepresentativaàconcepçãooriginaldeHobbesda soberanianãoéumatarefafácil11.Comoaidéiadecumeé fundamentalnavisãohobbesiana,pareceque,numademo- craciarepresentativa,osoberanooscilaentreocorpodos eleitores(nosbrevesmomentosdaseleiçõesperiódicas)e ocorpolegislativo.Emparte, leioaconhecidacríticade Rousseauàrepresentaçãoparlamentarnessachave. Rousseauécríticodarepresentaçãoparlamentarpor- quevênelaumausurpaçãodasoberaniadoPovo.Defato, 11.ProcureienfrentaresseproblemaemAraujo(2000)eAraujo(2004),eos resultados,confesso,permanecemumtantoinsatisfatórios. CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 253 seocorpodecidadãostemsuaprópriaidentidadeesabeo quequer,comoeporquehaveriadetransferiressequerer? Emprimeirolugar,seosoberanosedefineporumavonta- de,essanãopodeseralienadasemaomesmotempoperder suaintegridade,desdequeavontadenãoédissociáveldo sujeitoqueatem:“Opoderpodetransmitir-se;não,porém, avontade”(Rousseau,1978,LivroII,cap.1:44).Nessepon- to,acríticadeRousseauéumaimplicaçãopossíveldaspró- priasnoçõesdevontadeecumepresentesnoconceitohob- besianodesoberania.Porém,esseéoaspectopuramente analítico ou lógico de sua objeção ao Parlamento como corposoberano,istoé,comoPoderLegislativo.Mashátam- bém,emsegundolugar,acríticadecarátermaissubstantivo ehistórico,complementoindispensáveldaoutra. Rousseauvênarepresentaçãoparlamentarumaespe- cializaçãoinaceitávelnointeriordacidadania.Essaespecia- lizaçãoéoresultadodeumaevoluçãomodernacujaorigem éogovernofeudal,inventordainstituiçãodoParlamento, aoqualsãocontrastadasas“antigasrepúblicas”,quenãoa conheciam.Aevoluçãomodernaadvémdocrescentepapel dodinheiroparaviabilizaressaestruturaderepresentação, viaimpostos.Osdeputadossãoentãovistoscomo“repre- sentantes”numsentidonegativo,porseespecializaremem tomardecisõescruciais(legislativasinclusive)emlugardos cidadãos-eleitoresque,afimdesedesvincilharemdeseus deveresmaiorescomocidadãos,pagamparaqueoutrosos cumpramemseunome: “Éaconfusãodocomércioedasartes,éoávidointeressedo ganho,éafrouxidãoeoamoràcomodidadequetrocamos serviçospessoaispelodinheiro.Cede-seumapartedolucro, paraaumentá-loàvontade.Daiouro,elogotereisferros.A palavrafinançaéumapalavradeescravos,nãoéconhecida napolis.NumEstadoverdadeiramentelivre,oscidadãos fazemtudocomseusbraçosenadacomodinheiro;longe Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 254 depagarparaseisentaremdeseusdeveres,pagarãopara cumpri-losporsimesmos”(Rousseau,1978,LivroIII,cap. XV:106-107) Exatamenteporqueaintromissãododinheirocorrom- peadisposiçãodocidadãoparaserviracomunidade,algo análogoauma“corvéia”seriaamelhorfórmulaparaoexer- cíciodosdeverescívicos:“Distancio-mebastantedasidéias comuns,poisconsideroascorvéiasmenoscontráriasàliber- dadedoqueosimpostos”(id.ibid.).Curiosamente,porém,a passagemacimatambémregistraumalinhadecontinuidade entreo“governofeudal”,denunciadoporimporasubservi- ênciaàsrelaçõesentregovernantesegovernadosatravésda vassalagem,eoquepoderíamoschamarde“ordemburgue- sa”,denunciadaporsutilmenteinduzirasubserviênciapela mediaçãoimprópriadodinheironoserviçopúblico. MasháaindaumoutromododeRousseauobservara representaçãoparlamentarqueédeinteresseespecialaqui. Équeoautorsugereumparaleloentreessetipoderepre- sentaçãopolíticaeamodernarepresentaçãoteatral,daqual ele tambémécrítico.NumacartapúblicaaD’Alembert, Rousseau faz objeções à introdução do teatro ao estilo parisienseemGenebra.Nessacarta,elefazseguidascom- paraçõesentreoteatroantigoeomoderno,emfavordo primeiro, salientando seus respectivos efeitos políticos e moraissobreopúblico.Falando,porexemplo,dodrama grego,eledestacaomodopúblico/abertodesuaencena- ção–“Essesgrandesesoberbosespetáculosqueaconteciam acéuaberto[...]”–paracontrastá-locomodramamoder- no, movido pela relação comercial entre o espectador/ paganteeoator/profissionalpago,porissomesmoence- nadoemlugaresfechados:“Seus[dosgregos]nadatinham damesquinhariadosdehojeemdia.Seusteatrosnãoeram erguidospelointeresseepelaavareza;nãosefechavamem obscurasprisões;osatoresnãoprecisavamfazerosespecta- CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 255 dorespagarem,nemcontarcomorabodoolhoaspessoas queviampassarpelaporta,parateremcertezadojantar” (Rousseau,1993:91). Quantoàrepresentaçãopolítica,éverdadequeopen- samentodeRousseausemostrabemmaisflexíveldiante de situaçõesconcretas,comopercebemosemsuasConsi- deraçõessobreogovernodaPolôniaesuareformaprojetada.Lá, comolembramoscomentadores,nãosemumacertaper- plexidade,Rousseauadmitea“deputação”,queconsidera inconveniente,mas inevitávelemgrandesEstados.Dessa vez,contudo,ainconveniênciaaqueoautorquerseater nãoédeordemteórica–porexemplo,oargumentoda (im)possibilidadedarepresentaçãodavontadegeral–mas deordemprática:“OLegisladoremcorpo[oconjuntodos cidadãosreunidos]éimpossíveldecorromper,masfácilde enganar.SeusRepresentantessãodificilmenteenganados, masfacilmentecorrompidoseocorreraramentequenão osejam.TendessobosolhosoexemplodoParlamentoda Inglaterra[...]”(Rousseau,1982:48).Comosevê,oautor nuncaperdedevistaessemodelohistóricodarepresenta- çãoparlamentar,aInglaterra.Assim,quandoadmiteuma câmaradedeputados,ofazalertandoparaosperigosde suaanglicização–emparticular,atransformaçãodosrepre- sentantesempolíticosprofissionais.Eisporquerecomenda severamenteaseusamigospoloneses,aoreformaraDieta (o“parlamento”polonês),quetratemdemudar“freqüen- tementeosrepresentantes”,paratornar“suaseduçãomais custosaemaisdifícil”;quefaçamosrepresentantes“segui- remexatamentesuas instruçõeseprestaremcontasrigo- rosamenteaseusconstituintesdesuacondutanaDieta”e assimpordiante. Oautorinsiste,entretanto,quenenhumamedidalegal ouinstitucionaldecontroleseráeficazseos“costumes”ea “opiniãopública”nãoforemmantidosnaqualidademoral adequada: “Nuncahaveráboae sólidaconstituiçãoalém Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 256 daquelaemqueaLeireinarásobreoscoraçõesdoscida- dãos.Enquantoaforçalegislativanãoforatélá,asleisserão sempreeludidas.Mascomochegaraoscorações?”(Rous- seau, 1982: 25). Ao se perguntar sobre meios, Rousseau lembra,então,comonacartaaD’Alembert,daimportân- ciadosespetáculoscívicos,fundamentaispara“comoveros coraçõesefazeramaraspátriaseasleis”:“Ousariaeudizê-lo?Pormeiodejogosdecrianças;pormeiodeinstituições ociosasaosolhosdoshomenssuperficiais,masqueformam hábitosqueridoseafeiçõesinvencíveis”.Outravez,oexem- ploquetememvistasãoosespetáculosdosantigos,que imediatamentecomparaaoteatromoderno:“Sãoaspoesias deHomerorecitadasaosgregossolenementereunidos,não emcofres,sobrepranchasdopalcoecomodinheirona mão,masaoarlivreeemcorpodenação,sãoastragédias deÉsquilo,deSófoclesedeEurípides,representadasfre- qüentementediantedeles[...]”. Écomose,aofalardoteatrofechado,ele falasseao mesmotempodoParlamentomoderno,cujassessõestam- bémpoderiamserdescritascomodramasencenadosnuma “prisão”ounum“cofre”,destinadosapúblicosseleciona- dosporseupoderaquisitivo,enãoacéuaberto,aopúbli- coemgeral:“Seeles[osmodernos]sereúneméemtem- plosparaumcultoquenãotemnadadenacional,queem nadalembraapátriaequeéquaseescarnecido;éemsalas bemfechadaseapreçodedinheiro,paraverememteatros afeminados[...]éemfestasemqueopovo,sempredes- prezado,nuncateminfluência,emquearepreensãoea aprovaçãopúblicasnãoproduzemnada”(Rousseau,1982: 28-29).Note-se,portanto,que,sedermosumpesomaiora esseúltimoaspectodesuacrítica,adenúnciarousseaunia- nadausurpaçãodasoberaniapopularporumParlamento nãoestá,fundamentalmente,centradanarepresentaçãoem simesma,masnosmodosdesuaoperaçãoemcondições emqueodinheiro,aprofissionalização/especializaçãoda CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 257 vidapolíticae sua conseqüenteopacidadedêemo tom. Essaé,penso,umacríticaquedeveriacalarmuitomaisfun- do,considerando-seaspráticascontemporâneas,doquea objeçãopuramente teóricaàdemocracia representativa. Maseladeveriaatingir tambémomodoalternativocom queprojeteiaboaordempolítica, istoé,aConstituição Mistaplebéia? Cabeobservar,departida,quenessaalternativaopro- blemado locusdecisório,quedesorientaaperspectivada soberaniaintrínsecaemvistadadualidadecorpodecida- dãos(eleitores)/corpoderepresentantes,nãoseapresen- tanumateoriadarepresentaçãosustentadanasoberania extrínseca.AConstituiçãoMistanãotemnadaaobjetar,ao contrário,sóaestimularquehajadiferentescentrosdeci- sórios,cadaqualpodendoreivindicardivergentementea representaçãodoPovo,desdequeestenãosejapensado comoumentehomogêneoaptoaprovidenciarumselfine- quívocoàrepresentação.Alémdisso,desdequenãoépapel nemdeverdaestruturaderepresentantesmimetizaroself dacomunidade,adualidadeentreoscidadãos-eleitorese seusrepresentantes,mesmoatensãonesserelacionamento, comojáassinalado,nãodeveaparecercomoumobstáculo àboaordempolítica. Quantoaoproblemadocontroledarepresentação,há queantesponderarsobreoqueexercerocontrole.Paraa ConstituiçãoMista,aquestãonormativaprincipalnãoése aestruturaderepresentantesestácumprindoapropriada- mentesuasobrigaçõesdepromover,nolugardosrepresen- tados,suasvontades,pleitosouinteresses,sejamessesjulga- dosapriori,peloscompromissosassumidosantesdoman- dato,ouaposteriori,pelosresultadosconcretosdoexercício domandato.Naverdade,éprecisoteremcontaocontexto inteirodarepresentação:haverá,porumlado,a interfa- ceentreosocialeopolíticoe,poroutro,arelaçãoentre osprópriosrepresentantesnacenapública,emquecabe Representação,retratoedrama LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 258 dramatizaroatritosocial.Nojulgamentododesempenho dosrepresentantes,éclaroquesedeveconsideraracapa- cidadedelesdelevaràcenapúblicaasqueixassociaisdos diferentesestratos/grupos/classesdacomunidadeeentão tensionaras instituiçõespolíticaseseusprocessosdecisó- rios.Porém,ojulgamentotemdeatentarigualmentepara a capacidadeda representaçãode reelaborarasqueixas, torná-lasmaisreflexivas,dando-lhesaformaadequadapara obterumarecepçãopositivanacenapública.Aavaliaçãoa serfeitanessepontoémuitocomplexa,porqueosatores políticossempredeverãoprocurarumdelicadoequilíbrio entreapreservaçãodesuainterfacesocialeamanutenção dacenapúblicanaqualencontramseusadversáriospolíti- cos.Osrepresentantesbuscam,assim,umaduplacumpli- cidade:comseusrepresentados,semdúvida,mastambém comseusprópriosadversáriosnacenapública.Controlar arepresentação,portanto,implicafazerobalançodetoda essatrama. AscríticasmaisabstratasdeRousseauàrepresentação parlamentarsãodevedorasdesuaconcepçãotodapeculiar desoberaniapopular,quependeparaoquechameiaquide soberaniaintrínseca.Pelasrazõesexpostasacima,nãocreio queelasatinjamaestruturanormativadasoberaniaextrín- seca.Todavia,pensoquesuasobjeçõespráticas,demaior conteúdohistórico,deveriamserconsideradasmuitoseria- mentenodesenhoconcretodeumaConstituiçãoMistaple- béia.Haveráalternativasviáveisàmediaçãododinheiroeà profissionalizaçãodarepresentaçãopolítica,queaguçavam especialmentesuasansiedades?Nãotenhorespostaclara paraessapergunta;masadmito,semesmiuçarargumentos, quetaispráticassãomuitodifíceisdecontornarnummun- doondeadivisãosocialdotrabalhoéavassaladora,absor- vendooprópriofazerpolítico.Contudo,seforassim,não hácomosubestimaroperigoqueasespreita,tãobemsuge- ridoporRousseauemsuaimagemteatral.Istoé,operigo CiceroAraujo LuaNova,SãoPaulo,67:229-260,2006 259 dequeacenapúblicasefecheemsimesma,transforman- do-senumaespéciede“cofre”ou“prisão”,impermeávelao conjuntodosespectadoreseseusconflitossociais;ou,pior ainda,permeávelapenasaosespectadoresdispostosapagar opreçoasercobradonaentrada.Porcerto,esseéumdos maioresdesafioscolocadosàrepresentaçãopolítica,agora enofuturo. CiceroAraujo éprofessordoDepartamentodeCiênciaPolíticadaUSP, editordeLuaNovaepesquisadordoCNPq. REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS ARAUJO,C.2000.“RepúblicaeDemocracia”.LuaNova51:5-30. __________.2004. “QuodOmnesTangit: FundaçõesdaRepúblicaedo Estado”.TesedeLivre-Docência.DepartamentodeCiênciaPolítica,FFL- CH-USP.Mimeo.SãoPaulo. BURKE,P.1994.Afabricaçãodorei.AconstruçãodaimagempúblicadeLuís XIV.RiodeJaneiro:Zahar. COULANGES,F.2004.Acidadeantiga.SãoPaulo:MartinClaret. CURLEY,E.1989-1990.“ReflectionsonHobbes:recentworkonhismoral andpoliticalphilosophy”.JournalofPhilosophicalResearchXV:169-250. DAHL,R.1989.Democracyanditscritics.NewHaven:YaleUniversityPress. HOBBES,T.1983.Leviatãoumatéria,formaepoderdeumEstadoeclesiásticoe civil.SãoPaulo:AbrilCultural.ColeçãoOsPensadores. ____________.1998.OntheCitizen.Cambridge:CambridgeUniversityPress. MAQUIAVEL,N.1970.TheDiscourses.PenguinClassics.Londres:Penguin,. PITKIN,H.1967.TheConceptofRepresentation.Berkeley:UniversityofCali- forniaPress. 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LuaNova,SãoPaulo,67:262-269,2006 268 Resumos/Abstracts REPRESENTAÇÃO,RETRATOEDRAMA CICEROARAUJO Oartigovale-sededuasmetáforasartísticasparaexplorar um contraste entre maneiras de pensar a representação política. As metáforas sugerem duas idealizações muito diferentesdaboaordempolítica,aindaqueovocabulário políticotradicionalcostumeconfundi-las,eproduzemseus LuaNova,SãoPaulo,67:263-269,2006 269 Resumos/Abstracts própriosimpactosarespeitodoqueesperardaspráticasde representaçãodasautoridadespolíticas. Palavras-chave:Retratoedrama;Representação;Estadosobe- rano;ConstituiçãoMista. REPRESENTATION,PORTRAITANDDRAMA The article elaborates on two artistic metaphors to search for contrasting modes of thinking on political representation. The metaphorssuggesttwoverydistinctiveidealsofthegoodpolitical order–despiteacertaintrendofthetraditionalpoliticallexiconto mixthemup–andmaketheirownimpactsonwhattoexpectfrom theauthorities’practicesofrepresentation. Keywords:Portraitanddrama;Representation;ThesovereignState; MixedConstitution.