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Às vezes gostava de ser arquiteto, para poder dedicar um
edifício a uma pessoa; uma superestrutura que furasse as
nuvens e continuasse a subir em direção ao abismo. E se Às
Cegas fosse feito de tijolos em vez de letras, eu organizaria
uma cerimónia, convidaria todas as memórias obscuras que
tenho e cortaria a �ta com um machado, para todos verem
pela primeira vez o nome do edifício. E chamar-se-ia Debbie.
Mãe, Às Cegas é para ti.
1
Malorie está parada na cozinha, a pensar.
Tem as mãos húmidas. Treme. Bate nervosamente com o dedo
do pé no chão de mosaicos estalados. Ainda é cedo, o sol mal
espreita sobre a linha do horizonte. Enquanto observa a luz débil
do astro-rei a conferir às pesadas cortinas um tom ligeiramente
menos preto, pensa:
Nevoeiro.
As crianças dormem sob estruturas de arame envoltas em
tecido negro ao fundo do corredor. Talvez a tenham escutado há
momentos, de joelhos no pátio. Qualquer que fosse o ruído que
fez deve ter sido captado pelos microfones e transmitido pelos
ampli�cadores ao lado das camas delas.
Olha para as mãos e deteta um brilho muito subtil sob a luz das
velas. Sim, estão húmidas. Ainda estão cobertas de orvalho
matinal.
Agora, na cozinha, Malorie respira fundo antes de apagar a vela.
Olha em volta para o pequeno espaço, reparando nos utensílios
enferrujados e nos pratos rachados. A caixa de cartão que é usada
como caixote de lixo. As cadeiras, algumas reparadas com cordel.
As paredes estão sujas, dos pés e das mãos das crianças. Mas há
também nódoas antigas. A parte inferior das paredes do corredor
está descolorada, púrpuras profundos que desbotaram e se
tornaram castanhos com o passar do tempo. São de sangue. A
alcatifa da sala de estar também está manchada, por mais que
Malorie esfregue. Não há na casa químicos que ajudem a limpá-la.
Há muito tempo, Malorie encheu os baldes com água do poço e,
usando o casaco de um fato, tentou remover todas as manchas da
casa. Mas elas recusaram-se a sair. Mesmo as que se revelaram
menos resistentes permaneceram, talvez uma sombra do
tamanho original, mas ainda horrivelmente visíveis. Uma caixa de
velas esconde uma nódoa no hall. O sofá da sala está num ângulo
estranho, movido para ali para ocultar duas manchas que
parecem duas cabeças de lobo aos olhos de Malorie. No segundo
andar, junto às escadas do sótão, uma pilha de casacos ba�entos
esconde arranhões púrpura, profundamente cravados no rodapé.
A três metros dali está a nódoa mais negra da casa. Ela não usa a
parte mais afastada do segundo andar da casa porque não
consegue passar por ela.
Esta foi em tempos uma boa casa num agradável subúrbio de
Detroit. Em tempos foi uma casa preparada para uma família,
uma casa segura. Há menos de meia década um agente
imobiliário tê-la-ia mostrado com orgulho. Mas naquela manhã
as janelas estão tapadas com cartão e tábuas. Não há água
corrente. Um grande balde de madeira está pousado na bancada
da cozinha. Cheira a velho. Não há brinquedos convencionais
para as crianças. Pedaços de uma cadeira de madeira foram
esculpidos na forma de �guras humanas em miniatura, com
rostos pequenos pintados. Os armários estão vazios. Não há
quadros nas paredes. Passam �os por baixo da porta das traseiras
até aos quartos do primeiro andar, onde os ampli�cadores
alertam Malorie e as crianças para quaisquer sons vindos do lado
de fora da casa. Os três vivem assim. Passam longos períodos sem
ir à rua. Quando o fazem, vão de olhos vendados.
As crianças nunca viram o mundo fora da sua casa. Nem sequer
pelas janelas. E Malorie não olha lá para fora há mais de quatro
anos.
Quatro anos.
Ela não tem de tomar esta decisão hoje. É outubro no Michigan.
Está frio. Uma viagem de 32 quilómetros pelo rio será difícil para
as crianças. Talvez ainda sejam demasiado pequenas. E se uma
delas cair à água? O que faria Malorie, com os olhos vendados?
Um acidente, pensa Malorie. Que horrível. Depois de tantas
di�culdades, depois de toda esta sobrevivência, morrer por causa
de um acidente.
Malorie olha para as cortinas. Começa a chorar. Quer gritar
com alguém. Quer implorar a alguém que possa ouvi-la. Isto é
injusto, diria. Isto é cruel.
Olha por cima do ombro, para a entrada da cozinha e para o
corredor que conduz ao quarto das crianças. Do outro lado da
ombreira sem porta, as crianças dormem profundamente,
cobertas com tecido negro, escondidas da luz e da vista. Não se
mexem. Não dão o menor sinal de estarem acordadas. No
entanto, podem estar a escutá-la. Às vezes, de tanto as pressionar
para ouvirem, de toda a importância que atribui aos seus ouvidos,
Malorie acredita que elas conseguem ouvir os seus pensamentos.
Podia esperar pelos dias cheios de sol, pelo calor, para dedicar
mais cuidado ao barco. Podia informar as crianças, ouvir o que
têm a dizer. As sugestões delas podiam ser boas. Têm apenas 4
anos, mas foram treinadas para escutar. Capazes de ajudarem a
guiar um barco pilotado às cegas. Malorie não conseguiria fazer a
viagem sem elas. Precisa dos seus ouvidos. Ser-lhe-ia igualmente
útil o conselho delas? Aos 4 anos de idade, terão elas algo a dizer
acerca de quando é a melhor altura para deixarem a casa para
sempre?
Deixando-se cair numa cadeira da cozinha, Malorie esforça-se
para conter as lágrimas. O pé descalço continua a bater no
linóleo desbotado. Lentamente, olha para o cimo das escadas da
cave. Ali falou em tempos com um homem chamado Tom acerca
de um homem chamado Don. Olha para o lava-loiça, para onde
Don em tempos carregou baldes de água do poço, a tremer do
frio da rua. Inclinando-se para a frente, consegue ver o hall, onde
Cheryl costumava preparar a comida para os pássaros. E entre ela
e a porta da rua está a sala, silenciosa e escura, onde há
demasiadas memórias de demasiadas pessoas para serem
digeridas.
Quatro anos, pensa, e tem vontade de esmurrar a parede.
Malorie sabe que quatro anos podem facilmente tornar-se oito.
E oito podem igualmente tornar-se doze. E nessa altura as
crianças serão adultos. Adultos que nunca viram o céu. Que
nunca olharam por uma janela. Quais seriam as consequências,
para as suas mentes, de viverem como vitelos durante 12 anos?
Malorie pergunta-se se existirá um ponto em que as nuvens no
céu se tornam irreais e que o único lugar onde se sentem em casa
é atrás do tecido preto das suas vendas.
Malorie engole em seco e imagina-se a criá-los sozinha até à
adolescência.
Seria capaz de o fazer? Seria capaz de os proteger durante mais
dez anos? Conseguiria protegê-los durante tempo su�ciente para
eles serem capazes de a proteger a ela? E para quê? Para que tipo
de vida está ela a protegê-los?
És uma má mãe, pensa.
Por não encontrar uma forma de os deixar conhecer a vastidão
do céu. Por não encontrar uma forma de os deixar correr
livremente no pátio, na rua, no bairro de casas vazias e de carros
estacionados e desgastados pelo tempo. Ou por os ter deixado
espreitar uma única vez para o espaço, quando o céu �ca preto e
�ca súbita e maravilhosamente polvilhado de estrelas.
Estás a salvar a vida deles para uma vida que não vale a pena
viver.
Malorie vê as cortinas ganharem um tom ainda mais claro
através das lágrimas que lhe toldam a visão. Se há nevoeiro lá
fora, não será por muito mais tempo. E se existe a hipótese de
este a poder ajudar, se a ocultar e às crianças enquanto se
dirigem para o rio, para o barco a remos, então tem de as acordar
agora.
Dá uma palmada na mesa da cozinha e limpa as lágrimas dos
olhos.
Levantando-se e saindo da cozinha, Malorie atravessa o
corredor e entra no quarto das crianças.
— Rapaz! — grita. — Rapariga! Acordem.
O quarto está às escuras. A única janela tem tantos cobertores a
tapá-la que a luz do sol não entra nem quando este atinge o
zénite. Há dois colchões, um em cada lado do quarto. Por cima
deles há dosséis negros. Em tempos, o arame que sustenta o
tecido foi usado para delimitar um pequeno jardim junto ao poço
no quintal da casa. Mas durante os últimos quatro anos serviu de
armadura, protegendo as crianças não apenas do que podia vê-
las, mas também do queelas podiam ver. Por baixo dele, Malorie
escuta movimento e ajoelha-se para soltar o arame que está
preso a pregos cravados no chão de madeira. Já está a tirar do
bolso as vendas quando as duas crianças a �tam com expressões
sonolentas e surpreendidas.
— Mamã?
— Levantem-se. Agora. A mamã precisa que sejam rápidos.
As crianças reagem rapidamente. Não choramingam nem se
queixam.
— Onde vamos? — pergunta a Rapariga.
Malorie estende-lhe uma venda e diz:
— Põe isto. Vamos ao rio.
Os dois pegam nas vendas e apertam o tecido negro que lhes
cobre os olhos. São versados naquele gesto. Especialistas, se é
que aos quatro anos podem ser especialistas em alguma coisa.
Malorie sente-se destroçada. São apenas crianças e deviam estar
curiosos. Deviam estar a perguntar por que motivo iam ao rio
naquele dia — a um rio onde nunca estiveram.
Mas em vez disso fazem o que lhes é dito.
Malorie não põe a sua venda por enquanto. Primeiro vai
preparar as crianças.
—  Traz o teu puzzle — diz à Rapariga. — E tragam ambos os
vossos cobertores.
O entusiasmo que sente é impossível de conter. Parece mais
histeria. Indo de divisão em divisão, Malorie procura coisas,
pequenos objetos, de que possam precisar. De repente, sente-se
horrivelmente preparada. Sente-se insegura, como se a casa e o
chão por baixo dela tivessem desaparecido, expondo-a
completamente ao mundo exterior. No entanto, na obstinação do
momento, agarra-se ao conceito da venda. Independentemente
das ferramentas que decida levar, dos objetos domésticos que
possam ser usados como armas, sabe que as vendas são a sua
proteção mais forte.
—  Tragam os vossos cobertores! — Lembra-lhes, ouvindo os
dois pequenos corpos a prepararem-se. Depois entra no quarto
para os ajudar. O Rapaz, pequeno para a idade, mas dono de uma
força que orgulha Malorie, está a tentar decidir entre duas
camisas que são ambas demasiado grandes para ele. Em tempos
pertenceram a um adulto, há muito desaparecido. Malorie
escolhe por ele e observa-o enquanto o seu cabelo negro
desaparece para dentro do tecido e depois volta a emergir pela
gola. No seu estado ansioso, Malorie reconhece que o Rapaz
cresceu um pouco recentemente.
A Rapariga, de tamanho médio para a idade, está a tentar en�ar
um vestido pela cabeça, um vestido que ela e Malorie costuraram
a partir de um lençol velho.
— O ar está frio, Rapariga. Um vestido não serve.
A Rapariga faz uma careta; tem o cabelo louro despenteado do
sono.
—  Eu também visto umas calças, mamã. E temos os nossos
cobertores.
A raiva apodera-se de Malorie. Não quer resistência. Não hoje.
Nem mesmo se a Rapariga tiver razão.
— Hoje não há vestidos.
O mundo lá fora, os centros comerciais e restaurantes vazios,
os milhares de veículos sem uso, os produtos esquecidos nas
prateleiras abandonadas das lojas, tudo exerce pressão sobre a
casa. Tudo sussurra aquilo que os aguarda.
Ela tira um casaco do roupeiro no pequeno quarto ao fundo do
corredor. Depois sai do quarto por aquela que sabe que será a
última vez.
—  Mamã — diz a Rapariga, encontrando-a no corredor. —
Precisamos das buzinas das bicicletas?
Malorie respira fundo.
— Não — responde. — Vamos estar todos juntos. Durante toda a
viagem.
Quando a Rapariga volta a entrar no quarto, Malorie re�ete no
quão patético é que as buzinas de bicicletas sejam o maior
entretenimento das crianças. Brincaram com elas durante anos.
Toda a sua vida, a buzinar de lados opostos da sala. O som forte
costumava irritar Malorie. Mas nunca lhas tirou. Nunca as
escondeu. Mesmo nos momentos ansiosos do início da
maternidade, Malorie compreendia que naquele mundo, qualquer
coisa que �zesse rir as crianças era uma coisa boa.
Mesmo quando as buzinas serviam para assustar Victor.
Oh, as saudades que Malorie tem daquele cão! Nos primeiros
tempos a criar os �lhos sozinha, as suas fantasias de ir para o rio
incluíam Victor, o border collie, sentado ao seu lado no barco a
remos. Victor avisá-la-ia se um animal se aproximasse. Talvez
conseguisse mesmo afugentar algo.
— OK — diz ela, com o corpo ágil apoiado na ombreira da porta
do quarto das crianças. — Pronto. Agora vamos.
Houve alturas, tardes plácidas, noites de tempestade, em que
Malorie lhes disse que este dia podia chegar. Sim, já lhes tinha
falado do rio. De uma viagem. Tivera o cuidado de não lhe chamar
a sua «fuga» porque não conseguia suportar a ideia de eles
viverem o seu dia a dia a pensar que havia algo de que fugir. Em
vez disso, falou-lhes de uma manhã futura em que os acordaria,
apressada, a exigir que se preparassem para deixar a casa para
sempre. Sabia que eles conseguiam detetar a sua incerteza, da
mesma forma que conseguiam ouvir uma aranha a subir pelo
vidro de uma janela por trás da cortina. Durante anos,
mantiveram um pequeno saco de comida no armário da cozinha,
guardado até se estragar, sendo sempre substituído, sempre
reabastecido, a prova de Malorie de que podia acordá-los como
lhes dissera que faria. Sabem, pensava, estudando nervosamente
as cortinas, a comida no armário faz parte de um plano.
E agora esse dia chegou. Nesta manhã. Nesta hora. O nevoeiro.
O Rapaz e a Rapariga dão um passo em frente e Malorie
ajoelha-se diante deles. Veri�ca as vendas. Estão bem �xas.
Naquele momento, olhando de um pequeno rosto para o outro,
Malorie tem a perfeita consciência de que a sua partida começou
�nalmente.
—  Ouçam-me — diz-lhes, agarrando-lhes os queixos. — Hoje
vamos subir o rio num barco a remos. Pode ser uma viagem
longa. Mas é crucial que ambos façam tudo o que eu disser.
Entendem?
— Sim.
— Sim.
—  Está frio lá fora. Têm os vossos cobertores. Têm as vossas
vendas. Neste momento não precisam de mais nada. Entendem?
— Sim.
— Sim.
— Não podem tirar a venda, seja em que circunstância for.Se o
�zerem, vou magoar-vos. Entendem?
— Sim.
— Sim.
—  Preciso dos vossos ouvidos. Preciso que ambos escutem o
mais atentamente que conseguirem. No rio, precisam de escutar
o que está para lá da água, para lá do bosque. Se ouvirem um
animal no bosque, digam-me. Se ouvirem alguma coisa na água,
digam-me. Entendido?
— Sim.
— Sim.
— Não façam perguntas que não tenham a ver com o rio. Tu vais
estar sentado na parte da frente — explica, dando um toque no
Rapaz. Depois dá um toque na Rapariga. — E tu vais estar sentada
na parte de trás. Quando chegarmos ao barco, eu vou guiar-vos
para esses lugares. Eu vou sentada no meio, a remar. Não quero
que falem um com o outro dos vossos lugares no barco a menos
que ouçam algo no bosque. Ou no rio. Entendem?
— Sim.
— Sim.
—  Não vamos parar por nenhum motivo. Não enquanto não
chegarmos ao nosso destino. Eu digo-vos quando chegar a altura.
Se tiverem fome, comam deste saco.
Malorie encosta o saco às costas das pequenas mãos das
crianças.
— Não adormeçam. Não adormeçam. Hoje, mais do que nunca,
preciso dos vossos ouvidos.
— Vamos levar os microfones? — pergunta a Rapariga.
— Não.
Enquanto fala, Malorie olha de um rosto vendado para o outro.
— Quando sairmos desta casa, vamos dar as mãos e caminhar
ao longo do caminho até ao poço. Vamos atravessar a pequena
clareira no bosque atrás da nossa casa. O caminho até ao rio está
coberto de ervas altas. Podemos ter de nos pôr de gatas em
algumas partes e, se isso acontecer, quero que se agarrem ao
meu casaco ou ao casaco um do outro. Entendido?
— Sim.
— Sim.
Parecem assustados?
—  Ouçam. Vamos a um lugar onde nenhum de vocês esteve.
Vamos para longe, tão longe desta casa como nunca fomos. Lá
fora há coisas que vos podem fazer mal, que podem fazer mal à
mamã, se não me ouvirem, agora, esta manhã.
As crianças estão em silêncio.
— Compreendem?
— Sim.
— Sim.
Malorie treinou-os bem.
—  Muito bem — diz ela, com um toque de histeria na voz. —
Está na hora. Vamos partir agora. Vamos partir.
Ela pressiona as cabeças das crianças contra a sua testa.
Depois dá a mão a cada uma delas. Atravessam rapidamente a
casa. Na cozinha, Malorie, trémula, limpa os olhos e tira a sua
própria venda do bolso. Aperta-a bem atrás na cabeça, no seu
longo cabelo escuro. Para, com a mão na maçaneta daporta, da
porta que se abre para o caminho que fez para ir buscar inúmeros
baldes de água.
Está prestes a deixar para trás a casa. A realidade deste
momento é avassaladora.
Quando abre a porta, o ar frio entra e Malorie dá um passo em
frente, com a mente turva de terror e de cenários demasiado
assustadores para mencionar à frente das crianças. Gagueja
enquanto fala, quase a gritar.
— Deem-me a mão. Os dois.
O Rapaz pega na mão esquerda de Malorie. A Rapariga
entrelaça os dedos na direita.
Vendados, saem da casa.
O poço está a 20 metros de distância. Pequenos pedaços de
madeira, em tempos pertencentes a molduras, ladeiam o
caminho, ali colocados para os guiarem. Ambas as crianças
tocaram na madeira com a biqueira dos sapatos inúmeras vezes.
Malorie disse-lhes certa vez que a água era o único medicamento
de que algum dia iam precisar. Por causa disto, sabe Malorie, as
crianças sempre respeitaram o poço. Nunca se queixaram por
terem de ir buscar água com ela.
Junto ao poço, o chão é irregular sob os seus pés. Parece-lhes
pouco natural, macio.
— Aqui está a clareira — grita Malorie.
Ela guia cuidadosamente as crianças. Um segundo caminho
começa a dez metros do poço. A entrada deste caminho é estreita
e bifurca para dentro do bosque. O rio �ca a menos de cem
metros dali. No bosque, Malorie larga momentaneamente as
mãos das crianças para tatear a entrada estreita.
— Agarrem-se ao meu casaco!
Tateia ao longo dos ramos até encontrar uma blusa sem mangas
atada a uma árvore à entrada do caminho. Ela mesma a atou ali há
mais de três anos.
O Rapaz agarra o bolso dela e sente a Rapariga a agarrar o seu.
Malorie grita-lhes enquanto caminha, perguntando
constantemente se estão a segurar os casacos um do outro. Os
ramos das árvores batem-lhe na cara. Ela não grita.
Em pouco tempo chegam à marca que Malorie cravou na terra.
A perna lascada de uma cadeira da cozinha, espetada ali, no
centro do caminho, para a fazer tropeçar, para a reconhecer.
Descobrira o barco a remos quatro anos antes, atracado a
quatro casas de distância da sua. Passou um mês desde a última
vez que o foi ver, mas acredita que ainda lá está. Apesar disso, é
difícil não imaginar o pior. E se alguém o tiver apanhado
primeiro? Outra mulher, não muito diferente dela, a viver a cinco
casas de distância na direção oposta, a usar todos os dias de
quatro anos para reunir coragem para fugir. Uma mulher que em
algum momento tropeçou por aquela mesma margem
escorregadia e tateou o mesmo ponto de salvação, a ponta de aço
do barco a remos.
O ar faz arder os arranhões no rosto de Malorie. As crianças
não reclamam.
Isto não é uma infância, pensa Malorie, guiando-as para o rio.
É então que o ouve. Antes de chegar à doca, ouve o barco a
remos a balançar na água. Para e veri�ca as vendas das crianças,
apertando ambas. Guia-as para as tábuas de madeira.
Sim, pensa, ainda cá está. Da mesma forma que os carros ainda
estão estacionados na rua em frente à sua casa. Da mesma forma
que as casas da sua rua ainda estão vazias.
Está frio, fora do bosque, longe da casa. O som da água tem
tanto de assustador como de excitante. Ajoelhando-se onde crê
que o barco deve estar, ela larga as mãos das crianças e tateia a
ponta de aço. As pontas dos seus dedos encontram primeiro a
corda que o prende.
— Rapaz — diz, puxando a ponta gelada do barco para a doca. —
Na parte da frente. Entra para a parte da frente. — Ela ajuda-o.
Quando ele está instalado, segura-lhe no rosto com as duas mãos
e diz novamente: — Escuta. Para além da água. Escuta.
Diz à Rapariga para �car na doca enquanto desata às cegas a
corda, antes de subir para o banco do meio. Ainda meio
levantada, ajuda a Rapariga a subir a bordo. O barco dá um sacão
violento e Malorie aperta a mão da Rapariga com demasiada
força. A Rapariga não grita.
Há folhas, paus e água no fundo do barco. Malorie vasculha no
meio deles em busca dos remos que escondeu no lado direito do
barco. Os remos estão frios. Molhados. Cheiram a bolor. Ela
prende-os nos encaixes de aço. Parecem-lhe fortes, resistentes
quando usa um para se afastar da doca. E então…
Estão no rio.
A água está calma. Mas há sons. Movimento no bosque.
Malorie pensa no nevoeiro. Espera que tenha ocultado a sua
fuga.
Mas o nevoeiro vai dissipar-se.
— Crianças — diz Malorie, respirando audivelmente —, escutem.
Por �m, depois de quatro anos de espera, de treino e de busca
pela coragem para partir, rema para longe da doca, da margem e
da casa que a protegeu e aos seus �lhos durante o que lhe
pareceu uma vida.
2
Faltam nove meses para as crianças nascerem. Malorie vive com a
irmã, Shannon, numa modesta casa alugada que nenhuma das
duas decorou. Mudaram-se para ali há três semanas, apesar das
preocupações da amiga. Tanto Malorie como Shannon são
mulheres populares e inteligentes, mas na companhia uma da
outra têm tendência para se tornarem con�ituosas, como se viu
no dia em que levaram as suas caixas para dentro da casa.
— Estava a pensar que faz mais sentido o quarto maior ser para
mim — disse Shannon, no patamar do segundo piso. — Uma vez
que tenho a cómoda maior.
—  Oh, vá lá — respondeu Malorie, segurando uma caixa de
livros por ler. — A janela desse quarto é melhor.
As irmãs debateram o assunto durante muito tempo,
cautelosamente tentando não dar razão aos amigos e familiares,
começando a discutir logo na primeira tarde. Por �m, Malorie
concordou que deviam atirar uma moeda ao ar, que saiu em favor
de Shannon, resultado que até hoje Malorie acredita ter sido
manipulado.
Neste momento, Malorie não está a pensar nas pequenas coisas
que a irmã faz que a enlouquecem. Não está a limpar,
silenciosamente, a confusão de Shannon, a fechar as portas dos
armários, a seguir o seu rasto de camisolas e meias espalhadas
pelos corredores. Não está a bufar, passivamente, a abanar a
cabeça enquanto liga a máquina de lavar loiça ou enquanto afasta
uma das caixas por abrir de Shannon do centro da sala de estar,
onde as estorva às duas. Em vez disso, está de pé diante do
espelho da casa de banho do primeiro andar, nua, a estudar a sua
barriga no re�exo.
Não é a primeira vez que te falha o período, diz a si própria. Mas
não serve de consolo, porque há semanas que se sente ansiosa,
sabendo que devia ter tido mais cuidado com Henry Martin.
Tem o cabelo negro caído sobre os ombros. Os lábios estão
voltados para baixo numa curiosa expressão triste. Pousa as mãos
na barriga lisa e acena lentamente com a cabeça.
Independentemente do que diga a si própria, sente-se grávida.
— Malorie! — grita Shannon da sala. — O que é que estás a fazer
aí?
Malorie não responde. Vira-se de lado e inclina a cabeça. Os
seus olhos azuis parecem cinzentos sob a luz pálida da casa de
banho. Planta a palma de uma mão no linóleo cor-de-rosa do
lavatório e arqueia as costas. Está a tentar encolher a barriga,
como se isso pudesse provar que não há vida lá dentro.
— Malorie! — chama novamente Shannon. — Mais uma notícia
na televisão! Aconteceu algo no Alasca.
Malorie ouve a irmã, mas naquele momento não se importa
muito com o que acontece no mundo exterior.
Nos últimos dias, a Internet explodiu com uma notícia a que as
pessoas estavam a chamar «o Relatório Rússia». Neste, um
homem que seguia no lugar do passageiro de um camião em
trânsito ao longo de uma autoestrada coberta de neve nos
arredores de São Petersburgo pediu ao amigo, que ia ao volante,
para encostar e atacou-o, arrancando-lhe os lábios com as unhas.
Depois suicidou-se na neve, usando uma serra que havia no
compartimento de carga do camião. Uma história horrível, mas
cujo destaque Malorie atribui à forma aparentemente absurda
que a Internet tem de tornar famosos acontecimentos aleatórios.
Mas depois surgiu um novo caso. Circunstâncias semelhantes.
Desta vez em Yakutsk, a cerca de 8000 quilómetros a leste de São
Petersburgo. Neste, uma mãe, de acordo com todos os
testemunhos «estável», enterrou os �lhos vivos no quintal da
família antes de se suicidar com pedaços a�ados de pratos
partidos. E um terceiro caso, em Omsk, naRússia, quase 3000
quilómetros a sudoeste de São Petersburgo, surgiu online e
rapidamente se tornou um dos assuntos mais discutidos em
todas as redes sociais. Desta vez havia vídeo. Enquanto tivera
estômago, Malorie vira um homem a brandir um machado, com a
barba vermelha de sangue, a tentar atacar o homem que estava a
�lmá-lo. Por �m conseguiu. Mas Malorie não viu essa parte.
Tentou deixar de seguir o assunto. Shannon, porém, sempre mais
dramática, insistia em transmitir-lhe as notícias assustadoras.
— Alasca — repete Shannon do outro lado da porta da casa de
banho. — É na América, Malorie!
O cabelo louro de Shannon denuncia as raízes �nlandesas da
mãe das duas. Malorie parece-se mais com o pai: olhos fortes e
fundos, e a pele suave e clara de alguém do Norte. Tendo sido
criadas na Península Superior, ambas tinham sonhado viver no
sul do estado, perto de Detroit, onde imaginavam que havia
festas, concertos, oportunidades de emprego e homens em
abundância.
Esta última parte não se revelou frutuosa para Malorie até
conhecer Henry Martin.
— Porra — grita Shannon. — Também pode ter havido algo no
Canadá. Isto é grave, Malorie. O que é que estás aí a fazer?
Malorie abre a torneira e deixa a água fria correr-lhe sobre os
dedos. Molha a cara. Olhando para o espelho, pensa nos pais,
ainda na Península Superior. Ainda não sabem de Henry Martin.
Ela nem sequer falou com ele desde a única noite que passaram
juntos. No entanto, ali está, provavelmente ligada a ele para
sempre.
Subitamente, a porta da casa de banho abre-se. Malorie
estende a mão para uma toalha.
— Credo, Shannon.
—  Ouviste o que eu disse, Malorie? A notícia está por toda a
parte. As pessoas estão a começar a dizer que está relacionado
com a visão de algo. Não é estranho? Ainda agora ouvi a CNN
dizer que é a única constante em todos os casos. Que as vítimas
viram algo antes de atacarem as pessoas e de se suicidarem. Dá
para acreditar? Dá?
Malorie vira-se lentamente para a irmã. O seu rosto está
inexpressivo.
— Estás bem, Malorie? Não estás com boa cara.
Malorie começa a chorar. Morde o lábio inferior. Agarrou a
toalha, mas não se embrulhou nela. Ainda está de pé diante do
espelho como se estivesse a examinar a sua barriga nua. Shannon
repara.
— Oh, merda — diz Shannon. — Estás com medo de estar…
Malorie já está a acenar que sim. As irmãs aproximam-se na
casa de banho cor-de-rosa e Shannon abraça Malorie,
acariciando-lhe o cabelo negro, acalmando-a.
— OK — diz. — Vamos ter calma. Vamos fazer um teste. É isso
que as pessoas fazem. OK? Não te preocupes. Aposto que mais de
metade das pessoas que fazem testes descobrem que não estão
grávidas.
Malorie não responde. Limita-se a soltar um suspiro profundo.
— OK — diz Shannon. — Vamos lá.
3
Que distância alcança a audição de uma pessoa?
Remar de olhos vendados é ainda mais difícil do que Malorie
imaginara.
O barco já chocou com as margens muitas vezes e �cou preso
durante vários minutos, tempo em que ela se viu cercada por
visões de mãos invisíveis que se estendem para as vendas que
cobrem os olhos das crianças. Dedos que emergem e voltam a
desaparecer na água, na lama onde o rio encontra a terra. As
crianças não gritaram, não se queixaram. São demasiado
pacientes para isso.
Mas até onde alcança a audição de uma pessoa?
O Rapaz ajudou-a a soltar o barco, levantando-se e empurrando
um tronco coberto de musgo, e agora Malorie rema novamente.
Apesar destes primeiros percalços, Malorie sente que estão a
avançar. É revigorante. Os pássaros cantam nas árvores agora que
o sol nasceu. Os animais andam por entre a folhagem nos
bosques que os rodeiam. Os peixes saltam da água, provocando
pequenos respingos que eletri�cam os nervos de Malorie. Tudo
isto é ouvido. Nada é visto.
Desde que nasceram que as crianças foram treinadas para
compreender os sons da �oresta. Em bebés, Malorie tapava-lhes
os olhos com t-shirts e levava-os ao limiar do bosque. Ali, apesar
de saber que eram demasiado pequenos para entenderem o que
lhes dizia, descrevia-lhes os sons da �oresta.
O restolhar de folhas, dizia. Um animal pequeno, como um coelho.
Sempre consciente de que podia ser algo muito pior. Pior ainda
do que um urso. Nesses dias, e nos dias que se seguiram, quando
as crianças já tinham idade su�ciente para aprenderem, Malorie
treinou-se como as tinha treinado a elas. Mas nunca ouviria tão
bem como elas haviam de ouvir um dia. Tinha 24 anos quando
conseguiu perceber a diferença entre uma gota de chuva e uma
batida leve na janela, contando apenas com a audição. Ela tinha
sido educada com visão. Isso faria dela uma professora
desadequada? Quando levava folhas para dentro de casa e pedia
às crianças que identi�cassem a diferença entre ela a pisar uma e
a apertar uma na mão, teriam sido as lições certas a dar-lhes?
Até onde alcança a audição de uma pessoa?
Malorie sabe que o Rapaz gosta de peixes. Frequentemente
apanhava um no rio, com o auxílio de uma cana de pesca
ferrugenta feita com um guarda-chuva que tinha encontrado na
cave. O Rapaz gostava de o ver agitar-se no balde do poço na
cozinha. Também começara a desenhá-los. Malorie lembra-se de
pensar que teria de apanhar todos os animais do planeta e levá-
los para casa para as crianças saberem com o que se pareciam.
De que outras coisas gostariam se tivessem a oportunidade de as
ver? O que acharia a Rapariga de uma raposa? De um guaxinim?
Até os carros eram um mito que tinha como única referência os
desenhos amadores de Malorie. Botas, arbustos, jardins, montras,
prédios, ruas e estrelas. Teria de recriar o planeta para eles. Mas
o melhor que conseguiram foram peixes. E o Rapaz adorava-os.
Agora, no rio, ouvindo uma nova agitação na água, ela tem
medo que a curiosidade o leve a tirar a venda.
Até onde alcança a audição de uma pessoa?
Malorie precisa que as crianças ouçam o que existe nas árvores,
no vento, nas margens de terra que levam a um mundo inteiro de
criaturas vivas. O rio é um an�teatro, pensa Malorie, enquanto
rema.
Mas também é um túmulo.
As crianças têm de escutar.
Malorie não consegue afastar visões de mãos a surgirem da
escuridão, a agarrarem as cabeças das crianças, a desatarem
deliberadamente aquilo que as protege.
Respirando com di�culdade e a suar, Malorie reza para que seja
possível alcançar a segurança con�ando na audição.
4
Malorie conduz. As irmãs usam o seu carro, um Ford Festiva de
1999, porque tem mais gasolina. Estão a apenas cinco quilómetros
de casa, mas já há sinais de que as coisas mudaram.
—  Olha! — diz Shannon, apontando para várias casas. —
Cobertores a tapar as janelas.
Malorie está a tentar prestar atenção ao que Shannon diz, mas
os seus pensamentos regressam constantemente à sua barriga. A
explosão do Relatório Rússia nos media preocupa-a, mas não o
leva tão a sério como a irmã. As outras pessoas na Internet estão
mais céticas, tal como Malorie. Ela leu blogues, especialmente o
Tolices, que publica fotogra�as de pessoas a tomarem precauções
e depois adiciona-lhes legendas cómicas. À medida que Shannon
alternadamente aponta para fora do carro e protege os olhos,
Malorie lembra-se de uma delas. Era uma mulher a tapar a janela
com um cobertor. Por baixo, a legenda dizia: Querido, o que é que
achas de mudarmos a cama para aqui?
— Acreditas nisto? — pergunta Shannon.
Malorie assente em silêncio. Vira à esquerda.
—  Vamos — diz Shannon. — Tens de admitir que isto está a
tornar-se interessante.
Em parte, Malorie concorda. É interessante. No passeio, um
casal passa com o jornal levantado à altura das têmporas. Alguns
condutores têm os espelhos retrovisores virados para cima.
Distraidamente, Malorie pergunta-se se estes são os sinais de
uma sociedade a começar a acreditar que se passa algo de errado.
E se sim, o quê?
—  Não entendo — diz Malorie, em parte tentando distrair-se
dos seus pensamentos e em parte ganhando algum interesse.
— O que é que não entendes?
—  Eles acham que não é seguro olhar para a rua? Olhar para
parte nenhuma?
— Sim — responde Shannon. — É exatamente isso que acham.É
o que tenho estado a dizer-te.
Malorie diz a si própria que Shannon sempre foi muito
dramática.
—  Bem, parece-me uma loucura — responde. — E olha para
aquele tipo!
Shannon olha para onde Malorie está a apontar. Depois desvia o
olhar. Um homem de fato caminha com uma bengala de cego.
Tem os olhos fechados.
—  Ninguém tem vergonha de se comportar assim — diz
Shannon, com o olhar �xo nos sapatos. — É para veres o quanto
isto se tornou estranho.
Quando entram na Stokely’s Drugs, Shannon tem uma mão
levantada à frente dos olhos. Malorie repara e depois olha para o
outro lado do parque de estacionamento. Os outros estão a fazer
o mesmo.
— O que é que tens medo de ver? — pergunta ela.
— Ainda ninguém sabe a resposta.
Malorie já viu o grande letreiro amarelo da drogaria mil vezes.
Mas nunca lhe pareceu tão pouco convidativo.
Vamos lá comprar o teu primeiro teste de gravidez, pensa, saindo
do carro. As irmãs atravessam o parque de estacionamento.
— Acho que estão onde diz medicamentos — sussurra Shannon,
abrindo a porta da loja, ainda de olhos tapados.
— Shannon, para.
Malorie dirige-se para a secção de planeamento familiar. Há as
marcas First Response, Clearblue Easy, New Choice e seis outras.
—  Há tantos — diz Shannon, tirando uma embalagem da
prateleira. — Já ninguém usa preservativos?
— Qual é que levo?
Shannon encolhe os ombros.
— Este parece-me tão bom como qualquer outro.
Um homem ao fundo do corredor abre uma caixa de ligaduras.
Ergue uma delas à altura dos olhos.
As irmãs levam o teste à caixa. Andrew, que é da idade de
Shannon e uma vez a convidou para sair, está a trabalhar. Malorie
quer que aquele momento acabe depressa.
— Uau — diz Andrew, estudando a pequena caixa.
—  Cala-te, Andrew — responde Shannon. — É para a nossa
cadela.
— Vocês agora têm uma cadela?
— Sim — responde Shannon, pegando no saco onde ele guardou
a embalagem. — E ela é muito popular no nosso bairro.
O caminho até casa é uma tortura para Malorie. O saco de
plástico entre os dois assentos sugere que a sua vida já mudou.
— Olha — diz Shannon, apontando para a rua com a mesma mão
que tinha estado a usar para proteger os olhos.
As irmãs abrandam e param. À porta de uma casa na esquina
veem uma mulher em cima de um pequeno escadote, a pregar
uma manta por cima da janela saliente da casa.
— Quando chegar a casa vou fazer o mesmo — diz Shannon.
— Shannon.
A rua delas, normalmente cheia de crianças, está vazia. Não se
vê o triciclo azul coberto de autocolantes. Não se veem bolas e
tacos de basebol.
Quando entram em casa, Malorie dirige-se para a casa de
banho e Shannon liga imediatamente a televisão.
— Acho que só precisas de fazer chichi para cima dele, Malorie!
— grita Shannon.
Na casa de banho, Malorie consegue ouvir o noticiário.
Quando Shannon chega à porta da casa de banho, Malorie já
está a olhar �xamente para a risca cor-de-rosa e a abanar a
cabeça.
— Oh, céus! — exclama Shannon.
— Tenho de telefonar à mãe e ao pai — diz Malorie. Parte dela já
está a preparar-se, sabendo que, apesar de ser solteira, vai ter
aquela criança.
— Tens de ligar ao Henry Martin — acrescenta Shannon.
Malorie lança um olhar rápido à irmã. Desde o início daquele
dia que sabe que Henry Martin não terá um papel importante na
educação daquela criança. De certa forma, já o aceitou. Shannon
dirige-se com a irmã para a sala, onde caixas cheias de objetos
por desencaixotar ocupam o espaço em frente ao televisor. No
ecrã passa um cortejo fúnebre. Os jornalistas da CNN estão a
discuti-lo. Shannon avança para o televisor e baixa o volume.
Malorie senta-se no sofá, pega no telemóvel e liga a Henry
Martin.
Ele não atende, por isso ela envia-lhe uma mensagem.
Assunto importante. Liga-me quando puderes.
Subitamente, Shannon salta do sofá e grita.
—  Viste aquilo, Malorie? Um incidente no Michigan! Acho que
disseram que foi na Península Superior!
Malorie já está a pensar nos pais. Quando Shannon volta a
aumentar o volume, as irmãs descobrem que um casal de idosos
de Iron Mountain foi encontrado pendurado numa árvore num
bosque próximo. O apresentador do noticiário diz que se
enforcaram com os cintos.
Malorie telefona à mãe. Esta atende ao �m de dois toques.
— Malorie.
— Mãe.
— Imagino que estejas a ligar por causa das notícias?
— Não. Estou grávida, mãe.
—  Oh, meu Deus, Malorie. — A mãe �ca em silêncio por um
momento. Malorie consegue ouvir a televisão em pano de fundo.
— Estás numa relação séria com alguém?
— Não, foi um acidente.
Agora Shannon está de pé em frente ao televisor. Tem os olhos
arregalados. Está a apontar para o televisor, como se quisesse
recordar a Malorie o quão importante aquilo é. A mãe está em
silêncio, do outro lado da linha.
— Estás bem, mãe?
— Bem, agora estou mais preocupada contigo, querida.
— Sim. Foi uma má altura.
— De quanto tempo estás?
— Cinco semanas, acho. Talvez seis.
— E vais manter a criança? Já tomaste essa decisão?
— Sim. Quero dizer, acabo de descobrir. Há minutos. Mas vou.
Sim.
— Já disseste ao pai da criança?
— Escrevi-lhe. Também lhe vou telefonar.
Agora Malorie faz uma pausa. Depois continua.
— Sentes-te segura aí, mãe? Estás bem?
— Não sei, não sei mesmo. Ninguém aqui sabe e estamos todos
muito assustados. Mas neste momento estou mais preocupada
contigo.
No ecrã, uma mulher, com a ajuda de um diagrama, explica o
que pode ter acontecido. Está a desenhar uma linha de uma
pequena estrada onde o carro do casal foi encontrado
abandonado. A mãe de Malorie está a dizer-lhe que conhece
alguém que conhecia o casal de idosos. O sobrenome deles era
Mikkonen, diz. A mulher no ecrã está agora junto ao que parece
relva ensanguentada.
— Meu Deus — diz Shannon.
— Oh, quem me dera que o teu pai estivesse em casa — diz a
mãe. — E tu estás grávida. Oh, Malorie.
Shannon está a agarrar no telefone. Está a perguntar se a mãe
sabe mais pormenores do que os que surgem nas notícias. O que
dizem as pessoas da zona? Foi o único incidente? As pessoas
estão a tomar precauções?
Enquanto Shannon continua a falar descontroladamente para o
telefone, Malorie levanta-se do sofá. Dirige-se para a porta de
entrada e abre-a. Olhando para os dois lados da rua, pergunta-se:
Isto será mesmo grave?
Não se veem vizinhos nos jardins. Não há rostos à janela das
outras casas. Um carro passa e Malorie não consegue ver o rosto
do condutor. Está a escondê-lo com a mão.
No relvado em frente à entrada está o jornal daquela manhã.
Malorie avança para ele. A manchete da primeira página fala do
número crescente de incidentes. Diz apenas: MAIS UM. Shannon
provavelmente já lhe contou tudo o que o jornal diz. Malorie pega
nele e, virando-o, para ao ver algo na última página.
É um anúncio classi�cado. Uma casa em Riverbridge está a
abrir as portas a estranhos. Uma «casa segura», diz. Um refúgio.
Um lugar que os donos esperam que sirva de «santuário» à
medida que as notícias tenebrosas aumentam de dia para dia.
Malorie, sentindo os primeiros sinais do pânico, volta a olhar
para a rua. Vê a porta de um vizinho a abrir-se e depois a fechar-
se rapidamente. Ainda com o jornal na mão, Malorie olha por
cima do ombro para a sua casa, onde ainda ecoam os sons da
televisão. Lá dentro, na parede mais afastada da sala, Shannon
está a prender um cobertor por cima das janelas.
— Anda — diz Shannon. — Entra. E fecha essa porta.
5
Faltam seis meses para as crianças nascerem. A barriga de
Malorie já se nota. Todas as janelas da casa estão tapadas com
cobertores. A porta da frente nunca é deixada destrancada e
nunca é deixada aberta. Notícias de acontecimentos inexplicáveis
têm surgido com uma frequência alarmante. O que em tempos
foram notícias de última hora duas vezes por semana surge agora
todos os dias. Membros do governo são entrevistados na
televisão. Histórias de lugares tão a leste como o Maine e tão a
sul como a Florida levam as duas irmãs a tomarem precauções.
Shannon, que lê dezenas de blogues todos os dias, teme um
emaranhado de ideias, um pouco de tudo o que lê. Malorie não
sabe no que acreditar. Notícias novassurgem na Internet de hora
a hora. É a única coisa de que toda a gente fala nas redes sociais e
é o único tópico das notícias. Novos websites são inteiramente
dedicados às mais recentes informações sobre o assunto. Um site
apresenta apenas um mapa global, com pequenos rostos
vermelhos sobre as cidades em que algo aconteceu. Da última vez
que Malorie o consultou, havia mais de 300 rostos. Na Internet
chamam-lhe «o Problema». Existe uma crença comum muito
difundida de que o que quer que seja «o Problema», começa sem
dúvida quando a pessoa vê algo.
Malorie recusou-se a acreditar o máximo de tempo que
conseguiu. As irmãs discutiam constantemente, Malorie citando
as páginas que diziam que era histeria de massas, Shannon
citando tudo o resto. Mas ao �m de pouco tempo Malorie teve de
ceder, quando as páginas que frequentava começaram a publicar
histórias sobre os seus entes queridos e os autores desses
blogues admitiram alguma preocupação.
Dúvida, pensou Malorie. Até entre os céticos.
Durante dias Malorie experienciou uma espécie de vida dupla.
Nenhuma das irmãs voltou a sair de casa. Certi�cavam-se ambas
de que as janelas estavam cobertas. Viam a CNN, a MSNBC e a
Fox News até �carem �sicamente incapazes de ver as mesmas
histórias a repetirem-se. E enquanto Shannon assumia uma
postura mais séria e até mesmo solene, Malorie agarrava-se a
uma réstia de esperança de que tudo aquilo simplesmente
desaparecesse.
Mas não desapareceu. E piorou.
Ao �m de três meses a viverem como reclusas, os piores medos
de Malorie e Shannon concretizaram-se quando os pais pararam
de atender o telefone. Também já não respondiam aos e-mails.
Malorie queria conduzir até à Península Superior, mas Shannon
recusava-se.
—  Vamos ter de esperar que estejam em segurança, Malorie.
Vamos esperar que o telefone tenha sido desligado. Conduzir
para onde quer que seja nesta altura seria uma estupidez. Nem
que fosse até ao supermercado, e conduzir nove horas seria um
suicídio.
«O Problema» terminava sempre em suicídio. A Fox News tinha
dito a palavra tantas vezes que agora já usavam sinónimos.
«Autodestruição», «Autoimolação», «Hari-kari». Um jornalista
descreveu-o como «eliminação pessoal», expressão que não
pegou. As instruções do governo eram reproduzidas no ecrã. Foi
ordenado um recolher obrigatório nacional. As pessoas eram
aconselhadas a trancar as portas, cobrir as janelas e, acima de
tudo, a não olharem para a rua. Na rádio, a música foi
inteiramente substituída por debates.
Um blackout, pensa Malorie. O mundo, o exterior, está a ser
desligado.
Ninguém tem respostas. Ninguém sabe o que se passa. As
pessoas estão a ver algo que as leva a fazer mal aos outros. A
fazer mal a si próprias.
As pessoas estão a morrer.
Mas porquê?
Malorie tenta acalmar-se, concentrando-se na criança que
cresce dentro de si. Parece estar a ter todos os sintomas
mencionados no seu livro, Grávida. Pequenos sangramentos.
Peito dorido. Fadiga. Shannon destaca as oscilações de humor de
Malorie, mas são os desejos que a enlouquecem. Demasiado
assustadas para conduzirem até à loja, as irmãs �cam reduzidas
às coisas que acumularam pouco depois de terem comprado o
teste de gravidez. Mas os gostos de Malorie mudaram. As
comidas normais enojam-na. Por isso combina coisas. Brownies
de laranja. Frango com molho cocktail. Peixe cru com tostas.
Sonha com gelados. Frequentemente, olhando para a porta da
rua, pensa como seria fácil sentar-se ao volante do carro e
conduzir até à loja. Sabe que demoraria apenas 15 minutos. Mas
sempre que se prepara para o fazer, a televisão transmite mais
uma história horrenda. E, além disso, quem sabe se os
funcionários das lojas continuam a ir trabalhar?
— O que é que achas que as pessoas estão a ver? — pergunta
Malorie a Shannon.
— Não sei, Mal. Não sei mesmo.
Fazem constantemente esta pergunta uma à outra. Surgem
imensas teorias na Internet. Todas aterrorizam Malorie. Doença
mental resultante das ondas de rádio da tecnologia sem �os é
uma delas. Um salto evolutivo errado da humanidade é outra. Os
fãs do New Age dizem que é por a humanidade estar em contacto
com um planeta prestes a explodir ou com um Sol a morrer.
Há pessoas que acreditam que há criaturas lá fora.
O governo não diz nada a não ser para as pessoas trancarem a
porta.
Malorie, sozinha, senta-se no sofá, massajando lentamente a
barriga enquanto vê televisão. Preocupa-a não haver nada
positivo para ver e a possibilidade de o bebé sentir a sua
ansiedade. O livro Grávida disse-lhe que aconteceria. O bebé
experiencia as emoções da mãe. Ainda assim, não consegue
desviar o olhar do ecrã. Numa secretária encostada à parede
atrás dela, o computador portátil está aberto e ligado. O rádio
toca baixinho. Em conjunto, dão a Malorie a sensação de estar
numa sala de guerra. No centro de tudo, enquanto tudo se
desmorona. É avassalador. E está a tornar-se aterrador. Já não há
anúncios. E os jornalistas fazem longas pausas, revelando a sua
surpresa ao receberem as notícias em direto.
Por cima de todo este burburinho dos media, Malorie ouve
Shannon a mexer-se no segundo andar.
Então, enquanto Gabriel Townes, um dos principais jornalistas
da CNN, lê em silêncio uma folha de papel que acaba de receber,
Malorie ouve um estrondo vindo de cima. Para.
— Shannon! — chama. — Estás bem?
Gabriel Townes não parece estar bem. Tem aparecido muito na
televisão nos últimos tempos. A CNN revelou que muitos dos seus
repórteres deixaram de se apresentar para trabalhar. Townes tem
dormido lá. «Atravessamos isto juntos» é o seu novo slogan. O seu
cabelo já não está impecável. Usa pouca maquilhagem. Mais
alarmante é o tom exausto com que transmite as notícias. Parece
deprimido.
—  Shannon? Vem cá. Parece que o Townes acaba de receber
uma atualização.
Mas não obtém resposta. Do andar de cima vem apenas
silêncio. Malorie levanta-se e baixa o som da televisão.
— Shannon?
Baixinho, Gabriel Townes está a discutir uma decapitação em
Toledo. É a menos de 130 quilómetros de onde Malorie está a
assistir.
— Shannon?! O que é que estás a fazer aí em cima?
Não obtém resposta. Townes fala baixinho na televisão. Não há
grá�cos a acompanhar o relato. Não há música. Não há peças
intercalares.
Malorie, de pé no centro da sala, está a olhar para o teto. Baixa
ainda mais o volume da televisão e depois desliga o rádio e
dirige-se para as escadas.
Junto ao corrimão, ergue lentamente o olhar para o patamar
alcatifado. As luzes estão desligadas, mas um pequeno raio do
que parece ser a luz do sol re�ete-se na parede. Pousando a mão
no corrimão de madeira, Malorie dá um passo para a alcatifa.
Olha por cima do ombro, para a porta de entrada, e imagina uma
amálgama de todas as notícias que ouviu.
Começa a subir as escadas.
— Shannon?
Agora está no topo. A tremer. Avançando pelo corredor, vê a luz
do sol a vir do quarto de Shannon. Lentamente, aproxima-se da
porta aberta e olha lá para dentro.
Um canto da janela está exposto. Uma parte do cobertor que se
soltou está pendurada.
Malorie desvia rapidamente o olhar. Há silêncio e um ligeiro
zumbido vindo da televisão do andar de baixo.
— Shannon?
Ao fundo do corredor, a porta da casa de banho está aberta. A
luz está acesa. Malorie caminha para ela. Ali, sustém a respiração
e vira-se para olhar.
Shannon está no chão, voltada para o teto. Tem uma tesoura
cravada no peito. Está rodeada de sangue, que forma uma poça
nos mosaicos do chão. Parece impossível que o corpo dela
pudesse ter tanto sangue.
Malorie grita, agarrando-se à ombreira da porta, e deixa-se cair
para o chão, a chorar. A luz forte da casa de banho expõe todos
os detalhes. Os olhos imóveis da irmã. A forma como a blusa de
Shannon se enterra no peito juntamente com as lâminas da
tesoura.
Malorie rasteja até à banheira e vomita. O sangue da irmã cola-
se a ela. Tenta despertar Shannon, mas sabe que isso não vai
acontecer. Levanta-se, falando com Shannon, dizendo-lhe que vai
buscar ajuda. Limpando o sangue das mãos, Malorie corre para o
fundo das escadas e encontra o telemóvel no sofá. Ligapara a
polícia. Ninguém atende. Volta a ligar. Não obtém resposta.
Depois liga aos pais. Continua a não obter resposta. Vira-se e
corre para a porta da rua. Tem de ir buscar ajuda. Agarra a
maçaneta da porta, mas não é capaz de a rodar.
Meu Deus, pensa Malorie. A Shannon nunca faria isto
voluntariamente. Meu Deus, é verdade! Há qualquer coisa lá fora.
E o que quer que Shannon tenha visto deve estar perto da casa.
Um pedaço de madeira é tudo o que a separa daquilo que
matou a sua irmã. Do que a sua irmã viu.
Do outro lado da madeira da porta ouve-se o vento. Não há
mais nenhum som. Não há carros. Não há vizinhos. Apenas
quietude.
Está sozinha. Subitamente, em agonia, percebe que precisa de
alguém. Precisa de segurança. Tem de encontrar uma forma de
sair daquela casa.
Com a imagem de Shannon gravada na sua mente, Malorie
corre para a cozinha. Ali, de debaixo do lava-loiça, tira uma pilha
de jornais. Folheia-os, maníaca. A respirar com di�culdade e de
olhos arregalados, consulta a última página de cada um.
Por �m encontra-o.
O anúncio classi�cado. Riverbridge. Estranhos a convidarem
estranhos para a sua casa. Malorie volta a lê-lo. Depois lê-o mais
uma vez. Deixa-se cair de joelhos, com o jornal apertado nas
mãos.
Riverbridge �ca a 20 minutos dali. Shannon viu algo lá fora, algo
que a matou. Malorie tem de ir para um lugar seguro com o seu
�lho.
Subitamente, a respiração pesada dá lugar a um �uxo
interminável de lágrimas quentes. Não sabe o que fazer. Nunca
teve tanto medo. Tudo dentro dela parece quente, como se
estivesse a arder.
Chora ruidosamente. Através das lágrimas, volta a ler o anúncio.
E as lágrimas caem para cima do jornal.
6
— O que é, Rapaz?
— Ouviste isto?
— O quê? O que é que ouviste? Fala!
— Escuta.
Malorie escuta. Para de remar e escuta. Há o som do vento. O
som do rio. O grasnar de pássaros ao longe e a agitação ocasional
de pequenos animais por entre as árvores. Há o som da sua
própria respiração e os seus batimentos cardíacos. E para além
de todo este ruído, algures dentro dele, há um som que a enche
imediatamente de medo.
Há algo na água com eles.
— Não falem! — sibila Malorie.
As crianças �cam em silêncio. Ela pousa os cabos dos remos
sobre as pernas dobradas e �ca imóvel.
Há algo grande na água. Algo que emerge e chapinha.
Apesar de todo o seu trabalho para proteger as crianças da
loucura, Malorie interroga-se se as terá su�cientemente bem
preparado para as realidades antigas.
Tais como animais selvagens que reclamariam um rio que os
seres humanos deixaram de frequentar.
O barco a remos inclina-se para a esquerda de Malorie. Ela
sente o calor de algo a tocar no aro de aço onde a ponta dos
remos está pousada.
Os pássaros nas árvores calam-se.
Ela sustém a respiração, pensando nas crianças.
O que é que está a brincar com a proa do seu barco?
Será uma criatura? pensa, histérica. Por favor, não, Deus, que
seja um animal. Por favor!
Malorie sabe que mesmo que as crianças tirassem as vendas,
mesmo que gritassem antes de enlouquecer, ainda assim ela não
abriria os olhos.
Sem o impulso dos remos, o barco começa a mover-se
novamente. Ela agarra num dos remos e prepara-se para o
brandir.
Mas é então que ouve o som da água a abrir-se. A coisa está em
movimento. Parece mais distante. Malorie respira tão depressa
que arqueja.
Ouve uma agitação entre os ramos na margem à sua esquerda e
imagina que a coisa rastejou para a beira do rio.
Ou talvez tenha caminhado.
Estará ali uma criatura? A estudar os ramos das árvores e a
lama aos seus pés?
Pensamentos como estes recordam-lhe Tom. O doce Tom, que
passou todas as horas de todos os dias a tentar descobrir como
sobreviver naquele horrível novo mundo. Deseja que ele ali
estivesse. Ele saberia a origem daquele som.
É um urso-negro, diz para si própria.
O canto dos pássaros regressa. A vida nas árvores continua.
—  Portaram-se bem — arqueja Malorie. Tem a voz abafada do
stress.
Começa a remar e pouco depois o som da Rapariga a brincar
com as peças do puzzle mistura-se com o som dos remos na
água.
Ela imagina as crianças, vendadas com os seus panos negros, o
sol a expô-las à visibilidade, à deriva pela corrente abaixo. A sua
própria venda está apertada em volta da cabeça, húmida. Irrita-
lhe a pele junto às orelhas. Às vezes, consegue ignorar isto.
Outras vezes, só consegue pensar em coçar-se. Apesar do frio,
mergulha regularmente as pontas dos dedos na água e molha o
tecido onde a arranha. Mesmo por cima das orelhas. Na cana do
nariz. Na parte de trás da cabeça, onde está o nó. Molhar o tecido
ajuda, mas Malorie nunca se habituará completamente a sentir o
tecido contra o rosto. Mesmo os seus olhos, pensa enquanto
rema, mesmo as suas pestanas se ressentem do tecido.
Um urso-negro, diz novamente a si própria.
Mas com pouca convicção.
Debates como este orientaram todas as ações de Malorie
durante os últimos quatro anos e meio. Desde o momento em
que decidiu responder ao anúncio no jornal e que chegou à casa
em Riverbridge. Todos os sons que ouviu desde então lhe
trouxeram visões de coisas muito piores do que qualquer animal.
— Vocês �zeram um bom trabalho — diz Malorie às crianças, a
tremer. A intenção é tranquilizá-las, mas a sua voz denuncia
medo.
7
Riverbridge.
Malorie já tinha estado naquela zona uma vez, havia vários anos.
Fora numa festa de Ano Novo. Mal se recorda do nome da
rapariga que a organizou. Marcy qualquer coisa. Maribel, talvez.
Shannon conhecia-a, e Shannon conduzira, naquela noite. As
estradas estavam cobertas de neve derretida. Montes de neve
cinzenta e suja ladeavam as estradas secundárias. As pessoas
usaram o gelo do telhado para as bebidas. Alguém se pôs seminu
e escreveu 2009 na neve. Agora estamos no pico do verão, a meio
de julho, e é Malorie quem conduz. Assustada, sozinha e a sofrer.
O caminho é agonizante. Seguindo a não mais de 60 km/h,
Malorie procura freneticamente sinais nas ruas, outros carros.
Fecha os olhos e depois volta a abri-los, ainda a conduzir.
As estradas estão desertas. Todas as casas por que passa têm
cobertores ou tábuas a cobrir as janelas. As montras estão vazias.
Os parques de estacionamento dos centros comerciais estão
desertos. Ela mantém o olhar �xo na estrada imediatamente à sua
frente e conduz, segundo o caminho marcado no mapa ao seu
lado. Sente as mãos fracas sobre o volante. Tem os olhos doridos
de tanto chorar. Sente uma culpa insuportável por ter deixado a
irmã, morta, no chão da casa de banho da sua casa.
Não a enterrou. Simplesmente partiu.
Os hospitais não atenderam os seus telefonemas. As casas
funerárias também não. Malorie cobrira-a parcialmente, com
uma écharpe azul e amarela que Shannon adorava.
A emissão de rádio desaparece e volta. Um homem está a
discutir a possibilidade de guerra. Se a humanidade se unir, diz
ele, mas depois só se ouve estática. Passa por um carro
abandonado à beira da estrada. As portas estão abertas. Um
casaco pende do lugar do passageiro e toca no chão da rua.
Malorie volta rapidamente o olhar para a frente. Depois fecha os
olhos. Depois abre-os.
O rádio está a funcionar. O homem ainda está a falar da guerra.
Algo se move para a direita e ela vê-o pelo canto do olho. Não
olha diretamente. Fecha o olho direito. À sua frente, no meio da
estrada, um pássaro pousa e depois volta a levantar voo. Quando
Malorie chega a esse ponto, vê que o pássaro estava interessado
num cão morto. Malorie passa por cima dele. O carro ressalta; ela
bate com a cabeça no tejadilho e a mala balança no banco
traseiro. Malorie está a tremer. O cão não parecia apenas morto,
parecia deformado. Fecha os olhos. Volta a abri-los.
Um pássaro, talvez o mesmo, grasna do céu. Malorie percorre a
Roundtree Street. Ballam Street. Horton. Sabe que está perto.
Algo sai a correr à sua esquerda. Fecha o olho esquerdo. Passa
por uma carrinha dos correios vazia e por cartas espalhadas pelo
chão. Um pássaro voa demasiado baixo e quase bate no para-
brisas. Ela grita, fecha ambos os olhos e depois abre-os. Quando
o faz, vê a placa com o nome da rua queprocura.
Shillingham.
Vira à direita, travando ao dobrar a esquina para Shillingham
Lane. Não precisa de consultar o mapa para encontrar o número:
273. Esteve na sua mente durante todo o caminho.
Para além de alguns carros estacionados em frente a uma casa à
direita, a rua está vazia. O bairro é comum, suburbano. A maioria
das casas é quase idêntica. Os relvados estão desmazelados.
Todas as janelas estão tapadas. Na sua ânsia, Malorie olha para a
casa em frente à qual os carros estão estacionados e sabe que é a
que procura.
Fecha os olhos e trava a fundo.
Parada e com a respiração acelerada, a imagem difusa da casa
continua na sua mente.
A garagem �ca do lado direito. A porta da garagem, bege, está
fechada. Um telhado castanho repousa sobre paredes brancas e
de tijolos. A porta de entrada é de um castanho mais escuro. As
janelas estão tapadas. A casa tem um sótão.
Preparando-se, ainda de olhos fechados, Malorie vira-se e
agarra na pega da mala de viagem. A casa dista cerca de 15 metros
do local onde parou. Sabe que não está perto do passeio. Não
quer saber. Tentando acalmar-se, respira fundo, lentamente. A
mala está ao seu lado no lugar do passageiro. De olhos fechados,
põe-se à escuta. Não ouvindo nada do lado de fora do carro, abre
a porta do lado do condutor e sai, pegando nas suas coisas.
O bebé dá um pontapé.
Malorie arqueja, lutando com a bagagem. Quase abre os olhos
para olhar para a barriga. Em vez disso, pousa as mãos nela e
massaja-a.
— Chegámos — sussurra.
Pega na mala e, às cegas, cuidadosamente, caminha para o
relvado em frente à casa. Quando sente a relva sob a sola dos
sapatos, caminha mais depressa, chocando com um arbusto
rasteiro. As agulhas picam-lhe os pulsos e a anca. Malorie recua, à
escuta, e sente cimento debaixo dos sapatos, caminhando
cuidadosamente para onde pensa que �ca a porta de entrada.
Acerta. Pousando ruidosamente a mala no alpendre, apalpa a
superfície de tijolo e encontra uma campainha. Toca.
A princípio não obtém resposta. É tomada pelo medo de ter
chegado ao seu �m. Conduziu até ali, enfrentou aquele mundo,
para nada? Volta a tocar à campainha. E mais uma vez. E outra.
Ninguém atende. Bate freneticamente na porta.
Ninguém responde do lado de dentro.
Então… ouve vozes abafadas vindas do interior.
Oh meu Deus! Está aqui alguém! Há alguém em casa!
—  Olá? — diz baixinho. O som da sua própria voz nas ruas
desertas assusta-a. — Olá! Li o anúncio no jornal!
Silêncio. Malorie espera, à escuta. Depois alguém responde.
— Quem é você? — pergunta um homem. — De onde veio?
Malorie sente alívio, esperança. Sente vontade de chorar.
— Chamo-me Malorie! Vim de Westcourt!
Segue-se uma pausa. E depois:
— Tem os olhos fechados?
É a voz de outro homem.
— Sim! Tenho os olhos fechados.
— Tem os olhos fechados há muito tempo?
Deixem-me entrar! pensa. DEIXEM-ME ENTRAR!
—  Não — responde. — Ou sim. Venho a conduzir desde
Westcourt. Fechei-os sempre que pude.
Ouve vozes abafadas. Algumas parecem zangadas. As pessoas
estão a debater se devem ou não deixá-la entrar.
— Eu não vi nada! — grita ela. — Juro. É seguro. Tenho os olhos
fechados. Por favor. Li o anúncio no jornal.
— Mantenha-os fechados — diz por �m um homem. — Vamos
abrir a porta. Quando o �zermos, entre o mais rápido possível.
OK?
— OK. Sim. OK.
Ela espera. O ar está inerte, calmo. Nada acontece. Então ouve
um estalido. Entra apressadamente. Mãos estendem-se e puxam-
na para dentro. A porta bate com estrondo atrás dela.
— Agora espere — diz uma mulher. — Precisamos de investigar.
Precisamos de ter a certeza de que entrou sozinha.
Malorie mantém os olhos fechados e escuta. Parece-lhe que
estão a examinar as paredes com paus de vassoura. Mais do que
um par de mãos toca-lhe nos ombros, no pescoço, nas pernas.
Agora há alguém atrás dela. Ouve o som de dedos na porta
fechada.
— Muito bem — diz um homem. — Estamos seguros.
Quando Malorie abre os olhos, vê cinco pessoas en�leiradas à
sua frente. Ombros com ombros, enchem o hall. Ela �ta-os. Eles
�tam-na. Um deles está a usar uma espécie de capacete. Tem os
braços cobertos com o que parecem ser bolas de algodão e �ta
adesiva. Canetas, lápis e outros objetos a�ados projetam-se da
�ta, como uma versão infantil de armamento medieval. Dois deles
seguram cabos de vassoura.
— Olá — diz este homem. — Eu chamo-me Tom. Estou certo de
que compreende porque é que atendemos a porta assim. Alguma
coisa podia entrar consigo.
Apesar do capacete, Malorie vê o cabelo louro-acastanhado de
Tom. Os seus traços são fortes. Os seus olhos azuis brilham de
inteligência. Não é muito mais alto do que Malorie. Tem a barba
por fazer, de um tom que é quase ruivo.
— Compreendo — responde Malorie.
— Westcourt — diz Tom, avançado para ela. — É muito longe. O
que você fez foi extremamente corajoso. Porque é que não se
senta, para podermos falar do que viu pelo caminho?
Malorie assente, mas não se move. Está a agarrar a mala com
tanta força que tem os nós dos dedos brancos e doridos. Um
homem mais alto e corpulento dirige-se a ela.
— Venha — diz —, deixe-me levar a sua mala.
— Obrigada.
—  Chamo-me Jules. Estou aqui há dois meses, tal como a
maioria de nós. O Tom e o Don chegaram um pouco mais cedo.
O cabelo curto e escuro de Jules parece sujo. Como se tivesse
estado a trabalhar na rua. Parece dócil.
Malorie olha para os colegas de casa um por um. Há uma
mulher e quatro homens.
—  Eu sou o Don — diz Don. Também tem cabelo escuro. Um
pouco mais comprido. Usa calças pretas e uma camisa roxa com
as mangas enroladas até aos cotovelos. Parece mais velho do que
Malorie, terá talvez uns 27 ou 28 anos. — Você pregou-nos um
susto enorme, sabe? Há semanas que ninguém bate a esta porta.
— Desculpem.
— Não faz mal — diz o quarto homem. — Todos nós �zemos o
mesmo. Eu sou o Felix.
Felix parece cansado. Malorie acha que tem um aspeto jovem.
Deve ter 21 ou 22 anos. O nariz comprido e o cabelo castanho
volumoso dão-lhe uma aparência quase de desenho animado. É
alto, como Jules, mas mais magro.
—  E eu sou a Cheryl — diz a mulher, estendendo-lhe a mão.
Malorie aperta-a.
A expressão de Cheryl é menos amigável do que a de Tom e
Felix. O cabelo castanho esconde parte do rosto da mulher. Usa
uma blusa sem mangas. Também ela parece ter estado a
trabalhar.
— Jules, ajudas-me a tirar isto? — pergunta Tom. Está a tentar
tirar o capacete, mas a armadura improvisada impede-o. Jules
ajuda-o.
Sem capacete, Malorie consegue vê-lo melhor. O cabelo louro-
claro está despenteado por cima do rosto pálido. A sugestão de
sardas dá um pouco de cor ao seu rosto. A barba está a começar a
despontar, mas o bigode é mais pronunciado. A camisa de xadrez
e as calças castanhas trazem à memória de Malorie um professor
que teve em tempos.
Olhando para ele pela primeira vez, apercebe-se de que o
homem está a olhar para a sua barriga.
— Não quero ofendê-la, mas está grávida?
—  Sim — responde ela timidamente, com medo que isso lhes
pareça um fardo.
— Oh, merda — diz Cheryl. — Só pode estar a brincar.
— Cheryl — diz Tom —, assim vais assustá-la.
—  Ouça, Malorie, não é? — começa Cheryl. — Não quero
parecer desagradável, mas trazer uma mulher grávida para esta
casa é uma grande responsabilidade.
Malorie está em silêncio. Olha de um rosto para o seguinte,
observando as expressões que fazem. Parecem estar a estudá-la.
A decidir se querem ou não aceitar a tarefa de abrigar uma
pessoa que vai acabar por dar à luz. Subitamente, Malorie
apercebe-se de que não pensou nas coisas nesses termos. No
caminho para ali, não lhe passou pela cabeça que podia ter o bebé
ali.
As lágrimas começam a cair.
Cheryl abana a cabeça e, cedendo, aproxima-se dela.
— Meu Deus — diz. — Venha cá.
— Eu não estive sempre sozinha — explica Malorie. — A minha
irmã, Shannon, estava comigo. Agora está morta. Deixei-a.
Agora está a chorar. Através da visão turva, vê que os quatro
homens estão a observá-la. Parecem compassivos.
Imediatamente, Malorie percebe que todos, à sua maneira, estão
a chorar uma perda.
— Venha — diz Tom. — Vamos mostrar-lhea casa. Pode usar a
casa de banho ao cimo das escadas. Eu durmo aqui em baixo.
— Não — responde Malorie. — Eu não posso aceitar �car com o
quarto de um de vós.
—  Faço questão — diz Tom. — A Cheryl dorme ao fundo do
corredor, ali ao fundo. O Felix está no quarto ao lado do que vai
ser o seu. A�nal de contas, está grávida. Vamos ajudá-la o melhor
que pudermos.
Estão a caminhar ao longo de um corredor. Passam por um
quarto do lado esquerdo. Depois por uma casa de banho. Malorie
vê o seu re�exo no espelho e desvia imediatamente o olhar. À
esquerda, vê uma cozinha. Há baldes grandes em cima da
bancada.
— Esta é a sala — diz Tom. — Passamos muito tempo aqui.
Malorie vira-se e vê-o a apontar para a divisão maior. Há um
sofá. Uma mesa de canto com um telefone. Candeeiros. Uma
poltrona. Alcatifa. Um calendário que parece desenhado com um
marcador na parede entre quadros emoldurados. As janelas estão
tapadas com cobertores pretos suspensos.
Malorie ergue o olhar quando um cão entra subitamente na
sala. É um border collie. O cão �ta-a com uma expressão curiosa
antes de avançar para os seus pés e �car à espera de festas.
— Este é o Victor — diz Jules. — Tem seis anos. Tenho-o desde
cachorro.
Malorie faz uma festa ao cão. Pensa em Shannon e em como ela
teria gostado dele. A seguir Jules sai da sala, carregando a mala de
Malorie por uma escada alcatifada. Ao longo das paredes há
molduras. Algumas contêm fotogra�as, outras, quadros. No cimo
das escadas, vê-o entrar num quarto. Mesmo dali de baixo
consegue ver que a janela está tapada com um cobertor.
Cheryl guia-a para o sofá. Malorie senta-se, exausta da tristeza
e do choque. Cheryl e Don dizem que vão preparar comida.
—  Enlatados — diz Felix. — Fomos buscá-los no dia em que
cheguei. Foi pouco antes de o primeiro incidente ter sido
anunciado na Península Superior. O homem da loja achou que
éramos loucos. Comprámos tanta comida que ainda temos para
mais três meses.
—  Agora um pouco menos — diz Don, desaparecendo na
cozinha. Malorie pergunta-se se ele estaria a insinuar que havia
mais bocas para alimentar por causa da sua chegada.
Então, sentando-se ao seu lado no sofá, Tom pergunta-lhe que
coisas viu no caminho até lá. Está curioso em relação a tudo. Tom
é o tipo de homem que usaria qualquer informação que ela lhe
desse, e Malorie sente que os detalhes insigni�cantes de que se
recorda não o ajudam em nada. Conta-lhe acerca do cão morto.
Da carrinha dos correios. Das lojas e ruas vazias, e do carro
abandonado com o casaco.
—  Há algumas coisas que tenho de lhe dizer — diz Tom. —
Primeiro, esta casa não pertence a nenhum de nós. O dono
morreu. Explico-lhe isso mais tarde. Não há Internet. Está em
baixo desde que cá chegámos. Temos quase a certeza de que as
pessoas que operam os transmissores de redes móveis deixaram
de aparecer para trabalhar. Ou estão mortas. Já não recebemos
correio nem jornais. Veri�cou o seu telemóvel recentemente? Os
nossos deixaram de funcionar há semanas. Mas há um telefone
�xo, se é que acredita na nossa sorte, embora não saiba a quem
poderíamos telefonar.
Cheryl entra na sala com um prato de cenouras e ervilhas. Traz
também um pequeno copo de água.
—  O telefone �xo ainda funciona — diz Tom —, pelo mesmo
motivo que as luzes ainda estão ligadas. A central elétrica desta
zona funciona com energia hidroelétrica. Não sei dizer-lhe se
também deixará de funcionar um dia, mas se os operadores da
central tiverem deixado as condutas abertas, pode funcionar para
sempre. Isso signi�ca que é o rio que dá energia a esta casa. Sabia
que há um rio por trás da casa? Salvo alguma desgraça, enquanto
o rio correr, podemos ter sorte. Podemos sobreviver. Será pedir
demasiado? Provavelmente. Mas quando for ao poço nas traseiras
buscar água, e é a água que usamos para tudo, conseguirá ouvir o
rio a correr a cerca de 80 metros dali. Não temos água corrente.
Acabou pouco depois da minha chegada. Para ir à casa de banho
usamos baldes e revezamo-nos a carregar os baldes de despojos
para as latrinas. São valas que escavámos no bosque. Claro que
tudo isto tem de ser feito de olhos vendados.
Jules desce as escadas. Victor, o cão, segue-o.
—  Já está instalada — diz ele, acenando com a cabeça para
Malorie.
— Obrigada — diz ela, timidamente.
Tom aponta para uma caixa de cartão em cima de uma pequena
mesa junto à parede.
— As vendas estão ali dentro. Pode usar qualquer uma, sempre
que quiser.
Estão todos a olhar para ela. Cheryl está sentada no braço da
poltrona. Don está de pé à entrada da cozinha. Jules está
ajoelhado ao lado de Victor junto às escadas. Felix está junto a um
dos cobertores que tapam as janelas.
Todos perderam alguém, pensa Malorie. Estas pessoas
experienciaram coisas terríveis, como eu.
Bebendo do copo que Cheryl lhe deu, vira-se para Tom. Não
consegue parar de pensar em Shannon. Mas tenta, falando
cautelosamente com Tom.
— Que coisa era aquela que tinha vestida quando eu cheguei?
— A armadura?
— Sim.
— Ainda não sei ao certo — responde Tom, a sorrir. — Estou a
tentar construir um fato. Algo que proteja mais do que apenas os
nossos olhos. Não sabemos o que pode acontecer se uma
daquelas coisas nos tocar.
Malorie olha para os outros colegas de casa. Depois volta a
olhar para Tom.
— Vocês acreditam que há criaturas lá fora?
— Sim — responde Tom. — O George, o antigo dono desta casa,
viu uma. Imediatamente antes de morrer.
Malorie não sabe o que dizer. Leva instintivamente uma mão à
barriga.
— Não estou a tentar assustá-la — diz Tom. — E vou contar-lhe
a história do George em breve. Mas a rádio tem vindo a dizer o
mesmo. Acho que já existe um consenso. Alguma coisa viva está a
fazer-nos isto. E basta ver uma durante um segundo, talvez até
menos.
Tudo naquela sala parece �car mais escuro. Malorie sente-se
zonza, com tonturas.
—  O que quer que sejam — diz Tom —, as nossas mentes não
conseguem entendê-los. São como o in�nito. Algo demasiado
complexo para compreendermos. Entende?
As palavras de Tom estão a escapar a Malorie. Victor arfa
pesadamente aos pés de Jules. Cheryl está a perguntar-lhe se
está bem. Tom ainda está a falar.
Criaturas… in�nito… as nossas mentes têm tetos, Malorie… estas
coisas… estão para além disso… mais alto do que isso… fora do
nosso alcance… fora…
Mas nesse momento Malorie desmaia.
8
Malorie acorda no seu novo quarto. Está escuro. Por um
momento abençoado, o último que terá, Malorie acorda com a
ideia de que todas estas notícias de criaturas e loucura não
passaram de um pesadelo. Com a mente turva, lembra-se de
Riverbridge, de Tom, de Victor, do caminho para lá, mas nada
disso se torna claro até que, olhando para o teto, se dá conta de
que nunca acordou naquele quarto.
E Shannon continua morta.
Sentando-se lentamente na cama, olha para a única janela do
quarto. Um cobertor preto está pregado à parede, protegendo-a
do mundo exterior. Em frente aos seus pés há um velho toucador.
O tom cor-de-rosa está desbotado, mas o espelho parece limpo.
Olhando para ele, percebe que está mais pálida do que o habitual.
Isso faz o seu cabelo parecer ainda mais preto. Na base do
espelho há mais pregos, parafusos, um martelo e uma chave-
inglesa. À exceção da cama, não há mais móveis.
Levantando-se, balança os pés para fora do colchão e vê, no
chão de alcatifa cinzenta, um segundo cobertor, cuidadosamente
dobrado. Um suplente, pensa. Ao lado dele há uma pequena pilha
de livros.
Voltando-se para a porta do quarto, Malorie ouve vozes que
vêm do andar de baixo. Ainda não conhece estas pessoas, e não
consegue identi�car quem está a falar, exceto quando é Cheryl, a
única mulher, ou Tom, cuja voz a guiará durante anos.
Quando se levanta, sente a alcatifa áspera e velha sob os seus
pés. Atravessa o quarto e espreita para o corredor. Sente-se bem.
Descansada. Já não tem tonturas. Vestindo as mesmas roupas em
que desmaiou na noite anterior, Malorie desce as escadas para a
sala.
Antes de ela chegar ao chão de madeira, Jules passa,
carregando um monte de roupas.
— Olá — diz ele, com um aceno de cabeça.Malorie observa-o
enquanto ele se dirige para a casa de banho ao fundo do
corredor. Ali, ouve-o a mergulhar as roupas num balde de água.
Quando se volta para a cozinha, vê Cheryl e Don junto ao lava-
loiças. Malorie entra na cozinha quando Don está a tirar um copo
de dentro de um balde. Cheryl ouve-a e vira-se.
—  Deixou-nos preocupados ontem à noite — diz. — Sente-se
melhor?
Malorie, percebendo agora que desmaiou na noite anterior,
cora ligeiramente.
— Sim, estou bem. É só muita coisa para assimilar.
— Foi assim para todos nós — diz Don. — Mas vai acabar por se
habituar. Não tarda, estará a dizer que temos uma vida de luxo.
— O Don é um cínico — diz Cheryl em tom de brincadeira.
— Não sou — responde Don. — Adoro isto.
Malorie dá um salto quando Victor lhe lambe a mão. Quando se
ajoelha para lhe fazer uma festa, ouve música vinda da sala de
jantar. Atravessa a cozinha e espreita lá para dentro. A sala está
vazia, mas o rádio está ligado.
Olha novamente para Cheryl e Don junto ao lava-loiças. Atrás
deles está a porta da cave. Malorie prepara-se para lhes fazer
perguntas acerca dela quando ouve a voz de Felix a vir da sala de
estar. Ele está a recitar a morada da casa.
— … Duzentos e setenta e três, Shillingham… chamo-me Felix…
estamos à procura de outros sobreviventes…
Malorie espreita para dentro da sala. Felix está a usar o telefone
�xo.
— Ele está a ligar para números ao acaso.
Malorie sobressalta-se novamente, desta vez ao ouvir a voz de
Tom, que está a espreitar para dentro da sala ao seu lado.
— Não temos uma lista telefónica? — pergunta ela.
— Não. É uma fonte constante de frustração para mim.
Felix está a marcar outro número. Tom, com um papel e um
lápis na mão, pergunta: — Quer vir ver a cave?
Malorie segue-o até ao outro lado da cozinha.
— Vais fazer o inventário? — pergunta Don quando Tom abre a
porta da cave.
— Sim.
— Diz-me o que temos.
— OK.
Tom é o primeiro a entrar. Malorie segue-o pelas escadas de
madeira. O chão da cave é de terra batida. No meio da escuridão
ela consegue cheirar e sentir a terra sob os seus pés.
O espaço é subitamente iluminado quando Tom puxa o cordão
ligado a uma lâmpada. Malorie �ca assustada com o que vê.
Parece mais um armazém do que uma cave. Prateleiras
aparentemente in�nitas estão recheadas de comida enlatada. Do
chão ao teto, aquele lugar parece um bunker.
— Foi o George que construiu tudo isto — explica Tom, fazendo
um gesto para as estantes de madeira. — Era um visionário.
À esquerda, apenas parcialmente iluminada, Malorie repara
numa tapeçaria transparente suspensa. Atrás dela há uma
máquina de lavar roupa e uma de secar.
— Parece muita comida — diz Tom, apontando para as latas. —
Mas não é. E ninguém se preocupa mais do que o Don com o
quanto nos resta.
— Com que frequência faz o inventário? — pergunta Malorie.
—  Uma vez por semana. Mas às vezes, quando �co inquieto,
venho aqui e volto a veri�car tudo, mesmo que o tenha feito no
dia anterior.
— Está frio.
— Sim, é uma cave clássica de armazenamento a frio. É ideal.
— O que acontece se �carmos sem comida?
Tom �ta-a. As suas feições parecem suaves sob aquela luz.
— Temos de ir buscar mais. Vasculhamos os supermercados, as
outras casas, tudo o que conseguirmos.
— Certo — diz Malorie, acenando com a cabeça.
Enquanto Tom marca o papel, Malorie estuda a cave.
— Suponho que este é o espaço mais seguro da casa — diz.
Tom faz uma pausa. Pensa no assunto.
— Creio que não. Acho que o sótão é mais seguro.
— Porquê?
—  Reparou na fechadura da entrada da cave? A porta é muito
velha, pode ser trancada, mas é frágil. É quase como se esta cave
tivesse sido construída primeiro, anos antes de decidirem
acrescentar-lhe uma casa. Mas a porta do sótão… essa tem um
trinco incrível. Se precisarmos de nos barricar, se uma daquelas
coisas entrar na casa, acho que é para o sótão que devemos ir.
Malorie olha instintivamente para cima. Massaja os ombros.
Se precisarmos de nos barricar.
— A avaliar pela comida que nos resta — diz Tom —, dá-nos para
viver mais três ou quatro meses. Parece muito tempo, mas passa
depressa. Os dias começam a confundir-se. Foi por isso que
começámos a escrever o calendário na parede da sala. Sabe, de
certa forma, o tempo já não tem signi�cado. Mas é uma das
únicas coisas que ainda se assemelha às vidas que tínhamos.
— A passagem do tempo?
— Sim, e o que fazemos com ele.
Malorie avança para um banquinho de madeira e senta-se. Tom
ainda está a tomar notas.
—  Vou mostrar-lhe todas as tarefas quando voltarmos lá para
cima — diz ele. Depois, apontando para um espaço entre as
prateleiras e a tapeçaria suspensa, diz: — Está a ver aquilo ali?
Malorie olha, mas não percebe do que ele está a falar.
— Venha cá.
Tom guia-a até à parede, onde alguns tijolos estão partidos. Vê-
se terra por trás deles.
— Não consigo decidir se isto me assusta ou agrada — diz ele.
— O que quer dizer com isso?
—  Bem, o chão está exposto. Isso quer dizer que devemos
começar a escavar? A construir um túnel? Uma segunda cave?
Mais espaço? Ou é apenas mais uma forma de entrar na casa?
Os olhos de Tom parecem brilhantes sob a luz da cave.
— O problema é que se as criaturas quisessem realmente entrar
na nossa casa… não teriam o menor problema em fazê-lo — diz
ele. — E suponho que já o teriam feito.
Malorie �ta a abertura de terra na parede. Imagina-se a rastejar
por túneis, grávida. Imagina larvas.
Ao �m de um breve silêncio, pergunta:
— O que fazia antes de isto acontecer?
— O meu emprego? Era professor. Do 8.º ano.
Malorie assente.
— Por acaso achei que tinha ar de professor.
— Sabe uma coisa? Já me disseram isso. Muitas vezes! Confesso
que me agrada. — Ele �nge ajeitar a gola da camisa. — Turma —
diz —, hoje vamos falar de comida enlatada. Portanto, calem essas
bocas, porra!
Malorie ri-se.
— O que é que você fazia? — pergunta Tom.
— Ainda não tinha chegado aí — diz Malorie.
— Perdeu a sua irmã, não foi? — pergunta ele docemente.
— Sim.
— Sinto muito. — Depois diz: — Eu perdi uma �lha.
— Oh, meu Deus, Tom.
Tom para, como se tentasse decidir se devia ou não contar mais
a Malorie. Depois conta.
— A mãe da Robin morreu no parto. Parece cruel estar a dizer-
lhe isto, tendo em conta que está grávida. Mas se vamos
conhecer-nos, é uma história que precisa de saber. A Robin era
uma miúda fantástica. Aos 8 anos era mais inteligente do que o
pai. Ela gostava das coisas mais estranhas. Gostava mais das
instruções de um brinquedo do que do próprio brinquedo. Dos
créditos de um �lme mais do que do �lme. Da forma como algo
estava escrito. De uma expressão no meu rosto. Uma vez disse-
me que eu parecia o sol por causa do meu cabelo. Perguntei-lhe
se brilhava como o sol, e ela disse: «Não, papá, brilhas mais como
a lua, quando está escuro lá fora.»
» Quando surgiram os relatos dos incidentes nas notícias e as
pessoas começaram a levar isto a sério, eu era o tipo de pai que
dizia que não ia viver com medo. Tentei muito continuar com a
nossa vida quotidiana. E queria especialmente transmitir essa
ideia à Robin. Ela tinha ouvido coisas na escola. Eu não queria que
ela tivesse tanto medo. Mas ao �m de algum tempo deixei de
conseguir �ngir. Os pais começaram a tirar os �lhos da escola.
Depois a escola fechou. Temporariamente. Ou até terem a
con�ança da comunidade para continuarem a oferecer um lugar
seguro para os seus �lhos. Foram tempos negros, Malorie. Eu
também era professor, e a escola onde dava aulas fechou as
portas na mesma altura. Então, de repente, começámos a passar
muito tempo juntos em casa. Vi o quanto ela tinha crescido. A
mente dela estava a tornar-se tão grande. Ainda assim, era muito
nova para entender o quanto as notícias eram assustadoras. Fiz o
meu melhor para não lhas esconder, mas o pai em mim não
conseguia evitar mudar de canal às vezes.
»  A rádio tornou-se demasiado sombria para ela suportar. A
Robin começou a ter pesadelos. Passei muito tempo a acalmá-la.
Sentia sempre que estava a mentir-lhe. Combinámos que
nenhum de nós olharia pela janela. Concordámos que ela não
podia sairsem a minha permissão. De alguma forma, eu tinha de
a fazer acreditar que tudo era simultaneamente seguro e
horrivelmente inseguro.
»  Ela começou a dormir na minha cama, mas uma manhã
acordei e descobri que ela não estava lá. Na noite anterior tinha
dito que queria que as coisas voltassem ao que eram. Disse que
queria a mãe, que nunca conheceu. Fiquei devastado quando a
ouvi dizer, com 8 anos, que a vida era injusta. Quando acordei e
não a encontrei, disse a mim mesmo que ela estava apenas a
habituar-se a isto. A esta nova vida. Mas acho que talvez a Robin
tenha perdido parte da sua juventude na noite anterior, quando
percebeu, antes de mim, o quão grave isto era, o que estava a
acontecer do lado de fora da nossa casa.
Tom faz uma pausa. Fita o chão da cave.
— Encontrei-a na banheira, Malorie. A boiar. Os seus pequenos
pulsos cortados com a lâmina com que me vira fazer a barba mil
vezes. A água estava vermelha. O sangue pingava para fora da
banheira. Sangue nas paredes. Era uma criança. Tinha 8 anos.
Teria olhado para a rua? Ou terá simplesmente tomado aquela
decisão sozinha? Nunca vou saber.
Malorie estende os braços para Tom e abraça-o.
Mas ele não chora. Em vez disso, ao �m de um momento, volta
para as prateleiras e começa a tomar notas.
Malorie pensa em Shannon. Também morreu na casa de banho.
Também pôs �m à própria vida.
Quando Tom termina, pergunta a Malorie se está pronta para
voltar para o andar de cima. Quando estende a mão para o
cordão da lâmpada, vê que ela está a olhar para a terra visível na
parede.
— É assustador, não é? — pergunta ele.
— Sim.
— Bem, não deixe que seja. É apenas um dos medos velhos.
— Qual?
— O medo da cave.
Malorie assente.
E depois Tom puxa o cordão e a luz apaga-se.
9
Criaturas, pensa Malorie. Que palavra reles.
As crianças estão em silêncio e nada se move nas margens. Ela
consegue ouvir os remos a cortarem a água. O ritmo do seu remo
acompanha o do seu coração, e depois falha. Quando as
cadências se opõem, sente-se a ponto de morrer.
Criaturas.
Malorie nunca gostou daquela palavra. Parece desadequada. As
coisas que a assombraram durante mais de quatro anos não são
criaturas. Uma lesma é uma criatura. Um porco-espinho. Mas as
coisas que se esconderam atrás das janelas tapadas e que a
mantiveram de olhos vendados não são o tipo de coisas que um
exterminador pode eliminar.
Bárbaro também não parece certo. Um bárbaro é imprudente. Um
bruto também.
Ao longe, um pássaro canta no céu. Os remos cortam a água
com cada movimento.
«Beemote» não tem existência comprovada. Podem ser do
tamanho de um dedo.
Embora estejam no início do seu percurso ao longo do rio, os
músculos de Malorie estão doridos de remar. A sua camisa está
encharcada de suor. Tem os pés frios. A venda continua a irritá-
la.
«Demónio.» «Diabo.» «Vilão.» Talvez sejam tudo isso.
A sua irmã morreu porque viu um. Os seus pais devem ter tido
o mesmo destino.
«Diabrete» é um termo demasiado suave. «Selvagem» é
demasiado humano.
Malorie não tem apenas medo das coisas que podem viver no
rio, também se sente fascinada por elas.
Saberão o que fazem? Quererão fazê-lo?
Neste momento, parece que o mundo inteiro está morto.
Parece-lhe que o barco a remos é o último lugar no mundo onde
há vida. O resto do mundo estende-se para lá da proa do barco,
um planeta vazio, a �orescer e vazio com cada remada.
Se não sabem o que fazem, não podem ser «vilões».
As crianças estão caladas há muito tempo. Um segundo canto
de pássaros ouve-se no céu. Um peixe chapinha na água. Malorie
nunca viu este rio. Como será? Terá árvores ao longo das suas
margens? Existirão casas ao longo dele?
São monstros, pensa Malorie. Mas sabe que são mais do que
isso. São o in�nito.
— Mamã — grita o Rapaz subitamente.
Uma ave de rapina grasna e o eco alastra pelo rio.
— O que é, Rapaz?
— Parece um motor.
— O quê?
Malorie para de remar. Põe-se à escuta.
Longe, para lá do som da água do rio, ouve-se o som de um
motor.
Malorie reconhece-o imediatamente. É o som de outro barco a
aproximar-se.
Em vez de se sentir animada com a perspetiva de encontrar
outro ser humano naquele rio, Malorie tem medo.
— Baixem-se os dois — ordena.
Pousa os cabos dos remos nos joelhos. O barco �utua.
O Rapaz ouviu-o, diz a si mesma. O Rapaz ouviu-o porque o
educaste bem e agora ele ouve melhor do que alguma vez verá.
Respirando fundo, Malorie espera. O som do motor torna-se
mais alto. O barco está a subir o rio.
— Ai! — geme o Rapaz.
— O que é, Rapaz?
— A minha orelha! Fui atingido por uma árvore.
Malorie pensa que é uma coisa boa. Se uma árvore tocou no
Rapaz, é porque provavelmente estão perto de uma das margens.
Talvez a folhagem os oculte.
O outro barco está agora muito mais próximo. Malorie sabe que
se conseguisse abrir os olhos podia vê-lo.
— Não tirem as vendas dos olhos — diz Malorie.
E então o motor do barco está ao nível deles. Não passa.
Quem quer que seja, pensa Malorie, consegue ver-nos.
O motor do barco para abruptamente. O ar cheira a gasolina.
Passos atravessam o que deve ser o convés.
— Olá! — diz uma voz. Malorie não responde. — Olá! Está tudo
bem. Podem tirar as vendas dos olhos! Sou apenas um homem
comum.
— Não, não podem — diz Malorie às crianças.
—  Não há nada aqui, senhora. Acredite em mim. Estamos
sozinhos.
Malorie está imóvel. Por �m, sentindo que não tem alternativa,
responde.
— Como é que sabe?
—  Senhora — responde ele —, estou a olhar. Tive os olhos
abertos durante toda a minha viagem hoje. Ontem, também.
— Não se pode simplesmente olhar — diz ela. — Você sabe que
não.
O estranho ri-se.
— A sério — continua ele —, não há nada a temer. Pode con�ar
em mim. Só estamos nós os dois neste rio. Apenas duas pessoas
comuns cujos caminhos se cruzaram.
— Não! — Malorie grita para as crianças.
Ela solta a Rapariga e volta a pegar nos remos. O homem
suspira.
—  Não há necessidade de viver assim, senhora. Pense nestas
crianças. Quer roubar-lhes a oportunidade de ver um dia lindo
como este?
— Não se aproxime do nosso barco — diz Malorie com um tom
severo.
Silêncio. O homem não responde. Malorie prepara-se. Sente-se
encurralada. Vulnerável. No barco a remos contra a margem.
Naquele rio. Naquele mundo.
Algo chapinha na água. Malorie abafa um grito.
— Senhora — insiste o homem —, é uma visão incrível, se não se
importar com um pouco de neblina. Quando foi a última vez que
olhou para o mundo cá fora? Há anos? Já viu este rio? O estado
do tempo? Aposto que nem se lembra do aspeto de diferentes
climas.
Ela lembra-se muito bem do mundo exterior. Lembra-se de ser
estudante e ir a pé para casa através de um túnel de folhas de
outono. Lembra-se dos quintais vizinhos, dos jardins e das casas.
Lembra-se de estar deitada na relva do seu jardim com Shannon
e de decidir que nuvens se pareciam com os rapazes e raparigas
da sua turma.
— Vamos manter os olhos vendados — diz Malorie.
—  Eu deixei-me disso, senhora — diz ele. — Segui em frente
com a minha vida. Não quer fazer o mesmo?
— Deixe-nos em paz — ordena ela.
O homem suspira novamente.
— Eles não podem assombrá-la para sempre — diz ele. — Não
podem forçá-la a viver assim para sempre. Sabe que tenho razão,
não sabe?
Malorie põe o remo direito numa posição que crê que lhe
permite impulsionar-se para longe da margem.
—  Eu devia arrancar-vos as vendas — diz o homem
subitamente.
Malorie não se move.
Ele parece rude. Um pouco irritado.
—  Somos apenas duas pessoas — continua ele. — Que se
encontraram num rio. Quatro se incluirmos as crianças. E elas
não podem ser responsabilizadas pela forma como está a criá-las.
Eu sou o único aqui que teve a coragem de olhar para fora. As
suas preocupações só a mantêm segura durante tempo su�ciente
para se preocupar ainda mais.
A voz vem agora de um lugar diferente. Malorie pensa que ele
avançou para a frente do barco a motor. Só quer deixá-lo para
trás. Só quer afastar-se mais da casa que deixaram naquela
manhã.
—  Digo-lhe uma coisa — diz de repente o homem,
horrivelmente perto —, eu já vi um.
Malorie agarra o Rapaz e puxa-opela parte de trás da camisa.
Ele bate no fundo de aço do barco e grita.
O homem ri-se.
— Eles não são tão feios como pensa, senhora.
Ela empurra a margem com o remo. Está a �utuar. É difícil
encontrar algo sólido. Parece só encontrar galhos e raízes. Lama.
Ele vai enlouquecer, pensa Malorie. Vai magoar-te.
—  Para onde vai? — grita o homem. — Vai chorar sempre que
ouvir um galho a estalar?
Malorie não consegue soltar o barco.
— Mantenham os olhos vendados! — grita ela para as crianças.
O homem disse que viu um. Quando? Quando?
— Acha que estou louco, não é?
Por �m, o remo crava-se em terra. Malorie empurra, grunhindo.
O barco a remos move-se. Ela acha que pode ter-se soltado.
Então choca com o barco do homem e ela grita.
Ele encurralou-te.
Vai obrigá-los a abrir os olhos?
—  Quem é o louco aqui? Olhe para si agora. Duas pessoas
cruzam-se num rio…
Malorie balança para frente e para trás. Sente um espaço atrás
do barco a remos, algum tipo de abertura.
—… Uma delas olha para o céu…
Malorie sente o remo a cravar-se na terra.
— … A outra tenta guiar um barco com os olhos vendados.
O barco a remos está quase solto.
— Portanto, tenho de perguntar…
— Saia da frente! — grita ela.
— … Quem é o louco?
O homem ri-se. O riso parece erguer-se para o céu de que ele
fala. Ela pensa em perguntar: Onde estava quando o viu? Mas não
o faz.
— Deixe-nos! — grita Malorie.
A luta faz a água fria salpicar para dentro do barco. A Rapariga
grita. Malorie diz a si mesma: Pergunta ao homem onde estava
quando o viu. Talvez a loucura ainda não se tenha instalado.
Talvez esteja a demorar mais no caso dele. Talvez ele tenha um
último gesto benevolente antes de perder toda a noção da
realidade.
O barco a remos solta-se.
Tom disse que era diferente para todos. Disse que um homem
louco nunca podia �car mais louco. E as pessoas mais sãs podiam
demorar muito tempo a enlouquecer.
— Abra os olhos, por amor de Deus! — grita o homem.
A voz dele mudou. Parece bêbedo, diferente.
— Pare de fugir, senhora. Abra os olhos! — suplica ele.
—  Não lhe deem ouvidos! — grita Malorie. O Rapaz está
pressionado contra ela e a Rapariga geme atrás de si. Malorie
treme.
— A vossa mãe é louca, crianças. Tirem as vendas.
Subitamente, o homem uiva, gargarejando. Parece que algo
morreu na sua garganta. Quanto tempo faltará para se
estrangular com uma das cordas do barco ou para encostar a
cabeça à hélice do motor?
Malorie rema furiosamente. A venda não lhe parece
su�cientemente apertada.
O que ele viu está próximo. O que ele viu está aqui neste rio.
—  Não tirem as vendas! — grita novamente Malorie. Está a
passar pelo outro barco. — Entendem? Respondam-me.
— Sim! — diz o Rapaz.
— Sim! — diz a Rapariga.
O homem uiva novamente, mas agora está mais para trás.
Parece que está a tentar gritar, mas esqueceu-se de como se faz.
Quando o barco a remos avança mais 40 metros e o som do
motor atrás deles já está quase fora do seu alcance, Malorie
aproxima-se e toca no ombro do Rapaz.
— Não te preocupes, mamã — diz o Rapaz.
Então, Malorie estende a mão para trás e encontra a mão da
Rapariga. Aperta-a. Depois, soltando-os aos dois, volta a pegar
nos remos.
— Estás seca? — pergunta à Rapariga.
— Não — responde ela.
— Usa o cobertor para te secares. Agora.
O ar tem novamente um cheiro limpo. As árvores. A água.
O cheiro de gasolina �cou para trás.
Lembras-te do cheiro da casa? pensa Malorie.
Apesar do horror de ter encontrado o homem no barco,
lembra-se. O ar velho e abafado da casa. Já lá estava no dia em
que ela tinha chegado. E nunca melhorara.
Ela não odeia o homem do barco. Só sente pena dele.
—  Vocês portaram-se muito bem — diz Malorie às crianças,
tremendo, remando pelo rio abaixo.
10
Malorie está a viver na casa há duas semanas. Os companheiros
sobrevivem quase inteiramente dos enlatados que há na cave e
dos restos de carne congelada que têm no congelador. Todas as
manhãs, Malorie sente alívio ao constatar que ainda têm
eletricidade. A rádio é a única fonte de novidades, mas o último
DJ que resta, Rodney Barrett, não tem nada de novo para contar.
Em vez disso, divaga. Zanga-se. Pragueja. Os colegas de casa já o
ouviram a dormir durante a emissão. Mas apesar de tudo isto,
Malorie entende porque continuam a ouvi-lo.
Independentemente de a voz dele soar baixinho em pano de
fundo ou encher a sala onde está o rádio, ele é a última ligação
que têm ao mundo exterior.
Malorie já sente que está dentro de um cofre. A claustrofobia é
incrível, e pesa sobre ela e sobre o bebé.
No entanto, esta noite, os colegas de casa estão a dar uma
espécie de festa.
Os seis estão reunidos em volta da mesa de jantar. Juntamente
com os enlatados, papel higiénico, baterias, velas, cobertores e
ferramentas na cave, existem algumas garrafas de rum — que
complementam agradavelmente a erva trazida por Felix (que
admitia timidamente que estava mais à espera de um
ajuntamento hippie do que do grupo que encontrou à chegada).
Malorie, por causa da sua condição, é a única que não bebe nem
fuma. Ainda assim, alguns estados de espírito são contagiosos, e
quando Rodney Barrett, inusitadamente, passa uma música
suave, Malorie consegue sorrir, e às vezes até rir, apesar dos
horrores insondáveis que se tornaram um lugar-comum.
Há um piano na sala de jantar. Tal como a pilha de livros de
humor ao lado da cómoda do seu quarto, o piano parece um
vestígio, quase deslocado, de outra vida.
Neste momento, Tom está ao piano.
—  Em que nota é esta música? — grita Tom, suado, do outro
lado da sala de jantar para Felix, que está sentado à mesa. —
Conheces as notas?
Felix sorri e abana a cabeça.
— Como é que haveria de saber? Mas canto contigo daqui, Tom.
— Por favor, não — diz Don, bebendo rum e sorrindo.
— Não, não — diz Felix com um sorriso —, eu canto muito bem!
Felix tropeça quando se levanta. Junta-se a Tom ao piano.
Juntos, cantam It’s De-Lovely. O rádio está pousado num
aparador espelhado. A música que Rodney Barrett está a passar
contrasta com a música de Cole Porter.
— Como está, Malorie? — pergunta Don, sentado do outro lado
da mesa. — Está a gostar da casa?
— Estou bem — diz ela. — Tenho pensado muito no bebé.
Don sorri. Quando o faz, Malorie vê tristeza no seu rosto. Sabe
que Don também perdeu uma irmã. Todos os habitantes da casa
sofreram uma perda devastadora. Os pais de Cheryl, assustados,
foram para o Sul. Desde então ela não voltou a falar com eles.
Felix espera ter notícias dos irmãos com todos os telefonemas
aleatórios que faz. Jules fala frequentemente da noiva, Sydney,
que encontrou na sarjeta junto ao prédio onde vivia antes de
responder ao mesmo anúncio que levou Malorie ali. Tinha a
garganta cortada. Mas a história de Tom, pensa Malorie, é a pior.
Se é que essa palavra ainda signi�ca alguma coisa.
Agora, observando-o ao piano, o coração de Malorie aperta-se
por ele.
Por um momento, quando It’s De-Lovely termina, o som do
rádio faz-se ouvir. Soam também os últimos acordes da música
que Rodney Barrett está a passar. Então ele começa a falar.
—  Ouçam, ouçam — diz Cheryl. Está a atravessar a sala para
junto do rádio. Inclina-se para o aparelho e aumenta o volume. —
Ele parece mais deprimido do que o habitual.
Tom ignora o rádio. Suando, sorvendo a sua bebida, ele toca os
primeiros acordes de I Got Rhythm, de Gershwin. Don está a
virar-se para ver do que Cheryl está a falar. Jules, acariciando
Victor, sentado no chão com as costas para a parede, vira
lentamente a cabeça para o rádio.
— Criaturas — diz Rodney Barrett. Está com a voz arrastada. —
O que é que nos tiraram? O que estão a fazer aqui? Têm algum
propósito?
Don levanta-se da mesa e junta-se a Cheryl ao pé do rádio. Tom
para de tocar.
— Nunca o ouvi falar diretamente com as criaturas — diz ele do
banco do piano.
— Perdemos mães, pais, irmãs e irmãos — diz Rodney Barrett. —
Perdemos esposas e maridos, amantes e amigos. Mas nada dói
tanto como as crianças que nos tiraram. Como ousam pedir a
uma criança que olhe para vocês?
Malorie olha para Tom. Ele está a ouvir. Tem uma expressão
distanteno olhar. Ela levanta-se e caminha até ele.
—  Não é a primeira vez que ele usa um tom intenso — diz
Cheryl de Rodney Barrett. — Mas nunca desta maneira.
— Não — diz Don. — Parece que está mais bêbedo do que nós.
— Tom — diz Malorie, sentada ao lado dele no banco.
— Ele vai-se matar — diz Don, subitamente.
Malorie olha para cima, querendo dizer a Don para se calar, e
então ouve o mesmo que Don ouviu. A desolação na voz de
Rodney Barrett.
— Hoje eu vou enganar-vos — diz Barrett. — Vou tomá-la antes,
a única coisa que ainda me podem tirar.
— Oh, meu Deus — diz Cheryl.
O rádio �ca silencioso.
— Desliga, Cheryl — diz Jules. — Desliga.
Quando ela estende a mão para o rádio, o som de um tiro
explode das colunas.
Cheryl grita. Victor ladra.
—  Que raio acabou de acontecer? — pergunta Felix, olhando
�xamente para o rádio.
— Ele fê-lo — diz Jules com um vazio na voz. — Não acredito.
Depois, silêncio.
Tom levanta-se do banco do piano e desliga o rádio. Felix sorve
um gole da bebida. Jules está de joelhos, a acalmar Victor.
Então, subitamente, como se fosse um eco do tiro, alguém bate
à porta de entrada.
Uma segunda batida segue-se rapidamente.
Felix dá um passo na direção da porta e Don agarra-lhe no
braço.
— Não abras a porta — diz ele. — Então. Qual é o teu problema?
— Eu não ia abrir, meu! — diz Felix, soltando o braço.
A batida ouve-se de novo. Uma voz feminina chama lá fora.
— Olá?
Os habitantes da casa estão calados e imóveis.
—  Alguém que lhe responda — diz Malorie, levantando-se do
banco do piano para o fazer. Mas Tom adianta-se.
— Sim! — responde. — Estamos aqui. Quem é você?
— Olympia! Chamo-me Olympia! Deixam-me entrar?
Tom faz uma pausa. Parece bêbedo.
— Está sozinha? — pergunta ele.
— Sim!
— Tem os olhos fechados?
—  Sim, tenho os olhos fechados. Estou muito assustada. Por
favor, deixe-me entrar?
Tom olha para Don.
— Alguém que vá buscar as vassouras — diz Tom. Jules sai para
as ir buscar.
—  Acho que não podemos aceitar mais bocas para
alimentarmos — diz Don.
— Estás louco — diz Felix. — Há uma mulher lá fora…
—  Eu entendo o que está a acontecer, Felix — responde Don
enraivecido. — Não podemos abrigar o país inteiro.
— Mas ela está lá fora neste momento — diz Felix.
— E estamos bêbedos — diz Don.
— Vá lá, Don — diz Tom.
— Não façam de mim o vilão — diz Don. — Sabem tão bem como
eu quantas latas temos na cave.
— Olá? — chama novamente a mulher.
— Espere! — responde Tom.
Tom e Don olham-se. Jules entra no hall. Entrega uma das
vassouras a Tom.
— Façam o que quiserem — diz Don. — Mas vamos morrer de
fome mais cedo por causa disto.
Tom volta-se para a porta.
— Pessoal — diz —, fechem os olhos.
Malorie escuta enquanto os sapatos dele atravessam o chão de
madeira do hall.
— Olympia? — chama Tom.
— Sim!
—  Vou abrir a porta agora. Quando o �zer, quando sentir que
está aberta, entre o mais rápido possível. Entendeu?
— Sim!
Malorie ouve a porta da frente abrir-se. Há uma agitação.
Imagina que Tom puxou a mulher para dentro, como os
habitantes da casa a puxaram para dentro duas semanas antes. E
então a porta fecha-se.
— Mantenha os olhos fechados! — diz Tom. — Vou examinar o
que está à sua volta. Para me certi�car de que nada entrou
consigo.
Malorie ouve as cerdas das vassouras contra as paredes, o chão,
o teto e a porta da frente.
— OK — diz Tom, por �m. — Vamos abrir os olhos.
Quando Malorie o faz, vê uma mulher muito bonita, pálida e de
cabelo escuro ao lado de Tom.
— Obrigada — diz ela ofegante.
Tom começa a perguntar-lhe algo, mas Malorie interrompe-o.
— Você está grávida? — pergunta a Olympia.
Olympia olha para a barriga dela. A tremer, ela ergue o olhar,
acenando que sim com a cabeça.
— Estou de quatro meses — diz ela.
— Incrível — diz Malorie, aproximando-se. — Eu também.
— Merda — diz Don.
—  Eu sou vossa vizinha — diz Olympia. — Lamento ter-vos
assustado desta maneira. O meu marido está na força aérea. Não
tenho notícias dele há semanas. Pode estar morto. Eu ouvi-vos. O
piano. Demorei algum tempo a ganhar coragem para caminhar
até aqui. Normalmente, teria trazido cupcakes.
Apesar do horror que todos os presentes ouviram, a inocência
de Olympia ilumina a escuridão.
—  Estamos felizes por a receber — diz Tom, mas Malorie
consegue detetar na voz dele a exaustão e a pressão de cuidar de
duas mulheres grávidas. — Entre.
Guiam Olympia ao longo do corredor em direção à sala de
estar. Ao fundo da escada, ela abafa um grito e aponta para uma
fotogra�a pendurada na parede.
— Oh! — diz. — Este homem está cá?
—  Não — diz Tom. — Já não. Deve conhecê-lo. George. Era o
dono desta casa.
Olympia assente.
— Sim, vi-o muitas vezes.
Então, os habitantes da casa reúnem-se na sala de estar. Tom
senta-se com Olympia no sofá. Malorie escuta calmamente
enquanto Tom faz perguntas a Olympia sobre os objetos que tem
em casa. O que ela tem. O que deixou para trás.
O que podem usar ali.
11
Malorie tem a sensação de que está a remar há três horas. Os
músculos dos braços doem-lhe. Água fria ensopa o fundo do
barco, água que salpicou, pouco a pouco, com cada movimento
dos remos. Momentos antes, a Rapariga disse a Malorie que tinha
de fazer chichi. Malorie disse-lhe para o fazer. Agora, a urina da
Rapariga mistura-se com a água do rio e parece quente contra os
sapatos de Malorie. Está a pensar no homem do barco, com quem
se cruzaram.
As crianças não tiraram as vendas, pensa Malorie. Foi a primeira
voz humana que ouviram para além das suas. No entanto, elas não
lhe deram ouvidos.
Sim, treinou-as bem. Mas não é agradável pensar assim. Treinar
as crianças signi�ca que as assustou tão completamente que
nunca lhe desobedecerão. Quando era criança, Malorie rebelava-
se constantemente contra os pais. O açúcar estava proibido em
casa. Malorie comia-o às escondidas. Não eram permitidos �lmes
de terror. Malorie descia as escadas em bicos de pés à meia-noite
para os ver na televisão. Quando os pais lhe disseram que não
podia dormir no sofá da sala de estar, mudou a cama para lá.
Eram as emoções da infância. Os �lhos de Malorie não as
conheciam.
Quando eram bebés, treinou-os para fecharem os olhos. De pé
junto às suas camas de arame, de mata-moscas na mão, esperava.
Quando um deles acordava e abria os olhos, ela batia-lhes com
força no braço. Eles choravam. Malorie aproximava-se e fechava-
lhes os olhos com os dedos. Se mantivessem os olhos fechados,
levantava a camisa e amamentava-os. A recompensa.
— Mamã — diz a Rapariga —, era o mesmo homem que canta no
rádio?
A Rapariga está a falar de uma cassete que Felix gostava de
ouvir.
— Não — diz o Rapaz.
— Então quem era? — pergunta a Rapariga.
Malorie vira-se para a Rapariga, para a sua voz soar mais alta.
— Pensei que tínhamos combinado que não iam fazer perguntas
que não tenham que ver com o rio. Estamos a romper esse
compromisso?
— Não — diz calmamente a Rapariga.
Quando tinham 3 anos, ela treinou-os para tirarem água do
poço. Amarrando uma corda em volta da sua cintura, apertava a
outra ponta em volta do Rapaz. Então, dizendo-lhe para tatear à
procura do caminho com os dedos dos pés, mandava-o lá fora
para o fazer sozinho. Malorie ouvia o som do balde a ser
levantado desajeitadamente. Ouvia-o a debater-se enquanto o
carregava até ela. Muitas vezes ouviu o balde cair-lhe das mãos.
Sempre que isso acontecia, mandava-o lá fora enchê-lo outra vez.
A Rapariga odiava aquela tarefa. Dizia que o piso era «muito
irregular» à volta do poço. Dizia que sentia que viviam pessoas
debaixo da relva. Malorie negou comida à Rapariga até ela aceitar
fazê-lo.
Mal tinham começado a andar, Malorie sentava-os em lados
opostos da sala e caminhava sobre a alcatifa. Quando perguntava:
«Onde estou eu?», o Rapaz e a Rapariga apontavam. Depois subia
as escadas, voltava a descer e perguntava-lhes: «Onde fui?» As
crianças apontavam. Quando erravam, Malorie gritava com elas.
Mas não erravam muitas vezes. E ao �m de pouco tempo
deixaram de errar de todo.
O que diria o Tom daquilo? pergunta-se. Dir-te-ia que estavas a
ser a melhor mãe do mundo. E tu acreditarias.Sem Tom, Malorie só pode contar consigo. E muitas vezes,
sentada sozinha à mesa da cozinha, enquanto as crianças
dormiam no quarto, fazia a si mesma a pergunta inevitável:
És uma boa mãe? Isso ainda existe?
Agora, Malorie sente uma pancadinha suave no joelho. Arqueja.
Mas é apenas o Rapaz. Está a pedir o saco de comida. No meio do
barco, Malorie leva a mão ao bolso do casaco e dá-lhe o saco.
Escuta enquanto os seus pequenos dentes esmagam as nozes que
estiveram em latas nas prateleiras da cave durante os quatro anos
e meio que antecederam o momento em que os acordou naquela
manhã.
Então, Malorie para de remar. Está com calor. Demasiado calor.
Está a suar como se fosse junho. Tira o casaco e pousa-o no
banco do barco a remos ao seu lado. Então, sente uma
pancadinha nas costas. A Rapariga também tem fome.
És uma boa mãe? pergunta-se novamente, entregando-lhe um
segundo saco de comida.
Como pode esperar que os seus �lhos sonhem tão alto como as
estrelas, se não conseguem erguer a cabeça para as contemplar?
Malorie não sabe a resposta.
12
Tom está a construir algo com um velho estojo de guitarra e uma
almofada de sofá. Olympia está a dormir no andar de cima, no
quarto ao lado de Malorie. Felix deu-lho tal como Tom deu o seu
a Malorie. Felix passa a dormir no sofá da sala de estar. Na noite
anterior, Tom tomou notas detalhadas das coisas que Olympia
tem em casa quando ela lho disse. Mas o que começou como uma
conversa esperançosa resultou na decisão dos habitantes da casa
de que as poucas coisas que poderiam usar não compensavam o
risco de ir buscá-las. Papel. Outro balde. A caixa de ferramentas
do marido de Olympia. Ainda assim, como Felix fez notar, se e
quando a necessidade desses objetos superasse o risco, podiam ir
buscá-los. Algumas coisas, disse Don, podiam ser necessárias
mais cedo do que esperavam. Frutos secos enlatados, atum,
massas, condimentos. Enquanto falavam da comida, Tom
detalhou aos outros o stock ainda existente na cave. O facto de
ser uma quantidade �nita preocupava profundamente Malorie.
Neste momento, Jules está a dormir na salinha ao fundo do
corredor. Está deitado num colchão no chão numa das pontas da
sala. O colchão de Don está no outro lado. Entre eles há uma
mesa alta de madeira onde pousaram as suas coisas. Victor está lá
com eles. Jules ressona. O pequeno rádio com leitor de cassetes
emite música suave. O som vem da sala de jantar, onde Felix e
Don estão a jogar às cartas com um baralho do Pee-Wee Herman.
Cheryl está a lavar roupa num balde no lava-loiça.
Malorie está sozinha com Tom no sofá da sala de estar.
— O antigo dono da casa — pergunta Malorie. — George, não foi
como disseste que era o nome dele? Foi ele que colocou o
anúncio? Ele estava cá quando chegaste?
Tom, que está a tentar fazer uma capa protetora e acolchoada
para o interior do para-brisas de um carro, olha Malorie nos
olhos. O seu cabelo parece mais claro sob a luz da lâmpada.
—  Eu fui o primeiro a responder ao anúncio no jornal — diz
Tom. — O George foi fantástico. Recebeu estranhos na sua casa
quando todos estavam a trancar as portas. E também era
progressista, um grande pensador. Estava constantemente a
apresentar ideias. Talvez pudéssemos olhar pelas janelas através
de lentes? De vidro refratado? De telescópios? Binóculos? Essa foi
a sua grande ideia. Se era uma questão de visão, talvez
precisássemos apenas de alterar a nossa linha de visão. Ou de
mudar as formas físicas como vemos as coisas. Ao olhar através
de um objeto, talvez as criaturas não conseguissem fazer-nos
mal. Nós os dois estávamos realmente à procura de uma forma de
resolver o problema. E o George, sendo o tipo de homem que era,
não se �cava pela discussão de possibilidades. Também queria
testar as teorias.
Enquanto Tom fala, Malorie pensa no rosto que se vê nas
fotogra�as ao longo da escada.
— Na noite em que o Don chegou, estávamos os três sentados
na cozinha, a ouvir rádio, quando o George sugeriu que podia
haver alguma variedade de «vida» responsável pelo que estava a
acontecer. Isto foi antes de a MSNBC propor essa teoria. O
George disse que teve a ideia ao ler um livro antigo,
Impossibilidades Possíveis, que falava de formas de vida
irreconciliáveis. Dois mundos cujos compostos eram
inteiramente estranhos podiam causar danos um ao outro se se
cruzassem. E se essa outra forma de vida pudesse chegar aqui de
alguma forma… Bem, o que o George estava a dizer aconteceu.
Eles encontraram realmente uma forma de viajar até aqui,
intencionalmente ou não. Eu adorei a história. Mas ele não. Na
altura ele passava muito tempo na Internet, a pesquisar produtos
químicos, ondas gama, qualquer coisa invisível que pudesse
causar danos se olhássemos para ela por não sabermos que
estávamos a olhar para ela. Sim, o Don passava-se muito
connosco por causa disso. É uma pessoa intensa. Já deves ter
percebido que se zanga com facilidade. Mas o George era o tipo
de homem que, quando tinha uma ideia, fazia tudo para a pôr em
prática por mais perigosa que fosse.
»  Quando o Felix e o Jules chegaram, o George estava pronto
para testar a sua teoria sobre visão refratada. Li com ele tudo o
que conseguiu encontrar na Internet. Tantos sites sobre visão e
como funcionam os olhos e as ilusões de ótica e a luz refratada,
sobre o funcionamento dos telescópios e muito mais. Estávamos
sempre a falar acerca disso. Quando o Don, o Felix e o Jules
estavam a dormir, o George e eu sentávamo-nos à mesa da
cozinha e desenhávamos diagramas. Ele andava de um lado para o
outro, depois parava, virava-se para mim e perguntava-me coisas
como: «Sabemos se alguma das vítimas usava óculos? Talvez uma
janela fechada pudesse proteger-nos, se aplicássemos
determinados ângulos.» Depois passávamos mais meia hora a
discutir o assunto.
»  Acompanhávamos constantemente as notícias, à espera de
mais uma pista, alguma informação que pudéssemos usar para
encontrar uma forma de nos protegermos. Mas as notícias
começaram apenas a repetir-se. E o George começou a �car
impaciente. Quanto mais falava sobre testar a sua teoria da «visão
alterada», mais queria tentar. Eu tinha medo, Malorie. Mas o
George era como o capitão de um navio a afundar, e não tinha
medo de morrer. E se resultasse? Bem, isso signi�caria que ele
tinha ajudado a curar o planeta da sua epidemia mais aterradora.
Enquanto Tom fala, a luz da lâmpada dança nos seus olhos
azuis.
— O que é que ele usou? — pergunta Malorie.
— Uma câmara de vídeo — diz Tom. — Ele tinha uma lá em cima.
Uma daquelas câmaras de VHS antigas. Fê-lo sem nos contar.
Certa noite, instalou-a por trás de um dos cobertores que
tapavam as janelas da sala de jantar. Fui o primeiro a acordar
naquela manhã e encontrei-o a dormir ali no chão. Quando ele
me ouviu, levantou-se e correu para a câmara. «Tom», disse,
«consegui. Tenho cinco horas de �lmagens. Está tudo aqui, aqui,
dentro desta câmara. Posso ter nas mãos a cura para isto. Visão
indireta. Filme. Temos de ver isto».
»  Eu disse-lhe que achava que era má ideia. Também não me
parecia provável que ele tivesse capturado alguma coisa em
apenas cinco horas. Mas ele tinha um plano, que nos expôs. Disse
que precisava que um de nós o amarrasse a uma cadeira num dos
quartos no andar de cima. Ele ia ver a gravação lá dentro. Na ideia
dele, amarrado à cadeira não conseguiria ferir-se se as coisas
corressem mal. O Don �cou muito zangado. Disse ao George que
ele era uma ameaça para todos nós. Disse, com razão, que não
fazíamos ideia daquilo com que estávamos a lidar, e que, se
alguma coisa acontecesse ao George, algo podia acontecer a
todos nós. Mas o Felix e eu não nos opusemos. Votámos. O Don
era o único que não queria que ele o �zesse. Falou em ir embora.
Convencemo-lo a desistir da ideia. Finalmente, o George disse-
nos que não precisava de permissão na sua própria casa para
fazer o que queria. Por isso eu ofereci-me para o amarrar à
cadeira.
— E amarraste-o?
— Sim.
O olhar de Tom �xa-se na alcatifa.
— Começou com o George a arquejar. Como se tivesse alguma
coisa alojada na garganta. Jáestava lá em cima há duas horas e
não tinha feito o menor ruído. Então começou a chamar-nos.
«Tom! Seu cabrão. Anda cá. Anda cá.» Ria-se, depois gritava e
depois uivava. Parecia um cão. Ouvimos a cadeira a bater com
força no chão. Ele estava a praguejar aos gritos. O Jules levantou-
se para o ajudar e eu agarrei-o por um braço para o impedir. Não
podíamos fazer nada a não ser ouvir. E ouvimos tudo. Tudo até a
cadeira cair e os gritos pararem. Então esperámos. Esperámos
muito tempo. Por �m, subimos as escadas juntos. De olhos
vendados, desligámos o vídeo e abrimos os olhos. Vimos o que o
George tinha feito a si mesmo. Tinha feito tanta força contra as
cordas que elas lhe tinham atravessado os músculos até ao osso.
Todo o seu corpo parecia creme para bolos, sangue e pele
dobrados sobre as cordas no peito, na barriga, no pescoço, nos
pulsos, nas pernas. O Felix vomitou. O Don e eu ajoelhámo-nos
ao lado do George e começámos a limpar. Quando terminámos, o
Don insistiu que queimássemos a gravação. E foi o que �zemos. E
enquanto ela ardia, eu não conseguia parar de pensar que com
ela desaparecia a nossa primeira teoria. Parece que,
independentemente do prisma por que forem vistos, eles nos
fazem mal.
Malorie está em silêncio.
—  Mas sabes uma coisa? Ele tinha razão. De certa forma. Ele
levantou a hipótese de que eram criaturas muito antes de os
noticiários o dizerem. Claramente tinha percebido algo. Talvez se
ele tivesse abordado a questão de uma forma diferente, pudesse
ter sido o tipo de homem que muda o mundo.
Tom tem lágrimas nos olhos.
— Sabes o que mais me preocupa nesta história, Malorie?
— O quê?
— A câmara só esteve a gravar durante cinco horas e apanhou
algo. Quantos deles estarão lá fora?
Malorie observa os cobertores que tapam as janelas. E depois
volta a olhar para Tom. Ele está a ajustar o protetor de para-
brisas que está a construir. Ouve-se uma música suave vinda da
sala de estar.
—  Bem — diz Tom, levantando-o —, espero que algo deste
género ajude. Sabes, não podemos parar de tentar só porque o
George morreu. Às vezes acho que aquilo marcou o Don. Não há
dúvida de que algo mudou nele.
Tom levanta o grande objeto à sua frente. Malorie ouve um
estalo e a construção de Tom cai feita em pedaços aos seus pés.
Ele vira-se para Malorie.
— Não podemos parar de tentar.
13
Felix encaminha-se para o poço. Na mão direita transporta um
dos seis baldes da casa. É o de madeira. A pega de ferro negra dá-
lhe um ar antigo. É mais pesado do que os outros, mas Felix não
se importa. Pelo contrário, agrada-lhe. Mantém-no centrado, diz.
Tem a corda amarrada à cintura. A outra extremidade está
atada a uma estaca de aço cravada no chão em frente à porta das
traseiras da casa. Há muita corda. Parte da corda roça-lhe nas
perneiras das calças e nos sapatos. Ele tem medo de tropeçar, por
isso levanta-a com a mão esquerda e afasta-a do corpo. Tem os
olhos vendados. Os pedaços de molduras antigas que assinalam o
caminho permitem-lhe perceber se está demasiado perto de um
dos lados.
— É como jogar ao Operação! — grita para Jules, que o espera,
com os olhos vendados, junto à estaca. — Lembras-te desse jogo?
Sempre que o meu dedo do pé toca na madeira, ouço um sinal
sonoro.
Jules ainda não parou de falar desde que Felix começou a
caminhada em direção ao poço. É assim que os habitantes da casa
executam aquela tarefa. Um vai buscar água, o outro mostra-lhe a
que distância está da casa com a sua voz. Jules não está a dizer
nada de especial. Recita as notas que teve na faculdade. Os seus
primeiros três empregos depois de terminar o curso. Felix
consegue ouvir algumas palavras, outras não. Não importa.
Enquanto Jules estiver a falar, Felix sente-se um pouco menos
como se estivesse à deriva no mar.
Mas não muito menos.
Choca com o poço quando o alcança. Arranha a perna na aresta
de uma pedra e espanta-o que um embate tão suave lhe cause
tanta dor; nem imagina como seria se estivesse a correr.
— Estou no poço, Jules! Estou a prender o balde.
Jules não é o único à espera de Felix. Cheryl está atrás da porta
das traseiras fechada. Está de pé na cozinha, a ouvir através da
porta. O colega de casa que espera na cozinha só está lá para o
caso de algo correr mal no exterior. Ela espera que o seu papel
como «rede de segurança» não seja necessário hoje.
Por cima da boca do poço há uma barra de madeira. Em cada
extremidade há um gancho de ferro. É por isso que Felix gosta de
levar o balde de madeira quando vai buscar água. É o único que
encaixa perfeitamente nos ganchos. Ele amarra a corda do poço
ao balde. Depois de o prender, gira a manivela, esticando ao
máximo a corda. Com as mãos livres, limpa-as às calças de ganga.
Então ouve algo a mover-se ali fora.
Virando rapidamente a cabeça, Felix ergue as mãos em frente
ao rosto. Mas não acontece nada. Nada vem na sua direção.
Consegue ouvir Jules a falar junto à porta das traseiras. Diz algo
acerca de trabalhar como mecânico. A reparar coisas.
Felix escuta.
Com a respiração acelerada, ele dá à manivela uma vez na
direção oposta, com a audição focada no resto do jardim. A corda
está apenas su�cientemente solta para lhe permitir soltar o balde
dos ganchos e deixá-lo pendurado, suspenso, por cima da boca
de pedra do poço. Ele aguarda mais um minuto. Jules chama-o.
— Está tudo bem, Felix?
Felix escuta um pouco mais antes de responder. Enquanto
responde, sente que a sua voz denuncia a sua localização exata.
— Sim. Pareceu-me ter ouvido algo.
— O quê?
— Pareceu-me ter ouvido algo! Estou a tirar a água agora.
Girando a manivela, Felix baixa o balde. Ouve-o a bater nos
lados de pedra do interior do poço. Seguem-se ecos ocos. Felix
sabe que é preciso dar cerca de 20 voltas à manivela para o balde
chegar à água. Está a contar.
— Onze, doze, treze…
Aos dezanove ouve o som de algo a bater em água no fundo do
poço. Quando acha que o balde está cheio, volta a puxá-lo para
cima. Prendendo-o nos ganchos, solta a corda e começa a
caminhar novamente na direção de Jules.
Vai fazer isto três vezes.
— Estou a trazer o primeiro! — grita Felix.
Jules ainda está a falar de reparar carros. Quando Felix chega
junto dele, Jules toca-lhe no ombro. Normalmente, nesta altura, o
colega de casa que está parado junto à estaca bate na porta das
traseiras, alertando a pessoa que espera lá dentro que o primeiro
balde foi trazido. Mas Jules hesita.
— O que é que ouviste? — pergunta.
Felix, carregando o balde pesado, pensa.
— Provavelmente era um veado. Não tenho a certeza.
— Veio do bosque?
— Não sei de onde veio.
Jules está imóvel. Então Felix ouve-o a mover-se.
— Estás a tentar certi�car-te de que estamos sozinhos?
— Sim.
Quando está satisfeito, Jules bate duas vezes na porta das
traseiras. Tira o balde das mãos de Felix. Cheryl abre rapidamente
a porta e Jules passa-lhe o balde. A porta fecha-se.
—  Aqui está o segundo — diz Jules, entregando outro balde a
Felix.
Felix caminha em direção ao poço. O balde que transporta
agora é feito de chapa metálica. Há três destes na casa. No fundo
tem duas pedras pesadas. Tom pô-las lá quando determinou que
o balde não era su�cientemente pesado para submergir. É
pesado, mas não tanto como o de madeira. Jules está outra vez a
falar. Agora enumera raças de cães. Felix já ouviu tudo isto antes.
Jules teve um labrador branco, Cherry, que a�rma ser o cão mais
ansioso que já conheceu. Quando o seu sapato toca num pedaço
de madeira no chão, Felix quase cai. Está a caminhar muito
depressa. Tem consciência disso. Abranda. Desta vez, junto ao
poço, estende a mão para o encontrar. Pousa o balde no bordo de
pedra e começa a prender a corda da barra transversal à pega do
balde.
Ouve algo. Outra vez. Parece madeira a estalar ao longe.
Quando Felix se vira, derruba acidentalmente o balde. Ele cai lá
para dentro; a manivela gira sem ele. O balde bate no fundo.
Ouvem-se ecos de metal contra pedra. Jules chama-o. Felix,
virando-se, sente-se incrivelmente vulnerável. Mais uma vez, não
sabe de onde veio o som. Escuta, com a respiração acelerada.
Inclinando-secontra a pedra, ele espera.
O vento agita as folhas das árvores.
Mais nada.
— Felix?
— Deixei cair o balde no poço!
— Estava preso?
Ele faz uma pausa.
Felix vira-se nervosamente para o poço. Puxa a corda da barra e
descobre que sim, tinha-a prendido à pega antes de deixar cair o
balde. Solta a corda. Vira-se para o resto do jardim. Faz uma
pausa. Então começa a puxar o segundo balde.
Enquanto caminha de volta para a casa, Jules enche-o de
perguntas.
— Estás bem, Felix?
— Sim.
— Deixaste-o cair?
— Sim. Pensei ter ouvido algo outra vez.
— O que é que te pareceu? Um galho a quebrar-se?
— Não. Sim. Talvez. Não sei.
Quando Felix chega ao pé de Jules, este pega no balde.
— Tens a certeza de que queres fazer isto hoje?
—  Sim. Já tirei dois baldes. Está tudo bem. Estou só a ouvir
coisas lá fora, Jules.
— Queres que eu vá buscar o último?
— Não. Eu vou.
Jules bate à porta das traseiras. Cheryl abre, recebe o balde e dá
o terceiro a Jules.
— Vocês estão bem? — pergunta ela.
— Sim — diz Felix. — Estamos ótimos.
Cheryl fecha a porta.
— Aqui tens — diz Jules. — Se precisares de mim, diz. Lembra-
te, estás ligado a mim.
Ele puxa a corda.
— OK.
Na terceira viagem ao poço, Felix tem de se lembrar de
abrandar novamente. Sabe porque é que tem pressa. Quer voltar
para dentro, onde pode olhar para o rosto de Jules, onde os
cobertores nas janelas o fazem sentir-se mais seguro. Ainda
assim, chega ao poço mais cedo do que esperava. Lentamente,
amarra a corda da barra do poço à pega do balde. Então para.
Não se ouve nada para além da voz de Jules, vinda da outra
extremidade da corda.
O mundo parece anormalmente silencioso.
Felix gira a manivela.
— Um, dois…
Jules está a falar. A sua voz parece distante. Muito distante.
— … seis, sete…
Jules parece ansioso. Porque é que parece ansioso? Deveria
estar também?
— … dez, onze…
Gotas de suor formam-se por trás da venda que cobre os olhos
de Felix. O suor corre-lhe lentamente para o nariz.
Não tarda nada vamos estar dentro de casa outra vez, pensa
Felix. Só preciso de encher o terceiro balde e dar à…
Volta a ouvir aquele som. Pela terceira vez.
Mas agora sabe de onde vem.
Está a vir do interior do poço.
Ele solta a manivela e recua. O balde cai, batendo contra a
pedra, antes de bater na água lá em baixo.
Algo se moveu. Algo se moveu na água.
Algo se moveu na água?
Subitamente, sente frio, muito frio. Está a tremer.
Jules chama-o, mas Felix não quer responder. Não quer fazer o
menor ruído.
Ele espera. E quanto mais espera, mais assustado �ca. Como se
o silêncio estivesse a tornar-se mais intenso. Como se estivesse
prestes a ouvir algo que não quer ouvir. Mas quando nenhum som
surge, começa lentamente a convencer-se de que estava
enganado. Claro, pode ter sido algo no poço, mas também pode
ter sido algo no rio. Ou no bosque. Ou na relva.
Pode ter vindo de qualquer lugar.
Ele avança novamente para o poço. Antes de estender a mão
para a corda, toca no bordo de pedra do poço. Corre os dedos
por ele. Está a tentar determinar a sua largura.
Caberias aqui dentro? Alguém conseguiria caber aqui dentro?
Não tem a certeza. Vira-se para a casa, pronto para largar o
balde. Depois volta-se para o poço e começa a girar a manivela,
depressa.
Estás a ouvir coisas. Estás a perder o juízo, meu. Puxa o raio do
balde. Volta para dentro. Agora.
Mas enquanto gira a manivela, Felix sente o início de um medo
que pode ser grande demais para enfrentar. O balde parece-lhe
um pouco mais pesado do que o habitual.
NÃO ESTÁ mais pesado! PUXA o balde e VOLTA para dentro
AGORA!
Quando o balde chega ao bordo do poço, Felix para.
Lentamente, estende uma mão para ele. Tem a mão a tremer.
Quando os seus dedos tocam na pega húmida de aço, ele engole
em seco. Prende a manivela. E então en�a a mão no balde.
— Felix?
Jules está a chamá-lo.
Felix não sente nada a não ser água no balde.
Vês? Estás a imaginar…
Atrás dele, ouve passos molhados na relva.
Felix deixa cair o balde e corre.
Cai.
Levanta-te.
Volta a levantar-se e corre.
Jules está a chamá-lo. Ele está a responder.
Cai novamente.
Levanta-te. Levanta-te.
Levanta-se e corre.
As mãos de Jules tocam-lhe.
A porta das traseiras está a abrir-se. As mãos de outra pessoa
agarram-no. Ele está lá dentro. Estão todos a falar ao mesmo
tempo. Don está a gritar. Cheryl está a gritar. Tom ordena a todos
que se acalmem. A porta das traseiras está fechada. Olympia
pergunta o que está a acontecer. Cheryl pergunta o que
aconteceu. Tom está a dizer a todos para fecharem os olhos.
Alguém está a tocar em Felix. Jules grita, ordenando a todos que
se calem.
Eles calam-se.
Então Tom fala, em voz baixa.
— Don, viste junto à porta das traseiras?
— Como é que queres que eu saiba se o �z bem, meu?
— Só estou a perguntar se procuraste.
— Procurei. Sim. Procurei.
Tom pergunta:
— Felix, o que aconteceu?
Felix conta-lhes. Todos os detalhes de que se lembra. Tom
pede-lhe que repita o que aconteceu no �m. Quer saber mais
sobre o que aconteceu junto à porta das traseiras. Antes de o
deixarem entrar. Quando o deixaram entrar. Felix repete.
— OK — diz Tom novamente. — Vou abrir os olhos.
Malorie �ca tensa.
— Estou bem — diz Tom. — Está tudo bem.
Malorie abre os olhos. Na bancada da cozinha há dois baldes
com água do poço. Felix está de pé, vendado, junto à porta das
traseiras. Jules está a tirar-lhe a venda.
— Tranquem essa porta — ordena Tom.
— Está trancada — responde Cheryl.
— Jules — diz Tom —, empilha as cadeiras da sala de jantar em
frente a esta porta. Depois bloqueia a janela da sala de jantar com
a mesa.
— Tom — diz Olympia —, estás a assustar-me.
— Don, vem comigo. Vamos bloquear a porta da frente com o
aparador. Felix, Cheryl, virem o sofá na sala. Bloqueiem uma das
janelas. Encontrem algo para bloquear a outra.
Os colegas de casa estão a olhar para Tom.
— Vamos — ordena ele, impaciente. — Vamos!
Quando começam a dispersar, Malorie toca no braço de Tom.
— O que é?
—  A Olympia e eu podemos ajudar. Estamos grávidas, não
incapacitadas. Vamos pôr os colchões do andar de cima contra as
janelas.
—  OK. Mas façam-no com os olhos vendados. E tenham mais
cuidado do que nunca.
Então, Tom sai da cozinha. Quando Malorie e Olympia passam
pela sala de estar, Don já lá está, a mover o sofá. No andar de
cima, as duas mulheres colocam delicadamente o colchão de
Malorie de lado contra o cobertor que tapa a janela. Fazem o
mesmo nos quartos de Olympia e Cheryl.
Novamente no andar de baixo, as portas e as janelas estão
barricadas.
Os colegas de casa estão na sala de estar. Estão muito juntos.
— Tom — diz Olympia —, há alguma coisa lá fora?
Tom faz uma pausa antes de responder. Malorie vê algo mais
profundo do que medo nos olhos de Olympia. Também o sente.
— Talvez.
Tom está a olhar para as janelas.
— Mas pode ter sido… um veado, não pode? Não pode ter sido
um veado?
— Talvez.
Um a um, os colegas de casa sentam-se no chão alcatifado da
sala de estar. Estão ombros com ombros, costas com costas. No
centro da sala, com o sofá contra uma janela e as cadeiras da
cozinha empilhadas contra a outra, �cam sentados em silêncio.
Escutam.
14
A água fria do rio salpica as calças de Malorie enquanto ela rema.
Sempre que isso acontece, ela imagina uma das criaturas no rio, a
pôr as mãos em concha, a atirar-lhe água para cima, a troçar da
sua tentativa de fuga. Ela estremece.
O livro do bebé de Olympia, recorda Malorie, ensinou-lhe
muitas coisas. Mas havia uma frase no livro Finalmente… um Bebé!
que a marcou especialmente:
 
O seu bebé é mais inteligente do que você pensa.
 
A princípio, Malorie teve di�culdade em aceitar isto. No novo
mundo, os bebés tinham de ser treinados para acordar de olhos
fechados. Tinham de ser educados com medo. Não havia espaço
para incógnitas. No entanto, havia momentos em que o Rapaz e a
Rapariga a surpreendiam.
Uma vez, depois de ter tirado do corredor os brinquedos
improvisados das crianças, Malorie entrou na sala de estar. Ali,
ouviu algo a mover-se no quarto ao fundo do corredor no andar
de cima.
— Rapaz? — chamou. — Rapariga?Mas sabia que as crianças estavam no quarto. Tinha-as
trancado nos berços menos de uma hora antes.
Malorie fechou os olhos e entrou no corredor.
Sabia que som era aquele. Sabia exatamente onde estava cada
objeto daquela casa. Era o som de um livro a cair da mesa no
quarto que Don e Jules tinham partilhado em tempos.
Malorie parou à porta do quarto das crianças. Lá dentro ouviu
um suave ressonar.
Um segundo estrondo no outro quarto e Malorie abafou um
grito. A casa de banho �cava a poucos metros de distância. As
crianças estavam a dormir. Se conseguisse entrar na casa de
banho, poderia defender-se.
Às cegas, com os braços levantados à frente do rosto, avançou
rapidamente, chocando com a parede antes de entrar na casa de
banho. Lá dentro, bateu com a anca contra o lavatório. Tateando
freneticamente ao longo da parede, encontrou uma toalha
pendurada. Atou-a �rmemente em volta da cabeça para tapar os
olhos. Deu dois nós. Então, atrás da porta aberta, encontrou o
que procurava.
O machado do jardim.
Armada, de olhos vendados, saiu da casa de banho. Agarrando o
cabo do machado com as duas mãos, avançou em direção à porta
que sabia que estava sempre fechada. A porta que agora estava
aberta.
Entrou.
Balançou o machado às cegas, ao nível dos olhos. O machado
atingiu a parede de madeira e Malorie gritou quando as farpas
saltaram. Virou-se e balançou novamente, desta vez atingindo a
parede oposta.
— Sai daqui! Deixa os meus �lhos em paz!
Ofegante, esperou.
Por uma resposta. Por um movimento. Pelo que quer que
tivesse derrubado os livros ali dentro.
Então ouviu o Rapaz aos seus pés, a gemer.
— Rapaz?
Atordoada, ajoelhando-se, Malorie encontrou-o rapidamente.
Tirou a toalha e abriu os olhos.
Nas suas mãos minúsculas, viu que ele tinha uma régua. Ao seu
lado estavam os livros.
Ela pegou-lhe e levou-o para o quarto. Ali, viu a cobertura de
arame do berço aberta. Pousou-o no chão ao lado dela. Então
voltou a fechá-la e pediu ao Rapaz que a abrisse. O Rapaz limitou-
se a olhar para ela. Ela brincou com o pequeno fecho, pedindo-
lhe para lhe mostrar se era capaz de o abrir. E ele mostrou.
Malorie deu-lhe uma bofetada.
Finalmente… um bebé!
Lembrou-se do livro de Olympia que agora era seu.
E a única frase que tentara ignorar voltou à sua mente.
O seu bebé é mais inteligente do que você pensa.
Aquilo costumava preocupá-la. Mas hoje, no barco, usando os
ouvidos das crianças como guia, agarra-se a ela, esperando que
as crianças estejam o mais preparadas possível para o que possa
surgir mais à frente no rio.
Sim, espera que sejam mais inteligentes do que o que está à sua
frente.
15
— Não vou beber aquela água — diz Malorie.
Os colegas de casa estão esgotados. Dormem juntos na sala de
estar, embora ninguém durma por muito tempo.
— Não podemos passar dias sem beber, Malorie — diz Tom. —
Pensa no bebé.
— É nele que estou a pensar.
Na cozinha, em cima da bancada, os dois baldes que Felix
trouxe continuam intocados. Um a um, os colegas de casa
lambem os lábios secos, tentando humedecê-los. Já passaram 24
horas e a probabilidade de �carem muito mais tempo naquela
incerteza pesa nas mentes de todos.
Estão sedentos.
— Podemos beber a água do rio? — pergunta Felix.
— Bactérias — responde Don.
—  Depende — diz Tom. — Do quão fria a água está. Da
profundidade. Da velocidade a que corre.
— E de qualquer forma — diz Jules —, se alguma coisa entrou no
poço, tenho a certeza de que entrou no rio.
Contaminação, pensa Malorie. É a palavra do momento.
Na cave há três baldes de urina e fezes. Ninguém quer levá-los
para a rua. Ninguém quer ir lá fora hoje. O cheiro na cozinha é
forte e penetra levemente na sala de estar.
—  Eu beberia a água do rio — diz Cheryl. — Era capaz de
arriscar.
— Queres ir lá fora? — pergunta Olympia. — Pode haver algo do
outro lado da porta!
—  Eu não sei o que ouvi — diz Felix. Já o disse várias vezes.
Disse que se sente culpado por os ter assustado a todos.
— Provavelmente era uma pessoa — diz Don. — Provavelmente
alguém que nos quer roubar.
—  Temos de descobrir isso agora? — pergunta Jules. — Só
passou um dia. Não ouvimos nada. Vamos esperar. Mais um dia. A
ver se nos sentimos melhor.
— Eu até era capaz de beber dos baldes — diz Cheryl. — É um
poço, por amor de Deus. Os animais estão constantemente a cair
em poços. Morrem lá. Provavelmente estivemos este tempo todo
a beber água com animais mortos.
— A água deste bairro sempre foi boa — diz Olympia.
Malorie levanta-se. Caminha até à porta da cozinha. A água
brilha na borda do balde de madeira, brilha no metal.
O que é que isto nos pode fazer? pergunta-se.
— Consegues imaginar-te a beber uma pequena quantidade de
um deles? — pergunta Tom.
Malorie vira-se. Ele está ao lado dela. O seu ombro roça no dela
à entrada da cozinha.
— Não sou capaz, Tom.
— Não te pediria que o �zesses. Mas posso perguntar.
Quando Malorie o olha nos olhos, sabe que ele está a falar a
sério.
— Tom.
Tom vira-se para os outros na sala de jantar.
— Vou beber — diz ele.
— Não precisamos de heróis — diz Don.
— Não é essa a minha intenção, Don. Estou com sede.
Os colegas de casa estão calados. Malorie vê em cada rosto o
sentimento que alberga em si mesma. Por mais assustada que
esteja, quer que alguém beba.
—  Isso é uma loucura — diz Felix. — Vá lá, Tom. Vamos
conseguir encontrar outra solução.
Tom entra na sala de jantar. À mesa, olha Felix nos olhos.
— Tranca-me na cave. Vou beber lá.
— Vais enlouquecer com o cheiro — diz Cheryl.
Tom faz um sorriso triste.
— Temos um poço, mesmo no nosso quintal — diz ele. — Se não
pudermos usá-lo, não podemos usar nada. Deixem-me fazer isto.
— Sabes quem nos fazes lembrar? — pergunta Don.
Tom �ca à espera.
— O George. Com uma diferença: ele tinha uma teoria.
Tom olha para a mesa da sala de jantar que está a barricar a
janela.
— Estamos aqui há meses — diz ele. — Se alguma coisa entrou
para o poço ontem, provavelmente já lá entrara antes.
— Estás a racionalizar — diz Malorie.
Tom responde sem se virar para ela.
— E temos alternativa? Claro, o rio. Mas podemos �car doentes.
Muito doentes. Não temos medicamentos. A única coisa que
tivemos até agora é a água do poço. É o único medicamento que
temos. O que mais podemos fazer? Caminhar até ao próximo
poço? E depois? Esperamos que nada entre nesse?
Malorie observa, um por um, os colegas de casa a concordar
com Tom. A rebelião natural no rosto de Don dá lugar à
preocupação. O medo nos olhos de Olympia transforma-se em
culpa. Malorie não quer que ele o faça. Pela primeira vez desde a
sua chegada à casa, o papel de Tom, o quanto é integral para tudo
o que acontece ali, ofusca-a.
Mas, em vez de o travar, ela deixa-se inspirar por ele. E ajuda-o.
—  Na cave não — diz ela. — E se enlouqueceres lá dentro e
destruíres as nossas reservas de comida?
Tom vira-se para ela.
— Muito bem — concorda ele. — Então, no sótão.
— Um salto da janela do sótão é muito mais alto do que de uma
das janelas aqui de baixo.
Tom olha �xamente para os olhos de Malorie.
— OK, então o meio-termo — diz ele. — O segundo andar. Têm
de me trancar nalgum lugar. E não há lugar aqui em baixo.
— Podes usar o meu quarto.
— Esse quarto — diz Don —, é o que o George usou para ver o
vídeo.
Malorie olha novamente para Tom.
— Eu não sabia.
— Vamos a isto — diz Tom.
Ele faz uma pausa, por um breve momento, antes de passar por
Malorie e entrar na cozinha. Malorie segue-o. Os colegas de casa
seguem-no. Quando ele tira um copo do armário, Malorie agarra-
lhe suavemente no braço.
— Bebe através disto — diz ela. Dá-lhe um �ltro de café. — Não
sei. Um �ltro. Quem sabe?
Tom pega no �ltro. Olha-a nos olhos. E depois mergulha o copo
no balde de madeira.
Quando o retira, ergue-o no ar. Os colegas de casa formam um
semicírculo à sua volta. Observam o conteúdo do copo.
Os detalhes da história de Felix voltam a arrepiar Malorie.
Com o copo na mão, Tom sai da cozinha. Jules tira uma corda
da despensa da cozinha e segue-o.
Os outros colegas de casa não falam. Malorie pousa uma mão
na barriga e a outra na bancada.Depois levanta-a rapidamente,
como se tivesse acabado de a pousar numa substância mortífera.
Contaminação.
Mas não havia água onde ela pousou a mão.
No andar de cima, a porta do quarto fecha-se. Ela �ca à escuta
enquanto Jules amarra a corda em volta da maçaneta da porta e
prende a outra ponta ao corrimão da escada.
Agora, Tom está trancado.
Como George.
Felix caminha de um lado para o outro. Don está encostado à
parede, de braços cruzados, a �tar o chão. Quando Jules regressa,
Victor aproxima-se dele.
Ouve-se um som vindo do andar de cima. Malorie abafa um
grito. Os colegas de casa olham para o teto.
Esperam. Escutam. Felix move-se como se se preparasse para ir
lá. Depois para.
— Ele já deve ter bebido — diz Don em voz baixa.
Malorie avança para a entrada da sala de estar. Ali, a dez metros
de distância, começa a escada.
Há apenas silêncio.
Depois ouve-se uma batida.
E Tom grita.
Tom grita Tom grita Tom grita Tom
Malorie já está a avançar para a escada, mas Jules ultrapassa-a.
— Fica aqui! — ordena.
Ela vê-o a subir os degraus.
— Tom!
— Jules, estou bem.
Ao ouvir a voz de Tom, Malorie expira. Apoia-se no corrimão.
— Bebeste? — pergunta Jules através da porta.
— Sim. Bebi. Estou bem.
Os outros colegas de casa estão agora reunidos atrás dela.
Começam a falar. Primeiro em voz baixa. Depois com entusiasmo.
Lá em cima, Jules desata a corda. Tom sai do quarto com o copo
vazio na mão.
— Que tal? — pergunta Olympia.
Malorie sorri. Os outros também. É engraçado, e ao mesmo
tempo sinistro, perguntar como foi beber um copo de água.
— Bem — diz Tom, descendo a escada —, foi provavelmente o
melhor copo de água que já bebi.
Quando ele chega ao fundo da escada, olha Malorie nos olhos.
—  Gostei da ideia do �ltro — diz ele. Quando passa por ela,
pousa o copo na mesa do telefone. Depois volta-se para os
outros. — Vamos voltar a pôr os móveis no lugar. Vamos voltar a
pôr este sítio em ordem.
16
No rio, Malorie sente o calor do sol do meio-dia. Em vez de lhe
dar paz, relembra-a do quanto devem estar visíveis.
— Mamã — sussurra o Rapaz.
Malorie inclina-se para a frente. Uma farpa do remo espeta-se
na sua mão. Já é a terceira.
— O que é?
— Shhh — diz o Rapaz.
Malorie para de remar. Põe-se à escuta.
O Rapaz tem razão. Algo se move na terra à sua esquerda.
Galhos que se quebram. Mais do que um.
O homem do barco viu algo neste rio, grita a mente de Malorie.
Poderá ser ele? Pode estar no bosque? Pode estar atrás dela, à
espera que �que presa, pronto para lhe arrancar a venda? A das
crianças?
Mais galhos a quebrarem-se. O que quer que seja, move-se
lentamente. Malorie pensa na casa que deixaram para trás.
Estavam em segurança ali. Porque é que partiram? O lugar para
onde se dirigem será mais seguro? Como pode ser? Num mundo
onde não se pode abrir os olhos, uma venda não é tudo o que se
pode desejar?
Partimos porque algumas pessoas optam por aguardar notícias e
outras fazem as suas próprias notícias.
Como Tom costumava dizer. Malorie sabe que nunca vai deixar
de se sentir inspirada por ele. Só o facto de pensar nele, ali, no
rio, a enche de esperança.
Tom, quer dizer-lhe, as tuas ideias eram boas.
—  Rapaz — sussurra ela, remando novamente, com medo de
estar demasiado perto da margem esquerda —, o que é que estás
a ouvir?
— Está perto, mamã. — Depois diz: — Tenho medo.
Há um momento de silêncio. Durante esse tempo, Malorie
imagina um perigo a apenas centímetros de distância.
Para de remar novamente, para ouvir melhor. Inclina o pescoço
para a esquerda.
A frente do barco a remos bate em algo duro. Malorie grita. As
crianças gritam.
Chocámos com a margem!
Malorie faz um movimento para espetar um remo onde crê que
está a lama, mas não encontra nada.
—  Deixa-nos em paz! — grita, com o rosto contorcido.
Subitamente, anseia pelas paredes da casa. Não há paredes neste
rio. Não há nenhuma cave por baixo dele. Nenhum sótão por
cima.
— Mamã!
Quando a Rapariga grita por ela, algo emerge dos ramos. Algo
grande.
Malorie volta a lançar o remo, mas só acerta em água. Agarra no
Rapaz e na Rapariga e puxa-os para si.
Ouve rosnar.
— Mamã!
—  Silêncio! — grita ela, puxando a Rapariga ainda mais para
junto de si.
Será o homem? Enlouquecido? As criaturas rosnam? Fazem
algum barulho?
Um segundo rosnado agora e, subitamente, Malorie percebe o
que é. É algo canino.
Lobos.
Não tem tempo para se encolher antes de uma garra de lobo lhe
rasgar o ombro.
Ela grita. Sente imediatamente o sangue quente a jorrar-lhe ao
longo do braço. A água fria agita-se no fundo do barco.
A urina também.
Eles sentem o cheiro, pensa Malorie, frenética, virando a cabeça
em todas as direções e brandindo o remo ao acaso. Eles sabem
que não nos podemos defender.
Ouve outro rosnado. É uma matilha. A ponta do barco a remos
�ca presa em algo. Malorie não consegue encontrá-lo com o
remo. Mas o barco gira, como se os lobos tivessem agarrado a
proa.
Eles podem entrar! ELES PODEM ENTRAR! Rasteja para a frente
do barco. Tens de o soltar.
Balançando o remo acima das cabeças das crianças, gritando,
Malorie levanta-se. O barco inclina-se para a direita. Ela pensa
que o barco se vai virar. Endireita-se. Os lobos rosnam. O ombro
arde-lhe, com uma dor que nunca tinha sentido. Agarrando nele,
às cegas, descontroladamente, ela agita o remo na direção da
ponta do barco. Mas não consegue alcançá-la. Então dá um passo
em frente.
— Mamã!
Ela cai de joelhos. O Rapaz está agora ao seu lado. Está a
agarrar-lhe na camisa.
— Preciso que me largues! — grita ela.
Algo salta para a água.
Malorie vira a cabeça na direção do som.
Esta parte será muito rasa? Eles conseguem entrar no barco? Os
lobos conseguem ENTRAR NO BARCO??
Virando-se rapidamente, ela rasteja até à ponta do barco a
remos e estica a mão, às cegas.
Atrás dela, as crianças gritam. A água salpica-a. O barco
balança. Os lobos rosnam. E na escuridão dos seus próprios olhos
fechados, a mão de Malorie sente um toco.
Grita ao esticar os dois braços. O ombro esquerdo dói-lhe.
Sente o ar gelado de outubro na sua pele ferida. Com a segunda
mão, sente um segundo coto de árvore.
Estamos presos. Só isso! Estamos presos!
Enquanto ela faz força contra os dois cotos, algo bate no barco.
Ela ouve garras a arranhar, a tentar trepar.
O barco roça contra a madeira. Há chapinhados na água.
Malorie ouve o som vindo de todas as direções. Ouve outro
rosnar e sente calor. Há algo perto do seu rosto.
Ela berra e volta a empurrar.
E �nalmente consegue soltar o barco.
Virando-se demasiado depressa, Malorie tropeça e cai no banco
do meio.
— Rapaz! — grita.
— Mamã!
E depois tateia à procura da Rapariga e descobre o seu corpo
colado ao banco do meio.
— Estão bem? Falem comigo!
— Tenho medo — diz a Rapariga.
— Eu estou bem, mamã! — diz o Rapaz.
Malorie rema depressa. O ombro esquerdo, que já passou o
ponto de exaustão, resiste. Mas ela obriga-o a funcionar.
Malorie rema. As crianças estão encolhidas junto aos seus
joelhos e pés. A água abre-se sob a madeira. Ela rema. O que mais
pode fazer? O que mais pode fazer, senão remar? Os lobos podem
estar a vir aí. Até que ponto o rio é raso naquela parte?
Malorie rema. Parece-lhe que tem o braço pendurado. Mas ela
rema. O lugar para onde está a levar as crianças pode já não
existir. A viagem excruciante, atravessando o rio às cegas, pode
não resultar em nada. Quando chegarem lá, ao fundo do rio,
estarão em segurança? E se o que procura não estiver lá?
17
— Nós assustamo-los — diz Olympia subitamente.
— O que é que queres dizer com isso? — pergunta Malorie. As
duas estão sentadas no terceiro degrau da escada.
—  Os nossos colegas de casa. Eles têm medo das nossas
barrigas. E eu sei porquê. É porque um dia vão ter de fazer os
partos.
Malorie olha para a sala de estar. Está na casa há dois meses.
Está grávida de cinco meses. Também pensou nisso. Claro que
sim.
— Quem é que achas que vai fazê-lo? — pergunta Olympia, com
os olhos grandes e inocentes �xos em Malorie.
— O Tom — diz Malorie.
—  OK, mas eu sentir-me-ia muito melhor se houvesse um
médico nacasa.
Este pensamento está sempre na mente de Malorie. O dia
inevitável em que dará à luz. Sem médico. Sem medicamentos.
Sem amigos ou família. Tenta imaginar que é uma experiência
breve. Algo que vai acontecer depressa e acabar logo. Imagina o
momento em que lhe rebentam as águas, e depois imagina-se a
pegar no bebé. Não quer pensar no que acontece entre uma coisa
e outra.
Os outros estão reunidos na sala de estar. As tarefas da manhã
estão terminadas. Durante todo o dia, Malorie teve a sensação de
que Tom está a pensar em alguma coisa. Tem estado distante.
Isolado com os seus pensamentos. Agora ele está de pé no centro
da sala, rodeado por todos os habitantes da casa, e revela o que
tem estado a pensar. É exatamente o que Malorie esperava que
não fosse.
— Tenho um plano — diz ele.
— Oh, sim? — pergunta Don.
— Sim. — Tom faz uma pausa, como que para se certi�car uma
última vez daquilo que se prepara para dizer. — Precisamos de
guias.
— O que queres dizer com isso? — pergunta Felix.
— Quero dizer que vou procurar cães.
Malorie levanta-se da escada e caminha até à entrada da sala de
estar. A ideia de Tom sair de casa cativou a sua atenção, bem
como a dos outros.
— Cães? — pergunta Don.
— Sim — diz Tom. — Cães vadios. Antigos animais de estimação.
Deve haver centenas lá fora. À solta. Ou presos dentro de casas
de onde não podem sair. Se vamos sair para arranjar comida,
coisa que todos sabemos que temos de fazer, eu gostava de ter
ajuda. Os cães podem alertar-nos.
— Tom, não sabemos o efeito que eles têm nos animais — diz
Jules.
— Eu sei. Mas não podemos �car parados.
A tensão na sala aumentou.
—  Estás louco — diz Don. — Estás mesmo a pensar ir lá para
fora.
— Vamos armados — diz Tom.
Don inclina-se para a frente na poltrona.
— O que é que tens em mente?
— Tenho andado a fazer capacetes — diz Tom. — Para proteger
as nossas vendas. Vamos levar facas. Os cães podem guiar-nos. Se
um deles enlouquecer? Soltamos a trela. Se o animal vier atrás de
nós, matamo-lo com a faca.
— Às cegas.
— Sim. Às cegas.
— Não me agrada — diz Don.
— Porquê?
—  Pode haver gente perigosa lá fora. Criminosos. As ruas não
são o que eram, Tom. Já não estamos nos subúrbios. Estamos no
caos.
— Bem, algo tem de mudar — diz Tom. — Precisamos de fazer
progressos. Caso contrário estamos à espera de notícias num
mundo onde já não há notícias.
Don �ta o tapete. Depois volta-se para Tom.
— É muito perigoso. Não há razão para isso.
— Há todas as razões para isso.
— Eu digo que devemos esperar.
— Esperar pelo quê?
— Por socorro. Por alguma coisa.
Tom olha para os cobertores que tapam as janelas.
— Não vai chegar ajuda, Don.
—  Isso não signi�ca que devamos correr para a rua à procura
dela.
— Vamos a votos — diz Tom.
Don olha para os rostos dos outros colegas de casa. É óbvio que
está à procura de alguém que concorde com ele.
— Votar — diz Don. — Essa ideia também não me agrada.
— Porquê? — pergunta Felix.
— Porque não estamos a tentar decidir de que baldes beber e
em que baldes urinar, Felix. Estamos a falar de um ou mais de nós
saírem desta casa, sem um bom motivo.
—  Não é sem um bom motivo — diz Tom. — Pensa nos cães
como um sistema de alarme. O Felix ouviu algo junto ao poço há
duas semanas. Seria um animal? Um homem? Uma criatura? O
cão adequado talvez tivesse ladrado. Estou a falar de procurar
aqui no bairro. Talvez no próximo também. Dá-nos doze horas. É
tudo o que peço.
Doze horas, pensa Malorie. Tirar água do poço leva apenas meia
hora.
Mas o número, por ser �nito, acalma-a.
— Não percebo porque é que haveríamos de procurar cães de
rua — diz Don. Aproxima-se de Victor, que está aos pés de Jules.
— Temos aqui um. Vamos treiná-lo.
— Nem pensar — responde Jules, levantando-se.
— Porquê?
— Eu não o trouxe para ser sacri�cado. Até sabermos como os
cães são afetados, não estou de acordo.
— Sacri�cado — diz Don. — Boa escolha de palavras.
— A resposta é não — repete Jules.
Don vira-se para Tom.
— Estás a ver? A única pessoa da casa que tem um cão é contra.
— Eu não disse que era contra a ideia do Tom — diz Jules.
Don olha em volta da sala.
—  Então são todos a favor? A sério? Acham todos que é boa
ideia?
Olympia olha para Malorie, de olhos arregalados. Don, vendo
uma oportunidade para conseguir uma aliada, aproxima-se dela.
— O que achas, Olympia? — pergunta.
— Oh! Eu… bem… Eu… não sei!
— Don — diz Tom. — Vamos fazer uma votação a sério.
— Eu concordo — diz Felix.
Malorie olha em volta da sala.
— Eu também — diz Jules.
— Também eu — diz Cheryl.
Tom volta-se para Don. Quando o faz, Malorie sente algo a
afundar-se dentro de si.
A casa precisa dele, percebe Malorie.
— Eu vou contigo — diz Jules. — Já que não te deixo usar o meu
cão, posso ao menos ajudar-te a encontrar outros.
Don abana a cabeça.
— Vocês são loucos.
— Então vamos começar a fazer um capacete para ti também —
diz Tom, plantando uma mão no ombro de Jules.
Na manhã seguinte, Tom e Jules estão a dar os últimos retoques
no segundo capacete.
Vão sair hoje. Malorie acha que está tudo a acontecer
demasiado depressa. Acabaram de votar a favor de se sair, mas é
preciso saírem já?
Don não tenta esconder os seus sentimentos. Os outros, tal
como Malorie, estão esperançosos. Malorie sabe que é difícil não
se deixarem levar pela energia de Tom. Se fosse Don quem
estivesse prestes a sair, talvez tivesse menos esperança de o ver
regressar com cães-guia. Mas Tom tem aquela energia. Quando
ele diz que vai fazer algo, parece que já está feito.
Malorie assiste do sofá. Os livros Grávida e Finalmente… um
bebé! falam da «transmissão de stress» entre a mãe e o �lho.
Malorie não quer que o seu bebé sinta a ansiedade que sente
agora, enquanto observa Tom a preparar-se para sair da casa.
Junto à parede estão dois sacos de viagem, cheios até meio com
enlatados, lanternas e cobertores. Ao lado deles estão facas
grandes e as antigas pernas de um banquinho de cozinha,
esculpidas em forma de estacas. Vão usar as vassouras como
bengalas.
—  Talvez os animais não consigam enlouquecer por terem
cérebros demasiado pequenos — diz Olympia.
Pela expressão no rosto de Don, parece que quer dizer algo.
Mas ele contém-se.
—  É possível que os animais não tenham a capacidade de
enlouquecer — diz Tom, ajustando uma correia do capacete. —
Talvez seja preciso um certo nível de inteligência para perder o
juízo.
— Bem, eu gostaria de saber esse tipo de coisas antes de ir lá
para fora — diz Don.
— Talvez haja níveis de loucura — continua Tom. — Sempre tive
muita curiosidade para saber como é que as criaturas afetam as
pessoas que já são loucas.
— Por que é que não trazes também algumas? — bufa Don. —
Tens a certeza de que queres arriscar a vida na esperança de que
os animais não sejam tão inteligentes como nós?
Tom olha-o nos olhos.
— Eu gostaria de te dizer que tenho demasiado respeito pelos
animais, Don. Mas neste momento, a única coisa que me
preocupa é sobreviver.
Finalmente, Jules aperta o capacete. Vira a cabeça para ver
como lhe assenta. A parte de trás abre-se e o capacete cai no
chão, desfeito.
Don abana lentamente a cabeça.
— Merda — diz Tom, apanhando as partes do capacete. — Eu já
tinha resolvido isto. Não te preocupes, Jules.
Pegando nas partes, Tom volta a montá-las e, em seguida,
reforça a correia com uma segunda. Coloca-o na cabeça de Jules.
— Pronto. Melhor.
Ao ouvir aquelas palavras, Malorie sente náuseas. Desde aquela
manhã que sabe que Tom e Jules iam sair, mas o momento parece
surgir demasiado depressa.
Não vás, quer dizer a Tom. Precisamos de ti. Eu preciso de ti.
Mas ela entende que o motivo por que a casa precisa de Tom é
que ele é o tipo de homem capaz de fazer o que está a fazer.
Junto à parede, Felix e Cheryl ajudam Tom e Jules a porem os
sacos às costas.
Tom está a atacar o ar com uma das estacas.
Malorie sente uma segunda onda de náusea. Não há maior
lembrança do horror daquele novo mundo do que ver Tom e Jules
equipados daquela maneira para uma volta ao quarteirão. Com os
olhos vendados, armados, parecem soldados de uma guerraimprovisada.
— OK — diz Tom. — Deixa-nos sair.
Felix avança para a porta. Os colegas de casa estão reunidos
atrás dele, no hall. Malorie vê-os a fechar os olhos e faz o mesmo.
Na sua escuridão privada, o seu coração bate com mais força.
— Boa sorte — diz de repente, sabendo que se arrependeria se
não o �zesse.
—  Obrigado — diz Tom. — Lembrem-se do que eu disse.
Voltamos dentro de 12 horas. Têm todos os olhos fechados?
Os habitantes da casa respondem que sim.
E então a porta da frente abre-se. Malorie ouve o som dos
passos deles no alpendre. E depois a porta fecha-se.
Malorie sente que algo imperativo foi trancado do lado de fora.
Doze horas.
18
Enquanto o barco a remos desliza, levado lentamente pela
corrente, Malorie apanha um punhado de água do rio e lava a
ferida no ombro.
Não é uma tarefa fácil e a dor é intensa.
— Estás bem, mamã? — pergunta o Rapaz.
— Não façam perguntas — responde ela. — Escutem.
Quando o lobo a atacou, o mundo de trevas atrás dos olhos
vendados de Malorie explodiu numa dor vermelha. Agora,
enquanto limpa a ferida, os tons que vê são roxos e cinzentos e
teme que isso signi�que que está quase a desmaiar. A perder os
sentidos. Deixando as crianças entregues a si próprias.
Tirou o casaco. A camisola de alças está ensanguentada e
Malorie está a tremer, interrogando-se se será por causa do frio
ou sobretudo devido à perda de sangue. Tira uma faca do bolso
direito do casaco e corta-lhe uma das mangas, que ata
�rmemente em volta do ombro.
Lobos.
Quando as crianças �zeram três anos, as lições de Malorie
começaram a tornar-se complexas. Ordenou às crianças que se
lembrassem de dez, vinte sons seguidos antes de revelarem o que
achavam que eram. Malorie caminhava pela casa, depois no
exterior, depois no andar de cima. Ao longo do caminho, fazia
barulho. Quando regressava, as crianças diziam-lhe o que tinha
feito. Em pouco tempo, a Rapariga conseguiu acertar todos os
vinte. Mas o Rapaz recitava quarenta, cinquenta sons,
acrescentando os ruídos involuntários que ela fazia pelo caminho
aos que eram intencionais.
Começaste no nosso quarto, mamã. Suspiraste antes de saíres.
Depois caminhaste até à cozinha e, pelo caminho, o teu tornozelo
estalou. Sentaste-te na cadeira do meio à mesa da cozinha.
Pousaste os cotovelos na mesa. Limpaste a garganta e depois
entraste na cave. Deste os quatro primeiros passos mais devagar do
que os seis últimos. Bateste com o dedo indicador nos dentes.
Mas por mais que lhes tivesse ensinado, as crianças não podiam
estar preparadas para nomear os animais que vagueavam pelo
bosque junto ao rio. Malorie sabia que os lobos estavam em
vantagem. Bem como qualquer outra coisa com que se
deparassem.
Ela aperta ainda mais o torniquete. O ombro lateja. As coxas
doem-lhe. O pescoço dói-lhe. Naquela manhã, sentia-se
su�cientemente forte para remar ao longo de 30 quilómetros.
Agora, ferida, precisa de descansar. Pondera essa possibilidade.
Sabe que no velho mundo, uma pausa teria sido recomendável.
Mas parar ali podia signi�car a morte.
Um grito ruidoso vindo de cima faz Malorie sobressaltar-se.
Parecia o som de uma ave de rapina. Como se tivesse 30 metros
de comprimento. À frente, algo agita a água. É breve, mas o som é
perturbador. Algo se move no bosque à esquerda. Mais pássaros
grasnam. O rio está a ganhar vida e o medo de Malorie cresce a
cada indício disso mesmo.
À medida que a vida cresce à sua volta, parece diminuir dentro
de si.
— Estou bem — mente. — Quero que escutemos com atenção.
Só isso. Mais nada.
Remando novamente, Malorie tenta não pensar na dor. Não tem
uma ideia clara de até onde precisa de ir. Mas sabe que é uma
longa distância. Pelo menos igual à que já percorreu.
Anos antes, os habitantes da casa não sabiam se os animais
endoideciam. Discutiam constantemente o assunto. Tom e Jules
caminharam pelo bairro, à procura de cães que os guiassem.
Enquanto Malorie e os outros esperavam pelo seu regresso, ela
foi consumida por imagens terríveis de animais raivosos e
enlouquecidos. Hoje tem os mesmos pensamentos. À medida que
o rio ganha vida com a natureza, ela imagina o pior. Tal como
fazia antigamente, antes de as crianças nascerem, quando a
inércia da porta da frente a lembrava que coisas como a loucura
estavam sempre à espreita lá fora, quer alguém que amasse
também estivesse ou não.
19
Com cinco meses, a gravidez de Malorie está a desenvolver-se. É
o �m dos «meses de enjoos», mas persistem algumas
di�culdades. Tem azia. Doem-lhe as pernas. Sangra das gengivas.
O seu cabelo escuro está mais forte, bem como todos os pelos no
seu corpo. Sente-se monstruosa, distorcida, transformada. Mas
enquanto atravessa a casa, carregando um balde de urina,
nenhuma dessas coisas ocupa um lugar tão grande nos seus
pensamentos como o paradeiro e a segurança de Tom e Jules.
É espantoso o quanto já se sente ligada a cada um de seus
colegas de casa, pensa. Antes de chegar, tinha ouvido tantas
histórias de pessoas a fazerem mal umas às outras, antes de se
ferirem a si próprias. Nessa altura, os horrores preocupavam
Malorie por causa do que signi�cavam para si e para o seu �lho.
Agora, a segurança de toda a casa consome-a.
Há cinco horas que os homens partiram. E a cada minuto que
passa, a tensão aumenta, pelo que agora Malorie não consegue
lembrar-se se os companheiros estão a repetir as suas tarefas ou
a executá-las pela primeira vez.
Malorie pousa o balde ao pé da porta das traseiras. Dentro de
alguns minutos Felix vai despejá-lo lá fora. Agora está junto à
mesa da sala de jantar, a consertar uma cadeira. Passando pela
cozinha, Malorie entra na sala de estar. Cheryl está a limpar as
superfícies. As molduras dos quadros. O telefone. Malorie nota
que os braços de Cheryl parecem pálidos e magros. Nos dois
meses que ali passou, os seus corpos �caram muito piores. Não
comem bem. Não fazem exercício su�ciente. Ninguém apanha
sol. Tom está lá fora, à procura de uma vida melhor para todos
eles. Mas quão melhor pode tornar-se?
E quem informaria os habitantes da casa se eles
desaparecessem lá fora, para sempre?
Ansiosa, Malorie pergunta a Cheryl se precisa de ajuda. Cheryl
diz que não antes de sair da sala, mas Malorie não �ca sozinha.
Victor está sentado atrás da poltrona, de frente para os
cobertores que tapam as janelas. Tem a cabeça levantada. Está de
língua de fora, a arfar ruidosamente. Malorie pensa que ele está à
espera, como ela, que o dono regresse.
Como se percebesse que está a ser observado, Victor vira-se
lentamente para Malorie. E depois volta a olhar para os
cobertores.
Don entra na sala. Senta-se na poltrona, depois levanta-se e sai.
Olympia vem ao andar de baixo. Procura algo debaixo do lava-
loiça. Malorie observa-a quando ela percebe que tem na mão
aquilo que procura. Ela volta para o andar de cima. Cheryl
regressa e veri�ca as molduras. Só faz isso. Está a repetir o
trabalho. Todos estão a repetir as suas tarefas. A passar
nervosamente pela casa, tentando ocupar as suas mentes. Quase
não falam. Mal levantam o olhar. Ir buscar água ao poço é uma
coisa, e os colegas de casa preocupam-se uns com os outros
quando o fazem. Mas o que Tom e Jules estão a fazer é quase
impossível de suportar.
Malorie levanta-se e dirige-se para a cozinha. Mas há apenas
um lugar na casa que se parece menos com a casa. Malorie quer
ir para lá. Precisa de ir. De se afastar.
A cave.
Felix está na cozinha, mas não dá sinais de a ver passar por ele.
Não diz nada quando ela abre a porta da cave e desce as escadas
para o piso de terra batida lá em baixo.
Ela puxa o cordão e a luz acende-se, iluminando o espaço como
aconteceu quando Tom lha mostrou dois meses antes. Mas agora
parece diferente. Tem menos latas. Menos cores. E Tom não está
ali, a fazer listas, a contar em rações o tempo que os habitantes
da casa têm antes de chegarem a fome e o desespero.
Malorie avança para as prateleiras e lê distraidamente os
rótulos.
Milho. Beterraba. Atum. Ervilhas. Cogumelos. Salada de frutas.
Feijão-verde. Ginjas. Arandos. Toranja. Ananás. Feijão frito.
Misturade vegetais. Piripíri. Castanhas-d’-água. Tomate picado.
Tomate inteiro. Molho de tomate. Chucrute. Feijão cozido.
Cenouras. Espinafres. Variedades de caldo de galinha.
Lembra-se de quando o espaço parecia transbordar de
mantimentos. As latas pareciam formar uma parede. Agora há
buracos. Grandes. Como se tivesse havido uma batalha e a
primeira vítima tivessem sido as suas reservas. Haverá comida
su�ciente, que dure até o bebé chegar? Se Tom e Jules não
regressarem, a comida que resta permitir-lhe-á aguentar-se até
esse dia tão temido? O que farão quando se acabarem os
enlatados? Vão caçar?
O bebé pode beber o leite da mãe. Mas só se a mãe tiver
comido.
Acariciando a barriga, Malorie aproxima-se do banquinho e
senta-se.
Apesar do ar fresco ali em baixo, está a suar. Os passos
inquietos dos colegas de casa são ruidosos. O teto estala.
Afastando o cabelo da testa, Malorie reclina-se contra as
prateleiras. Conta latas. Sente as pálpebras pesadas. Sabe-lhe
bem descansar.
E então… dormita.
Quando acorda, Victor está a ladrar no andar de cima.
Senta-se rapidamente.
O Victor está a ladrar. Para o que é que está a ladrar?!
Atravessando a cave a passos largos, Malorie sobe as escadas e
corre para a sala de estar. Os outros já lá estão.
— Para com isso! — grita Don.
Victor está de frente para as janelas, a ladrar.
— O que é que se passa? — pergunta Malorie, surpresa com o
pânico na sua própria voz.
Don volta a gritar para Victor.
— Ele está apenas agitado, sem o Jules — diz Felix, nervoso.
— Não — diz Cheryl. — Ele ouviu alguma coisa.
— Não sabemos isso, Cheryl — responde Don.
Victor ladra novamente. É um som forte. Agudo. Zangado.
— Victor! — diz Don. — Vá lá!
Os habitantes da casa estão reunidos muito perto uns dos
outros no centro da sala de estar. Estão desarmados. Se Cheryl
estiver certa, se Victor pensa que há algo do lado de fora da casa,
o que podem fazer?
— Victor! — volta a gritar Don. — Eu mato-te!
Mas Victor não para.
E Don, por mais que grite, tem tanto medo como Malorie.
—  Felix — diz Malorie, olhando �xamente para a janela da
frente. — Disseste-me que há um jardim lá fora. Temos
utensílios?
— Sim. — Felix também está a olhar para os cobertores pretos.
— Estão dentro da casa?
— Sim.
— Porque é que não vais buscá-las?
Felix volta-se para ela e faz uma pausa. Depois sai da sala.
Malorie passa mentalmente revista a tudo o que há na casa. As
pernas de todos os móveis são potenciais armas. Todos os objetos
sólidos servem de munição.
Victor continua a ladrar e está cada vez mais agitado. E nos
breves intervalos em que para, Malorie ouve os passos ansiosos
de Felix, à procura das ferramentas de jardim que podem
protegê-los do que quer que esteja lá fora.
20
É meio-dia do dia seguinte. Tom e Jules não regressaram.
Já passou mais do dobro das doze horas que Tom prometeu. E a
cada hora que passa, as emoções dentro da casa �cam mais
pesadas.
Victor ainda está sentado junto à janela coberta.
Os habitantes da casa �caram acordados até tarde, reunidos, à
espera que o cão parasse de ladrar.
—  Eles vão acabar por nos apanhar — disse Don. — Não há
motivos para pensar o contrário. É o �m, pessoal. E se é uma
criatura que os nossos cérebros são incapazes de compreender, é
bem merecido. Eu sempre achei que o �m viria por causa da
nossa própria estupidez.
Por �m, Victor parou de ladrar.
Agora, na cozinha, Malorie mergulha as mãos num balde de
água. Don e Cheryl foram ao poço naquela manhã. Sempre que
batiam à porta para entregar mais um balde cheio a Felix, o
coração de Malorie sobressaltava-se, esperando, acreditando que
era Tom.
Ela molha o rosto e passa os dedos molhados pelos cabelos
emaranhados e suados.
— Raios partam — diz.
Está sozinha na cozinha. Está a olhar para as cortinas que
cobrem a única janela. Está a pensar nas in�nitas coisas terríveis
que podem ter acontecido.
O Jules matou o Tom. Ele viu uma criatura e arrastou o Tom para
o rio pelos cabelos. Mergulhou-o no rio até ele se afogar. Ou ambos
viram alguma coisa. Numa casa. Aniquilaram-se um ao outro. Os
corpos destruídos estão caídos no chão da sala de um estranho. Ou
foi só o Tom que viu alguma coisa. O Jules tentou detê-lo, mas o
Tom escapou. Está algures no bosque. A comer insetos. A comer
casca de árvore. A comer a própria língua.
— Malorie?
Malorie dá um salto quando Olympia entra na cozinha.
— O que é?
— Estou muito preocupada, Malorie. Ele disse 12 horas.
— Eu sei — diz Malorie. — Estamos todos preocupados.
Malorie estende a mão para o ombro de Olympia e ouve a voz
de Don da sala de jantar.
— Não estou convencido de que devamos deixá-los entrar.
Malorie corre para a sala de jantar.
— Então, Don — diz Felix, já lá dentro. — Como é que és capaz
de dizer isso?
— O que é que achas que está a acontecer lá fora, Felix? Achas
que estamos a viver num bairro simpático? Se houver alguém vivo
lá fora, não está a sobreviver à conta dos seus bons modos. Quem
nos diz que o Tom e o Jules não foram raptados? Podem ser
reféns neste momento. E os seus captores podem estar a
extorquir-lhes informações sobre a nossa comida. A nossa
comida.
— Vai à merda, Don — diz Felix. — Se eles regressarem, eu vou
deixá-los entrar.
— Se forem eles — diz Don. — E se tivermos a certeza de que
não há uma arma apontada à cabeça do Tom do outro lado da
porta.
— Importam-se de se calar! — diz Cheryl, passando por Malorie
e entrando na sala de jantar.
— Não podes estar a falar a sério, Don — diz Malorie.
Don vira-se para ela.
— Podes crer que estou a falar a sério.
— Queres impedi-los de entrar? — pergunta Olympia, agora de
pé ao lado de Malorie.
— Não foi isso que eu disse — responde Don. — Estou a dizer
que pode haver pessoas más lá fora. Entendes, Olympia? Ou é
demasiado complicado para ti?
— És mesmo estúpido — responde Malorie.
Por um segundo, Don parece preparar-se para a atacar.
— Não quero ter esta discussão — diz Cheryl.
—  Já passaram mais de 24 horas — diz Don com um tom de
censura.
— Olha… vai fazer outra coisa qualquer por um momento, sim?
— disse Felix. — Estás a piorar a situação, para todos.
— Precisamos de começar a pensar num futuro sem eles.
— Só passou um dia — diz Felix.
— Sim, um dia lá fora.
Don senta-se ao piano. Parece ceder, por um momento. Depois
continua.
— A boa notícia é que desta forma as nossas reservas vão durar
mais tempo.
— Don! — repreende-o Malorie.
—  Tens um bebé a caminho, Malorie. Não tens esperança de
sobreviver?
— Don, estou capaz de te matar — diz Cheryl.
Don levanta-se do banco do piano. Tem o rosto vermelho de
raiva.
— O Tom e o Jules não vão voltar, Cheryl. Aceita isso. E quando
tiveres vivido mais uma semana porque pudeste comer a comida
deles e depois quando comeres o Victor, talvez nessa altura
entendas que a esperança é coisa que já não existe.
Cheryl avança para ele. Tem os punhos cerrados. O seu rosto
está a pouca distância do de Don.
Victor ladra da sala de estar.
Felix põe-se entre Don e Cheryl. Don afasta-o. Quando Malorie
avança para eles, Felix levanta a mão.
Vai bater em Don.
Ele recua.
Alguém bate à porta da rua.
21
Malorie está a pensar especi�camente em Don.
— Mamã — diz o Rapaz —, a venda dos olhos está a magoar-me.
— Apanha um pouco de água do rio, com cuidado — diz Malorie
—, e esfrega-a onde te dói. Não tires a venda.
Uma vez, depois de os habitantes da casa terem terminado o
jantar, Malorie �cou sozinha com Olympia à mesa da sala de
jantar. Estavam a falar sobre o marido de Olympia. De como ele
era. Do seu desejo de ter um �lho. Don entrou na sala sozinho.
Não prestou atenção ao que Olympia estava a dizer.
—  Vocês deviam cegar esses bebés — disse ele. — Assim que
nascerem.
Foi como se já estivesse a pensar no assunto há muito tempo e
tivesse decidido comunicar-lhes a sua decisão.
Sentou-se com elas à mesa e explicou-se. Quando o fez,
Olympia �cou mais calada. Achava aquilo uma loucura. E pior,
achava que era cruel.
Mas Malorie não pensava assim. Uma parte profunda do seu
íntimo compreendia o que Don estava a dizer. Todos os
momentos da sua maternidadeiminente seriam centrados em
proteger os olhos do �lho. Poderia fazer muito mais se eliminasse
essa preocupação. A seriedade com que Don o disse transmitiu
mais do que crueldade a Malorie. Ele abriu a porta a um mundo
de possibilidades angustiantes, coisas que talvez tivessem de ser
feitas, ações que ela poderia ter de tomar e que ninguém do velho
mundo estaria completamente preparado para suportar. E a
sugestão, por muito negra que fosse, nunca desapareceu
completamente da sua mente.
— Está melhor, mamã — diz o Rapaz.
— Shhh — diz Malorie. — Escuta.
Quando as crianças tinham seis meses de idade, ela já as tinha
posto a dormir nos seus berços de arame. Era de noite. O mundo
do outro lado das janelas e das paredes estava silencioso. A casa
estava escura.
Nos primeiros dias com os bebés, Malorie punha-se
frequentemente a ouvi-los respirar enquanto dormiam. O que
podia ser uma observação ternurenta para algumas mães era um
estudo para Malorie. Pareciam saudáveis? Estariam a receber
nutrientes su�cientes da água do poço e do leite materno de uma
mãe que não comia uma refeição decente há um ano? Estava
sempre a pensar na saúde deles. Na sua dieta. Na sua higiene. E
nos seus olhos.
Devias cegar esses bebés assim que nascerem.
Sentada à mesa da cozinha às escuras, Malorie entendeu
claramente que o problema não era tanto o dilema moral como o
facto de estar a ser confrontada com algo que não tinha a certeza
de ser �sicamente capaz de fazer. Olhando para o corredor,
escutando as suas pequenas expirações, acreditava que a ideia de
Don não era má.
Todo o tempo que passas acordada é passado a protegê-los de
olhar para a rua. Veri�cas os cobertores. Veri�cas os berços. Eles
não se vão lembrar destes dias quando forem mais velhos. Não se
vão lembrar da visão.
As crianças, sabia, não seriam espoliadas de nada no mundo
novo se nunca sequer tivessem podido vê-lo.
Levantando-se, caminhou até à porta da cave. No andar de
baixo, no chão de terra da cave, havia uma lata de diluente. Em
tempos longínquos, tinha lido o rótulo lateral e sabia o perigo que
a substância representava se entrasse em contacto com os olhos.
Uma pessoa podia �car cega, dizia, se não lavasse os olhos dentro
de 30 segundos.
Malorie dirigiu-se para a lata. Pegou nela e levou-a ao andar de
cima.
Faz isto depressa. E não lhes laves os olhos.
Eram apenas bebés. Como poderiam lembrar-se daquilo? Iriam
ter medo dela para sempre ou isso seria um dia enterrado
debaixo de uma montanha de memórias cegas?
Malorie atravessou a cozinha e entrou no corredor escuro que
ia dar ao quarto das crianças.
Conseguia ouvi-las a respirar lá dentro.
À porta, fez uma pausa e olhou para a escuridão em que elas
dormiam.
Naquele momento, acreditou que conseguiria fazê-lo.
Em silêncio, Malorie entrou no quarto. Pousou a lata no chão e
levantou as coberturas de tecido que protegiam os berços.
Nenhuma das crianças se mexeu. Ambas continuaram a respirar
calmamente, como se estivessem a ter sonhos agradáveis, o mais
distantes possível dos pesadelos que se avizinhavam.
Rapidamente, Malorie soltou a cobertura de arame do berço da
Rapariga. Curvou-se e levantou a lata.
A Rapariga respirou calmamente.
Malorie levou a mão dentro do berço e ergueu a cabeça da
bebé. Tirou a venda dos olhos da Rapariga. A Rapariga começou a
chorar.
Tem os olhos abertos, pensou Malorie. Deita-o.
Puxou a cabeça da Rapariga para mais perto da beira do berço
e, em seguida, aproximou a lata de diluente do seu rosto
vermelho e choroso. O Rapaz acordou e começou a chorar
também.
—  Parem! — disse Malorie, afastando as próprias lágrimas. —
Vocês não querem ver este mundo.
Inclinou um pouco mais a lata e sentiu o conteúdo deslizar
sobre a sua mão antes de salpicar o chão aos seus pés.
Senti-lo na sua pele tornou-o real.
Não era capaz de fazer aquilo.
Soltou a cabeça da bebé e a Rapariga continuou a chorar.
Pousando a lata no chão, Malorie recuou lentamente para fora
do quarto. As crianças �caram a chorar na escuridão.
No corredor, Malorie encostou-se à parede para se apoiar e
levou uma mão à boca. E vomitou.
— Mamã — diz agora o Rapaz, no rio —, resultou!
—  O que é que resultou? — pergunta Malorie, arrancada às
memórias.
— A venda já não me magoa.
—  Rapaz — diz ela. — Não fales mais. A não ser que ouças
alguma coisa.
Malorie respira fundo e sente algo parecido com vergonha. A
dor no ombro piorou. Ela está tonta de fadiga. Uma sensação
mais profunda de desorientação instala-se. Parece-lhe que se
passa algo de muito errado dentro dela. No entanto, consegue
ouvir as crianças: o Rapaz a respirar à sua frente, a Rapariga a
brincar com as peças do puzzle na parte de trás do barco a
remos. Não estão cegos por baixo das vendas. E este dia pode
terminar com a possibilidade de um mundo ainda mais novo, em
que as crianças veem coisas que nunca viram.
Se conseguir levá-las até lá.
22
Malorie ouve algo a mexer-se do outro lado da porta. Também
ouve alguém a ofegar. Algo está a arranhar a madeira. Ela e os
outros estão no hall. Felix apenas gritou, a perguntar quem era.
No momento entre a pergunta e a resposta, aquele arranhar
parece-lhes poder ter sido causado por qualquer coisa.
Criaturas, pensa ela.
Mas não são criaturas que estão à porta. São Tom e Jules.
— Felix! É o Tom!
— Tom!
—  Ainda temos os capacetes. Mas não estamos sozinhos.
Encontrámos cães.
Felix, a suar, expira fortemente. Para Malorie, o alívio é tão
grande que dói.
Victor está a ladrar. Está a abanar a cauda. Jules chama-o.
— Victor, amigo! Voltei!
— OK — diz Felix aos companheiros que estão dentro da casa. —
Fechem os olhos.
— Espera — diz Don.
— Para quê? — responde Felix.
— Como é que sabemos que eles estão sozinhos? Como é que
sabemos que eles não estão a ser seguidos? Quem sabe o que
pode tê-los seguido?
Felix faz uma pausa. Então pergunta a Tom:
— Tom! Estás sozinho? São só vocês e os cães?
— Sim.
— Isso não signi�ca que seja verdade — diz Don.
— Don — intervém Malorie, impaciente —, se alguém quisesse
entrar nesta casa, podia fazê-lo em qualquer altura.
— Estou a tentar ser cauteloso, Malorie.
— Eu sei.
— Eu também vivo aqui.
— Eu sei. Mas o Tom e o Jules estão do outro lado da porta. Eles
voltaram. Temos de os deixar entrar agora.
Don �ta-a. Depois olha para o chão do hall.
— Um dia destes vocês vão-nos matar — diz ele.
— Don — diz Malorie, vendo que ele está, �nalmente, a ceder —,
vamos abrir a porta agora.
— Sim. Eu sei. Não importa o que eu diga.
Don fecha os olhos.
Malorie faz o mesmo.
— Estás preparado, Tom? — pergunta Felix.
— Sim.
Malorie ouve a porta da frente a abrir-se. Os sons das patas nos
mosaicos do hall fazem parecer que entraram muitas pessoas de
uma só vez.
A porta da frente fecha-se rapidamente.
— Passem-me uma vassoura — diz Felix.
Malorie ouve as cerdas contra as paredes, o chão e o teto.
— OK — diz Felix. — Estamos prontos.
O momento entre a decisão de abrir os olhos e fazê-lo
realmente é a coisa mais assustadora do novo mundo.
Malorie abre os olhos.
O hall explode em cor. Dois huskies movem-se rapidamente,
cheiram o chão e estudam as pessoas, estudam Victor.
A emoção que Malorie sente ao ver o rosto de Tom é
incomparável. No entanto, ele não parece bem. Parece exausto.
Sujo. E como se tivesse passado por algo que Malorie só pode
imaginar.
Tem algo na mão. É branco. Uma caixa. Su�cientemente grande
para conter uma pequena televisão. Sons emanam de dentro dela.
Chilreios.
Olympia lança-se para a frente e abraça Tom, que se ri
enquanto tenta tirar o capacete. Jules tira o seu e ajoelha-se para
abraçar Victor. Cheryl chora.
A expressão de Don é uma mistura de espanto e vergonha.
Quase nos pegámos à pancada, pensa Malorie. O Tom esteve fora
um dia e meio e quase nos pegámos à pancada.
—  Bem, oh meu Deus — diz Felix, observando de olhos
arregalados os novos animais. — Resultou!
O olhar de Tom e Malorie cruza-se. Ele não tem o mesmo brilho
com que partiu.
O que é que eles terão vivido lá fora?
—  Estes são huskies — diz Jules, fazendo um gesto na direção
dos cães. —São afáveis, mas demoram um pouco a habituar-se.
Então, Jules solta um uivo de alívio.
Como veteranos de guerra a regressarem a casa, pensa Malorie.
De uma volta ao quarteirão.
— O que é que há na caixa? — pergunta Cheryl.
Tom levanta-a um pouco mais. Tem o olhar vidrado. Distante.
—  A caixa, Cheryl — diz ele, segurando-a com uma mão e
levantando um pouco a tampa com a outra —, tem pássaros.
Os habitantes da casa reúnem-se num círculo em volta da
caixa.
— Que tipo de pássaros são? — pergunta Olympia.
Tom abana a cabeça.
—  Não sabemos. Encontrámo-los na garagem de um caçador.
Não fazemos ideia de como sobreviveram. Achamos que os donos
lhes deixaram muita comida. Como podem ver, são barulhentos.
Mas só quando estamos perto. Fizemos a experiência. Sempre
que nos aproximamos da caixa, eles fazem mais barulho.
— Então são o nosso jantar? — pergunta Felix.
Tom faz um sorriso cansado.
— São um sistema de alarme.
— Sistema de alarme? — pergunta Felix.
Jules explica:
—  Vamos pendurar a caixa lá fora. Junto à porta da frente.
Conseguimos ouvi-los aqui.
Apenas uma caixa de pássaros, pensa Malorie. Contudo, parece
um progresso.
Tom fecha lentamente a tampa.
— Têm de nos contar tudo o que aconteceu — diz Cheryl.
— E vamos — responde Tom. — Mas vamos para a sala de jantar.
Gostávamos de nos sentar um pouco.
Os colegas de casa sorriem.
Exceto Don.
Don, que os declarou mortos. Don, que já contava as rações
deles como suas.
No corredor, Tom pousa a caixa de pássaros no chão, encostada
à parede. Então, os colegas de casa reúnem-se na sala de jantar.
Felix vai buscar água para Tom e Jules. Quando têm os copos à
sua frente, contam a história do que viveram lá fora.
23
Quando a porta se fecha atrás deles, Tom tem mais medo do que
pensava que teria.
Aqui fora, as criaturas estão mais perto.
Quando chegarmos à rua, pensa, quando nos afastarmos o
su�ciente da casa, será que nos vão atacar?
Imagina mãos frias a fecharem-se sobre as suas. A sua garganta
cortada. O seu pescoço partido. A sua mente destruída.
Mas Tom tem perfeita consciência de que nenhuma notícia
descreveu um homem a ser atacado.
É isto que tenho de pensar, decide, ainda parado no alpendre.
Forçando essa �loso�a a enraizar-se na sua mente, procurando
as suas raízes, ele permite-se respirar, lentamente. Quando o faz,
surgem outros sentimentos.
Por um lado, há o sentimento de liberdade desenfreada,
levemente imprudente.
Tom já esteve lá fora desde que chegou à casa. Foi buscar água
ao poço tantas vezes como todos os outros. Levou merda e urina
para as trincheiras. Mas desta vez é diferente. O ar parece
diferente. Antes de ele e Jules concordarem em começar a andar,
uma brisa passa por cima deles. Roça-lhe o pescoço. Os
cotovelos. Os lábios. É uma das sensações mais estranhas que já
conheceu. Acalma-o. Enquanto as criaturas espreitam por trás de
cada árvore e letreiro na sua imaginação, o ar limpo e aberto
inebria-o.
Nem que seja por um momento.
— Estás pronto, Jules? — pergunta ele.
— Sim.
Como homens verdadeiramente cegos, batem no chão à sua
frente com vassouras. Saem do alpendre. Um metro mais adiante,
Tom sente que já não está a pisar cimento. Com a relva sob os
pés, é como se a casa tivesse desaparecido. Está à deriva no mar.
Vulnerável. Por um segundo, não está seguro de ser capaz de
fazer aquilo.
Então pensa na �lha.
Robin. Só vou buscar uns cães.
Isto é bom. Isto ajuda-o.
A vassoura passa por cima do que deve ser o passeio e Tom pisa
o betão da rua. Ali, para e ajoelha-se. De joelhos, procura um
canto do relvado em frente à casa. Descobre-o. Em seguida, tira
uma pequena estaca de madeira do saco e crava-a na terra.
— Jules — diz —, marquei o nosso relvado. Podemos precisar da
ajuda para encontrar o caminho de regresso.
Quando se levanta e se vira, Tom choca com o capô de um
carro.
— Tom — diz Jules —, estás bem?
Tom endireita-se.
— Sim — responde —, acho que choquei com o carro da Cheryl.
Senti os painéis de madeira do exterior.
Os sons das botas de Jules e da vassoura guiam Tom para longe
do carro.
Em circunstâncias diferentes, com o sol a tocar-lhe apenas as
pálpebras, sem venda nem capacete para o obscurecer, Tom sabe
que passaria por um mundo de tons de pêssego e laranja. Os seus
olhos fechados veriam as cores mudarem com as nuvens,
alterarem-se com as sombras das copas das árvores e dos
telhados. Mas hoje vê apenas preto. E nalgum lugar da escuridão,
imagina Robin, a sua �lha. Pequena, inocente, brilhante. Ela
encoraja-o a caminhar, anda, papá, para mais longe da casa, em
direção a coisas que podem ajudar os que ainda estão lá dentro.
— Merda! — exclama Jules. Tom ouve-o cair na rua.
— Jules!
Tom paralisa.
— Jules, o que aconteceu?
—  Tropecei em alguma coisa. Também o sentes? Parecia uma
mala.
Usando a vassoura, Tom traça um arco amplo. As cerdas tocam
um objeto. Tom gatinha para junto dele. Pousando a vassoura ao
seu lado no chão quente, usa as duas mãos para sentir o que está
ali no meio da rua. Não demora muito a perceber o que é.
— É um corpo, Jules.
Tom ouve Jules a levantar-se.
—  Acho que é uma mulher — diz Tom. E depois afasta
rapidamente as mãos do rosto dela.
Levanta-se e os dois seguem caminho.
Tudo parece demasiado rápido. As coisas estão a acontecer
demasiado depressa. No velho mundo, descobrir um cadáver na
rua demoraria horas a assimilar.
No entanto, eles seguem caminho.
Atravessam um relvado e chegam a uns arbustos. Atrás dos
arbustos há uma casa.
— Aqui — diz Jules. — É uma janela. Estou a tocar no vidro de
uma janela.
Seguindo a voz dele, Tom junta-se a Jules junto à janela.
Tateiam ao longo dos tijolos da casa até chegarem à porta da
frente. Jules bate à porta. Chama. Bate novamente. Os dois
esperam. Tom fala. Preocupa-o que naquele mundo silencioso a
sua voz possa atrair alguma coisa. Mas não vê alternativa. Explica
aos possíveis habitantes que não querem fazer-lhes mal, que
estão ali à procura de mais mantimentos, de qualquer coisa que
os possa ajudar. Jules bate novamente à porta. Esperam
novamente. Não há movimento do lado de dentro.
— Vamos entrar — diz Jules.
— OK.
Caminham novamente para junto da janela. Do saco, Tom tira
uma pequena toalha. Enrola-a em volta do punho e dá um soco
no vidro, partindo-o. Não há nenhum cobertor. Nenhum cartão.
Nem madeira. Aquilo, sabe, signi�ca que quem viveu ali o fez sem
proteção.
Talvez tenham deixado a cidade antes de as coisas se tornarem
realmente más. Talvez estejam em segurança noutro lugar.
Tom chama através da janela partida.
— Está aí alguém?
Não obtendo resposta, Jules limpa os vidros. Depois ajuda Tom
a entrar. No interior, Tom derruba algo. O objeto aterra com um
forte baque. Jules entra pela janela atrás dele.
É então que ouvem música, um piano, na sala com eles.
Tom levanta a vassoura para se defender. Mas Jules está a falar
com ele.
—  Fui eu, Tom! — explica ele. — Desculpa, a minha vassoura
bateu no piano.
Tom respira pesadamente. Enquanto se acalma, os dois �cam
em silêncio.
— Não podemos abrir os olhos aqui — diz Jules.
— Eu sei — responde Tom. — Há corrente de ar. Há outra janela
aberta.
Ele quer muito poder abrir os olhos. Mas a casa não é segura.
— Ainda assim, estamos aqui — diz Tom. — Vamos levar o que
pudermos.
Mas a maior parte do primeiro andar está vazia de qualquer
coisa útil. Na cozinha, vasculham os armários. Tom tateia a
superfície de uma prateleira até encontrar algumas pilhas. Velas
pequenas. Canetas. Enquanto guarda cada uma das coisas no
saco, anuncia-o a Jules.
— Vamos andando — diz Tom.
— E o andar de cima?
— Este lugar não me agrada. E se houvesse comida, estaria aqui.
Usando as vassouras, encontram o caminho até à porta da
frente, destrancam-na e voltam a sair. Não voltam para o meio da
rua. Em vez disso, atravessam o jardim até à casa vizinha, uma
casa ainda mais longe da sua.
Num segundo alpendre, fazem o mesmo ritual. Batem à porta.
Anunciam-se. Esperam. Quando não ouvem nenhum movimento
vindo de dentro, partem uma janela. Desta vez é Jules quem o faz.
O punho dele entra emcontacto com algum tipo de proteção
fraca. Pensa que é cartão.
— Pode haver alguém aqui — sussurra.
Esperam uma resposta ao barulho que �zeram. Não se houve
nada. Tom grita. Diz à casa que são vizinhos. Que estão à procura
de animais e que podem oferecer abrigo em troca. Não obtém
resposta. Jules limpa os vidros e ajuda Tom a entrar pela janela.
Lá dentro, voltam a colocar o cartão.
Usando as vassouras, examinam o lugar. Demoram horas.
Movendo-se costas com costas, balançam as vassouras em arcos.
Tom guia-os, dizendo a Jules para onde ir. Quando terminam,
quando estão convencidos de que a casa está vazia, as janelas
estão cobertas e as portas estão trancadas, Tom declara a casa
segura.
Ambos os homens compreendem o que deve acontecer em
seguida.
Vão tirar os capacetes e as vendas, e abrir os olhos. Nenhum
dos dois viu nada para além do interior da sua casa durante
muitos meses.
Jules é o primeiro. Tom ouve-o a soltar a correia do capacete.
Então faz o mesmo. Depois de deslizar a venda até à linha do
cabelo, Tom vira-se, de olhos fechados, para Jules.
— Pronto?
— Pronto.
Os dois homens abrem os olhos.
Uma vez, quando era criança, Tom e um amigo esgueiraram-se
para a casa de um vizinho por uma porta das traseiras deixada
destrancada. Não tinham um plano, nenhum interesse. Só
queriam ver se conseguiam fazê-lo. Mas conseguiram mais do
que esperavam quando, escondidos numa despensa, foram
obrigados a esperar durante todo o jantar da família. Quando
�nalmente escaparam, o amigo perguntou-lhe como se sentia em
relação àquilo.
— Sujo — respondera na altura.
Agora com os olhos abertos, dentro da casa de um estranho,
sente o mesmo.
Esta não é a sua casa. Mas estão dentro dela. Estas não são as
suas coisas. Mas podiam ser. Morava ali uma família. Tinham um
�lho. Tom reconhece um brinquedo ou dois. Uma fotogra�a diz
que era um rapaz. O cabelo louro e o sorriso jovem fazem-lhe
lembrar Robin. De certa forma, todas as coisas que Tom tem
encontrado desde a morte de Robin a trazem à sua lembrança. E
ali, na casa de um estranho, imagina como viveram. A criança a
contar à mãe e ao pai o que ouviu na escola. O pai a ler as
primeiras notícias no jornal. A mãe a chamar a criança para
dentro. Todos eles, juntos no sofá, a verem as notícias,
assustados, quando o pai estende uma mão para o �lho e pega na
mão da mãe.
Robin.
Não há provas de que tenham tido um animal de estimação.
Nenhum brinquedo de cão esquecido. Nenhuma cama de gato. E
a casa não cheira a cão. Mas é na ausência de pessoas que Tom
pensa.
— Tom — diz Jules. — Vai ver o andar de cima. Eu continuo aqui.
— OK.
Ao fundo da escada, Tom olha para cima. Ele tira a venda do
bolso e volta a pô-la sobre os olhos. Apesar de terem veri�cado a
casa, Tom não consegue subir as escadas de olhos abertos.
Terão veri�cado su�cientemente bem?
Enquanto sobe, usa a vassoura como guia. O seu ombro roça
em fotogra�as penduradas na parede. Lembra-se da fotogra�a de
George, pendurada na parede de casa. A ponta da bota bate num
degrau e ele tropeça para a frente. Sente alcatifa debaixo das
mãos. Volta a levantar-se. Mais escadas. São tantas que parece
impossível, como se já tivesse atravessado o telhado da casa.
Por �m, as cerdas da vassoura dizem-lhe que chegou ao topo.
Mas a sua mente é mais lenta do que a vassoura e ele tropeça
novamente, e desta vez choca com uma parede. Há silêncio ali em
cima. Ele ajoelha-se e pousa a vassoura ao seu lado. Depois pega
no saco e abre-o, procurando a lanterna. Encontra-a.
Levantando-se novamente, usa a vassoura como guia. Virando
para a direita, o seu punho bate em algo frio e duro. Ele para e
tateia. É de vidro, ele pensa. Uma jarra. Há um cheiro
desagradável. Não o tinha sentido antes. A sua mão toca num
molho de folhas tristes e mortas. Tateando lentamente ao longo
dos caules, percebe que são �ores. Rosas talvez. Mortas há muito
tempo. Volta a virar-se para a esquerda. O cheiro das rosas
mortas desaparece quando é confrontado com algo muito mais
forte.
Para no corredor. Como é que ele e Jules deixaram escapar
aquele cheiro?
— Olá?
Não obtém resposta. Tom cobre o nariz e a boca com a mão que
tem livre. O cheiro é pestilento. Ele avança pelo corredor.
Chegando a uma porta à direita, entra numa divisão. É uma casa
de banho. As cerdas da vassoura fazem eco contra os azulejos. Há
um cheiro húmido e a mofo de canos sem uso. Toca com a
vassoura na cortina do duche e examina a banheira com a
vassoura. Então encontra o armário dos medicamentos. Ali há
frascos de comprimidos. Tom guarda-os. Ajoelha-se e vasculha os
armários debaixo do lavatório. Ouve algo atrás de si e vira-se.
Está de frente para a banheira.
Acabaste de a veri�car. Não havia ali nada.
Tem uma mão pousada no lavatório atrás de si. A outra levanta
lentamente a vassoura. Levanta-a à sua frente, de olhos
vendados.
— Há alguém aqui comigo?
Avança em direção à banheira.
Balança a vassoura uma vez. Depois duas vezes.
Sente o estômago às voltas. Quente. O cheiro.
Tom lança-se para a frente e balança a vassoura
descontroladamente em volta da banheira. Examina o teto por
cima dela. Depois, recuando novamente, deixa a vassoura cair no
chão da casa de banho, onde ela toca em algo e faz o mesmo som
que ele ouviu quando se ajoelhou diante dos armários.
Localiza rapidamente uma garrafa de plástico. Está vazia.
Tom suspira.
Sai da casa de banho e avança pelo corredor. Rapidamente,
chega a outra porta. Esta está fechada. Consegue ouvir o som
distante dos movimentos de Jules no andar de baixo. Tom respira
fundo e abre a porta. Está frio ali dentro. A vassoura diz-lhe que
há algo à sua frente. Ele tateia e descobre um colchão. É uma
pequena cama. Sem abrir os olhos, sabe que aquele é o quarto do
rapaz. Fecha a porta, vasculha completamente o quarto com a
vassoura e depois acende a luz.
Então tira a venda e abre os olhos.
Vê galhardetes pendurados na parede. São de equipas
desportivas locais. Um é do jardim zoológico. O edredão tem
desenhos de carros de Fórmula 1. O espaço está abafado. Não tem
sido usado. Uma vez que a eletricidade funciona, ele guarda a
lanterna no saco. Uma breve busca diz-lhe que não há ali nada de
útil. Pensa no quarto de Robin.
Volta a fechar os olhos e sai.
Mais adiante no corredor, o cheiro torna-se mais horrível. Tem
de tapar a boca. Ao fundo do corredor, chega a uma parede.
Quando se vira, a vassoura toca numa porta atrás de si. Tom
paralisa quando a porta se abre lentamente.
Tu e o Jules veri�caram este quarto? VERIFICARAM?!
— Olá?
Não obtém resposta. Tom entra devagar. Liga as luzes e tateia
as paredes à procura das janelas. Encontra duas. Ambas
fortemente forti�cadas com madeira. O quarto é grande.
É o quarto principal.
Ele atravessa o quarto. Ali, o cheiro é tão forte que parece
sólido, como se pudesse tocar-lhe. A vassoura guia-o para o que
parece um quarto de vestir. Roupas. Casacos. Pensa levá-los
consigo. Pensa no inverno que em breve enfrentarão.
Virando-se, descobre outra porta mais pequena. Uma segunda
casa de banho. Mais uma vez, veri�ca o armário dos
medicamentos e as gavetas. Mais frascos de comprimidos. Pasta
de dentes. Escovas de dentes. Procura uma janela. Encontra-a.
Coberta com madeira. Usa a vassoura para encontrar a saída da
casa de banho. Fecha a porta atrás de si.
Acreditando que veri�cou as janelas, acreditando que está em
segurança, Tom, de pé, ao lado do roupeiro, abre os olhos.
Uma criança está sentada na cama, a olhar para ele.
Tom fecha os olhos.
É este o aspeto das criaturas?
Não estavas em segurança! NÃO ESTAVAS EM SEGURANÇA!
Sente o coração a bater muito depressa. O que é que viu? Um
rosto. Um rosto velho? Não, era jovem. Jovem? Mas degradado.
Quer chamar Jules. Mas quanto mais tempo passa com os olhos
fechados, mais clara a imagem se torna.
Era o rapaz. O das fotogra�as no andar de baixo.
Volta a abrir os olhos.
O rapaz está de fato. Encostado a uma cabeceira escura, tem o
rosto voltado para Tom de uma forma que não é natural. Tem os
olhos abertos. A boca aberta. As mãos cruzadas sobre o colo.Morreste de fome aqui, pensa Tom. No quarto dos teus pais.
Avançando para ele, com a boca e o nariz tapados, Tom
compara-o com as fotogra�as. O rapaz parece mumi�cado.
Mirrado.
Há quanto tempo morreste? Quão perto estive de te tirar daqui?
Ele �ta os olhos mortos do rapaz.
Robin, pensa. Sinto muito.
— Tom! — grita Jules lá de baixo.
Tom vira-se.
Atravessa o quarto e entra no corredor.
— Jules! Estás bem?
— Sim! Sim! Anda cá depressa! Encontrei um cão.
Tom sente-se dividido. O pai que há em si não quer deixar
aquele rapaz. Robin está sepultada atrás da casa que deixou há
muito tempo.
— Se eu tivesse sabido que estavas aqui — diz Tom, virando-se
para o quarto principal —, teria vindo mais cedo.
E então vira-se e corre para a escada.
Jules encontrou um cão.
Encontra Jules ao fundo da escada. Antes que Tom tenha a
oportunidade de lhe falar do rapaz, Jules já está a atravessar a
cozinha, a falar do que encontrou. À frente da escada que conduz
à cave, Jules aponta e diz a Tom para olhar. Com atenção.
Ao fundo da escada, deitados de costas, estão os pais. Estão
vestidos como se fossem para a igreja. Têm as roupas rasgadas
nos ombros. Em cima do peito da mãe está um pedaço de uma
folha de papel. Com marcador, alguém escreveu: DeScaNseM eM
PaZ
— Acabei de encontrar o rapaz que escreveu isso — diz Tom. —
O rapaz que os pôs aqui.
— Devem ter morrido de fome — diz Jules. — Não há comida na
casa. Não sei do que é que ele se alimentou para sobreviver.
Jules aponta para trás dos pais. Tom agacha-se e vê um husky
encolhido entre casacos de peles numa prateleira.
Está quase emaciado. Tom imagina que se tem alimentado dos
pais mortos.
Jules tira um pedaço de carne do seu saco, parte um pedaço e
atira-o ao cão. A princípio, o cão sai do esconderijo hesitante.
Depois devora a carne.
— É afável? — pergunta Tom em voz baixa.
—  Descobri que os cães fazem rapidamente amizade com as
pessoas que os alimentam — diz Jules.
Jules atira cuidadosamente mais carne pela escada. Fala-lhe
com um tom encorajador.
Mas o cão dá trabalho. E demora.
Os dois homens passam o resto do dia na casa. Com a carne,
Jules está a criar uma ligação. Enquanto o faz, Tom vasculha os
mesmos lugares que Jules já vasculhou. Há muito poucas coisas
que não tenham já na sua casa. Não encontra uma lista telefónica.
Nem comida.
Jules, conhecendo os cães muito melhor do que Tom, diz-lhe
que ainda não estão prontos para sair. Que o cão é demasiado
errático, que ainda não con�a nele.
Tom pensa nas 12 horas que deu aos companheiros de casa para
o seu regresso. O tempo está a passar.
Por �m, Jules diz a Tom que acha que o cão está pronto para
sair da casa.
—  Então vamos seguir caminho — diz Tom. — Temos de
continuar a trabalhar com ele enquanto avançamos. Não
podemos dormir aqui, com este cheiro de morte.
Jules concorda. Mas são precisas algumas tentativas para
conseguir pôr a trela no cão. E passa ainda mais tempo. Quando
Jules �nalmente consegue, Tom decidiu ignorar as 12 horas; numa
tarde conseguiram um cão, quem sabe o que a manhã do dia
seguinte pode trazer-lhes.
Ainda assim, o tempo está a passar.
No hall de entrada, põem as vendas e os capacetes. Depois,
Tom destranca a porta da frente e eles saem da casa. Agora, Tom
usa a vassoura, mas Jules usa o cão. O husky arfa.
Voltando a atravessar o relvado, afastando-se ainda mais de
Malorie, Don, Cheryl, Felix e Olympia, chegam a outra casa.
Tom espera que seja a casa onde vão passar a noite. Se as
janelas estiverem protegidas, se uma busca à casa lhes der
con�ança, e se não forem recebidos com o cheiro de morte.
24
A dor no ombro de Malorie é tão exata, tão detalhada, que
consegue ver o contorno dela na sua mente. Consegue vê-la
mover-se enquanto o ombro se move. Não é uma dor ardente
como foi quando aconteceu. Agora é profunda, pesada e latejante.
As cores pálidas da decomposição, em vez dos tons explosivos do
impacto. Imagina o aspeto que o fundo do barco a remos deve ter
agora. Urina. Água. Sangue. As crianças perguntaram-lhe se
estava bem. Ela disse que sim. Mas elas sabem quando lhes estão
a mentir. Malorie treinou-as para ouvirem para além das palavras.
Agora não está a chorar, mas esteve. Lágrimas silenciosas atrás
da venda. Silenciosas para ela. Mas as crianças conseguem
encontrar sons no silêncio.
OK, meninos, costumava dizer, sentada à mesa da cozinha.
Fechem os olhos.
Eles fechavam.
O que é que estou a fazer?
Estás a sorrir.
Correto, Rapariga. Como é que sabias?
Respiras de maneira diferente quando sorris, mamã.
E no dia seguinte repetiam.
Estás a chorar, mamã!
Correto. E porque é que estou a chorar?
Estás triste.
Não é o único motivo.
Estás assustada!
Correto. Vamos tentar outra.
Agora a água está a �car mais fria. Malorie sente os salpicos
com cada remada extenuante.
— Mamã — diz o Rapaz.
— O que é?
Ela �ca imediatamente alerta ao ouvir o som da voz dele.
— Estás bem?
— Já me perguntaste isso.
— Mas não pareces bem.
— Eu disse que estou. Quer dizer que estou. Não me questiones.
— Mas estás a respirar de maneira diferente! — diz a Rapariga.
Está. Ela sabe que está. Com di�culdade, pensa.
— É só por causa do esforço — mente Malorie.
Quantas vezes ela questionou o seu dever como mãe quando
treinou as crianças para se tornarem máquinas de escuta? Para
Malorie, às vezes era horrível vê-las desenvolverem-se. Como se
tivesse sido encarregada de cuidar de duas crianças mutantes.
Pequenos monstros. Criaturas capazes de aprender a ouvir um
sorriso. Capazes de lhe dizer que estava com medo antes que ela
se apercebesse.
A ferida do ombro é grave. E há anos que Malorie receia sofrer
um ferimento daquela magnitude. Houve outros casos em que
escapou por pouco. Cair das escadas da cave quando as crianças
tinham dois anos. Tropeçar enquanto carregava um balde de água
do poço, batendo com a cabeça numa pedra. Uma vez pensou que
tinha partido o pulso. Um dente lascado. Era difícil lembrar-se do
aspeto das suas pernas sem hematomas. E agora a carne do
ombro parece arrancada do corpo. Ela quer parar o barco. Quer
procurar um hospital. Correr pelas ruas, a gritar, preciso de um
médico, preciso de um médico, PRECISO DE UM MÉDICO OU VOU
MORRER E OS MEUS FILHOS VÃO MORRER SEM MIM!
— Mamã — diz a Rapariga.
— O que é?
— Estamos voltados na direção errada.
— O quê?
Quando �cou mais exausta, usou demasiado o seu braço mais
forte. Agora está a remar contra a corrente e nem se tinha dado
conta.
De repente, a mão do Rapaz está pousada na sua. Malorie recua,
e depois para. Com os dedos sobre os dela, ele move-se com ela,
como se virasse a manivela do poço.
Neste mundo frio e doloroso, o Rapaz, ouvindo as suas
di�culdades, está a ajudá-la.
25
O husky está a lamber a mão de Tom. Jules ressona à sua
esquerda no chão alcatifado da sala da casa. Atrás dele, uma
televisão gigante repousa silenciosa num móvel de carvalho. Há
caixas de discos encostadas à parede. Candeeiros. Um sofá
xadrez. Uma lareira de pedra. Um grande quadro com uma praia
ocupa o espaço acima da lareira. Tom pensa que é no norte do
Michigan. No teto, imóvel, há uma ventoinha empoeirada.
O cão está a lamber-lhe as mãos porque na noite anterior ele e
Jules banquetearam-se com batatas fritas velhas.
Esta casa revelou-se um pouco mais frutífera do que a anterior.
Os homens ensacaram alguns enlatados, papel, dois pares de
botas de criança, dois casacos pequenos e um balde de plástico
resistente antes de adormecerem. Ainda assim, não encontraram
uma lista telefónica. Nos tempos modernos, com telemóveis em
todos os bolsos, a lista telefónica, ao que parece, caiu em desuso.
Há provas de que os proprietários originais deixaram
deliberadamente a cidade. Direções para uma pequena cidade no
Texas, na fronteira com o México. Um manual de sobrevivência
marcado a caneta. Listas longas de suprimentos que incluíam
gasolina e peças de automóvel. Pelos recibos, Tom percebeu que
compraram dez lanternas, três canas de pesca, seis facas, água
engarrafada, propano, nozes, três sacos-cama, um gerador, uma
besta, óleo de culinária,gasolina e lenha. Enquanto o cão lhe
lambe a mão, Tom pensa no Texas.
— Pesadelos — diz Jules.
Tom olha e vê que o amigo está acordado.
— Sonhei que não encontrávamos o caminho de regresso a casa
— continua Jules. — Que eu nunca mais via o Victor.
— Lembra-te da estaca que cravámos no relvado — diz Tom.
—  Não me esqueci — diz Jules. — Sonhei que alguém a tinha
tirado.
Jules levanta-se e os homens comem um pequeno-almoço de
frutos secos. O husky recebe uma lata de atum.
— Vamos atravessar a rua — diz Tom.
Jules concorda. Os homens arrumam as coisas e partem pouco
depois.
Lá fora, a relva dá lugar a betão. Estão novamente na rua. O sol
está quente. O ar fresco sabe-lhes bem. Tom prepara-se para o
dizer, mas, de repente, Jules grita.
— O que é isto?
Tom, cego, vira-se.
— O quê?
— É um poste, Tom. Como… Acho que é uma tenda.
— No meio da rua?
— Sim. No meio da nossa rua.
Tom aproxima-se de Jules. As cerdas da vassoura tocam em
algo que parece feito de metal. Com cautela, ele estende as mãos
no meio da escuridão e toca no que Jules encontrou.
— Não entendo — diz Tom.
Pousando a vassoura, Tom usa ambas as mãos para tatear acima
da sua cabeça, ao longo da lona. Faz-lhe lembrar uma feira onde
levou a �lha em tempos. As estradas tinham sido bloqueadas com
cones cor de laranja. Centenas de artistas vendiam pinturas,
esculturas, desenhos. Estavam instaladas lado a lado, demasiadas
para as conseguir contar. Cada um vendia os seus produtos numa
tenda de lona.
Tom entra para debaixo dela. Usa a vassoura para descrever um
arco largo no ar por cima de si. Não há ali nada, exceto os quatro
postes que sustentam a lona.
Militar, Tom pensa. Muito diferente de uma feira de rua.
Quando ele era criança, a mãe costumava gabar-se às amigas
que o seu �lho «se recusava a deixar um problema sem resposta».
Ele tenta descobrir a solução, dizia. Não há uma única coisa na
nossa casa que não o interesse. Tom lembra-se de ver os rostos
das amigas da mãe, como sorriam quando ela dizia aquelas coisas.
Brinquedos? dizia a mãe. O Tom não precisa de brinquedos. Um
galho de uma árvore é um brinquedo. Os �os dentro do leitor de
vídeo são brinquedos. A forma como as janelas funcionam. Toda a
vida foi descrito assim. O tipo de homem que quer saber como algo
funciona. Pergunta ao Tom. Se ele não souber, aprende. Ele arranja
coisas. Tudo. Mas para Tom, aquele comportamento não era
estranho. Até ter tido Robin. Nessa altura, o fascínio da criança
com o funcionamento das coisas surpreendia-o. Agora, debaixo
daquela tenda, Tom não sabe se é como a criança que quer
entender a tenda ou como o pai que o aconselha a afastar-se
dela.
Os homens examinam a tenda às cegas durante muitos
minutos.
— Talvez possamos usar isto — diz Tom a Jules, mas Jules já está
a chamá-lo, ao longe.
Tom atravessa a rua. Segue a voz de Jules até se encontrarem
noutro relvado.
A primeira casa em que entram está destrancada. Concordam
que não devem abrir os olhos ali. Entram.
Há correntes de ar no interior. Os homens sabem que as janelas
estão abertas antes de as veri�carem. A vassoura de Tom diz-lhe
que a primeira sala em que entram está cheia de caixas. Estas
pessoas, pensa, estavam a preparar-se para partir.
— Jules — diz Tom —, vê isto. Vou ver o resto da casa.
Já passaram 24 horas desde que deixaram a sua própria casa.
Agora, com alcatifa sob os pés, caminha lentamente pela casa
de um estranho. Encontra um sofá. Uma cadeira. Uma televisão.
Mal consegue ouvir Jules e o husky. O vento sopra através das
janelas abertas. Tom encontra uma mesa. Tateia ao longo da
superfície até os seus dedos pararem em alguma coisa.
Uma tigela, pensa.
Levantando-a, ouve algo cair na mesa. Procura com a mão,
encontra-o e descobre que é um utensílio que não esperava.
É como uma colher de gelado, mas mais pequena.
Tom desliza um dedo por ela. Contém uma substância espessa.
Ele estremece. Não é gelado. E uma vez Tom tocou algo assim.
No bordo da banheira. Junto ao seu pequeno pulso. O sangue era
assim. Espesso. Morto. O sangue de Robin.
A tremer, ele aproxima a tigela do peito enquanto pousa a
colher. Desliza lentamente os dedos pela curva cerâmica e lisa da
tigela até tocar em algo no fundo. Abafa um grito e deixa cair a
tigela no chão alcatifado.
— Tom?
A princípio, Tom não responde. Aquilo em que tocou… no
passado também tocou em algo assim.
Robin tinha-o trazido da escola. Da aula de ciências. Tinha-o
guardado numa lata de café sem tampa cheia de moedas. Tom
descobriu-o quando Robin estava na escola. Quando estava a
vasculhar a casa à procura daquele cheiro.
Sabia que o tinha encontrado quando, no interior da lata, em
cima de um monte de moedas, viu uma pequena bola
descolorada. Instintivamente, pegou-lhe. Pareceu-lhe esponjosa
entre os dedos.
Era um olho de porco. Dissecado. Robin mencionara que o tinha
feito na aula.
— Tom? O que se passa aí?
O Jules está a chamar-te. Responde.
— Tom?
— Estou bem, Jules! Deixei cair uma coisa.
Recuando, com vontade de sair daquela sala, a sua mão toca em
algo.
Também conhece aquela sensação.
Isto era um ombro, pensa. Há um corpo sentado numa cadeira à
mesa.
Tom imagina-o. Sentado. Sem olhos.
A princípio, não se consegue mover. Está de frente para onde o
corpo deve estar.
Sai apressadamente da sala.
— Jules — diz —, vamos embora daqui.
— O que é que aconteceu?
Tom conta-lhe. Em poucos minutos estão fora da casa.
Decidiram procurar o caminho de regresso a casa. Um cão é
su�ciente. Entre a tenda e o que Tom encontrou na tigela,
nenhum deles quer passar mais tempo ali fora.
Atravessam um relvado. Depois um caminho de acesso a uma
casa. Outro. O cão está a puxar Jules. Tom esforça-se para os
acompanhar. Sente que está a perder-se ali na escuridão da sua
venda. Chama Jules.
— Estou aqui — diz Jules.
Tom segue a voz dele. Alcança-o.
— Tom — diz Jules. — O cão está a insistir muito nesta garagem.
Ainda a tremer por causa da sua descoberta na casa, e ainda
assustado com a falta de sentido da tenda no meio da rua, Tom
diz que devem continuar a procurar o caminho de casa. Mas Jules
quer saber o que tanto interessa ao cão.
— É uma garagem independente — diz Jules. — Ele está a agir
como se houvesse lá dentro algo com vida.
Uma porta lateral está trancada. Encontrando apenas uma
janela, Jules parte-a. Diz a Tom que ela está protegida. Com
cartão. É pequena, mas um deles deve entrar. Jules diz que vai
fazê-lo. Tom diz que também vai. Prendem o cão a um tubo de
descarga do algeroz e ambos os homens entram pela janela.
Lá dentro, algo rosna.
Tom volta-se para a janela. Jules chama-o.
— Parece outro cão!
Tom também acha que sim. O seu coração bate muito depressa,
demasiado depressa, parece-lhe, e mantém uma mão apoiada no
parapeito da janela, pronto para sair.
— Não acredito — diz Jules.
— O que é?
— É outro husky.
— O quê? Como é que sabes?
— Porque estou a tocar-lhe no focinho.
Tom larga a janela. Percebe que o cão está a comer. Jules está a
dar-lhe comida.
Então, junto ao cotovelo de Tom, ouve-se outro som.
Primeiro parece o som de risos de crianças. Depois parece
música.
Finalmente, o som inconfundível de chilrear.
Pássaros.
Cuidadosamente, Tom recua. O chilrear para. Ele avança
novamente. O som aumenta de intensidade.
Claro, pensa Tom, sentindo a emoção que esperava quando
deixaram a casa no dia anterior.
Enquanto Jules conversa calmamente com o cão, Tom
aproxima-se dos pássaros até que os gritos deles se tornam
insuportáveis. Tateia ao longo de uma prateleira.
— Tom — diz Jules na escuridão —, tem cuidado…
— Eles estão numa caixa — diz Tom.
— O quê?
— Eu cresci com um tipo cujo pai era caçador. Os pássaros dele
faziam o mesmo som. Fazem mais barulho quanto mais nos
aproximamos deles.
As mãos de Tom estão dentro da caixa.
Está a pensar.
— Jules — diz ele —, vamos para casa.
— Eu gostava de ter mais tempo com o cão.
— Vais ter de o fazer em casa. Podemos fechá-los num quarto
se houver algum problema. Mas encontrámos o que
procurávamos. Vamos para casa.
Jules põe a trela ao segundo husky. Este é menosdifícil.
Enquanto saem da garagem pela porta lateral, Jules pergunta a
Tom:
— Vais trazer os pássaros?
— Sim. Tive uma ideia.
Lá fora, pegam no primeiro husky e dirigem-se para casa. Jules
caminha com o segundo cão, Tom com o primeiro. Lentamente,
atravessam relvados, depois passeios, até chegarem à marca que
deixaram no dia anterior.
No alpendre, antes de bater à porta, Tom ouve os colegas de
casa a discutirem lá dentro. Então parece-lhe ouvir um som vindo
da rua atrás de si.
Ele vira-se.
Espera.
Pergunta-se a que distância estará a tenda dali.
Então bate à porta.
No interior, a discussão para. Felix pergunta quem é. Tom
responde.
— Felix! É o Tom!
26
Vais ter de abrir os olhos…
— Tens de comer, Rapariga — diz Malorie. A sua voz é débil.
O Rapaz comeu nozes do saco. A Rapariga recusa-se.
— Se não comeres — diz Malorie entre caretas —, vou parar este
barco e deixar-te aqui.
Malorie sente a mão da Rapariga nas suas costas. Para de remar
e tira algumas nozes do saco, que lhe estende. Até aquele toque
suave lhe faz doer o ombro.
Mas um pensamento paira acima da dor. Uma verdade que
Malorie não quer enfrentar.
Sim, o mundo por trás da venda é de um cinzento doente. Sim,
está com medo de estar a perder a consciência. Mas uma
realidade muito mais sombria atravessa a sua miríade de medos e
problemas, tortuosa, inteligente. Flutua, depois paira, e
�nalmente pousa na linha da frente da sua imaginação.
É uma coisa que ela tem vindo a proteger, a esconder do resto
de si mesma toda a manhã.
Mas há anos que é o foco da sua tomada de decisão.
Dizes a ti mesma que esperaste quatro anos porque tiveste medo
de perder a casa para sempre. Dizes a ti mesma que esperaste
quatro anos porque querias treinar as crianças primeiro. Mas
nenhuma dessas coisas é verdade. Esperaste quatro anos porque
aqui, nesta viagem, neste rio, onde espreitam loucos e lobos, onde
as criaturas devem estar próximas, NESTE DIA, vais ter de fazer
algo que não fazes na rua há ainda mais de quatro anos.
Hoje vais ter de abrir os olhos.
Na rua.
É verdade. Ela sabe que é. Parece que sempre o soube. E o que é
que a assusta mais — a possibilidade de uma criatura na sua linha
de visão? Ou a insondável paleta de cores que explodirão diante
de si quando abrir os olhos?
Com que se parecerá o mundo agora? Será que o vais reconhecer?
Será cinzento? Será que as árvores enlouqueceram? As �ores,
as ervas, o céu? O mundo inteiro terá enlouquecido? Será que luta
contra si próprio? A Terra refuta os seus próprios oceanos? O
vento intensi�ca-se. Terá visto alguma coisa? Também terá
enlouquecido?
Pensa, diria Tom. Estás a fazê-lo. Estás a remar. Continua a
remar. Tudo isto signi�ca que vais conseguir. Vais ter de abrir os
olhos. Tu consegues. Porque precisas.
Tom. Tom. Tom. Tom. Tom.
Anseia por ele agora mais do que nunca.
Mesmo neste mundo mais novo, ali no rio, quando o vento
começa a uivar, a água fria lhe salpica as calças de ganga, os
animais selvagens andam pelas margens, onde o seu corpo está
ferido, a sua mente é prisioneira dos cinzentos, mesmo ali, Tom
vem até ela como algo brilhante, algo certo, algo bom.
— Estou a comer — diz a Rapariga.
Isto também é bom. Malorie encontra forças para a incentivar.
— Muito bem — diz entre respirações pesadas.
Mais movimento no bosque à esquerda. Parece um animal. Pode
ser o homem do barco. Pode ser uma criatura. Pode ser uma
dúzia delas. O barco a remos irá cruzar-se com um bando de
ursos esfomeados, à procura de peixe?
Malorie está ferida. A palavra continua a vir-lhe à mente.
Também está às voltas na sua cabeça. Como Tom. Como os tons
de cinzento atrás da venda. Como os ruídos do rio e do novo
mundo. O seu ombro. A sua ferida. Aconteceu. Aquilo de que as
pessoas a teriam avisado se tivesse havido alguém presente para
a avisar.
Segue o rio se quiseres, mas não te esqueças de que podes
magoar-te.
Oh, eu não sei se o faria no teu lugar. Podes-te magoar.
Isso é muito perigoso. O que seria das crianças se te magoasses?
O mundo agora é dos animais, Malorie. Não saias. Não sigas esse
rio.
Podes ferir-te.
Ferida.
FERIDA.
FERIDA!
Shannon. Pensa na Shannon. Agarra-te a ela.
Ela tenta. Uma memória abre caminho por entre a multidão de
pensamentos negros. Lembra-se de estar com Shannon numa
colina. Estava sol. Ela protegeu os olhos com o antebraço.
Apontou para o céu.
É o Allan Harrison! dissera, referindo-se a um rapaz da sua
turma. Aquela nuvem parece o Allan Harrison!
Estava a rir.
Qual?
Aquela! Estás a ver?
Shannon aproximou-se dela no relvado. Encostou a cabeça à de
Malorie.
Sim! Haha! Também o vejo! E olha aquela! É a Susan Ruth!
As irmãs �caram ali horas, a desencantar rostos nas nuvens.
Bastava um nariz. Uma orelha. Talvez a de cima tivesse caracóis,
como a Emily Holt.
Lembras-te do céu? pergunta-se, ainda a remar. Era tão azul. E o
sol era tão amarelo como no desenho de uma criança. A relva era
verde. O rosto de Shannon era pálido, liso, branco. Bem como as
suas mãos, que apontavam para as nuvens. Naquele dia, para onde
quer que olhassem, havia cores.
— Mamã? — pergunta o Rapaz. — Mamã, estás a chorar?
Quando abrires os olhos, Malorie, vais vê-las novamente. Todo o
teu mundo virá à luz. Viste paredes e cobertores. Escadas e
alcatifas. Manchas e baldes de água do poço. Corda, facas, um
machado, arame, �os de altifalantes e colheres. Conservas, velas e
cadeiras. Fita, pilhas, madeira e gesso. Há anos que a única coisa
que pudeste ver foram os rostos dos teus colegas de casa e os rostos
dos teus �lhos. As mesmas cores. As mesmas cores. As mesmas cores
durante anos. ANOS. Estás preparada? E o que mais te assusta? As
criaturas ou tu mesma, quando as memórias de um milhão de
visões e cores vierem na tua direção? O que mais te assusta?
Malorie rema agora muito devagar. A menos de metade da
velocidade a que avançava há dez minutos. A mistura de água,
urina e sangue agita-se junto aos seus tornozelos. Animais ou
loucos ou criaturas movem-se nas margens. O vento é frio. Tom
não está ali. Shannon não está ali. O mundo cinzento atrás da sua
venda começa a girar, como lama espessa a escorrer para um
esgoto.
Ela vomita.
No último instante, pergunta-se se será uma coisa terrível,
aquilo que lhe está a acontecer. Desmaiar. O que acontecerá às
crianças? Ficarão bem se a mamã delas desmaiar?
E mais nada.
As mãos de Malorie largam os remos. Na sua mente, Tom está a
observá-la. As criaturas também a observam.
E então, enquanto o Rapaz lhe faz uma pergunta, Malorie, a
capitã deste pequeno navio, perde completamente os sentidos.
27
Malorie acorda de um sonho acerca de bebés. Ou o dia acaba de
romper ou a noite apresta-se a cair, é o que ela calcula. A casa
está em silêncio. Quanto mais a gravidez avança, mais vívida se
torna a sua realidade. Ambos os livros Grávida e Finalmente… um
Bebé! mencionam brevemente os partos em casa. Claro que é
possível fazê-lo sem a ajuda de um pro�ssional, mas os livros não
o recomendam. Higiene, dizem. Circunstâncias imprevistas.
Olympia odeia ler aquelas partes, mas Malorie sabe que devem
fazê-lo.
Um dia, a dor de que a sua mãe e de que todas as mães falam virá
até si na mesma forma: o parto. Só uma mulher pode experienciá-
la e, por este motivo, todas as mulheres estão ligadas.
Agora o momento aproxima-se. Agora. E quem estará lá quando
isso acontecer? No velho mundo, a resposta era fácil. Shannon,
claro. A mãe e o pai. Os amigos. Uma enfermeira que lhe diria que
estava a portar-se bem. Haveria �ores numa mesa. Os lençóis
teriam um cheiro fresco. Seria cuidada por pessoas que já tinham
dado à luz outros bebés; agiriam com a tranquilidade de quem
descasca um pistacho. E a tranquilidade que expressariam seria
exatamente o que acalmaria os seus nervos impossíveis.
Mas essa já não era a resposta. Agora, o parto que Malorie
espera parece-se mais com o de uma loba: bruto, cruel,
desumano. Não haverá médicos. Nem enfermeiras.
Não haverá medicamentos.
Ah, como imaginou que saberia o que fazer! Quão preparada
pensou que estaria! Revistas, sites, vídeos,conselhos do seu
obstetra, histórias de outras mães. Mas agora nada disso está ao
seu dispor. Nada! Não vai dar à luz num hospital, vai acontecer ali
mesmo, naquela casa. Num dos quartos daquela casa! E o máximo
que pode esperar é ter Tom a assistir enquanto Olympia lhe
segura a mão e olha horrorizada. Haverá cobertores a tapar as
janelas. Talvez tenha uma t-shirt debaixo do rabo. Beberá um
copo da água turva do poço.
E mais nada. É assim que vai acontecer.
Volta a deitar-se de costas. Respirando com força e devagar,
Malorie �ta o teto. Fecha os olhos e volta a abri-los. Será capaz
de fazer isto? Será capaz?
Tem de ser. E assim repete mantras, palavras para se preparar.
No �nal de contas, não importa se acontece num hospital ou no
chão da cozinha. O teu corpo sabe o que fazer. O teu corpo sabe o
que fazer. O teu corpo sabe o que fazer.
O bebé que vai nascer é a única coisa que importa.
Abruptamente, como se estivessem a imitar o som do bebé para
o qual Malorie se prepara, ouve os pássaros a chilrearem do lado
de fora da porta da rua. Desperta dos seus pensamentos e vira-se
na direção do som. Enquanto se senta lentamente na cama, ouve
uma batida vinda do andar de baixo.
Paralisa.
Era a porta? É o Tom? Alguém saiu?
Ouve novamente o mesmo som e, surpreendida, senta-se.
Pousa uma mão na barriga e escuta.
O som repete-se.
Malorie balança lentamente os pés para o chão, levanta-se e
atravessa o quarto. Para junto à porta, com uma mão na barriga,
uma na madeira da ombreira da porta, e escuta.
Outra batida. Desta vez mais ruidosa.
Caminha até ao cimo das escadas e para novamente.
Quem será?
Tem o corpo frio por baixo do pijama. O bebé mexe-se. Malorie
sente-se um pouco fraca. Os pássaros ainda estão a fazer
barulho.
Será um dos habitantes da casa?
Ela volta a entrar no quarto e pega numa lanterna. Dirige-se
para o quarto de Olympia e aponta a lanterna à cama. Ela está a
dormir. No quarto ao fundo do corredor, vê Cheryl na cama.
Malorie desce lentamente as escadas até à sala de estar.
Tom.
Tom está a dormir na alcatifa. Felix está no sofá.
— Tom — diz Malorie, tocando-lhe no ombro. — Tom, acorda.
Tom vira-se de barriga para baixo. Depois olha para cima, de
repente, para Malorie.
— Tom — diz ela.
— Está tudo bem?
— Está alguém a bater à porta da rua.
— O quê? Agora?
— Agora mesmo.
Ouve-se outra batida. Tom vira o rosto para o corredor.
— Meu Deus. Que horas são?
— Não sei. É tarde.
— OK.
Tom levanta-se rapidamente. Faz uma pausa, como se estivesse
a tentar acordar por completo, deixando o sono no chão. Está
completamente vestido. Ao lado de onde ele estava a dormir,
Malorie vê o começo de outro capacete. Tom acende o candeeiro
da sala.
Então os dois dirigem-se para a porta da frente. Param no
corredor. Outra série de batidas.
— Olá? — diz uma voz de homem.
Malorie agarra o braço de Tom. Tom acende a luz do corredor.
— Olá? — repete o homem.
Seguem-se mais batidas.
— Preciso que me deixem entrar! — diz o homem. — Não tenho
para onde ir. Olá?
Por �m, Tom avança na direção da porta. Do fundo do corredor,
Malorie deteta um movimento. É Don.
— O que se passa? — pergunta ele.
— Alguém está à porta — responde Tom.
Don, meio a dormir, parece confuso. Depois diz:
— Bem, e o que é que vais fazer?
Mais batidas.
—  Eu preciso de um lugar para onde ir — diz a voz. — Não
consigo passar mais tempo sozinho aqui fora.
— Vou falar com ele — diz Tom.
— Não somos uma merda de um albergue, Tom — diz Don.
— Só vou falar com ele.
Então Don avança na direção deles. Malorie ouve passos no
andar de cima.
— Se estiver aí alguém, eu posso…
— Quem é você? — pergunta �nalmente Tom.
Há um momento de silêncio. Depois:
— Oh, graças a Deus, há alguém aí! O meu nome é Gary.
— Ele pode ser má pessoa — diz Don. — Pode estar louco.
Felix e Cheryl aparecem ao fundo do corredor. Parecem
exaustos. Jules também está ali. Os cães estão atrás dele.
— O que se passa, Tom?
— Ouça, Gary — diz Tom —, fale-nos um pouco de si.
Os pássaros estão a chilrear.
— Quem é? — pergunta Felix.
— Chamo-me Gary e tenho 46 anos. Tenho barba castanha. Não
abro os olhos há muito tempo.
— A voz dele não me agrada — diz Cheryl.
Agora Olympia também lá está.
Tom pergunta:
— Porque é que está na rua?
Gary responde:
— Tive de sair da casa onde estava. As pessoas não eram boas.
Aconteceu uma situação.
— O que diabos signi�ca isso? — pergunta Don.
Gary faz uma pausa. Depois explica:
— Eles tornaram-se violentos.
— Isso não basta — diz Don aos outros. — Não abram esta porta.
— Gary — pergunta Tom —, há quanto tempo está aí fora?
— Dois dias, acho. Quase três.
— Onde é que tem vivido?
— Vivido? Nos relvados. Debaixo dos arbustos.
— Merda — diz Cheryl.
—  Ouçam — diz Gary. — Tenho fome. Estou sozinho. E tenho
muito medo. Entendo as vossas reservas, mas não tenho para
onde ir.
— Tentou outras casas? — pergunta Tom.
—  Sim! Estou há horas a bater às portas. Você é o primeiro a
responder.
—  Como é que ele sabia que estávamos aqui? — pergunta
Malorie aos outros.
— Talvez não soubesse — diz Tom.
—  Ele esteve muito tempo a bater à porta. Ele sabia que
estávamos aqui.
Tom volta-se para Don. A sua expressão pergunta a Don o que
acha.
— Nem pensar.
Agora Tom está a suar.
— Eu sei que tu queres — continua Don com um tom furioso. —
Tens esperança de que ele tenha informações.
— Pois tenho — responde Tom. — Tenho esperança de que ele
tenha ideias. Também estou a pensar que ele precisa da nossa
ajuda.
— Certo. Pois eu estou a pensar que pode haver sete homens lá
fora, prontos para nos cortar a garganta.
— Meu Deus — diz Olympia.
— O Jules e eu estivemos lá fora há dois dias — diz Tom. — Ele
tem razão quando diz que as outras casas estão vazias.
— Então porque é que não dorme numa delas?
— Não sei, Don. Comida?
— E vocês estiveram lá fora ao mesmo tempo que ele e ele não
vos ouviu?
— Porra — diz Tom. — Não sei responder a isso. Ele podia estar
na rua de trás.
— Vocês não viram essas casas. Como é que sabes que ele está a
dizer a verdade?
— Deixa-o entrar — diz Jules.
Don encara-o.
— Não é assim que as coisas funcionam aqui.
— Então vamos votar.
—  Vá lá — diz Don, furioso. — Se um de nós não quer abrir a
porra da porta, não devemos abrir a porra da porta.
Malorie pensa no homem no alpendre. Na sua imaginação, tem
os olhos fechados. Está a tremer.
Os pássaros continuam a chilrear.
— Olá? — diz Gary novamente. Parece tenso, impaciente.
— Sim — diz Tom. — Desculpe, Gary. Ainda estamos a discutir o
assunto. — Então vira-se para os outros. — Votem — diz.
— Sim — diz Felix.
Jules assente.
— Desculpa — diz Cheryl. — Não.
Tom olha para Olympia. Ela abana a cabeça.
—  Detesto pôr-te nesta posição, Malorie — diz ele —, mas
estamos empatados. O que é que fazemos?
Malorie não quer responder. Não quer ter esse poder. O destino
daquele estranho foi despejado aos seus pés.
— Talvez ele precise de ajuda — diz ela. No entanto, assim que o
diz, arrepende-se.
Tom vira-se para a porta. Don estende a mão e agarra-lhe o
pulso.
— Eu não quero que esta porta se abra — sibila.
— Don — diz Tom, soltando lentamente o pulso da mão de Don
—, nós votámos. Vamos deixá-lo entrar. Tal como nós deixámos
entrar a Olympia e a Malorie. Tal como o George nos deixou
entrar aos dois.
Don �ta Tom durante o que Malorie sente que é uma
eternidade. Será que é desta que se pegam à pancada?
— Ouve o que te digo — diz Don. — Se algo mau resultar disto,
se a minha vida for posta em perigo por causa de uma merda de
um voto, não vou parar para vos ajudar quando me puser a andar
para fora desta casa.
— Don — diz Tom.
— Olá? — chama Gary.
— Mantenha os olhos fechados! — grita Tom. — Vamos deixá-lo
entrar.
A mão de Tom está na maçaneta da porta.
— Jules, Felix — diz Tom —, usem as vassouras. Cheryl, Malorie,
preciso que se aproximem dele, que o revistem. OK? Agora
fechem todos os olhos.
Na escuridão, Malorie ouve a porta a abrir-se.
Há um silêncio. Então Gary fala.
— A porta está aberta? — pergunta ansiosamente.
— Despache-se — diz Tom.
Malorie ouve passos. A porta da frentefecha-se. Ela avança.
— Mantenha os olhos fechados, Gary — diz ela.
Ela estende a mão para ele, encontra-o e aproxima os dedos do
seu rosto. Sente o nariz, as bochechas, os olhos. Toca-lhe nos
ombros e pede-lhe uma das mãos.
— Isto é novidade para mim — diz ele. — O que é que procura?
— Shhh! — Ela apalpa-lhe as mãos e conta os dedos. Tateia as
unhas e os pelos dos dedos.
— OK — diz Felix. — Acho que ele está sozinho.
— Sim — diz Jules. — Ele está sozinho.
Malorie abre os olhos.
Vê um homem, muito mais velho do que ela, com uma barba
castanha e um casaco de tweed por cima de uma camisola preta.
Cheira como se tivesse passado semanas lá fora.
— Obrigado — diz ele, ofegante.
A princípio ninguém responde. Limitam-se a observá-lo.
O seu cabelo castanho, penteado para o lado, está desgrenhado.
É mais velho e mais pesado do que qualquer um dos habitantes
da casa. Tem na mão uma pasta castanha.
— O que é que tem aí? — pergunta Don.
Gary olha para a pasta como se se tivesse esquecido que a
tinha.
— As minhas coisas — responde. — O que apanhei antes de sair.
— Que coisas são essas? — pergunta Don.
Gary, parecendo simultaneamente surpreendido e
compreensivo, abre a pasta. Vira-a para os habitantes da casa.
Papéis. Uma escova de dentes. Uma camisa. Um relógio.
Don assente.
Quando Gary fecha a pasta, repara na barriga de Malorie.
— Oh meu Deus — diz. — Você está quase, não está?
—  Sim — responde ela friamente, ainda sem saber se podem
con�ar naquele homem.
— Para que são os pássaros? — pergunta ele.
— Para dar o aviso — responde Tom.
— Claro — diz Gary. — Canários nas minas. Foi uma ideia muito
inteligente. Ouvi-os quando me aproximei.
Então, Tom convida Gary a entrar mais para dentro da casa. Os
cães cheiram-no. Na sala de estar, Tom aponta para a poltrona.
— Pode dormir ali esta noite — diz. — É reclinável. Precisa de
comer?
— Sim — diz Gary, aliviado.
Tom guia-o através da cozinha e até à sala de jantar.
— Temos enlatados na cave. Vou buscar alguma coisa para si.
Tom faz um gesto discreto a pedir a Malorie que o siga até à
cozinha. Ela obedece.
— Eu vou �car acordado com ele mais algum tempo — diz Tom.
— Dorme um pouco se quiseres. Estamos todos exaustos. Está
tudo bem. Vou dar-lhe comida, água e falamos com ele amanhã.
Todos juntos.
— Nem pensar que vou voltar para a cama agora — diz Malorie.
Tom sorri, cansado.
— OK.
Ele dirige-se para a cave. Malorie junta-se aos outros na sala de
jantar. Quando Tom regressa, traz pêssegos enlatados.
—  Nunca imaginei que um dia a ferramenta mais valiosa do
mundo seria um abre-latas — diz Gary.
Estão todos juntos à volta da mesa da sala de jantar. Tom
interroga Gary. Como é que sobreviveu lá fora? Onde dormiu? É
óbvio que Gary está exausto. Por �m, um por um, a começar por
Don, os habitantes da casa voltam para os seus quartos. Quando
Tom leva Gary de volta para a sala de estar, Malorie e Olympia
levantam-se da mesa. Nas escadas, Olympia pousa a mão sobre a
de Malorie.
—  Malorie — diz ela —, importas-te que durma contigo esta
noite?
Malorie volta-se para ela.
— Não — responde. — Não me importo nada.
28
É a manhã seguinte. Malorie levanta-se e veste-se. Parece que
estão todos lá em baixo.
— Vocês também tinham eletricidade? — pergunta Felix quando
Malorie entra na sala de estar.
Gary está sentado no sofá. Sorri ao ver Malorie.
— Este — diz Gary, fazendo um gesto na direção dela —, é o anjo
que sentiu o meu rosto quando entrei. Tenho de admitir que o
contacto humano quase me fez chorar.
Malorie acha que Gary fala um pouco como um ator. Com
muitos �oreados.
— Então um voto decidiu realmente o meu destino? — pergunta
Gary.
— Sim — responde Tom.
Gary assente.
— Na casa de onde vim, não havia nenhuma dessas cortesias. Se
alguém tinha uma ideia, ia em frente, muito vigorosamente, quer
os outros aprovassem quer não. É muito bom conhecer pessoas
que mantiveram o civismo das nossas vidas anteriores.
— Eu votei contra — diz Don bruscamente.
— Sim? — pergunta Gary.
— Sim. Votei. Sete pessoas debaixo de um teto são mais do que
su�cientes.
— Compreendo.
Um dos huskies levanta-se e aproxima-se de Gary. Gary faz-lhe
uma festa atrás das orelhas.
Tom começa a explicar-lhe as mesmas coisas que explicou a
Malorie. Energia hidroelétrica. A comida na cave. A falta de uma
lista telefónica. Como George morreu. Ao �m de algum tempo,
Gary começa a falar sobre um antigo colega de casa seu. Um
«homem perturbado» que não acreditava que as criaturas eram
perigosas.
—  Ele acreditava que a reação das pessoas a elas era
psicossomática. Por outras palavras, toda esta conversa de
loucura não era causada pelas criaturas, mas sim pelas pessoas
que as viam.
Conversa de loucura, pensa Malorie. Aquelas palavras
desdenhosas pertenciam ao antigo colega de casa?
Ou seriam de Gary?
— Eu gostava de vos falar da minha experiência na minha antiga
casa — continua Gary. — Mas aviso-vos desde já que é uma
história horrível.
Malorie quer ouvir. Todos eles querem. Gary desliza os dedos
pelo cabelo. Então começa.
—  Não houve nenhum anúncio no jornal e não éramos tão
jovens como vocês. Não tínhamos sentido de comunidade nem
houve um esforço conjunto. O meu irmão, Duncan, tem um amigo
que levou o Relatório Rússia muito a sério. Ele foi um dos
primeiros crentes. A ideia de que o governo ou alguém estava a
tentar acabar connosco coincidia bem com as suas teorias da
conspiração e paranoia. Eu próprio ainda tenho momentos em
que não consigo acreditar que isto está a acontecer. E quem pode
censurar-me? Tenho mais de 40 anos. Estava tão habituado à vida
que tinha, nunca imaginei uma vida assim. Resisti. Mas o Kirk, o
amigo do meu irmão, tinha a certeza, desde o início. E nada, ao
que parece, podia fazê-lo mudar de ideias. Uma tarde, o Duncan
ligou-me e disse-me que o Kirk tinha sugerido que nos
reuníssemos na casa dele durante alguns dias, ou até sabermos
mais acerca desta «coisa».
» Que coisa? — perguntei.
» Gary, está em todos os noticiários.
» O quê, Duncan? O que aconteceu na Rússia? Não podes estar
a falar a sério.
» Vá lá — disse o Duncan. — Bebemos umas cervejas, comemos
pizza e fazemos-lhe a vontade. Não tens nada a perder.
» Eu disse-lhe que não, obrigado. Passar tempo com o louco do
Kirk enquanto ele analisava histórias sensacionalistas não me
parecia divertido. Mas acabei por passar por lá.
»  Tinha ouvido as notícias como todas as outras pessoas do
país. Comecei a �car preocupado. Eram tantos casos. Ainda
assim, absurdamente, tentei manter a descrença. Aquele tipo de
coisas simplesmente não acontecia. Mas então ouvi uma notícia
que me obrigou a agir. Foi o caso das irmãs do Alasca. Podem
estar a perguntar-se porque é que demorei tanto a deixar-me
convencer. O caso do Alasca aconteceu relativamente tarde, mas
o Alasca também é um território americano e sou provinciano o
su�ciente para não me preocupar até as coisas acontecerem
perto de casa. Até o apresentador do noticiário estava claramente
assustado com o que estava a dizer. Sim, até o homem que
transmitiu a notícia o fez a tremer.
»  Vocês conhecem a história. Uma mulher viu as suas duas
vizinhas idosas, irmãs, a saírem de casa. Supôs que tinham ido dar
o seu passeio diário. Três horas depois, ouviu na rádio que as
irmãs estavam em frente ao hospital, agachadas nos degraus da
pedra, a tentar morder as pessoas que passavam. A mulher
conduziu até ao hospital, imaginando-se mais próxima das irmãs
do que qualquer outra pessoa e provavelmente capaz de ajudar.
Mas não foi o caso. E as fotogra�as da CNN mostraram a mulher,
cujo rosto fora arrancado e estava literalmente no passeio ao lado
do seu crânio ensanguentado. Atrás dela, estavam as duas idosas,
mortas, alvejadas pela polícia. Aquela imagem marcou-me.
Pessoas tão normais. Num ambiente tão normal.
» Para o Kirk, o caso do Alasca validava todas as suas fantasias
paranoicas. Apesar do meu medo crescente, eu não estava
preparado para trocar a vida que conhecia por esta existência
miliciana advogada por ele. Eu estava preparado para tapar as
janelas, trancaras portas e esconder-me, mas o Kirk já tinha
planos para lutar contra o que pensava ser uma «invasão» — fosse
ela extraterrestre ou de outro tipo, nunca percebi. Falava de
armas, equipamento e pistolas como um soldado veterano. Claro
que não era; nunca se alistou em nada na vida.
Gary faz uma pausa. Parece estar a pensar.
—  Ao �m de pouco tempo, a casa estava cheia de homens
semimilitantes. O Kirk estava a gostar do seu novo papel de
general, e eu assisti a grande parte das palhaçadas à distância.
Avisava regularmente o Duncan para não se envolver demasiado.
Um homem como o Kirk podia pôr os amigos em perigo. Os
homens tornaram-se cada vez mais belicosos, animados com a
fantasia de vencer os vilões da «invasão» do Kirk. Os dias
passaram e, no entanto, nada resultou das suas declarações de
que iam proteger a cidade, eliminar a causa desta loucura global e
garantir o seu lugar na história como o grupo que resolveu o
«grande problema». No entanto, houve um homem na casa que
tomou medidas para defender o que acreditava. Chamava-se
Frank, e o Frank acreditava que as criaturas para as quais o Kirk
se preparava não eram uma ameaça. Ainda assim, veio para a
casa, com medo, admitiu, do inevitável caos que podia varrer o
país.
» Enquanto o Kirk planeava inúteis simulacros diários, o Frank
tornou-se uma espécie de recluso, quase nunca saindo do seu
quarto no segundo andar. E ali, escrevia. Dia e noite, o Frank
escrevia com lápis, caneta, marcador e maquilhagem. Um dia,
enquanto estava a passar no corredor do andar de cima, ouvi algo
atrás da porta fechada. Era um som furioso, laborioso, zangado,
agressivo. Entreabri a porta e vi-o debruçado sobre uma
secretária, a murmurar acerca da sociedade «cultista e hiper-
reativa» que desdenhava, enquanto escrevia. Eu não tinha como
saber o que ele estava a escrever. Mas queria descobrir.
» Discuti o assunto com o Duncan. O rosto do meu irmão estava
pintado com um camu�ado ridículo. Nessa altura ele já estava
realmente infetado com os delírios do Kirk e não acreditava que o
Frank fosse uma ameaça. O Frank usava frases como histeria de
massas e idolatria psicossomática, ao passo que o Kirk e os outros
faziam treino de tiro, sem armas, na cave. Todos achavam que o
Frank era um paci�sta sem préstimo.
Gary passa novamente as mãos pelo cabelo.
— Eu tentei descobrir o que o Frank estava a armar fechado no
quarto. Comecei a procurar uma oportunidade para ler os seus
escritos secretos.
» O que é que acham que aconteceria a um homem que já era
louco se visse as criaturas lá fora? Acham que ele seria imune, por
ter a mente já destruída? Ou acham que a sua loucura alcançaria
um nível mais alto? Talvez os doentes mentais venham a herdar
este novo mundo, por não poderem enlouquecer ainda mais.
Também não sei a resposta.
Gary bebe um gole de água.
—  O meu momento surgiu assim: O Kirk e os outros estavam
ocupados na cave. O Frank estava no banho. Tomei a decisão de
bisbilhotar rapidamente. Entrei no quarto dele e encontrei os
escritos na gaveta da secretária. Não foi fácil porque, por esta
altura, eu já tinha medo dele. Embora os outros não lhe dessem
importância, troçando das suas ideias, eu suspeitava de
possibilidades mais negras. Comecei a ler. Fiquei imediatamente
surpreendido com as palavras dele. Não importa há quanto
tempo o Frank começara a escrever, parecia impossível já ter
escrito tudo aquilo. Dezenas de cadernos, escritos em várias
cores, cada um mais furioso do que o outro. Pequenas estrofes
manuscritas seguidas de grandes frases sublinhadas, declarando
que as criaturas não deviam ser temidas. Referia-se aos restantes
de nós como «as pessoas com mentes pequenas» que «deviam
ser exterminadas». Ele era realmente perigoso. De repente,
ouvindo-o sair do banho, saí a correr do quarto. Talvez o Duncan
não estivesse tão errado quando escolheu seguir o Kirk. Aqueles
cadernos mostraram-me que havia reações muito piores do que a
dele ao novo mundo.
Gary respira fundo. Limpa os lábios com as costas da mão.
— Quando acordámos no dia seguinte, as cortinas tinham sido
arrancadas.
Cheryl abafa um grito.
— As portas tinham sido destrancadas.
Don começa a dizer algo.
— E o Frank tinha partido. Levou com ele os cadernos.
— Oh, merda — diz Felix.
Gary abana a cabeça.
— Alguém �cou ferido? — pergunta Tom.
Os olhos de Gary enchem-se de lágrimas, mas ele controla-se.
— Não — diz ele. — Ninguém. Coisa que tenho a certeza de que
o Frank teria incluído nas suas anotações.
Malorie leva uma mão à barriga.
— Porque é que saiu? — pergunta Don, impaciente.
—  Saí — diz Gary —, porque o Kirk e os outros começaram a
falar muito acerca de ir à procura do Frank. Queriam matá-lo
pelo que ele tinha feito.
A sala �ca em silêncio.
—  Nessa altura soube que tinha de partir. Aquela casa estava
arruinada. Destruída. A vossa, ao que parece, não está. Por isso…
— Gary diz, olhando para Malorie —, agradeço-lhe por me deixar
entrar.
— Eu não o deixei entrar — diz Malorie. — Fomos todos nós.
Que tipo de homem, pergunta-se ela, deixaria o irmão para trás?
Ela olha para Don. Para Cheryl. Para Olympia. A história de Gary
teria cativado a simpatia dos que tinham votado para não o deixar
entrar? Ou teria justi�cado os seus medos?
Conversa de loucura.
Tom e Felix estão a fazer perguntas a Gary acerca da sua
história. Jules também intervém. Mas Cheryl saiu da sala. E Don,
que tem uma palavra a dizer acerca de tudo, não está a falar
muito. Limita-se a olhar �xamente.
Uma divisão está a crescer, pensa Malorie.
Exatamente quando começou não importa. Agora é visível. Gary
trouxe consigo uma pasta. Uma história. E, de alguma forma, uma
divisão.
29
Malorie acorda com os olhos fechados. Já não é tão difícil de
fazer como era antes. A consciência volta. Os sons, as sensações e
os cheiros da vida. As imagens também. Malorie sabe que, mesmo
com os olhos fechados, há visão. Vê tons de pêssego, amarelo, as
cores da luz do sol a penetrar a carne. Nos cantos da sua visão
estão os cinzentos.
Parece que está ao ar livre. Sente ar frio no seu rosto. Lábios
gretados. Garganta seca. Quando foi a última vez que bebeu
água? O seu corpo está bem. Descansado. Há um latejar algures à
esquerda do seu pescoço. O ombro. Leva a mão direita à testa.
Quando os dedos lhe tocam no rosto, percebe que estão
molhados e sujos. Na verdade, sente as costas todas molhadas.
Tem a camisa encharcada em água.
Um pássaro canta acima da sua cabeça. De olhos ainda
fechados, Malorie vira-se para ele.
As crianças estão a respirar com di�culdade. Parece que estão a
fazer algo.
Estarão a desenhar? A construir algo? A brincar?
Malorie senta-se.
— Rapaz?
O seu primeiro pensamento parece uma piada. Uma
impossibilidade. Um erro. Então percebe que é exatamente o que
está a acontecer.
Estão a respirar com di�culdade porque estão a remar.
—  Rapaz! — grita Malorie. A sua voz soa mal. Como se a sua
garganta fosse feita de madeira.
— Mamã!
— O que se passa?!
O barco a remos. O barco a remos. O barco a remos. Estás no rio.
Desmaiaste. DESMAIASTE.
Apoiando o ombro debilitado na beira do barco, ela apanha uma
mão-cheia de água e leva-a à boca. Depois ajoelha-se sobre a
borda do barco, a apanhar água em sucessão rápida. Está a
respirar com di�culdade. Mas os cinzentos desapareceram. E o
seu corpo parece um pouco melhor.
Ela vira-se para as crianças.
— Quanto tempo? Quanto tempo?
— Adormeceste, mamã — diz a Rapariga.
— Tiveste sonhos maus — diz o Rapaz.
— Estavas a chorar.
A mente de Malorie move-se demasiado depressa. Terá deixado
escapar alguma coisa?
— Quanto tempo? — grita de novo.
— Não muito — responde o Rapaz.
— Têm as vendas postas? Respondam!
— Sim — dizem eles.
— O barco �cou preso — diz a Rapariga.
Meu Deus, pensa Malorie.
Depois acalma-se o su�ciente para perguntar:
— Como é que nos soltámos?
Ela encontra o corpo pequeno da Rapariga. Segue os contornos
dos braços até achar as mãos. Depois atravessa o barco a remos e
procura o Rapaz.
Cada um deles está a usar um remo. Eles estão a remar juntos.
— Nós soltámo-lo, mamã! — diza Rapariga.
Malorie está de joelhos. Percebe que cheira mal. Como um bar.
Como uma casa de banho.
Cheira a vomitado.
— Nós soltámo-lo — diz o Rapaz.
Agora, Malorie está junto dele. Tem as mãos trémulas pousadas
nas dele.
— Estou ferida — diz em voz alta.
— O quê? — pergunta o Rapaz.
—  Preciso que voltem para o lugar onde estavam antes de a
mamã adormecer. Agora mesmo.
As crianças param de remar. A Rapariga pressiona-se contra o
corpo dela enquanto se dirige para o banco traseiro. Malorie
ajuda-a.
Por �m, Malorie está outra vez sentada no banco do meio.
Tem o ombro a latejar, mas não é tão mau como antes.
Precisava de descansar. Não estava a dar descanso ao corpo,
portanto o corpo reclamou-o.
Na névoa da sua mente acordada, Malorie está a �car mais fria,
mais assustada. E se isto voltar a acontecer?
Terão passado o ponto para onde se dirigem?
Novamente com os remos nas mãos, Malorie respira fundo
antes de começar a remar.
E então começa a chorar. Chora porque desmaiou. Chora
porque um lobo a atacou. Chora por tantos motivos que lhe é
impossível identi�cá-los a todos. Mas sabe que em parte o faz
porque descobriu que as crianças são capazes de sobreviver,
mesmo que apenas por um momento, por conta própria.
Treinaste-os bem, pensa. Aquele pensamento, muitas vezes feio,
deixa-a orgulhosa.
—  Rapaz — diz entre lágrimas —, preciso que voltes a escutar
com atenção. OK?
— Estou a escutar, mamã!
— E tu, Rapariga, preciso que faças o mesmo.
— Eu também estou a escutar!
É possível que estejamos bem? pergunta-se Malorie. É possível
que tenhas desmaiado e acordado e ainda esteja tudo bem?
Não parece verdade. Não está de acordo com as regras do novo
mundo. Algo está ali, no rio, com eles. Homens loucos. Animais
selvagens. Criaturas. Quanto mais tempo de sono os teria atraído
para o barco?
Felizmente, agora está a remar novamente. Mas o que os
espreita parece agora mais próximo.
— Desculpem — diz ela, a chorar, a remar.
Tem as pernas encharcadas de urina, água, sangue e vomitado.
Mas o seu corpo está repousado. De alguma forma, Malorie
pensa, apesar das leis cruéis deste mundo implacável, teve direito
a uma pausa.
O sentimento de alívio dura uma remada. Depois, Malorie volta
a estar alerta e assustada.
30
Cheryl está perturbada.
Malorie ouve-a falar com Felix no quarto ao fundo do corredor.
Os outros habitantes da casa estão no andar de baixo. Gary
começou a dormir na sala de jantar, apesar do chão de madeira.
Desde a sua chegada, há duas semanas, Don começou a aceitá-lo
muito melhor. Malorie não sabe o que pensar disso. Ele
provavelmente está com Gary neste momento.
Contudo, no corredor, Cheryl sussurra apressadamente. Parece
assustada. Parece que todos estão. Mais do que o normal. O
ambiente da casa, em tempos fortemente sustentado pelo
otimismo de Tom, �ca mais pesado a cada dia que passa. Às
vezes, Malorie pensa, o ambiente pesado é mais forte do que o
medo. É medo que Cheryl parece estar a sentir agora. Malorie
pensa em juntar-se a eles, talvez até reconfortar Cheryl, mas
decide não o fazer.
— Faço-o todos os dias, Felix, porque gosto. É o meu trabalho. E
os poucos minutos que passo lá fora são preciosos para mim. Faz-
me lembrar que já tive um trabalho de verdade. Um que me fazia
sair da cama todos os dias. Um de que me orgulhava. Alimentar os
pássaros é a única coisa que tenho que me liga à vida que
costumava ter.
— E dá-te a oportunidade de ir à rua.
— Sim, e dá-me a oportunidade de ir à rua.
Cheryl tenta controlar a voz e depois continua.
Ela está na rua, conta, pronta para alimentar os pássaros. Tateia
ao longo da parede à procura da caixa. Na mão direita tem
pedaços de maçã de uma lata da cave. A porta da frente fechou-
se atrás dela. Jules espera do lado de dentro. De olhos vendados,
Cheryl caminha lentamente, usando a casa para se equilibrar. Os
tijolos parecem ásperos ao toque. Ao �m de pouco tempo, dão
lugar a painéis de madeira de onde se projeta um gancho de
metal. É aí que os pássaros estão pendurados.
Eles já estão a chilrear. Fazem-no sempre que ela se aproxima.
Cheryl voluntariou-se com entusiasmo para alimentar os
pássaros quando foi discutida a tarefa. Tem-no feito todos os dias
desde então. De certa forma, sente que os pássaros são seus. Fala
com eles, contando-lhes os acontecimentos triviais da casa. A sua
resposta suave acalma-a como a música fez em tempos.
Consegue determinar quão perto está da caixa pelo som dos seus
chilreios, explica a Felix.
Mas desta vez ela ouve algo para além dos chilreios.
Ao fundo do caminho que conduz à casa ouve um «passo
abandonado». É a única forma que encontra para o explicar a
Felix. Parece-lhe que alguém estava a caminhar, a planear avançar
mais, e de repente parou.
Cheryl, sempre em alerta máximo quando alimenta os pássaros,
surpreende-se ao perceber que está a tremer.
Pergunta:
— Está aí alguém?
Não obtém resposta.
Pensa em voltar para a porta. Vai dizer aos outros que está
demasiado perturbada para fazer aquilo hoje.
Em vez disso, espera.
E não ouve mais nenhum som.
Na caixa, os pássaros estão ativos. Ela chama-os nervosamente.
— Ei, amigos. Ei.
O tremor na sua voz assusta-a. Instintivamente, baixa a cabeça
e levanta a mão que segura as maçãs para se proteger, como se
algo estivesse prestes a tocar-lhe o rosto. Ela dá um passo.
Depois outro. Finalmente, alcança a caixa. Às vezes, diz a Felix, o
caminho entre a porta da rua e a caixa é como �utuar no espaço.
Sem âncora.
Hoje, sentiu-se impossivelmente longe da terra.
—  Ei, ei — diz ela, abrindo a tampa da caixa o su�ciente para
poder deitar lá para dentro alguns pedaços de maçã.
Normalmente, ouve o som das patinhas minúsculas quando eles
correm para a comida. Hoje não o ouve.
— Comam, amigos. Não têm fome?
Volta a abrir um pouco a tampa e deita lá para dentro os
pedaços restantes. Isso, diz a Felix, é sempre a sua parte favorita.
Quando fecha a tampa e encosta o ouvido à caixa, a ouvir o som
dos seus pequenos corpos enquanto comem.
Mas eles não começam a comer. Em vez disso, chilreiam
ansiosamente.
—  Ei, ei — diz Cheryl, tentando afastar o tremor da voz. —
Comam, amigos.
Afasta o ouvido da caixa, pensando que é a sua presença que
está a deixá-los tímidos. Mal o faz, dá um grito estridente.
Algo lhe tocou no ombro.
Virando-se, às cegas, Cheryl agita violentamente os braços. Não
toca em nada.
Não consegue mexer as pernas. Não consegue correr para
dentro. Algo lhe tocou no ombro e ela não sabe o que foi.
As vozes dos pássaros já não têm um som doce. Soam àquilo
que Tom queria que eles fossem.
Um alarme.
— Quem está aí?
Tem medo que alguém lhe responda. Não quer que ninguém
responda.
Decide gritar. Um dos colegas de casa pode ir buscá-la. Puxá-la
de volta para a Terra. Mas quando dá um passo, ouve uma folha a
ser esmagada sob o seu sapato. Freneticamente, tenta lembrar-se
de quando chegou à casa. Olhou pela janela do carro. Havia uma
árvore? Ali junto à entrada?
Havia?
Talvez uma folha a cair da árvore lhe tivesse tocado. Nada mais.
Seria muito fácil de descobrir. Se pudesse abrir os olhos só por
um momento, poderia ver que estava sozinha. Poderia ver que
era apenas uma folha. Mais nada.
Mas não podia.
A tremer, de costas coladas à casa, desliza lentamente para a
porta da frente. Vira a cabeça para a esquerda, depois para a
direita, ao menor som. Um pássaro a voar alto no céu. O restolhar
das folhas de uma árvore do outro lado da rua. Uma pequena
rajada de vento quente. A suar, ela sente �nalmente o tijolo e
corre para a porta.
—  Jesus — diz Felix. — Achas mesmo que pode ter sido uma
folha?
Ela faz uma pausa. Malorie inclina-se mais para o corredor.
—  Sim — diz Cheryl subitamente. — Acho. Agora que penso
nisso. É exatamente isso que era.
Malorie volta para o seu quarto e senta-se na cama.
A história de Felix sobre o poço e o que ouviu lá. Victor a ladrar
para as janelas cobertas. Cheryl com os pássaros.
Malorie pergunta-se se é possível que o mundo lá fora e as
coisas de que se escondem se estejam a aproximar deles.
31
Para Malorie,desde a chegada de Gary, a casa parece
completamente diferente, dividida. É uma pequena mudança, mas
nestas circunstâncias, qualquer mudança é importante.
E é Don quem mais a preocupa.
Na maior parte dos dias, quando Tom, Jules e Felix estão a
conversar na sala de estar, Don está na sala de jantar com Gary.
Ele mostrou-se muito interessado na história do homem que
arrancou as cortinas e destrancou as portas. Enquanto lava a
roupa no lava-loiça, a meio do penúltimo jarro de detergente,
Malorie escuta duas conversas ao mesmo tempo. Enquanto Tom
e Jules estão a transformar camisas de manga comprida em trelas
para os cães, Gary está a explicar a Don a forma de pensar de
Frank. Sempre o que Frank pensava. Nunca o que Gary pensa.
—  Não acho que seja uma questão de umas pessoas estarem
mais bem preparadas do que outras — diz Gary. — Penso nisto
mais como um �lme em 3D. A princípio, o público pensa que os
objetos estão realmente a vir na sua direção. Preparam-se para se
protegerem. Mas os mais inteligentes, os que são muito atentos,
sabem que nunca correram perigo.
Don teve uma mudança de comportamento radical em relação
a Gary. Malorie pensa que viu quando aconteceu.
Ouve, não acho que essa teoria seja pior do que a nossa, disse-lhe
ele uma vez.
— É difícil — diz Don agora —, porque não recebemos notícias
novas.
— Exato.
Sim, Don passou de votar contra deixar Gary entrar a ser o
único habitante da casa que se senta a conversar com ele. E
conversa. E conversa.
Ele é cético, pensa Malorie. É a sua natureza. E precisa de alguém
com quem conversar. Não signi�ca mais nada. Ele é diferente de ti.
Não entendes?
Mas estes pensamentos não a tranquilizam.
Independentemente de como veja a situação, Gary e Don estão a
falar de coisas como histeria e da ideia de que as criaturas não
podem fazer mal a alguém que está preparado para as ver. Ela
sabe que Don sempre teve muito mais medo das pessoas do que
das criaturas. No entanto, fecha os olhos quando a porta da
frente se abre e fecha. Não olha pela janela. Nunca aceitou a ideia
de que as criaturas não podem fazer-lhes mal. Será que alguém
como Gary conseguirá �nalmente convencê-lo?
Ela quer discutir o assunto com Tom. Quer chamá-lo de parte e
pedir-lhe para os fazer parar. Ou, pelo menos, para ir falar com
eles. Talvez as suas palavras in�uenciem a conversa. Talvez a
façam parecer mais segura.
Sim, quer falar com Tom acerca de Don.
Divisão.
Hesitante, ela atravessa a cozinha e olha para a sala de estar.
Tom e Felix estão a ler um mapa no chão. Estão a medir
distâncias segundo a escala do mapa. Jules está a ensinar ordens
aos cães.
Para. Começa de novo.
— Temos de medir o teu passo médio — diz Felix.
— O que é que vocês estão a planear? — pergunta Malorie.
Tom vira-se para ela.
—  Distâncias — diz ele. — Quantos passos meus há num
quilómetro.
Felix está usar a �ta métrica para medir os pés de Tom.
— Se eu ouvir música enquanto ando — diz Tom —, posso andar
ao ritmo dela. Assim, os passos que medirmos aqui serão
aproximados dos que darei lá fora.
— É como dançar — diz Felix.
Malorie vira-se e vê Olympia agora junto ao lava-loiça. Está a
lavar utensílios. Malorie junta-se a ela e continua a lavar a roupa.
Depois de quatro meses con�nada naquela casa, Olympia perdeu
um pouco do seu brilho. Tem a pele pálida. Os olhos estão mais
encovados.
— Estás preocupada? — pergunta subitamente Olympia.
— Com o quê?
— Com aquilo.
— Aquilo o quê?
— Sobreviver aos nossos partos.
Malorie quer dizer a Olympia que vai correr tudo bem, mas não
encontra as palavras. Está a pensar em Don.
—  Eu sempre quis um bebé — diz Olympia. — Fiquei tão
animada quando descobri. Senti que a minha vida estava
completa. Sabes?
Não foi o que Malorie sentiu, mas diz que sim, que sabe.
— Oh, Malorie, quem vai fazer os nossos partos?
Malorie não sabe.
— Os nossos colegas de casa, não vejo…
— Mas o Tom nunca fez isto!
— Não. Mas era pai.
Olympia olhou para as mãos, submersas no balde.
—  Fazemos assim — diz Malorie com cuidado —, fazemos o
parto uma da outra.
—  Fazermos o parto uma da outra! — diz Olympia, sorrindo
�nalmente. — Malorie, és demais!
Gary entra na cozinha. Tira um copo de água de um balde na
bancada. Depois tira um segundo copo. Malorie sabe que é para
Don. Quando ele sai, uma música começa a tocar na sala de estar.
Malorie inclina-se para trás para espreitar lá para dentro. Tom
tem um pequeno rádio a pilhas na mão. É uma das cassetes de
George. Felix, de gatas, mede os passos de Tom enquanto ele
anda ao ritmo da música.
— O que é que eles estão a fazer? — pergunta Olympia.
— Acho que têm um lugar especi�co em mente onde querem ir
— diz Malorie. — Estão a tentar descortinar uma forma de se
deslocarem lá fora que funcione melhor.
Malorie aproxima-se silenciosamente da entrada da sala de
jantar. Olhando lá para dentro, vê Don e Gary, de costas para ela,
sentados em cadeiras da sala de jantar. Estão a falar baixinho.
Mais uma vez, ela atravessa a cozinha. Quando entra na sala de
estar, Tom está a sorrir. Tem uma trela em cada mão. Os huskies
estão a brincar com elas, a abanar a cauda.
Malorie só consegue pensar na discrepância entre as ações
animadoras e progressistas dos que estão na sala de estar e os
tons conspiradores e silenciosos dos que estão na sala de jantar.
Avança novamente para o lava-loiça e começa a lavar. Olympia
está a falar, mas Malorie está a pensar noutra coisa. Inclina-se
para a frente e consegue ver o ombro de Gary. Atrás dele,
apoiado contra a parede, está o único objeto que trouxe consigo
do mundo exterior.
A sua pasta.
Ele mostrou-lhes o conteúdo quando entrou na casa. Don
pediu-lhe. Mas ela viu bem o que continha? Algum dos seus
colegas de casa viu?
—  E para! — diz Tom. Malorie vira-se e vê que os cães e ele
estão na entrada da cozinha. Os huskies estão sentados. Tom
recompensa-os com carne crua.
Malorie continua a lavar. Está a pensar na pasta.
32
Ela sabia que aquilo ia acontecer. Como poderia não saber? Todos
os sinais estavam lá desde que regressaram com os cães. Tom e
Jules treinaram-nos dez, doze horas por dia. Usando a casa,
depois o quintal. Cães-guia. A caixa de pássaros pendurada lá fora
funciona como um alarme. Tal como Tom disse que funcionaria.
Os pássaros chilrearam quando Gary chegou. Chilreiam quando
Cheryl os alimenta. Portanto, era apenas uma questão de tempo
até Tom declarar que ia usar os cães-guia para voltar a entrar no
novo mundo.
Mas desta vez é pior. Porque desta vez ele vai mais longe.
Demoraram dois dias a ver um quarteirão. Quando os veremos
novamente se andarem cinco quilómetros?
Cinco quilómetros. Até à casa de Tom. É aí que ele quer ir.
— É o único lugar em que con�o a cem por cento — disse ele. —
Tenho lá suprimentos. Precisamos deles. Pensos rápidos.
Pomadas com antibiótico. Aspirina. Ligaduras.
Malorie animou-se ao ouvir falar de medicamentos. Mas a ideia
de Tom ir à rua, e durante tanto tempo, é demais para ela
suportar.
—  Não se preocupem — disse Felix naquela mesma noite. —
Planeámos tudo ao mínimo detalhe. O Tom e o Jules vão
caminhar ao ritmo de uma música. Uma única música. Chama-se
Halfway to Paradise e é de um tipo chamado Tony Light. Vão levar
o rádio e tocá-la em loop enquanto seguem as instruções que
traçámos. Sabemos quantos passos são precisos em cada direção,
em cada parte da viagem.
— Então planeias dançar até lá? — perguntou Gary. — Que giro.
— Não vou dançar — respondeu Tom, com um tom agressivo. —
Vou caminhar para obter ajuda.
— Tom — disse Cheryl —, podes treinar o quanto quiseres, mas
se os teus passos forem um centímetro mais longos lá fora, vão
desviar-se do caminho. Vão-te perder. E como raio planeiam
voltar? Não vão conseguir.
— Vamos sim — disse Tom.
— E não é como se estivéssemos indefesos se nos perdermos —
acrescentou Jules. — Precisamos dos suprimentos. Sabes isso
melhor do que ninguém, Cheryl. Foste a última a fazer o
inventário.
Sim, aquele dia havia de chegar. Mas Malorie não gosta da ideia.
— Tom — disse ela, puxando-o para o lado imediatamente antesde ele e Jules saírem naquela manhã. — Eu acho que a casa não
aguentaria se não voltasses.
— Nós vamos voltar.
—  Eu entendo que tu achas que vais — disse Malorie —, mas
acho que não percebes o quanto a casa precisa de ti.
—  Malorie — disse ele, quando Jules o chamou a dizer que
estava pronto para ir —, a casa precisa de todos nós.
— Tom.
— Não te deixes levar pelos nervos como da última vez. Em vez
disso, apoia-te no facto de que voltámos da última vez. Vamos
voltar novamente. E desta vez, Malorie, age como líder. Ajuda-os
quando eles �carem assustados.
— Tom.
—  Tu precisas dos medicamentos, Malorie. De esterilização.
Estás perto.
Era óbvio que Tom estava numa via só sua, preparado para
arriscar repetidamente a vida em nome do avanço da vida na
casa.
Da última vez eles trouxeram sapatos de criança, recordou
Malorie.
Volta a recordar-se disso agora. Agora que Tom e Jules se
foram, embarcando numa caminhada de cinco quilómetros na
paisagem mais perigosa que o mundo já conheceu.
Eles saíram naquela manhã. Felix reviu o mapa com eles uma
última vez. Gary encorajou-os. Olympia deu-lhes uma pedra
Petoskey que disse que sempre lhe trouxe sorte. Mas Malorie não
disse uma palavra. Quando a porta da frente se fechou pela
segunda vez atrás de Tom, Malorie não o chamou. Não o abraçou.
Não se despediu.
Agora está arrependida, apenas algumas horas depois da
partida deles.
No entanto, as poucas palavras que Tom lhe disse antes de
partir estão a resultar. Sem ele ali, a casa precisa de uma força
orientadora. Uma pessoa que possa manter a calma entre tanta
ansiedade, tanto medo justi�cável.
Mas é difícil. Os habitantes da casa não estão interessados em
otimismo.
Cheryl a�ança que as probabilidades de encontrarem uma
criatura são, obviamente, muito maiores numa caminhada de
cinco quilómetros do que numa volta a dois quarteirões. Ela
lembra os que ainda estão na casa de que ninguém sabe como os
animais são afetados. O que acontecerá a Tom e a Jules se os
huskies virem alguma coisa desta vez? Serão comidos? Ou pior?
Cheryl não é a única a oferecer possibilidades sombrias.
Don está a sugerir que um grupo alternativo se prepare para
sair no caso de Tom e Jules não regressarem. Precisamos de mais
comida, diz. Independentemente de eles voltarem ou não.
Olympia diz que está com uma dor de cabeça. Diz que isso
signi�ca que se aproxima uma grande tempestade. E uma
tempestade só pode alterar as medições de Felix quando Tom e
Jules forem forçados a procurar abrigo.
Cheryl concorda.
Don está a entrar na cave para dar «a sua própria olhadela» ao
stock, para descobrir exatamente do que precisam e onde devem
ir buscá-lo.
Olympia está a falar de trovoada e de estar na rua, sem
proteção.
Cheryl está a discutir o mapa com Felix. Diz que os mapas já
não signi�cam nada.
Don está a falar dos espaços para dormir.
Olympia está a descrever um tornado que viveu na sua
juventude.
Cheryl e Felix estão a �car exaltados.
Olympia parece um pouco histérica.
Don está a enlouquecer.
Malorie, cansada do pânico crescente, fala por �m.
— Pessoal — diz —, há coisas que podemos fazer. Aqui mesmo
nesta casa. Precisamos de preparar o jantar. O balde de fezes não
foi despejado uma única vez durante o dia. A cave podia estar
mais bem organizada. Felix, tu e eu podemos procurar
ferramentas no quintal, algo que nos possa ter escapado. Algo
que possamos usar. Cheryl, tens de dar comida aos pássaros.
Gary, Don, porque é que não fazem telefonemas? Liguem para
todas as combinações de números. Sabe-se lá quem conseguirão
contactar. Olympia, seria muito útil se lavasses as roupas de
cama. Fizemos isso há uma semana, mas uma vez que nos
lavamos tão pouco neste lugar, são as pequenas coisas, como
lençóis mais limpos, que o tornam suportável.
Os colegas de casa olham para Malorie como se ela fosse uma
estranha. Por um momento, ela sente vergonha por se a�rmar.
Mas, a�nal, resulta.
Gary caminha silenciosamente para o telefone. Cheryl vai à
cave.
Estás perto, disse-lhe Tom antes de partir.
Ela pensa nisso, enquanto os colegas de casa se ocupam com as
suas tarefas domésticas, enquanto Malorie e Felix vão buscar as
vendas, ela pensa nas coisas que Tom e Jules podem trazer. Há
algo que possam trazer, qualquer coisa, que proporcione uma vida
melhor ao seu bebé?
Pegando numa venda, Malorie enche-se de esperança.
33
O rio vai dividir-se em quatro canais, disse-lhe o homem. O que
você quer é o segundo a contar da direita. Por isso não pode seguir
junto à margem direita e esperar acertar. É complicado. E vai ter
de abrir os olhos.
Malorie está a remar.
E é assim que vai saber quando chegar a altura, disse-lhe o
homem. Vai ouvir uma gravação. Uma voz. Não podemos passar o
dia sentados à beira do rio. É muito perigoso. Em vez disso, temos lá
um altifalante. A gravação é reproduzida em loop. Vai ouvi-la. É
alta. Clara. E quando a ouvir, terá de abrir os olhos.
A dor no ombro regressa em ondas. As crianças, ouvindo os
seus gemidos, oferecem ajuda.
No seu primeiro ano sozinha com as crianças, a voz de Tom
vinha constantemente até ela. Muitas das suas ideias foram
apenas proferidas, nunca postas em prática. Malorie, que tinha
todo o tempo do mundo, tentou muitas delas.
Devíamos instalar microfones no jardim, disse ele uma vez.
O plano de Tom para atualizar o sistema de alarme de pássaros
para ampli�cadores. Malorie, sozinha com dois recém-nascidos,
queria aqueles microfones.
Mas como? Como conseguiria arranjar microfones,
ampli�cadores e cabos?
Podemos ir de carro a algum lugar, disse Tom uma vez.
Isso é uma loucura, respondeu Don.
Não, não é. Conduzimos devagar. As ruas estão vazias. O que é o
pior que pode acontecer?
Malorie, remando, lembra-se de um momento de�nitivo em
frente ao espelho da casa de banho. Tinha visto outros rostos no
espelho. Olympia. Tom. Shannon. Todos lhe imploravam que
deixasse a casa, que �zesse algo mais para garantir a segurança
das crianças. Ia ter de correr um risco sozinha. Tom e Jules não
estavam ali para fazer isso por ela.
A voz de Tom, de então. Sempre a voz de Tom. Na sua cabeça.
No quarto. No espelho.
Faz um para-choques em volta do carro da Cheryl. Pinta as
janelas de preto. Não te preocupes com o que atropelas. Continua.
Conduz a oito, nove quilómetros por hora. Agora tens bebés em
casa, Malorie. Tens de saber se há alguma coisa lá fora. Se alguma
coisa está próxima. Os microfones vão dizer-te isso.
Saindo da casa de banho, ela foi para a cozinha. Ali, estudou o
mapa que Felix, Jules e Tom tinham usado em tempos para
planear um percurso a pé para Tom. As suas anotações ainda lá
estavam. Os cálculos de Felix. Usando a escala, ela traçou o seu
próprio percurso.
Queria o sistema de alarme avançado de Tom. Precisava dele.
No entanto, apesar da sua determinação recém-descoberta,
ainda não sabia para onde ir.
Certa noite já muito tarde, enquanto os bebés dormiam,
sentou-se à mesa da cozinha e tentou lembrar-se da sua primeira
viagem até à casa. Ainda nem tinha decorrido um ano. Nessa
altura, a sua mente estava focada na morada do anúncio. Mas por
que coisas passou no caminho?
Tentou lembrar-se.
Uma lavandaria.
Isso é bom. Que mais?
As montras das lojas estavam vazias. Parecia uma cidade-
fantasma e tinhas medo que as pessoas que tinham posto o anúncio
já lá não estivessem. Achaste que teriam enlouquecido ou feito as
malas e ido para longe.
Sim, muito bem. E mais?
Uma padaria.
Muito bem. E que mais?
Que mais?
Sim.
Um bar.
Boa. O que é que dizia o anúncio à entrada?
Não sei. Essa pergunta é ridícula!
Não te lembras da tristeza que sentiste ao ler o nome dos… o
nome dos…
Dos quê?
O nome da banda?
A banda?
Leste o nome de uma banda que ia atuar duas semanas antes.
Qual era?
Nunca me recordarei do nome da banda.
Certo, mas a sensação?
Não me lembro.
Lembras, sim. A sensação.
Eu estava triste. Estava assustada.
O que é que as pessoas faziam lá?
O quê?
No bar. O que é que faziam no bar?
Não sei. Bebiam. Comiam.
Sim. E mais?
Dançavam?
Dançavam.
Sim.
E?
E o quê?
Como é que dançavam?
Não sei.Dançavam ao som do quê?
Dançavam ao som da música. Ao som da banda.
Malorie levou uma mão à testa e sorriu.
Certo. Dançavam ao som da banda.
E a banda precisava de microfones. A banda precisava de
ampli�cadores.
As ideias de Tom permaneceram na casa como fantasmas.
Tal como nós �zemos, Tom poderia dizer. Tal como aquela vez
em que eu e o Jules caminhámos pelo quarteirão. Não pudeste
participar em muitas dessas atividades, Malorie, mas agora podes.
Eu e o Jules arranjámos cães e depois usámo-los para caminhar até
à minha casa. Pensa nisso, Malorie. Tudo aconteceu em sucessão,
cada passo permitiu que o próximo passo acontecesse. Tudo porque
não �cámos estagnados. Corremos riscos. Agora tens de fazer o
mesmo. Pinta o para-brisas de preto.
Don rira-se quando Tom sugeriu conduzir às cegas.
Mas foi exatamente o que ela fez.
Victor, ele ia ajudá-la. Em tempos, Jules recusou-se a deixá-lo
ser usado desta forma. Mas Malorie tinha dois recém-nascidos
num quarto ao fundo do corredor. As regras agora eram
diferentes. Ainda tinha o corpo dorido do parto. Os músculos das
costas estavam sempre tensos. Se se movia demasiado depressa,
sentia que a virilha se ia rasgar. Ficava exausta facilmente. Nunca
teve o descanso que uma mãe merece.
Victor, pensou, ele vai proteger-te.
Pintou o para-brisas de preto com a tinta da cave. Colou meias
e blusas ao interior do vidro. Usando cola para madeira que tinha
encontrado na garagem e �ta adesiva da cave, prendeu
cobertores e colchões aos para-choques. Tudo isto na rua. Tudo
isto com os olhos vendados. Tudo isto apesar de sofrer a dor de
ter dado à luz, castigada, ao que parecia, por cada movimento do
seu corpo.
Ia ter de os deixar. Iria sozinha.
Conduziria meio quilómetro na direção oposta àquela de onde
viera na primeira viagem à casa. Viraria à esquerda e avançaria
seis quilómetros. Depois virava à direita e fazia mais quatro
quilómetros. Teria de procurar o bar a partir daí. Levaria comida
para o Victor. Ele ia guiá-la de volta ao carro, de volta à comida,
quando ela precisasse.
Oito ou nove quilómetros por hora parecia-lhe razoável.
Su�cientemente seguro.
Mas da primeira vez que tentou, descobriu que iria ser mesmo
muito difícil.
Apesar das precauções, conduzir sem ver era horrível. O carro
saltava violentamente quando ela atropelava coisas que nunca
conseguiria identi�car. Chocou com o passeio 20 vezes. Acertou
em postes duas vezes. Uma vez num carro estacionado. Era um
suspense puro e horrível. A cada estalido do conta-quilómetros,
esperava uma colisão, um ferimento. Tragédia. Quando regressou
a casa, tinha os nervos em franja. Vinha de mãos vazias e não
estava convencida de ter forças para tentar novamente.
Mas tentou.
Encontrou a lavandaria na sétima tentativa. E por se lembrar
dela no seu caminho até à casa da primeira vez, aquilo deu-lhe
coragem para voltar a tentar. De olhos vendados e assustada,
entrou numa loja de botas, num café, numa gelataria e num
teatro. Ouviu os seus sapatos a ecoarem contra o piso de
mármore de um edifício de escritórios. Derrubou uma prateleira
com postais. Ainda assim, não conseguiu encontrar o bar. Então,
na nona tarde, Malorie entrou por uma porta de madeira aberta e
soube imediatamente que tinha chegado.
O cheiro a fruta azeda, fumo e cerveja pareceu-lhe a coisa mais
agradável do mundo. Ajoelhando-se, abraçou-se ao pescoço de
Victor.
— Encontrámo-lo — disse.
Tinha o corpo dorido. Doía-lhe a cabeça. Tinha a boca seca.
Imaginou a sua barriga como um balão vazio e morto.
Mas estava ali.
Procurou o balcão de madeira do bar durante muito tempo.
Chocou com cadeiras e bateu com o cotovelo num poste.
Tropeçou uma vez, mas uma mesa impediu-a de se estatelar.
Passou muito tempo a tentar entender o equipamento com os
dedos. Estaria na cozinha? Isto era usado para misturar bebidas?
Victor puxou-a, a brincar, e ela virou-se, batendo com a barriga
em algo duro. Era o bar. Amarrando a trela de Victor ao que
acreditava ser um banco alto de aço, Malorie passou para trás do
bar e procurou as garrafas. Cada movimento era uma aguda
lembrança de que tinha dado à luz recentemente. Uma a uma,
aproximou as garrafas do nariz. Uísque. Algo de pêssego. Algo de
limão. Vodca. Gin. E, �nalmente, rum. Como o que os colegas de
casa tinham tentado apreciar na noite em que Olympia chegou.
Sabia-lhe bem ter a garrafa nas mãos. Como se tivesse
esperado mil anos por aquilo.
Levou-a para o outro lado do bar. Encontrando o banco,
sentou-se, aproximou a garrafa da boca e bebeu.
O álcool alastrou-se pelo corpo. E, por um momento, amenizou
a dor.
Na sua escuridão privada, percebeu que uma criatura poderia
estar sentada aqui mesmo, ao seu lado. Era possível que aquele
lugar estivesse cheio delas. Três por mesa. A observá-la,
silenciosamente. Observando a mulher destroçada de olhos
vendados e o cão-guia. Mas naquele momento, naquele
momento, ela simplesmente não queria saber.
—  Victor — disse ela —, queres um pouco? Precisas de uma
bebida?
Meu Deus, como lhe sabia bem.
Bebeu novamente, lembrando-se do quanto podia ser agradável
uma tarde num bar. Esquece os bebés, esquece a casa, esquece
tudo.
— Victor, isto é bom.
Mas Malorie apercebeu-se da preocupação do cão. Estava a
puxar pela trela amarrada ao banco.
Malorie bebeu mais um pouco. Então, Victor ganiu.
— Victor? O que é?
Victor estava a puxar a trela com mais força. Estava a ganir, não
a rosnar. Malorie escutou-o. O cão parecia demasiado nervoso.
Ela levantou-se, soltou a trela e deixou-se guiar por ele.
— Onde vamos, Victor?
Sabia que ele estava a levá-la pelo mesmo caminho, de volta
para a porta por onde tinham entrado. Chocaram com mesas pelo
caminho. As patas de Victor deslizaram nos mosaicos do chão e
Malorie bateu com a canela numa cadeira.
O cheiro era mais forte ali. O cheiro de bar. E mais.
— Victor?
Ele parou. Depois começou a arranhar o chão.
É um rato, pensou Malorie. Deve haver tantos aqui.
Desenhou um arco com o sapato e encontrou algo pequeno e
duro. Puxando Victor para o lado, tateou cautelosamente o chão.
Pensou nos bebés e em como morreriam sem ela.
— O que é, Victor?
Era uma espécie de argola. Parecia de aço. Havia uma pequena
corda. Examinando-a de olhos vendados, Malorie percebeu o que
era. Levantou-se.
— É a porta da cave, Victor.
A respiração do cão �cou mais pesada.
—  Vamos deixar isto em paz. Precisamos de levar algumas
coisas daqui.
Mas Victor puxou novamente.
Podia haver pessoas lá em baixo, pensou Malorie. Escondidas. A
viver lá em baixo. Pessoas que poderiam ajudá-la a criar os bebés.
— Olá! — chamou. Mas não obteve resposta.
O suor pingava de debaixo da venda. As unhas de Victor
arranhavam a madeira. O corpo de Malorie parecia a ponto de se
quebrar ao meio quando se ajoelhou e abriu o alçapão.
O cheiro que de lá saiu sufocou-a, Malorie sentiu o rum subir-
lhe à boca e vomitou ali mesmo.
— Victor — disse ela, agitada. — Há alguma coisa podre aí em
baixo. Alguma coisa…
Então sentiu o verdadeiro ardor do medo. Não é o tipo de medo
que uma mulher sente enquanto conduz com um para-brisas
tapado, mas o tipo de medo que a atinge quando está de olhos
vendados e, de repente, percebe que há outra pessoa ali, consigo.
Ela procurou a porta, assustada, com medo de cair no buraco
da cave e se deparar com o que quer que fosse que estava lá no
fundo. O cheiro não era de comida apodrecida. Não era de bebida
estragada.
— Victor!
O cão estava a puxá-la, esfaimado da origem daquele cheiro.
— Victor! Vamos!
Mas ele continuava.
É a isto que um túmulo cheira. É o cheiro da morte.
Rapidamente, em agonia, Malorie puxou Victor para fora
daquela sala, voltou para o bar e procurou um poste. Encontrou
um de madeira. Amarrou a trela, ajoelhou-se e segurou o focinho
dele nas mãos, implorando-lhe que se acalmasse.
— Precisamos de voltar para os bebés — disse ela. — Tens de te
acalmar.
Mas Malorie também precisava de se acalmar.
Nunca determinámos como os animais são afetados. Nunca
descobrimos.
Ela virou-se às cegas para o corredor que conduzia à cave.
— Victor — disseela, com os olhos cheios de lágrimas. — O que
é que viste?
O cão estava imóvel. Tinha a respiração acelerada. Demasiado
acelerada.
— Victor?
Ela levantou-se e afastou-se dele.
— Victor. Vou aqui ao lado. Vou procurar microfones.
Uma parte dela começou a morrer. Parecia que ele estava a
enlouquecer. Pensou em Jules. Jules, que amava aquele cão mais
do que a si próprio.
Aquele cão era a sua última ligação aos colegas de casa.
Um grunhido atormentado escapou da boca dele. Era um som
que ela nunca o tinha ouvido fazer. Não o tinha ouvido a nenhum
cão.
— Victor. Desculpa-me por ter vindo aqui. Desculpa.
O cão fez um movimento violento e Malorie pensou que ele se
tinha soltado. O poste de madeira partiu-se.
Victor ladrou.
Malorie, recuando, sentiu algo, alguma espécie de degrau, atrás
dos seus joelhos cansados.
— Victor, não. Por favor. Desculpa-me.
O cão balançou o corpo, chocando com uma mesa.
— Oh Deus! VICTOR! Para de rosnar! Para! Por favor!
Mas Victor não conseguia parar.
Malorie tateou o degrau alcatifado atrás de si. Subiu-o de
costas, com medo de virar as costas ao que Victor tinha visto.
Encolhida e a tremer, ouviu o cão a enlouquecer. O som dele a
urinar. O som dos dentes a abocanharem o ar.
Malorie gritou. Procurou instintivamente uma ferramenta, uma
arma, e deu consigo a agarrar o aço de alguma espécie de
suporte.
Lentamente, ela levantou-se, tateando o aço.
Victor mordeu o ar. Voltou a morder. Parecia que os seus dentes
se estavam a partir.
No cimo do suporte de aço, os dedos de Malorie agarraram um
objeto curto e oblongo. Na ponta, sentiu algo como uma rede
metálica.
Arquejou.
Estava no palco. E tinha na mão o que ali fora procurar. Tinha
na mão um microfone.
Ouviu o estalar de um osso de Victor. O pelo e a carne tinham-
se rasgado.
— Victor!
Ela guardou o microfone e caiu de joelhos.
Mata-o, pensou.
Mas não conseguia.
Maniacamente, vasculhou o palco. Atrás dela, parecia que
Victor estava a roer a própria pata.
O teu corpo está arruinado. O Victor está a morrer. Mas tens dois
bebés em caixas em casa. Eles precisam de ti, Malorie. Eles
precisam de ti, eles precisam de ti, eles precisam de ti.
As lágrimas ensoparam a venda e depois pingaram de debaixo
dela. A respiração de Malorie vinha alternada com soluços. De
joelhos, seguiu um �o até um pequeno objeto quadrado na
extremidade do palco. Encontrou mais três �os, que conduziam a
mais três microfones.
Victor fez um som que nenhum cão devia fazer. Parecia quase
humano no seu desespero. Malorie agarrou em tudo o que
conseguiu.
Os ampli�cadores, su�cientemente pequenos para conseguir
carregá-los. Os microfones. Os cabos. Um suporte.
— Desculpa, Victor. Sinto muito, Victor. Sinto muito.
Quando se levantou, achou que o seu corpo não aguentava.
Acreditava que se tivesse um pouco menos de força, cairia para
sempre. No entanto, manteve-se de pé. Enquanto Victor
continuava a debater-se, Malorie procurou o caminho, tateando
de costas para a parede. Finalmente, desceu do palco.
Victor viu algo. Onde estaria agora?
Não havia como parar as lágrimas. No entanto, um sentimento
mais forte apoderou-se dela: uma calma preciosa. A maternidade.
Como se ela fosse uma estranha para si mesma, a agir apenas em
nome dos bebés.
Atravessando o bar, aproximou-se o su�ciente de Victor para
sentir que uma parte dele estava a tocar-lhe na perna. Seria o seu
tronco? O seu focinho? Estaria a despedir-se? Ou tinha-lhe dado
uma lambidela?
Continuando a atravessar o bar, Malorie voltou para a porta por
onde tinham entrado. A porta escancarada da cave estava
próxima. Mas ela não sabia onde.
—  NÃO SE APROXIMEM DE MIM! NÃO SE APROXIMEM DE
MIM!
Debatendo-se para carregar todo o equipamento, Malorie deu
um passo e não sentiu chão debaixo do seu pé.
Perdeu o equilíbrio.
Quase caiu.
E endireitou-se.
A sua voz pareceu-lhe a de uma estranha quando gritou antes
de sair do bar.
O sol estava quente contra a sua pele.
Caminhou apressadamente para o carro.
Tinha a cabeça a mil. Tudo estava a acontecer demasiado
depressa. Escorregou no passeio de betão e chocou com o carro.
Frenética, en�ou apressadamente as coisas na parte de trás.
Quando se sentou ao volante, chorou.
Que crueldade. Este mundo. Victor.
Tinha a chave na ignição e estava prestes a virá-la.
Então, com o cabelo preto molhado de suor, fez uma pausa.
Quais eram as probabilidades de algo ter entrado no carro?
Quais eram as probabilidades de algo estar sentado ao seu lado
no banco do passageiro?
Se alguma coisa tivesse entrado, ela ia levá-la até às crianças.
Para chegar a casa, disse para si mesma (até a voz na sua mente
estremecia, até a voz na sua mente parecia estar a chorar), tens
mesmo de olhar para o conta-quilómetros.
Agitou os braços às cegas no interior do carro, batendo
descontroladamente no tabliê, no teto, nas janelas.
Tirou a venda.
Viu o para-brisas preto. Estava sozinha no carro.
Usando o conta-quilómetros, conduziu os mesmos quatro
quilómetros na direção inversa, depois seis para Shillingham,
depois meio quilómetro até casa, batendo em todos os passeios e
sinais que encontrou pelo caminho. A oito quilómetros por hora;
pareceu-lhe uma eternidade.
Depois de estacionar, Malorie reuniu o que tinha encontrado.
Dentro de casa, com a porta trancada atrás de si, abriu os olhos e
correu para o quarto dos bebés.
Estavam acordados. Tinham os rostos vermelhos. Estavam a
chorar. Tinham fome.
Muito tempo passado, ela ainda estava acordada, a tremer no
chão húmido da cozinha. Olhando para os microfones e para os
dois pequenos ampli�cadores ao seu lado, lembrando-se dos
sons que Victor produzira.
Os cães não são imunes. Os cães podem enlouquecer. Os cães não
são imunes.
E sempre que pensava que ia parar de chorar, recomeçava.
34
Malorie está na casa de banho do andar de cima. É tarde e a casa
está em silêncio. Os outros habitantes da casa estão a dormir.
Ela está a pensar na pasta de Gary.
Tom disse-lhe para se comportar mais como uma líder na sua
ausência. Mas a pasta está a incomodá-la. Tal como o súbito
interesse de Don em Gary a incomoda. Tal como tudo o que Gary
diz na sua forma pomposa, ensaiada, de falar.
Bisbilhotar é errado. Quando as pessoas são forçadas a viver
juntas, a sua privacidade é essencial. Mas não é esse o seu dever?
Na ausência de Tom, não lhe cabe a ela descobrir se os seus
instintos estão certos?
Malorie aponta um ouvido ao corredor. Não há qualquer
movimento. Saindo da casa de banho, vira-se para o quarto de
Cheryl e vê a forma do seu corpo em repouso. Olhando a seguir
para o quarto de Olympia, ouve-a a ressonar de forma muito
ligeira. Silenciosamente, Malorie desce as escadas, apoiando-se
no corrimão.
Dirige-se para a cozinha e liga a luz por cima do fogão. É uma
lâmpada fraca, que zumbe suavemente. Mas é o su�ciente.
Entrando na sala de estar, Malorie vê os olhos de Victor a
�tarem-na. Felix está a dormir no sofá. O espaço no chão
normalmente ocupado por Tom está vazio.
Atravessando a cozinha, ela aproxima-se da sala de jantar. A luz
velada do fogão ilumina o su�ciente para lhe permitir ver o corpo
de Gary deitado no chão. Está deitado de costas, a dormir.
Ela pensa.
A pasta está encostada à parede, ao alcance de um braço.
Suavemente, Malorie atravessa a sala de jantar. As tábuas do
chão rangem sob o seu peso. Ela para e olha �xamente para a
boca barbuda, meio aberta, do homem. Ele sibila um pouco,
estável e lentamente. Sustendo a respiração, ela dá um último
passo em direção a ele e estaca. Parada sobre ele, observa-o de
perto sem se mexer.
Ajoelha-se.
Gary ressona. O coração dela sobressalta-se. Aguarda.
Para apanhar a pasta, tem de esticar o braço por cima do peito
dele. O braço dela paira a centímetros da camisa do homem
enquanto ele dorme. Os dedos dela agarram na pega da pasta
quando ele ronca novamente. Ela vira-se.
Ele está a olhar para ela.
Malorie �ca paralisada. Examina os olhos dele.
Expira suavemente. Não estão abertos. Foi a sombra que a
enganou.
Rapidamente, levanta a pasta, ergue-se e sai da sala.
À porta da cave, elapara e escuta. Não ouve nenhum
movimento vindo da sala de jantar. A porta da cave abre-se
silenciosamente e devagar, mas não consegue evitar o gemido
das dobradiças. Parece mais barulhenta do que o habitual. Como
se a casa inteira se estivesse a abrir lentamente.
E com apenas espaço su�ciente para entrar, ela desliza lá para
dentro. A casa está novamente em silêncio.
Lentamente, desce as escadas até ao chão de terra.
Está nervosa; demora demasiado tempo a encontrar o �o da
lâmpada. Quando a liga, o espaço é inundado por uma luz
amarela brilhante. Muito brilhante. Como se pudesse acordar
Cheryl, que dorme dois pisos acima dela.
Olhando em volta, ela espera.
Consegue ouvir a sua própria respiração acelerada. Mais nada.
Tem o corpo dorido. Precisa de descansar. Mas agora só quer
ver o que Gary trouxe consigo.
Avançando para o banquinho de madeira, ela senta-se.
Abre a pasta, com um estalinho da mola do fecho.
Lá dentro vê uma escova de dentes gasta.
Meias.
T-shirts.
Uma camisa.
Desodorizante.
E papéis. Um caderno.
Malorie olha para a porta da cave. Tenta detetar passos. Não há
nenhum. Tira o caderno de debaixo das roupas e pousa a pasta no
chão.
O caderno tem uma capa azul e limpa. Os cantos não estão
dobrados. É como se Gary o tivesse mantido, preservado, no
melhor estado possível.
Ela abre-o. E lê. A caligra�a é tão exata que a assusta. É
meticulosamente elaborada. Quem escreveu aquilo fê-lo com
paixão. Com orgulho. À medida que ela folheia, vê que algumas
frases estão escritas da maneira tradicional, da esquerda para a
direita, e outras estão escritas na direção contrária, da direita
para a esquerda. Há ainda outras, mais para o interior do
caderno, que começam no topo da página e descem. No �nal, as
frases são espirais perfeitas, ainda com uma caligra�a cuidada,
que criam desenhos e padrões estranhos, feitos de palavras.
Conhecer o teto da mente do homem é conhecer o poder total
destas criaturas. Se é uma questão de compreensão, certamente os
resultados de qualquer encontro com elas devem diferir muito
entre dois homens. O meu teto é diferente do vosso. Muito diferente
do dos macacos nesta casa. Os outros, envolvidos como estão na
histeria hiperbólica, são mais suscetíveis às regras que atribuímos
às criaturas. Por outras palavras, estes simplórios, com os seus
intelectos infantis, não sobreviverão. Mas alguém como eu, bem,
acho que está tudo dito.
Malorie vira a página.
Que tipo de homem se encolhe quando o �m do mundo chega?
Quando os seus irmãos estão a matar-se, quando as ruas da
América suburbana estão infestadas de assassinatos… Que tipo de
homem se esconde atrás de cobertores e vendas? A resposta é A
MAIORIA dos homens. Foi-lhes dito que enlouqueceriam. E como
tal, enlouquecem.
Malorie olha para as escadas da cave. A luz do fogão passa
através da fenda estreita no fundo da porta da cave. Ela pensa
que devia tê-la desligado. Pensa em fazê-lo agora. E depois vira a
página.
Nós fazemos isto a nós mesmos, FAZEMOS ISTO a NÓS
MESMOS. Por outras palavras (tomem nota disto!): O HOMEM É A
CRIATURA QUE ELE TEME.
É o caderno de Frank. Mas porque é que Gary o tem?
Porque o escreveu, claro.
Porque, Malorie sabe, Frank não arrancou as cortinas da antiga
casa de Gary.
Foi Gary quem o fez.
Malorie levanta-se, com o coração aos saltos.
O Tom não está em casa. O Tom está numa caminhada de cinco
quilómetros até à sua casa.
Ela olha para o fundo da porta da cave. A luz do fogão. Espera
vê-la ser obscurecida, de repente, por uns sapatos. Olha para as
prateleiras em busca de uma arma. Se ele vier, o que poderá usar
para o matar?
Mas sem sapatos a obscurecerem a luz, Malorie aproxima mais
o caderno do rosto. E lê.
Racionalmente, e para lhes provar isto, não tenho escolha. Vou
escrever isto mil vezes até me convencer a fazê-lo. Duas mil. Três.
Estes homens negam-se a ouvir a voz da razão. Só uma prova os
pode convencer. Mas como posso prová-lo? Como posso fazê-los
acreditar?
Vou arrancar as cortinas e destrancar as portas.
À margem há notas numeradas e os números correspondentes
estão cuidadosamente escritos no cimo da página. Aqui está a
nota 2343. Aqui está a 2344. Incessantes, intermináveis, brutais.
Malorie vira a página.
Ouve-se um barulho vindo do andar de cima.
Ela olha para a porta. Tem medo de pestanejar, de se mover.
Espera e olha �xamente.
De olhos �xos na porta, ela pega na pasta e volta a guardar o
caderno debaixo das coisas de Gary. Estará voltado para o lado
certo? Era assim que estava?
Ela não sabe. Não sabe.
Fecha a pasta e puxa o cordão da lâmpada.
Malorie fecha os olhos e sente a terra fria sob os seus pés. Abre
os olhos. A escuridão absoluta é cortada apenas pela luz do fogão,
debaixo da porta da cave.
Malorie observa, à espera.
Ela atravessa a cave, enquanto os seus olhos se adaptam à
escuridão, vai subindo as escadas cuidadosamente e encosta o
ouvido à porta.
Ela escuta, respirando de forma errática. A casa está outra vez
em silêncio.
O Gary está de pé na outra ponta da cozinha. Ele está a olhar
para a porta da cave. Quando a abrires, ele vai estar lá.
Ela espera. E espera. E não ouve nada.
Abre a porta. A dobradiça range.
Com a pasta na mão, Malorie olha em volta para a cozinha. O
silêncio é avassalador.
Mas não está ali ninguém. Ninguém está à sua espera.
Com a mão pousada na barriga, atravessa a abertura e fecha a
porta atrás de si.
Olha para a sala de estar. Para a sala de jantar.
Para a sala de estar.
Para a sala de jantar.
Em bicos de pés, atravessa a cozinha e entra �nalmente na sala
de jantar.
Gary ainda está de costas. O seu peito sobe e desce. Ele solta
um gemido leve.
Ela aproxima-se. Ele move-se. Ela espera.
Ele mexeu-se…
Era apenas o braço dele.
Malorie observa-o, �tando o seu rosto e os olhos fechados.
Apressadamente, ajoelha-se sobre o corpo do homem, a
centímetros da sua pele, e volta a encostar a pasta à parede.
Era assim que ela estava?
Ela pousa-a. De pé, corre para fora da sala. Na cozinha, os olhos
de alguém cruzam-se com os seus sob o brilho da luz.
Malorie paralisa.
É Olympia.
— O que é que estás a fazer? — sussurra Olympia.
— Nada — diz ela ofegante. — Achei que tinha deixado ali uma
coisa.
—  Eu tive um sonho horrível — diz Olympia. Malorie está a
caminhar em direção a ela, de mãos estendidas para ela. Leva
Olympia de volta para o andar de cima. Sobem as escadas juntas.
Quando chegam ao topo, Malorie olha para trás, para o fundo da
escada.
— Tenho de contar ao Tom — diz ela.
— O meu sonho?
Malorie olha para Olympia e abana a cabeça.
— Não. Não. Desculpa. Não.
— Malorie?
— Sim.
— Estás bem?
— Olympia. Preciso do Tom.
— Bem, ele foi embora.
Malorie olha para o fundo da escada. A luz do fogão ainda está
acesa. Uma quantidade su�ciente de luz ilumina a entrada da sala
de estar e, se alguém entrasse na cozinha vindo da sala de jantar,
ela conseguiria ver a sua sombra.
Ela olha nervosamente para a sala escura. À espera. Da sombra.
Certa de que vem aí.
Enquanto observa, pensa no que Olympia acabou de dizer.
O Tom foi embora.
Pensa na casa como uma grande caixa. Quer sair desta caixa.
Tom e Jules, lá fora, ainda estão nesta caixa. O mundo inteiro está
fechado. O mundo está con�nado à mesma caixa de cartão que
abriga os pássaros lá fora. Malorie compreende que Tom está à
procura de uma maneira de abrir a tampa. Está à procura de uma
saída. Mas pergunta-se se não haverá uma segunda tampa acima
desta, e uma terceira acima dessa.
Presos, ela pensa. Para sempre.
35
Faz uma semana que Tom e Jules partiram para a caminhada de
cinco quilómetros com os cães. Acima de tudo, neste momento,
Malorie quer que voltem para casa. Quer ouvir bater à porta e
sentir o alívio de os ter de volta. Quer ouvir o que eles
encontraram e ver o que trouxeram. Quer contar a Tom o que leu
na cave.
Ela não voltou a adormecer na noite anterior. Na escuridão do
seu quarto, só conseguia pensar no caderno de Gary. Agora ela
está no hall. Escondida do resto da casa, ao que parece.
Não pode falar com Felix. Ele podia fazer algo. Ele diria algo.Malorie quer Tom e Jules ali caso ele o faça. Felix precisaria deles.
Quem sabe o que Gary é capaz de fazer. O que ele fez.
Não pode falar com Cheryl. Cheryl é explosiva e forte.
Enfurece-se. Faria algo mais depressa do que Felix.
Olympia só �caria mais assustada.
Não pode falar com Gary. Não vai fazê-lo. Não sem Tom.
Mas, apesar da mudança na sua lealdade, apesar do seu humor
imprevisível, Malorie pensa que talvez possa conversar com Don.
Ele é bondoso, pensa. Sempre foi.
Nas últimas semanas Gary tem sido o diabo a sussurrar no
ombro de Don. Don precisava de alguém assim na casa. Alguém
que visse o mundo mais como ele. Mas o ceticismo de Don não
poderia ser útil neste caso? Ele não achará, depois de tanto
conversar com Gary, que havia algo de errado com o recém-
chegado?
O Gary dorme com a pasta ao alcance do braço. Ele preocupa-se
com ela. Protege e acredita nos escritos que contém.
Tudo neste novo mundo é difícil, pensa ela, mas nada como o
que descobriu no caderno de Gary enquanto Tom estava ausente.
Ele pode estar fora muito tempo.
Para com isso.
Para sempre.
Para com isso.
Ele pode estar morto. Eles podem ter sido mortos lá fora. O
homem que esperas pode estar morto há uma semana, a um
relvado de distância.
Não está. Ele vai voltar.
Talvez.
Vai.
Talvez.
Eles planearam o percurso com o Felix.
O que é que o Felix sabe?
Fizeram-no juntos. O Tom não se arriscaria a menos que
soubesse que tinha a possibilidade de conseguir.
Lembras-te do vídeo que o George viu? O Tom é muito parecido
com o George.
PARA!
É. Ele idolatrava-o. E os cães?
Não sabemos se os cães são afetados.
Não. Mas podem ser. Já imaginaste como seria? Um cão a
enlouquecer?
Por favor… não.
Pensamentos necessários. Visões necessárias. O Tom pode não
voltar.
Ele vai voltar, ele vai voltar, ele vai…
E se ele não voltar, vais ter de contar a outra pessoa.
O Tom vai voltar.
Já passou uma semana.
ELE VAI VOLTAR!
Não podes falar com o Gary. Fala com outra pessoa primeiro.
O Don.
Não. Não, com ele não. O Felix. O Don mata-te.
O quê??
O Don mudou, Malorie. Ele está diferente. Não sejas tão ingénua.
Ele não nos faria mal.
Sim. Faria. Ele atacar-vos-ia a todos com o machado do jardim.
PARA!!
Ele não quer saber da vida. Disse-te para cegares o teu bebé,
Malorie.
Ele não nos faria mal.
Faria. Fala com o Felix.
O Felix vai contar a todos.
Diz-lhe para não o fazer. Fala com o Felix. O Tom pode não voltar.
Malorie sai do hall. Cheryl e Gary estão na cozinha. Gary está à
mesa, sentado, a comer peras de uma lata.
— Boa tarde — diz ele, com aquele tom que faz parecer que é
ele o responsável pela boa tarde.
Malorie pensa que ele percebeu. Acha que ele sabe.
Ele estava acordado, ele estava acordado, ele estava acordado.
— Boa tarde — responde ela. Entra na sala de estar, deixando-o.
Felix está sentado ao telefone na sala de estar. Tem o mapa
aberto em cima da mesa de apoio.
—  Eu não entendo — diz ele, confuso. Felix não parece bem.
Anda a comer pouco. As garantias que deu a Malorie há uma
semana já não existem.
— Já passou tanto tempo, Malorie. Eu sei que o Tom saberia o
que fazer lá fora, mas passou tanto tempo.
— Precisas de pensar noutra coisa — diz Cheryl, espreitando de
um canto. — A sério, Felix. Pensa noutra coisa. Ou simplesmente
vai lá fora de olhos abertos. De qualquer forma, estás a levar-te à
loucura.
Felix expira ruidosamente e desliza os dedos pelos cabelos.
Ela não pode falar com Felix. Ele está a perder algo. Perdeu
algo. Os seus olhos não têm vida. Está a perder a sensibilidade, o
raciocínio. A força.
Sem uma palavra, Malorie deixa-o. Passa por Don no corredor.
As palavras, o que descobriu, ganham vida dentro dela. Ela quase
fala.
Don, o Gary não é bom. Ele é perigoso. Ele tem o caderno do
Frank na pasta.
O quê, Malorie?
O que eu disse.
Andaste a bisbilhotar? A remexer nas coisas do Gary?
Sim.
Porque é que me estás a contar isto?
Don, eu só preciso de contar a alguém. Entendes isso, não
entendes?
Porque é que não perguntaste ao Gary? Ei, Gary!
Não. Ela não pode contar a Don. Don também perdeu algo.
Pode tornar-se violento. Gary também pode.
Um empurrão e perdes o bebé, pensa Malorie.
Imagina Gary no cimo da escada da cave. O seu corpo
quebrado, ensanguentado e amontoado lá em baixo.
Gostas de ler na cave, NÃO GOSTAS? Então, vai morrer lá com o
teu �lho.
Atrás de si, Malorie ouve todos os colegas de casa na sala de
estar. Cheryl conversa com Felix. Gary está a falar com Don.
Malorie vira-se na direção das vozes e aproxima-se da sala de
estar.
Vai contar a todos.
Quando entra na sala, o seu corpo parece feito de gelo. A
derreter. Como se pedaços de si mesma caíssem e afundassem
sob a pressão insuportável do que está por vir.
Cheryl e Olympia estão no sofá. Felix está à espera junto ao
telefone. Don está na poltrona. Gary está de pé, de frente para as
janelas cobertas.
Quando ela abre a boca, Gary olha lentamente por cima do
ombro e o olhar dele encontra o seu.
—  Malorie — diz ele bruscamente —, estás preocupada com
alguma coisa?
De repente, claramente, Malorie percebe que todos estão a
olhar para ela. À espera que ela fale.
— Sim, Gary — diz ela. — Estou.
— O que é? — pergunta Don.
As palavras estão presas na garganta de Malorie. Sobem como
as patas de uma centopeia, alcançam os lábios, procurando
�nalmente sair.
— Alguém se lembra…
Ela para. Ela e os colegas de casa viram-se para os cobertores.
Os pássaros estão a chilrear.
— É o Tom — diz Felix desesperadamente. — Tem de ser!
Gary olha novamente para os olhos de Malorie. Alguém bate à
porta da frente.
Os habitantes da casa movem-se rapidamente. Felix corre para
a porta de entrada. Malorie e Gary permanecem ali.
Ele sabe ele sabe ele sabe ele sabe ele sabe.
Quando Tom chama, Malorie está a tremer de medo.
Ele sabe.
Então, tendo ouvido a voz de Tom, Gary sai da sala e dirige-se
para o hall.
Depois de feitas todas as perguntas e de todos os habitantes da
casa terem fechado os olhos, Malorie ouve a porta da frente a
abrir-se. O ar fresco entra, e com ele a realidade de quão perto
Malorie esteve de enfrentar Gary sem Tom em casa.
Ouve-se o som de patas de cães nos mosaicos da entrada.
Botas. Algo bate na ombreira da porta. A porta fecha-se
rapidamente. Ouve-se o som das vassouras a roçarem as paredes.
Tom fala. E a sua voz é a salvação.
— O meu plano era telefonar-vos da minha casa. Mas a merda
do telefone estava desligado.
—  Tom — diz Felix, animado mas fraco. — Eu sabia que vocês
iam conseguir. Eu sabia!
Quando Malorie abre os olhos, não pensa em Gary. Não vê as
palavras perfeitamente desenhadas que aguardam na pasta.
Vê apenas que Tom e Jules estão novamente em casa.
— Assaltámos um supermercado — diz Tom. As palavras soam
impossíveis. — Já lá tinha estado alguém. Mas temos muitas
coisas boas.
Ele parece cansado, mas parece estar bem.
— Os cães cumpriram a função — diz ele. — Guiaram-nos. — Ele
está orgulhoso e feliz. — Mas trouxe algo da minha casa que
espero que nos ajude ainda mais.
Felix ajuda-o a tirar o saco das costas. Tom abre o saco e tira
algo. Então deixa-o cair no chão.
É uma lista telefónica.
— Vamos telefonar para todos os números desta lista — diz ele.
— Todos. E alguém vai atender.
É apenas uma lista telefónica, mas Tom transformou-a num
farol.
— Agora — diz Tom. — Vamos comer.
Os outros prepararam com entusiasmo a sala de jantar. Olympia
vai buscar os talheres. Felix enche os copos com água dos baldes.
Tom está de volta.
Jules está de volta.
—  Malorie! — chama Olympia. — É carne de caranguejo
enlatada!
Malorie, suspensa algures entre dois mundos, entra na cozinha
e começa a ajudar a preparar o jantar.
36
Alguém está a segui-los.
Não faz sentido perguntar-se se ainda estarão muito longe. Não
sabe quando ouvirá a voz gravada que lhe diz que chegou. Não
sabe se ela ainda existe. Agora, limita-se a remar, a perseverar.
Uma hora antes, passaram por algo que pareciam leões
envolvidos numa batalha. Ouviu rugidos. Aves de rapina gritavam
ameaças do céu. Coisas rosnavam do meio do bosque. A correntedo rio move-se mais depressa. Ela lembra-se da tenda que Tom e
Jules encontraram na rua perto da sua casa. Poderia haver algo
assim, tão surpreendentemente fora do lugar, ali, no rio?
Poderiam chocar com ela… agora?
Ali fora, ela sabe, qualquer coisa imaginada é possível.
Mas agora é algo muito mais concreto o que a preocupa.
Alguém está a segui-los. Sim, o Rapaz também ouviu.
Um eco fantasma. Um segundo remar, ao mesmo ritmo que o
seu.
Quem faria aquilo? E se pretendesse fazer-lhe mal e às
crianças, porque é que não o tinha feito quando estava
desmaiada?
Será alguém que também está a fugir de casa?
— Rapaz — diz ela calmamente —, diz-me tudo o que puderes
acerca deles.
O Rapaz está à escuta.
— Não sei, mamã.
Ele parece envergonhado.
— Ainda lá estão?
— Não sei!
— Escuta.
Ela pondera parar. Virar. Enfrentar o ruído que ouve atrás deles.
A gravação será reproduzida em loop. Você vai ouvi-la. É alta.
Clara. E quando a ouvir, é quando terá de abrir os olhos.
O que é que está a segui-los?
— Rapaz — diz ela novamente. — Diz-me o que puderes acerca
deles.
Malorie para de remar. A água corre à sua volta.
— Não sei o que é — diz ele.
Ainda assim, Malorie espera. Um cão ladra da margem direita.
Um segundo ladrar responde-lhe.
Cães selvagens, pensa Malorie. Mais lobos.
Ela recomeça a remar. Pergunta mais uma vez ao Rapaz o que
está a ouvir.
—  Desculpa, mamã! — grita ele. A sua voz está rouca das
lágrimas. Da vergonha.
Ele não sabe.
Há anos que o Rapaz não ouve um som que não consiga
identi�car. O que ele está a ouvir é algo que nunca ouviu.
Mas Malorie acredita que ele ainda pode ajudar.
— A que distância estão? — pergunta Malorie.
Mas o Rapaz está a chorar.
— Não consigo fazer isto!
— Fala baixo! — sibila ela.
Algo grunhe da margem esquerda. Parece um porco. Depois
outro. E mais outro.
O rio parece muito estreito. As margens estão demasiado
próximas.
Haverá algo a segui-los?
Malorie rema.
37
Pela primeira vez desde a sua chegada à casa, Malorie sabe algo
que os outros não sabem.
Tom e Jules acabaram de regressar. Enquanto os colegas de
casa preparavam o jantar, Tom levou o novo stock de enlatados
para a cave. Malorie encontrou-se com ele lá em baixo. Talvez
Gary tenha guardado o caderno porque queria estudar a escrita
de Frank. Ou talvez tivesse sido ele a escrevê-lo. Mas Tom
precisava de saber. Agora.
Sob luz da cave, ele parecia cansado, mas triunfante. O seu
cabelo claro estava sujo. O seu rosto parecia mais envelhecido do
que da primeira vez em que estivera ali com ele. Ele estava a
perder peso. Metodicamente, retirou latas do seu saco e do de
Jules e colocou-as nas prateleiras. Começou a falar de como era o
interior do supermercado, do fedor de tanta comida apodrecida,
quando Malorie encontrou a sua oportunidade.
Mas nesse momento a porta da cave abriu-se.
Era Gary.
— Eu gostava de te ajudar, se puder — disse a Tom do cimo da
escada.
— OK — disse Tom. — Então anda.
Malorie saiu quando os pés de Gary tocaram no chão de terra.
Agora estão todos sentados à mesa da sala de jantar. E Malorie
ainda está à espera da sua oportunidade.
Tom e Jules descrevem calmamente a sua semana. Os factos
são incríveis, mas a mente de Malorie está �xada em Gary. Tenta
agir de forma natural. Ouve o que eles dizem. Cada minuto que
passa é mais um minuto em que Tom não sabe que Gary pode ser
uma ameaça para os restantes.
Quase parece que ela e os outros estão a intrometer-se no
espaço de Gary. Como se Gary e Don tivessem tido a decência de
os convidar para a sua sala de jantar, o seu lugar favorito para
trocarem palavras sussurradas. Os dois tinham passado tanto
tempo ali que o espaço guardava o cheiro deles. Ter-se-iam
juntado ao grupo se o jantar tivesse sido servido na sala de estar?
Malorie achava que não.
Enquanto Tom descreve como foi caminhar cinco quilómetros
de olhos vendados, Gary mostra-se afável, falador e curioso. E
sempre que abre a boca, Malorie tem vontade de lhe gritar para
parar. Primeiro diz a verdade, apetece-lhe dizer.
Mas ela espera.
—  Então dirias que agora estás convencido de que os animais
não são afetados? — pergunta Gary, com a boca cheia de
caranguejo.
— Não, não diria isso — responde Tom. — Ainda não. Talvez não
tenhamos passado por nada que eles pudessem ter visto.
— É pouco provável — diz Gary.
Malorie quase grita.
É então que Tom anuncia que tem outra surpresa para todos.
— O teu saco é como o do Sport Billy — diz Gary, a sorrir.
Quando Tom regressa, traz consigo uma pequena caixa
castanha. De dentro dela tira oito buzinas de bicicleta.
— Encontrámos isto no supermercado — diz ele. — Na secção
de brinquedos.
Ele distribui-as.
— A minha tem o meu nome escrito — diz Olympia.
—  Todas têm — responde Tom. — Escrevi-os, com os olhos
vendados, a marcador.
— Para que são? — pergunta Felix.
— Estamos a avançar para uma vida em que passamos cada vez
mais tempo lá fora — responde Tom, sentando-se. — Assim
podemos comunicar uns com os outros.
De repente, Gary toca a buzina. Parece um ganso. Depois
parecem um bando de gansos, quando todos tocam as suas
buzinas, criando o caos.
As olheiras de Felix esticam-se quando ele sorri.
— E este — diz Tom —, é o grande �nal. — Leva a mão ao saco e
tira uma garrafa. É rum.
— Tom! — diz Olympia.
— É a verdadeira razão pela qual eu queria voltar à minha casa
— brinca ele.
Malorie, ouvindo os colegas de casa a rir, vendo os seus rostos
sorridentes, não aguenta mais.
Levanta-se e bate com as palmas das mãos na mesa.
—  Eu vasculhei a pasta do Gary — diz ela. — Encontrei o
caderno de que ele nos falou. Aquele que falava de arrancar os
cobertores das janelas. O que ele disse que o Frank tinha levado
consigo.
A sala �ca em silêncio. Todos os habitantes da casa estão a
olhar para ela. Tem o rosto vermelho e quente. O suor começa a
surgir na linha do cabelo.
Tom, ainda com a garrafa de rum na mão, estuda o rosto de
Malorie. Depois volta-se lentamente para Gary.
— Gary?
Gary olha para a mesa.
Está a tentar ganhar tempo, pensa Malorie. O cabrão está a
tentar ganhar tempo para pensar.
— Bem — diz ele —, eu quase não sei o que dizer.
—  Andaste a vasculhar as coisas de outra pessoa? — pergunta
Cheryl, levantando-se.
—  Sim. Andei. Eu sei que isso viola as regras da casa. Mas
precisamos de falar sobre o que eu encontrei.
A sala �ca novamente em silêncio. Malorie ainda está de pé.
Sente-se elétrica.
— Gary? — insiste Jules.
Gary recosta-se na cadeira. Respira fundo. Cruza os braços
sobre o peito. Depois descruza-os. Parece sério. Irritado. Então
sorri. Levanta-se e dirige-se para a pasta. Trá-la consigo e pousa-
a na mesa.
Os outros estão a olhar para a pasta, mas Malorie está a
observar o rosto de Gary.
Ele abre a pasta e tira o caderno.
—  Sim — diz Gary. — Tenho-o comigo. Tenho o caderno do
Frank.
— Do Frank? — repete Malorie.
— Sim — diz Gary, virando-se para ela. Então, mantendo o seu
tom teatral e pomposo, acrescenta: — Sua bisbilhoteira.
De repente, todos começam a falar ao mesmo tempo. Felix está
a pedir o caderno. Cheryl quer saber quando é que Malorie o
encontrou. Don está a apontar o dedo a Malorie e a gritar.
No meio do caos, Gary, ainda a olhar para Malorie, diz:
— Sua puta grávida paranoica.
Jules atira-se a ele. Os cães estão a ladrar. Tom interpõe-se no
meio deles. Está a ordenar a todos para pararem. Para pararem
com aquilo. Malorie não se move. Fita Gary.
Jules para.
— Ela tem de explicar isto já — explode Don. Levantou-se e está
a apontar para Malorie, enraivecido.
Tom olha para ela.
— Malorie? — diz ele.
— Eu não con�o nele.
Os companheiros �cam à espera de mais.
Olympia diz:
— O que diz o caderno?
— Olympia! — diz Malorie. — O caderno está ali. Lê-o.
Mas Felix já o tem nas mãos.
— Porque é que guardaste uma lembrança de um homem que
pôs a tua vida em perigo? — Exige saber.
—  É exatamente por isso que o tenho — diz Gary
insistentemente. — Eu queria saber o que o Frank estava a pensar.
Vivi com ele durante semanas e nunca suspeitei que fosse capaz
de tentar matar-nos. Talvez o tenha mantido comoum aviso. Para
ter a certeza de que não começava a pensar como ele. Para
garantir que nenhum de vocês pensa como ele.
Malorie abana veementemente a cabeça.
— Disseste-nos que o Frank levou o caderno consigo — diz ela.
Gary começa a responder. Então para.
—  Não tenho uma resposta satisfatória a essa pergunta — diz
Gary. — Possivelmente pensei que �cariam assustados se
soubessem que eu o tinha comigo. Podes pensar o que quiseres,
mas preferia que con�asses em mim. Não te censuro por
vasculhares a bagagem de um estranho, tendo em conta as
circunstâncias em que todos estamos a viver. Mas ao menos
deixa-me defender-me.
Agora Tom está a ver o caderno. As palavras passam-lhe à
frente dos olhos.
Don pega-lhe em seguida. A sua expressão irritada transforma-
se lentamente em confusão.
Então, como se Malorie estivesse consciente de algo maior do
que o que pode ser resolvido com um voto, aponta um dedo a
Gary e diz:
— Não podes continuar aqui. Tens de sair.
— Malorie — diz Don, pouco convicto —, vamos. O homem está
a explicar-se.
— Don — disse Felix —, enlouqueceste?
Com o caderno ainda nas mãos, Don vira-se para Gary.
— Gary — diz ele —, tens de perceber que isto é muito grave.
— Eu percebo. Claro que percebo.
— Esta não é a tua letra? Podes prová-lo?
Gary tira uma caneta da pasta e escreve o seu nome numa
página do caderno.
Tom olha para o nome por um segundo.
— Gary — diz Tom —, nós precisamos de falar. Podes �car aqui
se quiseres. De qualquer forma também nos ouves da outra sala.
—  Eu compreendo — diz Gary. — És o capitão deste navio.
Como queiras.
Malorie tem vontade de lhe bater.
— OK — diz Tom calmamente aos outros —, o que fazemos?
— Ele tem de sair — diz Cheryl sem hesitar.
Então Tom abre a votação.
— Jules?
— Ele não pode continuar aqui, Tom.
— Felix?
— Eu quero dizer que não. Quero dizer que não podemos votar
para mandar alguém lá para fora. Mas não há motivo para ele ter
este caderno.
—  Tom — diz Don —, desta vez não estamos a votar para
mandar sair uma pessoa que quer ir. Estamos a votar para forçar
alguém a fazê-lo. Queres este peso na tua consciência?
Tom vira-se para Olympia.
— Olympia?
— Tom — diz Don.
— Já votaste, Don.
— Não podemos forçar alguém a ir lá para fora, Tom.
O caderno está pousado na mesa. Está aberto. As palavras são
apresentadas de forma imaculada.
— Lamento, Don — diz Tom.
Don vira-se para Olympia, à espera.
Mas ela não responde. E não importa. A casa decidiu.
Gary levanta-se. Pega no caderno e volta a guardá-lo na pasta.
Está de pé atrás da cadeira e ergue o queixo. Respira fundo.
Assente.
—  Tom — diz Gary —, achas que podes dar-me um dos teus
capacetes? Um favor de vizinho.
— Claro — responde Tom calmamente.
Então, Tom sai da sala. Regressa com um capacete e comida.
Entrega tudo a Gary.
—  Então é assim que funciona? — pergunta Gary, ajustando a
correia do capacete.
— Isso é horrível — lamenta Olympia.
Tom ajuda Gary a pôr o capacete. Depois guia-o até à porta da
rua. Os colegas de casa seguem-nos.
— Acho que todas as casas deste quarteirão estão vazias — diz
Tom. — Pelo que o Jules e eu vimos. Podes escolher.
— Sim — diz Gary, sorrindo nervosamente por baixo da venda.
— Suponho que isso é animador.
Malorie, a ferver por dentro, observa Gary com atenção.
Quando ela fecha os olhos, quando todos o fazem, ela ouve a
porta da rua a abrir-se e a fechar. E entre uma coisa e outra
pensa ouvir os pés dele no relvado. Quando abre os olhos, Don já
não está ali com os outros. Pensa que ele saiu com Gary. É então
que ouve algo a mover-se na cozinha.
— Don?
Ele resmunga. Ela sabe que é ele.
Ele murmura algo antes de abrir e fechar a porta da cave.
Outro palavrão. Este é dirigido a Malorie.
Quando os outros se dispersam silenciosamente, ela entende a
gravidade do que �zeram.
Parece que Gary está em toda a parte já fora.
Foi banido. Ostracizado.
Expulso.
O que é pior? pergunta a si mesma. Tê-lo aqui, onde podíamos
�car de olho nele, ou tê-lo lá fora, onde não podemos?
38
O Gary está a seguir-te?
Os sons de alguém atrás deles, distantes, mas audíveis,
continuam.
Ele está a tentar assustar-te. Podia ultrapassar-te a qualquer
momento.
Gary.
Isso foi há quatro anos!
Teria ele esperado quatro anos para se vingar?
— Mamã — sussurra o Rapaz.
— O que é?
Ela teme o que o �lho está prestes a dizer.
— O som, está a aproximar-se.
Onde é que o Gary esteve durante quatro anos? Esteve a
observar-te. À espera fora da casa. Viu as crianças a crescerem. Viu
o mundo a �car mais frio, mais escuro, até chegar o nevoeiro,
aquele que pensaste que ia ocultar-te. Ele viu através dele. Através
do nevoeiro. Viu tudo o que �zeste. Ele viu-te, Malorie. Tudo o que
�zeste.
—  Porra! — grita ela. — É impossível! — Então, virando o
pescoço, com os músculos a oferecerem resistência, ela grita: —
Deixa-nos em paz!
Uma remada já não é o que costumava ser. Não é como quando
começaram hoje. Nessa altura tinha dois ombros fortes. Um
coração cheio de energia. Quatro anos a impulsioná-la.
Apesar de tudo o que passou, recusa-se a acreditar que é
possível que Gary esteja atrás de si. Seria tão cruel. Um homem
ali durante todos aqueles anos. Não uma criatura, mas um
homem.
 
O HOMEM É A CRIATURA QUE ELE TEME
 
Aquela frase, a frase de Gary, apenas oito palavras, �cou
gravada na sua mente desde a noite em que a leu na cave. E não é
verdade? Quando ouvia um galho a quebrar-se pelos
ampli�cadores que tinha ido buscar com Victor, quando ouvia
passos no relvado lá fora, o que temia mais? Um animal? Uma
criatura?
Ou uma pessoa?
O Gary. Sempre o Gary.
Ele podia ter entrado a qualquer momento. Podia ter partido
uma janela. Podia tê-la atacado quando ela ia buscar água ao
poço. Porque haveria de esperar? Sempre a segui-la, sempre à
espreita, ainda não pronto para atacar.
Ele é louco. No velho sentido.
 
O HOMEM É A CRIATURA QUE ELE TEME
 
— É um homem, Rapaz?
— Não sei, mamã.
— É alguém a remar?
— Sim. Mas com as mãos em vez de remos.
— Está a avançar depressa? Está à espera? Conta-me mais. Diz-
me tudo o que ouves.
Quem está a seguir-te?
Gary.
Quem está a seguir-te?
Gary.
Quem está a seguir-te?
Gary Gary Gary Gary
—  Acho que quem é não está num barco — diz o Rapaz de
repente. Parece orgulhoso por ter �nalmente conseguido fazer
uma distinção.
— O que é que queres dizer? Está a nadar?
— Não, mamã. Não está a nadar. Está a caminhar.
Muito atrás, ela ouve algo que nunca ouviu. É como um
relâmpago. De um novo tipo. Ou como se os pássaros, todos eles,
em todas as árvores, já não estivessem a cantar, já não estivessem
a chilrear, mas antes a gritar.
O som ecoa, uma vez, áspero, do outro lado do rio, e Malorie
sente um arrepio mais gelado do que qualquer ar de outubro
podia causar.
Ela rema.
39
Don está na cave. Don está sempre na cave. Agora dorme lá.
Estará a escavar um túnel no local onde a terra está à mostra?
Estará a escavar um túnel para um lugar mais fundo, mais
distante, dentro da terra? Para mais longe dos outros? Estará a
escrever? Estará a escrever num caderno como o que Malorie
encontrou na pasta de Gary?
Gary.
Já partiu há cinco semanas. O que é que isso fez a Don?
Ele precisaria de alguém como Gary? Precisaria de outro
ouvido?
Don afunda-se mais em si mesmo, como se afunda mais na
casa, e agora está na cave.
Ele está sempre na cave.
40
É o que Malorie mais tarde considerará a última noite da casa,
embora vá passar ali os próximos quatro anos. Ao espelho, a sua
barriga parece tão grande que a assusta, parece a ponto de cair
do corpo. Ela fala com o bebé.
—  Vais sair a qualquer momento. Há tantas coisas que quero
dizer-te e tantas que não quero.
O seu cabelo negro está mais comprido do que alguma vez
esteve desde que era criança. Shannon costumava ter inveja dele.
Pareces uma princesa. E eu pareço a irmã da princesa, diria.
A viver de enlatados e água do poço, consegue ver algumas das
suas costelas, apesar da barriga protuberante. Os seus braços
estão magros como galhos. As suas feições estão a�adas e
marcadas. Os olhos, mais encovados, parecem-lhe
impressionantesao espelho.
Os habitantes da casa estão reunidos na sala de estar no piso de
baixo. Naquela manhã ligaram para os últimos nomes da lista
telefónica. Não há mais. Felix disse que �zeram cerca de cinco mil
telefonemas. Deixaram dezassete mensagens. Mais nada. Mas
Tom está animado.
Agora, enquanto Malorie examina o seu corpo ao espelho, ouve
um dos cães a rosnar no andar de baixo.
Parece Victor. Saindo para o corredor, ela põe-se à escuta.
— O que é, Victor? — ouve Jules perguntar.
— Ele não gosta dela — diz Cheryl.
— Do quê?
— Da porta da cave.
A cave. Não é segredo que Don não quer ter nada que ver com o
resto da casa. Quando Tom instigou o seu plano de telefonar para
todos os números da lista telefónica, dando a cada colega de casa
um grupo de letras, Don recusou, dizendo ter «falta de fé» no
processo. Nas sete semanas a seguir a terem fechado a porta da
rua a Gary, Don não se juntou aos outros para as refeições. Quase
não fala.
Malorie ouve uma cadeira da cozinha a deslizar no chão.
— Estás bem, Victor? — pergunta Jules.
Malorie ouve a porta da cave a abrir-se e depois Jules chama.
— Don? Estás aí em baixo?
— Don? — repete Cheryl.
Há uma resposta abafada. A porta fecha-se novamente.
Curiosa e ansiosa, Malorie puxa a camisa para cobrir a barriga e
desce a escada.
Quando entra na cozinha, vê que Jules está ajoelhado, a
consolar Victor, que agora gane e caminha de um lado para o
outro. Malorie olha para a sala de estar. Ali, vê Tom a olhar para
as janelas tapadas.
Ele está a ouvir os pássaros, pensa ela. O Victor está a assustá-lo.
Como se percebesse que ela está a observá-lo, Tom vira-se para
Malorie. Victor está a ganir atrás dela.
— Jules — diz Tom, entrando na cozinha —, o que é que achas
que é? O que é que está a assustá-lo?
—  Não sei. Obviamente, alguma coisa o alarmou. Ele estava a
arranhar a porta da cave hoje de manhã. O Don está lá em baixo.
Mas fazê-lo falar é como arrancar dentes. E mais difícil ainda é
fazê-lo subir cá acima.
— OK — diz Tom. — Então vamos nós lá abaixo.
Quando Jules olha para Tom, Malorie vê medo no seu rosto.
O que é que Gary lhes fez?
Introduziu a descon�ança, pensa Malorie. O Jules tem medo de
confrontar o Don.
— Vamos — diz Tom. — Está na altura de conversarmos com ele.
Jules levanta-se e pousa a mão na maçaneta da porta da cave.
Victor começa a rosnar novamente.
— Tu �cas aqui, rapaz — diz Jules.
— Não — diz Tom. — Vamos trazê-lo connosco.
Jules faz uma pausa e depois abre a porta da cave.
— Don? — chama Tom.
Não obtém resposta.
Tom desce primeiro. Seguem-se Jules e Victor. Depois Malorie.
Apesar de a luz estar acesa, o ambiente parece-lhe escuro. A
princípio, Malorie pensa que estão sozinhos. Esperava ver Don
sentado no banquinho. A ler. A pensar. A escrever. Vai dizer que
não há ninguém ali em baixo, mas então solta um grito.
Don está de pé junto à tapeçaria �na, encostado à máquina de
lavar roupa, na sombra.
— O que é que se passa com o cão? — pergunta calmamente.
Tom fala com cuidado quando responde.
— Não sabemos, Don. É como se ele não gostasse de algo aqui.
Está tudo bem?
— O que é que isso quer dizer?
—  Tens passado mais tempo aqui nas últimas semanas — diz
Tom. — Só quero saber se tudo está bem.
Quando Don dá um passo para a frente, para a luz, Malorie
abafa um grito. Ele não está bem. Está pálido. Magro. Os seus
cabelos escuros estão sujos e ralos. As feições do seu rosto
parecem de barro. As olheiras debaixo dos seus olhos parecem
ter absorvido parte da escuridão que está a �tar há semanas.
— Ligámos para todos os números da lista telefónica — diz Tom,
tentando, pensa Malorie, mencionar algo animador naquela cave
húmida e escura.
— Tiveram sorte?
— Nada, por enquanto. Mas quem sabe?
— Sim. Quem sabe.
Então eles �cam em silêncio. Malorie percebe que a separação
que sentiu crescer entre eles está completa. Eles foram ver se
Don está bem. Foram visitar Don. Como se ele vivesse agora
noutro lugar. A situação parece impossível de reparar.
— Queres vir ao andar de cima? — pergunta Tom docemente.
Malorie sente uma tontura. Leva a mão à barriga.
O bebé. Não devia ter descido a escada para a cave. Mas está
tão preocupada com Don como todos os outros.
— Para quê? — responde Don por �m.
— Não sei para quê — diz Tom. — Talvez te faça bem passar uma
noite connosco.
Don está a assentir lentamente. Humedece os lábios. Lança um
olhar em volta para a cave. Para as prateleiras, as caixas e o banco
onde Malorie se sentou, sete semanas antes, quando leu o
caderno que estava dentro da pasta de Gary.
— Está bem — sussurra Don. — OK.
Tom pousa uma mão no ombro de Don. Don começa a chorar.
Leva uma mão aos olhos para esconder o choro.
— Desculpem — diz. — Estou tão confuso, Tom.
—  Estamos todos — diz Tom calmamente. — Sobe as escadas.
Todos vão gostar de te ver.
Na cozinha, Tom tira a garrafa de rum de um armário. Serve um
copo para si e outro para Don. Fazem um pequeno brinde e
depois bebem.
Por um momento, é como se nada tivesse mudado e nada fosse
mudar. Os colegas de casa estão juntos novamente. Malorie não
se lembra da última vez que viu Don assim, sem Gary agachado
ao seu lado, o demónio no seu ombro, a sussurrar �loso�as, a
manchar-lhe a mente com a mesma linguagem que ela encontrou
no caderno.
Victor roça-se nas pernas de Malorie enquanto volta para a
cozinha. Ao vê-lo, ela sente uma segunda onda de tonturas.
Preciso de me deitar, pensa ela.
— Então é melhor ires — responde Tom.
Malorie não se deu conta de tê-lo dito em voz alta.
Mas não se quer deitar. Quer sentar-se com Tom e Don e os
outros, e acreditar, por um momento, que a casa ainda pode ser o
que se propôs a ser. Um lugar onde desconhecidos se encontram,
reúnem os seus recursos, reúnem forças nos números, enfrentam
o impossível, mudam o mundo lá fora.
Mas depois, tudo aquilo lhe parece demasiado. Uma terceira
onda de náusea atinge-a e Malorie, de pé, tropeça. Jules aparece
subitamente ao seu lado. Está a ajudá-la a subir as escadas.
Quando ela entra no quarto e se deita, vê que os outros estão ali
com ela. Todos. Don, também. Estão a observá-la, preocupados
com ela. A olhar. Perguntam-lhe se está bem. Precisa de alguma
coisa? Água? Um pano molhado? Ela diz que não, ou pensa que
diz que não, mas está à deriva. Quando adormece, ouve um som,
vindo do respiradouro, o som de Victor novamente, a rosnar,
sozinho, na cozinha.
A última coisa que vê antes de fechar os olhos são os colegas de
casa reunidos. Estão a observá-la atentamente. Olham para a
barriga dela.
Sabem que chegou a altura.
Victor rosna novamente. Don olha para as escadas.
Jules sai do quarto.
— Obrigada, Tom — diz Malorie. — Pelas buzinas das bicicletas.
Ela pensa ouvir a caixa de pássaros, a bater levemente contra a
casa. Mas é só o vento a bater na janela.
E então adormece. E sonha com os pássaros.
41
Os pássaros nas árvores estão inquietos. Parece que mil ramos
tremem ao mesmo tempo. Como se houvesse um vento perigoso
lá em cima. Mas Malorie não o sente ali no rio. Não. Não há vento.
Mas algo está a perturbar os pássaros.
A dor no seu ombro atingiu um nível que Malorie nunca
experimentou antes. Amaldiçoa-se por não ter prestado mais
atenção ao seu corpo nos últimos quatro anos. Em vez disso,
passou o tempo a treinar as crianças. Até as suas habilidades
transcenderem os exercícios que ela inventava.
Mamã, uma folha caiu no poço!
Mamã, está a chover ao fundo da rua e vem na nossa direção!
Mamã, um pássaro pousou no ramo do lado de fora da nossa
janela!
Conseguirão as crianças ouvir a voz gravada antes dela? Têm de
conseguir. E quando isso acontecer, chegará a hora de abrir os
olhos. Para ver onde o rio se divide em quatro canais. Tem de
escolher o segundo a contar da direita. Foi o que lhe foi
ordenado.
E em breve terá de o fazer.
Os pássaros nas árvores estão a chilrear. Há atividade nas
margens. Homem, animal, monstro. Não sabe.
O medo que sente está instalado bem no centro da sua alma.
E os pássaros nos ramos diretamente por cima deles estão
agora a arrulhar.
Ela pensa na casa. Na últimanoite que passou com os colegas
de casa, todos juntos. O vento batia ruidosamente nas janelas.
Aproximava-se uma tempestade. Uma grande tempestade. Talvez
os pássaros nas árvores saibam isso. Ou talvez saibam algo mais.
—  Não consigo ouvir — diz subitamente a Rapariga. — Os
pássaros, mamã. Eles estão a fazer muito barulho!
Malorie para de remar. Pensa em Victor.
— Como é que vos parecem? — pergunta a ambos os �lhos.
— Assustados! — diz a Rapariga.
— Loucos! — diz o Rapaz.
Quanto mais Malorie escuta as árvores, pior lhe parece.
Quantos estarão lá em cima? Parece uma in�nidade.
As crianças ouvirão a gravação no meio desta cacofonia?
Victor enlouqueceu. Os animais enlouquecem.
Os pássaros não parecem sãos.
Lentamente, às cegas, ela vira a cabeça por cima do ombro para
o que os segue.
Tens os olhos fechados, pensa. Tal como os tinhas sempre que
foste buscar água ao poço. Sempre que conduziste o carro para ir
buscar os ampli�cadores. Os teus olhos estavam fechados quando
os do Victor não estavam. O que é que te preocupa? Não estiveste já
perto deles? Não estiveste já tão perto de um que conseguiste
sentir-lhe o cheiro?
Estivera.
Tu acrescentas os detalhes, pensa ela. É a tua ideia da aparência
deles e os detalhes são acrescentados a um corpo e a uma forma que
não conheces. A um rosto que pode não ter rosto.
As criaturas da sua mente caminham em campos abertos e sem
horizonte. Estão do lado de fora das janelas de casas antigas e
olham com curiosidade para o vidro. Estudam. Examinam.
Observam. Fazem a única coisa que Malorie não tem permissão
para fazer.
Eles olham.
Reconhecerão as �ores dos jardins como bonitas? Entenderão
em que direção o rio corre? Entenderão?
— Mamã — diz o Rapaz.
— O que é?
— Este barulho, mamã. Parece alguém a falar.
Ela pensa no homem do barco. Pensa em Gary. Mesmo agora,
tão longe da casa, ela pensa em Gary.
Tenta perguntar ao Rapaz o que quer ele dizer, mas as vozes
dos pássaros elevam-se numa onda grotesca, quase sinfónica, a
gritar.
Parecem demasiados para as árvores poderem sustentá-los.
Como se ocupassem todo o céu.
Parecem loucos. Parecem loucos. Oh meu Deus, eles parecem
loucos.
Malorie vira a cabeça por cima do ombro, embora não consiga
ver. O Rapaz ouviu uma voz. Os pássaros estão loucos. Quem está
a segui-los?
Mas já não lhe parece que algo esteja a segui-los. Parece-lhe
que algo os apanhou.
—  É uma voz! — grita o Rapaz, como se falasse dentro de um
sonho, como se a sua voz penetrasse o ruído impossível que vem
de cima.
Malorie tem a certeza. Os pássaros viram algo ali em baixo.
O canto em uníssono dos pássaros sobe e atinge um auge antes
de abrandar, serpentear e fazer explodir todos os limites. Malorie
ouve o som como se estivesse dentro dele. Como se estivesse
presa num aviário com mil pássaros chalados. Parece que
desceram uma gaiola por cima de todos eles. Uma caixa de
cartão. Uma caixa de pássaros. A bloquear o sol para sempre.
O que é? O que é? O que é?
O in�nito.
De onde veio? De onde veio? De onde veio?
Do in�nito.
Os pássaros gritam. E o barulho que fazem não é música.
A Rapariga grita.
— Algo me atingiu, mamã! Algo caiu!
Malorie também o sente. Pensa que está a chover.
Impossivelmente, o som dos pássaros torna-se ainda mais
ruidoso. É ensurdecedor, estão a guinchar. Malorie tem de tapar
os ouvidos. Ela grita para as crianças, implorando-lhes que façam
o mesmo.
Alguma coisa lhe bate com força no ombro magoado e ela grita,
estremecendo de dor.
Descontroladamente, segurando a venda com a mão, ela
vasculha o barco à procura do que a atingiu.
A Rapariga grita novamente.
— Mamã!
Mas Malorie descobriu-o. Entre o dedo indicador e o polegar
não tem uma gota de chuva, mas o corpo arruinado de um
pequeno pássaro. Ela apalpa a asa delicada.
Agora Malorie sabe.
No céu por cima deles, para onde está proibida de olhar, os
pássaros estão em guerra. Os pássaros estão a matar-se uns aos
outros.
— Cubram as cabeças! Segurem as vendas!
Então, como uma onda, eles atingem-nos. Os corpos
emplumados vêm de cima. O rio explode com o peso de milhares
de aves a caírem na água. Eles acertam no barco. Caem. Malorie é
atingida. Eles acertam-lhe na cabeça, no braço. É atingida outra
vez. E outra.
Com o sangue de pássaro a escorrer-lhe pelo rosto, consegue
saboreá-los.
Também consegues sentir o cheiro. Morte. Morte. Decomposição.
O céu está a cair, o céu está a morrer, o céu está morto.
Malorie chama as crianças, mas o Rapaz já está a falar, tentando
dizer-lhe algo.
—  Riverbridge — diz ele. — Dois setenta e três Shillingham…
chamo-me …
— O quê?
Agachada, Malorie inclina-se para a frente. Aproxima os lábios
do Rapaz do seu ouvido.
—  Riverbridge — diz ele. — Dois setenta e três Shillingham.
Chamo-me Tom.
Malorie endireita-se, ferida, agarrada à venda.
Chamo-me Tom.
As aves atacam o seu corpo. Batem com estrondo contra o
barco.
Mas ela não está a pensar nelas.
Está a pensar em Tom.
Olá! Estou a ligar de Riverbridge. Dois setenta e três Shillingham.
Chamo-me Tom. Tenho a certeza de que entende o alívio que sinto
por apanhar o seu voicemail. Isso signi�ca que ainda tem
eletricidade. Nós também…
Malorie começa a abanar a cabeça.
não não não não não não não não não não não
— NÃO!
O Rapaz ouviu-a primeiro. A voz de Tom. Gravada e
reproduzida em loop. Ativada pelo movimento. Para ela. Para
Malorie. Se alguma vez decidisse seguir o rio. Quando quer que
esse dia chegasse. Tom, doce Tom, a falar ali durante todos
aqueles anos. A tentar estabelecer contacto. A tentar alcançar
alguém. A tentar construir uma ponte entre a sua vida na casa e
uma melhor, noutro lugar.
Eles usaram a voz dele porque sabiam que a reconhecerias. É
agora, Malorie.
Este é o momento em que deves abrir os olhos.
Quão verde será a relva? Quão coloridas serão as folhas? Quão
vermelho será o sangue dos pássaros que se espalha no rio por
baixo de si?
— Mamã! — chama o Rapaz.
A mamã tem de abrir os olhos, tem vontade de dizer. A mamã
tem de olhar.
Mas os pássaros enlouqueceram.
— Mamã! — repete o Rapaz.
Ela responde. Quase não reconhece a sua própria voz.
— O que é, Rapaz?
— Há alguma coisa aqui connosco, mamã. Algo está mesmo aqui.
O barco a remos para.
Alguma coisa o parou.
Ela consegue ouvi-lo a mover-se na água ao lado deles.
Não é um animal, pensa. Não é o Gary. É aquilo de que te tens
vindo a esconder há quatro anos e meio. É o que te impede de olhar
para a rua.
Malorie prepara-se.
Há algo na água à sua esquerda. A centímetros do seu braço.
Os pássaros lá em cima começam a parecer distantes. Como se
subissem, subissem, numa espiral lunática em direção aos limites
do céu.
Ela sente a presença de algo ao seu lado.
Os pássaros estão a �car mais silenciosos. A silenciar-se.
Desaparecem. Sobem. Desapareceram.
A voz de Tom continua. O rio corre em volta do barco a remos.
Malorie grita quando sente que a venda lhe está a ser arrancada
do rosto.
Ela não se move.
A venda para a um centímetro dos seus olhos fechados.
Consegue ouvi-lo? A respirar? É isso que ouve? É isso?
É o Tom, pensa, o Tom está a deixar uma mensagem.
A voz dele ecoa através do rio. Parece tão esperançoso. Vivo.
Tom. Vou ter de abrir os olhos. Fala comigo. Por favor. Diz-me o
que fazer. Tom, vou ter de abrir os olhos.
A voz dele vem do espaço à sua frente. É como o sol, a única luz
em toda aquela escuridão.
A venda é puxada um centímetro mais para longe do seu rosto.
O nó faz pressão contra a parte de trás da sua cabeça.
Tom, vou ter de abrir os olhos.
E então…
42
Ela abre-os.
Malorie senta-se na cama e agarra a barriga antes de perceber
que já está a uivar há algum tempo. A cama está encharcada.
Dois homens entram a correr no quarto. Tudo aquilo parece um
sonho
(Estou realmente a ter um bebé? Um bebé? Eu estive grávida este
tempo todo?)
e é assustador
(Onde está a Shannon? Onde está a minha mãe?)
e, a princípio, não os reconhece como Felix e Jules.
— Raios — diz Felix. — A Olympia já está lá em cima. A Olympia
começou talvez há duas horas.
Lá em cima onde? pensa Malorie. Lá em cima onde?
Os homenssão cuidadosos com ela e ajudam-na a chegar-se
para a beira da cama.
— Estás preparada para fazer isto? — pergunta Jules.
Malorie limita-se a olhar para ele, de testa franzida, e com o
rosto simultaneamente rosado e pálido.
—  Eu estava a dormir — diz ela. — Eu só estava… lá em cima
onde, Felix?
—  Ela está pronta — diz Jules, forçando um sorriso, tentando
reconfortá-la. — Pareces ótima, Malorie. Pareces pronta.
Ela começa a perguntar: — Lá em…
Mas Felix responde antes de ela terminar.
—  Vamos fazer isto no sótão. O Tom diz que é o lugar mais
seguro da casa. Caso aconteça algo. Mas não vai acontecer nada.
A Olympia já está lá. Está em trabalho de parto há duas horas. O
Tom e a Cheryl estão com ela. Não te preocupes, Malorie. Vamos
fazer tudo o que pudermos.
Malorie não responde. A sensação de que há algo dentro dela
que tem de sair é a coisa mais horrível e incrível que já conheceu.
Os homens seguram-na, cada um por baixo de um braço, e
levam-na para fora do quarto, passando pela porta e em direção
ao corredor, em direção à parte de trás da casa. As escadas do
sótão já foram baixadas e, enquanto eles a apoiam, Malorie vê os
cobertores que tapam a janela ao fundo do corredor. Pergunta-se
que horas serão. Se é a noite seguinte. Se passou uma semana.
Estou realmente a ter o meu bebé? Agora?
Felix e Jules ajudam-na a subir os velhos degraus de madeira.
Ela consegue ouvir Olympia no andar de cima. E a voz doce de
Tom, dizendo coisas como respira, vais �car bem, estás bem.
—  Talvez a�nal não vá ser assim tão diferente — diz ela (os
homens, graças a Deus, ajudam-na a subir os degraus). — Talvez
não seja muito diferente do que eu esperava que fosse.
Há ali mais espaço do que imaginava. Uma única vela ilumina o
espaço. Olympia está deitada numa toalha no chão. Cheryl está
ao lado dela. Os joelhos de Olympia estão levantados e um lençol
�no cobre-a da cintura para baixo. Jules ajuda-a a deitar-se na
sua própria toalha de frente para Olympia. Tom aproxima-se de
Malorie.
— Oh, Malorie! — diz Olympia. Está sem fôlego e apenas parte
dela exclama, enquanto o resto se agita e contorce. — Estou tão
feliz por estares aqui!
Malorie, aturdida, não pode deixar de sentir que ainda está a
dormir quando olha por cima dos joelhos cobertos e vê Olympia
como um re�exo.
— Há quanto tempo estás aqui, Olympia?
— Não sei. Uma eternidade, parece-me!
Felix conversa calmamente com Olympia, perguntando-lhe do
que precisa. Depois desce as escadas para o ir buscar. Tom
recomenda a Cheryl que mantenha as coisas limpas. Elas vão �car
bem, diz, desde que se mantenham limpas. Eles estão a usar
lençóis e toalhas limpas. Desinfetante para mãos trazido da casa
de Tom. Dois baldes de água do poço.
Tom parece calmo, mas Malorie sabe que não está.
— Malorie? — pergunta Tom.
— Sim?
— Do que é que precisas?
— Que tal um pouco de água? E música, também, Tom.
— Música?
—  Sim. Algo doce e suave, sabes, talvez algo para… Algo para
abafar o som do meu corpo no chão de madeira de um sótão… — a
música de �auta. Essa cassete.
— OK — diz Tom. — Vou buscá-la.
Ele obedece, passando por ela em direção às escadas que
descem diretamente atrás das suas costas. Ela dirige a sua
atenção para Olympia. Ainda está a ter di�culdades em afastar a
névoa do sono. Vê uma pequena faca ao seu lado em cima de uma
toalha de papel, a menos de meio metro de distância. Cheryl
limitou-se a mergulhá-la em água.
—  Jesus! — grita Olympia subitamente, e Felix ajoelha-se e
pega-lhe na mão.
Malorie assiste.
Estas pessoas, pensa, o tipo de pessoa que responderia a um
anúncio como aquele no jornal. Estas pessoas são sobreviventes.
Sente uma onda momentânea de paz. Sabe que não vai demorar
muito. Os habitantes da casa cruzam o seu espírito, os seus
rostos, um a seguir ao outro. Sente algo como amor em relação a
cada um deles..
Meu Deus, pensa, temos sido tão corajosos.
—  Meu Deus! — grita Olympia de repente. Cheryl aparece
rapidamente ao seu lado.
Uma vez, quando Tom estava ali à procura de �ta adesiva,
Malorie observou-o do fundo da escada. Mas nunca tinha estado
ali sozinha. Agora, respirando pesadamente, olha para a cortina
que cobre a única janela e sente um arrepio. Até o sótão foi
protegido. Um espaço quase nunca usado também precisa de ser
vedado. O seu olhar percorre a estrutura da janela de madeira,
depois as paredes de madeira, o teto pontiagudo, as caixas de
coisas que George deixou para trás. Os seus olhos continuam em
direção a um monte de cobertores empilhados. Outra caixa de
peças de plástico. Livros velhos. Roupas velhas.
Alguém está de pé ao lado das roupas velhas.
É Don.
Malorie sente uma contração.
Tom regressa com um copo de água e o pequeno rádio em que
ouvem as cassetes.
— Aqui tens, Malorie — diz ele. — Encontrei-a.
O som de violinos escapa das pequenas colunas. Malorie acha
que é perfeito.
— Obrigada — diz.
O rosto de Tom parece muito cansado. Tem os olhos meio
abertos e inchados. Como se tivesse dormido apenas uma hora
ou menos.
Malorie sente uma contração tão forte que, a princípio, pensa
que não é real. Parece que uma armadilha para ursos se fechou na
sua cintura.
As vozes vêm de trás dela. Do fundo da escada do sótão. É
Cheryl. Jules. Ela mal consegue perceber quem está ali e quem
não está.
— Oh, Deus! — grita Olympia.
Tom está com ela. Felix está novamente ao lado de Malorie.
— Vais conseguir — diz Malorie a Olympia.
Quando o diz, um trovão estoura na rua. A chuva cai com força
contra o telhado. De alguma forma, a chuva é exatamente o som
que procurava. O mundo exterior soa como ela se sente.
Tormentoso. Ameaçador. Horrível. Os colegas de casa emergem
das sombras, depois desaparecem. Tom parece preocupado.
Olympia respira com força, ofegante. As escadas rangem. Chegou
alguém. É Jules, novamente. Tom está a dizer-lhe que Olympia
está mais atrasada do que Malorie. Os trovões estalam lá fora.
Quando um relâmpago cai, ela vê o contorno de Don, as suas
feições sombrias, os seus olhos encovados por cima de olheiras
profundas.
Malorie sente uma pressão insuportável na cintura. O seu
corpo, ao que parece, está a agir sozinho, refutando o desejo de
paz da sua mente. Ela grita e Cheryl deixa Olympia e vem até ela.
Malorie nem sabia que Cheryl ainda ali estava.
— Isto é horrível — sibila Olympia.
Malorie pensa em como as mulheres sincronizam os seus
ciclos, mulheres em sintonia com os corpos umas das outras.
Apesar de todas as suas conversas sobre quem daria à luz
primeiro, nem ela nem Olympia supuseram que podiam entrar
em trabalho de parto ao mesmo tempo.
Oh, como Malorie desejava um parto tradicional!
Mais trovões.
Agora está mais escuro ali. Tom traz uma segunda vela, acende-
a e pousa-a no chão à esquerda de Malorie. Sob a luz trémula da
vela, ela vê Felix e Cheryl, mas Olympia é difícil de distinguir. O
tronco e o rosto estão obscurecidos por sombras ondulantes.
Alguém desce as escadas atrás dela. Será Don? Não quer virar o
pescoço. Tom passa pela luz das velas e depois sai do seu campo
de visão. Depois Felix, pensa ela, e depois Cheryl. As silhuetas
movem-se dela para Olympia como fantasmas.
A chuva cai com mais força no telhado.
Há uma agitação forte e abrupta no andar de baixo. Malorie não
tem a certeza, mas parece-lhe que alguém está a gritar. A sua
mente cansada estará a confundir os sons? Quem está a discutir?
Parece uma discussão no andar de baixo.
Não consegue pensar nisso agora. Não vai pensar nisso.
— Malorie? — Malorie grita quando o rosto de Cheryl aparece
de repente ao seu lado. — Aperta a minha mão. Parte-a se
precisares.
Malorie quer dizer, Traz um pouco de luz para aqui. Traz-me um
médico. Faz isto por mim.
Em vez disso, responde com um grunhido.
Está a ter o bebé. Já não é uma questão de quando.
Será que vou ver as coisas de forma diferente agora? Eu via tudo
através do prisma deste bebé. Foi assim que vi a casa. Os colegas de
casa. O mundo. Foi como vi as notícias quando isto começou e como
vi as notícias quando terminou. Fiquei horrorizada, paranoica,
irritada e mais. Quando o meucorpo regressar à forma que tinha
quando eu andava pelas ruas livremente, voltarei a ver as coisas de
forma diferente?
Como será o Tom? Como soarão as suas ideias?
—  Malorie! — chama Olympia da escuridão. — Acho que não
consigo fazer isto!
Cheryl está a dizer a Olympia que consegue, que está quase lá.
— O que é que está a acontecer no andar de baixo? — pergunta
Malorie de repente.
Don está lá em baixo. Consegue ouvi-lo a discutir. Jules,
também. Sim, Don e Jules estão a discutir no corredor por baixo
do sótão. Tom está com eles? Felix? Não. Felix sai da escuridão e
pega-lhe na mão.
— Estás bem, Malorie?
— Não — diz ela. — O que é que está a acontecer no andar de
baixo?
Ele faz uma pausa e depois diz:
—  Não tenho a certeza. Mas tens coisas maiores com que te
preocupar do que as discussões dos outros.
— É o Don? — pergunta ela.
— Não te preocupes, Malorie.
Chove com mais força. É como se cada gota tivesse o seu
próprio peso audível.
Malorie levanta a cabeça para ver os olhos de Olympia nas
sombras, �xos nela.
Para além da chuva, da discussão, da agitação no andar de
baixo, Malorie ouve algo. Mais doce do que os violinos.
O que é isto?
— Oh merda! — grita Olympia. — Faz isto parar!
Malorie tem cada vez mais di�culdade em respirar. Parece que
o bebé está a cortar-lhe o suprimento de ar. Como se estivesse a
subir-lhe pela garganta.
Tom está ali. Está ao seu lado.
— Lamento, Malorie.
Ela vira-se para ele. O rosto que vê, a expressão no seu rosto, é
algo que vai recordar durante anos depois daquela manhã.
—  Lamentas o quê, Tom? Lamentas por ter acontecido desta
forma?
Os olhos de Tom ganham uma expressão triste. Ele acena com a
cabeça que sim. Ambos sabem que ele não tem motivos para se
lamentar, mas ambos sabem que nenhuma mulher deveria
suportar o parto no sótão abafado de uma casa a que chama lar
apenas porque não pode sair.
— Sabes o que eu acho? — diz ele docemente, aproximando-se
para lhe agarrar na mão. — Acho que vais ser uma mãe
maravilhosa. Acho que vais criar esta criança tão bem que não
será importante se o mundo continua assim ou não.
Malorie sente que um gancho de aço enferrujado está a tentar
puxar o bebé para fora dela agora. Uma correia de reboque vinda
das sombras à sua frente.
—  Tom — Malorie consegue dizer. — O que se passa lá em
baixo?
— O Don está perturbado. Só isso.
Ela quer falar mais acerca do assunto. Já não está zangada com
Don. Está preocupada com ele. De todos os colegas de casa, ele
foi quem mais sofreu com o novo mundo. Está perdido nele. Há
algo mais vazio do que a falta de esperança no seu olhar. Malorie
quer dizer a Tom que gosta de Don, que todos gostam, que ele só
precisa de ajuda. Mas a dor é absolutamente tudo o que consegue
processar. E as palavras são momentaneamente impossíveis. A
discussão lá em baixo parece-lhe agora uma piada. Como se
alguém estivesse a brincar com ela. Como se a casa estivesse a
dizer-lhe: Vês? Mantém o sentido de humor, apesar da dor que
estás a viver no meu sótão.
Malorie conheceu exaustão e fome. Dor física e fadiga mental
grave. Mas nunca conheceu o estado em que está agora. Não só
tem o direito de não ser incomodada por uma discussão entre os
colegas de casa, como também quase merece que todos saiam
completamente da casa e permaneçam no quintal, de olhos
fechados, enquanto ela e Olympia fazem o que os seus corpos
precisam de fazer.
Tom levanta-se.
— Já venho — diz. — Precisas de mais água?
Malorie abana a cabeça e volta o olhar para as sombras e
lençóis onde decorre a luta de Olympia à sua frente.
—  Estamos a conseguir! — diz Olympia, soando subitamente
maníaca. — Está a acontecer!
Tantos sons. As vozes lá em baixo, as vozes no sótão
(provenientes das sombras e provenientes de rostos que
emergem dessas sombras), a escada, que range sempre que um
dos habitantes da casa sobe ou desce para avaliar a situação ali e
depois a situação (ela sabe que há um problema no andar inferior,
simplesmente não está para se ralar, neste momento) que está a
decorrer lá em baixo. A chuva cai, mas há outra coisa. Outro som.
Um instrumento, talvez. As notas mais agudas do piano da sala de
jantar.
Subitamente, estranhamente, Malorie sente outra onda de paz.
Apesar das mil lâminas que lhe perfuram os pulmões, o pescoço e
o peito, ela compreende que, independentemente do que faça,
independentemente do que aconteça, o bebé está a sair. Que
importa o mundo para o qual está a trazer este bebé agora?
Olympia tem razão. Está a acontecer. A criança está a chegar, a
criança está quase fora. E ele sempre fez parte do novo mundo.
Ele conhece ansiedade, medo, paranoia. Ele �cou preocupado
quando Tom e Jules foram procurar os cães. Ele �cou
dolorosamente aliviado quando eles regressaram. Ele �cou
assustado com a mudança em Don. Com a mudança na casa.
Quando passou de um paraíso de esperança para um lugar amargo
e ansioso. O seu coração �cou pesado quando eu li o anúncio que
me trouxe aqui, bem como quando li o caderno na cave.
Ao pensar na palavra «cave», Malorie ouve realmente a voz de
Don lá em baixo.
Ele está a berrar.
No entanto, algo além da voz dele a preocupa mais.
— Estás a ouvir este som, Olympia?
—  O quê? — resmunga Olympia. Parece que tem a garganta
cheia de agrafos.
— Aquele som. Parece…
— É a chuva — diz Olympia.
—  Não, não é isso. Há outra coisa. Parece que já tivemos os
nossos bebés.
— O quê?
Malorie acha que soa como um bebé. Algo parecido, para lá dos
companheiros ao fundo da escada. Talvez até no primeiro andar,
na sala de estar, talvez até mesmo…
Talvez até mesmo lá fora.
Mas o que signi�ca? O que está a acontecer? Alguém está a
chorar no alpendre? Impossível. É outra coisa.
Mas está vivo.
Um relâmpago explode. O sótão �ca totalmente visível, uma
visão de pesadelo, instantânea. O cobertor que tapa a janela
permanece �xo na mente de Malorie muito depois de a luz passar
e o trovão ressoar. Olympia grita quando aquilo acontece e
Malorie, com os olhos fechados, vê a expressão de medo da amiga
congelada na sua mente.
Mas a atenção dela é atraída para a pressão impossível que
sente na cintura. Parece que Olympia podia estar a uivar por ela.
Sempre que Malorie sente a horrível faca cravada num dos
�ancos, Olympia geme.
Devo uivar por ela também?
A cassete para. E o mesmo acontece com a agitação lá em
baixo.
Até a chuva abranda.
Os mínimos sons no sótão são agora mais audíveis. Malorie
escuta a sua própria respiração. Os passos dos colegas de casa
que as ajudam parecem de�nidos.
Figuras emergem. Depois desaparecem.
Há Tom (tem a certeza).
Há Felix (acha).
Jules está ao lado de Olympia.
O mundo está a recuar? Ou estou a velejar mais para dentro
desta dor?
Ouve outra vez o barulho. Como um bebé à porta de casa. Algo
jovem e vivo vindo do andar de baixo. Só que agora é mais
pronunciado. Só que agora não precisa de lutar para se fazer
ouvir por cima da discussão e da música e da chuva.
Sim, é mais pronunciado, mais de�nido. Quando Tom atravessa
o sótão, ela consegue ouvir o som entre os seus passos. A bota
entra em contacto com a madeira, depois levanta-se, expondo os
sons juvenis lá em baixo.
Então, muito claramente, Malorie reconhece o som.
São os pássaros. Meu Deus. São os pássaros.
A caixa de cartão a bater contra a parede exterior da casa e o
suave chilrear dos pássaros.
— Está alguma coisa lá fora — diz ela.
Primeiro em voz baixa.
Cheryl está a poucos metros dela.
— Está alguma coisa lá fora! — berra.
Jules olha para cima, por trás do ombro de Olympia.
Ouve-se um estrondo lá em baixo. Felix grita. Jules passa a
correr por Malorie. As suas botas ecoam alto e rápido nas escadas
atrás dela.
Malorie olha freneticamente em volta do sótão à procura de
Tom. Ele não está ali. Ele está lá em baixo.
—  Olympia — diz Malorie, mais para si mesma. — Estamos
sozinhas aqui!
Olympia não responde.
Malorie tenta não escutar, mas não consegue controlar-se.
Parece que agora estão todos na sala. Estão sem dúvida no
primeiro andar. Toda a gente está a gritar. O Jules acabou de
dizer «não faças isso»?
À medida quea agitação aumenta, a dor também aumenta na
cintura de Malorie.
Malorie, de costas para as escadas, vira o pescoço. Quer saber o
que está a acontecer. Quer dizer-lhes para pararem. Há duas
mulheres grávidas no sótão que precisam da vossa ajuda. Por
favor, parem.
Delirante, Malorie deixa o queixo cair para o peito. Os seus
olhos fecham-se. Ela sente que pode desmaiar se perder a
concentração. Ou pior.
A chuva regressa. Malorie abre os olhos. Vê Olympia, com a
cabeça inclinada para o teto. As veias do pescoço estão salientes.
Lentamente, Malorie examina o sótão. Ao lado de Olympia estão
caixas. Depois a janela. Depois mais caixas. Livros antigos. Roupas
velhas.
Um relâmpago vindo do exterior ilumina o espaço do sótão.
Malorie fecha os olhos. Na sua escuridão, vê uma imagem
congelada das paredes do sótão.
A janela. As caixas.
E um homem, de pé, onde Don estava quando ela subiu.
Não é possível, pensa.
Mas é.
E, antes que os seus olhos estejam totalmente abertos, ela
percebe quem está ali, quem está no sótão com ela.
— Gary — diz Malorie, com uma centena de pensamentos a vir-
lhe à mente. — Estavas escondido na cave.
Ela pensa em Victor a rosnar à porta da cave.
Pensa em Don, a dormir lá em baixo.
Quando Malorie olha Gary nos olhos, a discussão no andar de
baixo aumenta. Jules está rouco. Don está chocado. Parece que
estão a agredir-se.
Gary emerge das sombras. Está a aproximar-se dela.
Quando fechámos os olhos e o Tom abriu a porta, pensa ela,
sabendo que é verdade, o Don esgueirou-o para as profundezas da
casa.
— O que é que estás a fazer aqui? — grita subitamente Olympia.
Gary não olha para ela. Dirige-se apenas para Malorie.
— Não te aproximes de mim! — grita Malorie.
Ele ajoelha-se ao lado dela.
— Tu — diz ele. — Tão vulnerável no teu estado atual. Sempre
pensei que terias piedade e não mandarias alguém para um
mundo como este.
Um novo relâmpago explode.
— Tom! Jules!
O seu bebé ainda não saiu. Mas deve estar quase.
— Não grites — diz Gary. — Não estou zangado.
— Por favor, deixa-me em paz. Por favor, deixa-nos.
Gary ri-se.
—  Continuas a dizer isso! Continuas a querer que eu me vá
embora!
Um trovão ressoa lá fora. Os colegas de casa estão a gritar mais
alto.
— Nunca chegaste a sair — diz Malorie, com cada palavra a sair-
lhe como se removesse uma pequena pedra do peito.
— Exato, nunca saí.
Os olhos de Malorie enchem-se de lágrimas.
—  O Don teve a bondade de me ajudar e teve a presença de
espírito de perceber que podiam votar a minha expulsão.
Don, pensa ela, o que é que foste fazer?
Gary aproxima-se.
— Importas-te que te conte uma história enquanto fazes isso?
— O quê?
— Uma história. Algo para afastar a tua mente da dor. E deixa-
me dizer-te que estás a fazer um trabalho maravilhoso. Melhor
do que a minha mulher.
A respiração de Olympia parece difícil, muito irregular, como se
não fosse possível sobreviver àquilo.
— Uma de duas coisas está a acontecer aqui — diz Gary. — Ou…
— Por favor — grita Malorie. — Por favor, deixa-me em paz.
— Ou as minhas �loso�as estão corretas, ou, e detesto usar esta
palavra, sou imune.
Malorie sente que o bebé está mesmo no limiar do seu corpo.
No entanto, parece que é muito grande para sair. Malorie arqueja
e fecha os olhos. Mas a dor está em toda parte, mesmo na sua
escuridão.
Eles não sabem que ele está aqui. Oh meu Deus, eles não sabem
que ele está aqui.
— Eu observei esta rua durante muito tempo — diz Gary. — Vi a
forma desajeitada como o Tom e o Jules avançaram pelo
quarteirão, aos tropeções. Estava a poucos centímetros do Tom
enquanto ele estudava a tenda que me abrigava.
— Para com isso. PARA!
Mas gritar só piora a dor. Malorie concentra-se. Faz força.
Respira. Mas não consegue deixar de ouvir.
—  Eu achava fascinante, o trabalho a que aquele homem se
dava, enquanto eu assistia, ileso, enquanto as criaturas passavam
diariamente, todas as noites, às vezes uma dúzia de cada vez. Foi
por isso que me estabeleci nesta rua, Malorie. Não fazes ideia do
quanto é movimentada.
por favor por favor por favor por favor por favor POR FAVOR
No andar de baixo, ela ouve a voz de Tom.
— Jules! Preciso de ti!
Então um estrondo de passos a descerem.
— TOM! AJUDA-NOS! O GARY ESTÁ AQUI! TOM!
—  Ele está ocupado — diz Gary. — Há uma situação grave a
acontecer lá em baixo.
Gary levanta-se. Avança para a porta do sótão e fecha-a
silenciosamente.
Depois tranca-a.
— Está melhor assim? — pergunta.
— O que é que �zeste? — sibila Malorie.
Mais gritos vindos do andar de baixo. Parece que toda a gente
se está a mover ao mesmo tempo. Por um instante, ela acredita
que enlouqueceu. Não importa o quão segura tenha estado,
parece que não há como escapar à loucura do novo mundo.
Alguém grita no corredor abaixo da porta trancada do sótão.
Malorie pensa que é Felix.
—  A minha mulher não estava preparada — diz Gary,
subitamente ao lado dela. — Eu estava a assistir quando ela viu
um. Não a avisei de que isto se aproximava. Eu…
— Porque é que não nos disseste? — pergunta Malorie, a chorar, a
fazer força.
—  Porque tal como todos os outros, nenhum de vocês teria
acreditado em mim — responde Gary. — Exceto o Don.
— És louco.
Gary ri-se, sorri.
—  O que é que está a acontecer no andar de baixo?! — grita
Olympia. — Malorie! O que é que está a acontecer no andar de
baixo?!
— Não sei!
— É o Don — diz Gary. — Ele está a tentar convencer os outros
do que lhe ensinei.
— É O DON!
A voz vinda de baixo é tão clara como se tivessem falado no
sótão.
—  O DON ARRANCOU-OS! O DON ARRANCOU OS
COBERTORES!
— Eles não nos vão fazer mal — sussurra Gary. Os pelos da sua
barba húmida tocam na orelha de Malorie.
Mas ela já não está a ouvi-lo.
— Malorie? — sussurra Olympia.
—  O DON ARRANCOU OS COBERTORES E ABRIU A PORTA!
ELES ESTÃO NA CASA! ESTÃO A OUVIR? ELES ESTÃO NA CASA!
o bebé está a sair o bebé está a sair o bebé está a sair
— Malorie?
—  Olympia — diz ela, derrotada, sem esperança (é verdade? a
sua própria voz está a dizê-lo?). — Sim. Agora eles estão na casa.
A tempestade lá fora chicoteia as paredes.
O caos no andar de baixo parece impossível.
— Eles parecem lobos — grita Olympia. — Eles parecem lobos!
Don Don Don Don Don Don Don Don Don Don
arrancou os cobertores
deixou-os entrar
alguém os viu
deixou-os entrar
alguém enlouqueceu quem foi?
o Don deixou-os entrar
o Don arrancou os cobertores
o Don não acredita que podem fazer-nos mal
o Don pensa que é só na nossa mente
o Gary ajoelhou-se ao lado dele na cadeira da sala de jantar
o Gary falou com ele por trás da tapeçaria na cave
o Don arrancou os cobertores
o Gary disse-lhe que era falso, o Gary disse-lhe que eles eram
inofensivos
pode ter enlouquecido quem é quem foi?
(força, Malorie, força, tens um bebé, um bebé com que te
preocupares, fecha os olhos se tiver de ser, mas faz força)
agora eles estão na casa
e todos nela
parecem lobos.
Os pássaros, pensa Malorie, histérica, foram uma boa ideia, Tom.
Uma ideia excelente.
Olympia está a fazer perguntas, frenética, mas Malorie não
pode responder. Tem a mente cheia.
— É verdade? Há realmente um dentro da casa? Não pode ser
verdade. Nunca o permitiríamos! Há realmente um na casa? Neste
momento?
Algo choca contra uma parede no andar de baixo. Um corpo
talvez. Os cães estão a ladrar.
Alguém atirou um cão contra a parede.
— O DON ARRANCOU OS COBERTORES!
Quem tem os olhos fechados lá em baixo? Quem teve essa
presença de espírito? Malorie tê-la-ia? Malorie teria conseguido
fechar os olhos depois de os seus companheiros terem
enlouquecido?
Oh meu Deus, pensa Malorie. Eles vão morrer lá em baixo.
O bebé está a matá-la.
Gary ainda está a sussurrar-lhe ao ouvido.
—  O que estás a ouvir lá em baixo, é a isso que me re�ro,
Malorie. Eles pensam que devem enlouquecer. Mas não precisam.
Passei estações inteiras lá fora. Observei-os durante semanas
seguidas.
— Impossível — diz Malorie. Não sabe se a palavra é dirigida a
Gary, ao ruído no andar de baixo, ou à dor que acredita que
nunca passará.
— Da primeira vez que vi um, pensei que tinha enlouquecido. —
Gary fazum risinho nervoso. — Mas não. E quando percebi
lentamente que ainda tinha uma mente sã, comecei a entender o
que estava a acontecer. Aos meus amigos. À minha família. A toda
a gente.
— Não quero ouvir mais nada! — grita Malorie. Sente que se vai
rasgar ao meio. Houve um erro, pensa. O bebé que está a tentar
sair dela é demasiado grande e vai rasgá-la ao meio.
É um rapaz, acredita.
— Sabes uma coisa?
— Para!
— Sabes uma coisa?
— Não! Não! Não!
Olympia uiva, o céu uiva, os cães uivam no andar de baixo.
Malorie acredita que está a ouvir especi�camente Jules. Ouve-o a
correr no andar abaixo. Ouve-o a tentar desmanchar algo na casa
de banho lá de baixo.
—  Talvez eu seja imune, Malorie. Ou talvez seja simplesmente
consciente.
Ela quer dizer-lhe: Sabes o quanto podias ter feito por nós? Não
compreendes o que podias ter feito pela nossa segurança?
Mas Gary está louco.
E provavelmente sempre foi louco.
O Don arrancou os cobertores.
Gary ajoelhou-se ao lado dele na sala de jantar.
Gary falou com ele por trás de uma tapeçaria na cave.
Gary foi o demónio no ombro suave de Don.
Há uma batida estrondosa na porta do sótão.
— DEIXEM-ME ENTRAR! — grita alguém.
É o Felix, pensa Malorie. Ou o Don.
— JESUS CRISTO DEIXEM-ME ENTRAR!
Mas não é nenhum deles.
É Tom.
— Abre-lhe a porta! — Malorie grita para Gary.
—  Tens a certeza de que queres que eu faça isso? Não me
parece uma ideia segura.
— Por favor por favor por favor! Deixa-o entrar!
É o Tom, oh meu Deus, é o Tom, é o Tom, oh meu Deus, é o Tom.
Ela faz muita força. Oh Deus, ela faz muita força.
— Respira — diz-lhe Gary. — Respira. Estás quase lá.
— Por favor — grita Malorie. — Por favor!
— DEIXEM-ME ENTRAR! DEIXEM-ME SUBIR!
Agora Olympia também está a gritar.
— Abre-lhe a porta! É o Tom!
A loucura lá de baixo está a bater à porta.
Tom.
Tom enlouqueceu. Tom viu uma das criaturas.
Tom enlouqueceu.
Ouviste-o? Ouviste a voz dele? É o som que ele faz. É assim que
ele soa sem controlo da sua mente, da sua bela mente.
Gary levanta-se e atravessa o sótão. A chuva cai no telhado.
As batidas na porta do sótão param.
Malorie olha para Olympia do outro lado do sótão.
Os cabelos pretos de Olympia misturam-se com as sombras. Os
olhos dela ardem a partir de dentro.
— Estamos… quase… lá — diz ela.
O �lho de Olympia está a sair. À luz das velas, Malorie consegue
ver que está a meio.
Instintivamente, estende a mão para ele, apesar de estar na
outra ponta do chão do sótão.
— Olympia! Não te esqueças de tapar os olhos do teu �lho. Não
te esqueças de…
A porta do sótão abre-se com estrondo. A tranca foi vencida.
Malorie grita, mas só consegue ouvir o seu próprio coração,
mais alto do que todo o novo mundo.
Então �ca em silêncio.
Gary ergue-se e volta para a janela.
Ouvem-se passos pesados atrás dela.
O bebé de Malorie está a emergir.
As escadas rangem.
— Quem é? — grita ela. — Quem é? Estão todos bem? É o Tom?
Quem é?
Alguém que ela não consegue ver subiu as escadas e está no
sótão com elas.
Malorie, de costas para as escadas, observa enquanto a
expressão de Olympia muda de dor para espanto.
Olympia, pensa ela. Não olhes. Portámo-nos tão bem. Fomos tão
corajosas. Não olhes. Agarra o teu �lho em vez disso. Tapa-lhe os
olhos quando ele sair completamente. Tapa-lhe os olhos. E tapa os
teus também. Não olhes. Olympia. Não olhes.
Mas percebe que é tarde demais para a amiga.
Olympia inclina-se para a frente. Os olhos dela arregalam-se, a
sua boca abre-se. O seu rosto forma três círculos perfeitos. Por
um momento, Malorie vê a sua expressão contorcer-se, e depois
a brilhar.
— Estás linda — diz Olympia, a sorrir. É um sorriso quebrado e
espasmódico. — Não estás nada mal. Queres ver o meu bebé?
Queres ver o meu bebé?
A criança, a criança, pensa Malorie, a criança está dentro dela e
ela enlouqueceu. Oh meu Deus, a Olympia enlouqueceu, oh meu
Deus, esta coisa está atrás de mim e está atrás do meu �lho.
Malorie fecha os olhos.
Quando o faz, a imagem de Gary permanece, ainda no limite do
alcance da luz da vela. Mas não parece tão con�ante como disse
que estaria. Parece uma criança assustada.
—  Olympia — diz Malorie. — Tens de tapar os olhos do bebé.
Tens de o agarrar. De agarrar o bebé.
Malorie não consegue ver a expressão da amiga. Mas a sua voz
revela a mudança dentro dela.
— O quê? Queres-me dizer como devo criar o meu �lho? Que
tipo de puta és tu? Que tipo de…
As palavras de Olympia transformaram-se num rosnado
agressivo e gutural.
Conversa de loucura.
As palavras doentes e perigosas de Gary.
Olympia está a contorcer-se.
O bebé de Malorie está a sair. Ela faz força.
Com uma força que não sabia que tinha, Malorie curva-se para
a frente na toalha. Quer o �lho de Olympia. Vai protegê-lo.
E assim, no meio de toda aquela dor e loucura, Malorie ouve o
primeiro choro do bebé de Olympia.
Tapa-lhe os olhos.
Por �m, o bebé de Malorie sai e a sua mão está lá para lhe tapar
os olhos. A cabeça dele é muito suave e ela acredita que o
alcançou a tempo.
— Anda cá — diz ela, aproximando o bebé do peito. — Anda cá e
fecha os olhos.
Gary ri-se ansiosamente do outro lado do sótão.
— Incrível — diz ele.
Malorie tateia à procura da faca. Encontra-a e corta o seu
próprio cordão umbilical. Então corta duas tiras da toalha
ensanguentada debaixo de si. Tateia o sexo do bebé e sabe que é
um rapaz e não tem ninguém a quem contar. Nem irmã. Nem
mãe. Nem pai. Nem uma enfermeira. Nem Tom. Aperta-o com
força contra o peito.
Lentamente, ela amarra um pedaço da toalha em volta dos
olhos dele.
Até que ponto é importante ele ver o rosto da mãe quando entra
no mundo?
Ela ouve o movimento da criatura atrás de si.
— Bebé — diz Olympia, mas a sua voz soa rachada. Parece que
está a usar a voz de uma mulher mais velha. — O meu bebé — diz.
Malorie desliza para a frente. Os músculos do seu corpo
resistem. Ela tenta agarrar o �lho de Olympia.
— Dá cá — diz, sem ver. — Dá cá, Olympia. Deixa que eu pego-
lhe. Deixa-me vê-lo.
Olympia grunhe.
— Porque é que eu haveria de te deixar? Para que é que queres
o meu �lho? Estás louca?
— Não. Só quero vê-lo.
Os olhos de Malorie ainda estão fechados. O sótão está em
silêncio. A chuva bate suavemente no telhado. Malorie desliza
para a frente, sobre o sangue por baixo do seu corpo.
— Posso? Posso vê-la? É uma menina, não é? Não tinhas razão?
Malorie ouve algo tão surpreendentemente visceral que para a
meio do caminho.
Olympia está a roer algo. Ela percebe que é o cordão umbilical.
O seu estômago revolve-se. Ela mantém os olhos bem fechados.
Vai vomitar.
— Posso vê-la? — Malorie consegue perguntar.
— Toma. Toma! — diz Olympia. — Olha para ela. Olha para ela!
Por �m, as mãos de Malorie estão a tocar no bebé de Olympia.
É uma menina.
Olympia levanta-se. Parece que pisa uma poça. É sangue,
Malorie sabe. Placenta, suor e sangue.
— Obrigada — sussurra Malorie. — Obrigada, Olympia.
Esta ação, esta entrega da �lha, vai sempre ser uma memória
risonha para Malorie. O momento em que Olympia fez a coisa
certa pela �lha, apesar de ter perdido o juízo.
Malorie amarra o segundo pedaço da toalha em volta dos olhos
da bebé.
Olympia caminha em direção à janela coberta. É aí que Gary se
deixou �car, de pé.
A coisa aguarda atrás de Malorie e ainda está imóvel.
Malorie aperta ambos os bebés, protegendo ainda mais os olhos
deles com os seus dedos ensanguentados e húmidos. Ambos os
bebés choram.
E, de repente, Olympia está a debater-se com algo, a deslizar
algo.
Como se estivesse a trepar a alguma coisa.
— Olympia?
Parece que Olympia está a preparar algo.
— Olympia? O que é que estás a fazer, Olympia? Gary, impede-
a. Por favor, Gary.
As suas palavras são inúteis. Gary é o mais louco de todos.
— Vou lá fora, senhor — diz Olympia a Gary, que deve estar por
perto. — Já estou aqui dentro há muito tempo.
— Olympia, para.
— Vou LÁ FORA — diz ela, a sua voz soando ao mesmo tempo
como a de uma criança e de uma centenária no seu leito de
morte.
— Olympia!
É tarde demais. Malorie ouve o vidro da janela do sótão a
partir-se. Algo bate contra a casa.
Silêncio. Doandar de baixo. Do sótão. Então Gary fala.
— Ela está pendurada! Ela está pendurada pelo cordão umbilical!
Não. Por favor, Deus, não deixes este homem descrevê-lo.
—  Ela está pendurada pelo cordão umbilical! É a coisa mais
incrível que já vi! Ela está pendurada pelo cordão umbilical!
Há riso, alegria na sua voz.
A coisa move-se atrás dela. Malorie está no epicentro de toda
aquela loucura. Loucura da antiga. O tipo que as pessoas
costumavam desenvolver com a guerra, o divórcio, a pobreza e
coisas como saber que a amiga…
— Pendurada pelo cordão umbilical! Pelo cordão umbilical!
— Cala-te! — grita Malorie, às cegas. — Cala-te!
Mas as suas palavras são sufocadas, enquanto sente que o que
está atrás dela está a inclinar-se. Uma parte da coisa (o seu rosto?)
move-se perto dos seus lábios.
Malorie só respira. Não se move. O sótão está em silêncio.
Ela consegue sentir o calor, o ardor, da coisa ao seu lado.
Shannon, pensa, olha as nuvens. Parecem-se connosco. Tu e eu.
Ela tapa com mais força os olhos dos bebés.
Ouve o que está atrás de si recuar. Parece que está a afastar-se.
E mais ainda.
Faz uma pausa. Para.
Quando ela ouve as escadas de madeira a rangerem, e quando
tem a certeza de que é o som de alguém a descer, solta um soluço
mais profundo do que qualquer outro que já tenha conhecido.
Os passos tornam-se mais silenciosos. E mais silenciosos.
Depois desaparecem.
— Foi embora — diz ela aos bebés.
Agora ouve Gary a mover-se.
—  Não te aproximes de nós! — grita ela de olhos fechados. —
Não nos toques!
Ele não lhe toca. Passa por ela e as escadas rangem novamente.
Ele desceu as escadas. Vai ver quem sobreviveu. Quem não
sobreviveu.
Está a arquejar, está dorida do cansaço. Da perda de sangue. O
seu corpo diz-lhe para dormir, dormir. Estão sozinhos no sótão,
Malorie e os bebés. Ela começa a deitar-se. Precisa de o fazer. Em
vez disso, espera. Escuta. Descansa.
Quanto tempo já terá passado? Há quanto tempo tenho estes
bebés ao colo?
Mas um novo som arruína a sua pausa. Está a vir do andar de
baixo. É um barulho que se ouvia frequentemente no velho
mundo.
Olympia está pendurada (disse ele disse ele) da janela do sótão.
O corpo dela bate contra a casa ao vento.
E agora algo toca lá em baixo.
É o telefone. O telefone está a tocar.
Malorie �ca quase hipnotizada pelo som. Há quanto tempo não
ouvia algo assim?
Alguém está a ligar para eles.
Alguém está a ligar de volta.
Malorie vira-se, escorregando no sangue. Põe a rapariga no
colo e cobre-a delicadamente com a camisa. Com a mão vazia,
procura o cimo da escada. É íngreme. É velha. Nenhuma mulher
que acabou de dar à luz devia ter de a descer.
Mas o telefone está a tocar. Alguém está a devolver a chamada.
E Malorie vai atender.
Triiiiiiiim
Apesar das vendas feitas com a toalha, ela diz aos bebés para
manterem os olhos fechados.
Aquela ordem será a coisa que lhes dirá mais vezes nos
próximos quatro anos. E nada a impedirá de o dizer,
independentemente de poderem ser demasiado pequenos para a
entenderem.
Triiiiiiiim
Ela desliza o traseiro para a beira da entrada e baixa as pernas
para pousar os pés no primeiro degrau. O corpo grita-lhe que
pare.
Mas ela continua a descer.
Chegou ao fundo da escada. Deita o rapaz no braço direito, com
a palma a tapar-lhe o rosto. A rapariga está dentro da camisa. Os
olhos de Malorie estão fechados e o mundo é preto e ela precisa
tanto de dormir que sente que pode cair das escadas e
adormecer. Contudo, caminha, percorre os degraus, e usa o som
do telefone como guia.
Triiiiiiiim
Os seus pés tocam o tapete azul-claro do corredor branco do
segundo andar. De olhos fechados, não vê essas cores, tal como
não vê Jules deitado de bruços ao longo da parede direita, com
cinco �os de sangue a escorrerem-lhe do topo da cabeça para
onde a mão está apoiada no chão.
No cimo da escada, ela faz uma pausa. Respira fundo. Acredita
que consegue fazê-lo. E assim continua.
Passa por Cheryl, mas não sabe. Ainda não. A cabeça de Cheryl
está virada para o primeiro andar, os pés para o segundo. O seu
corpo está horrivelmente, anormalmente contorcido.
Sem saber, Malorie passa a poucos centímetros dela.
Quase toca em Felix ao fundo da escada. Mas não o faz. Mais
tarde, vai abafar um grito quando sentir os buracos no seu rosto.
Triiiiiiiim
Não faz ideia de que passa por um dos huskies. Está caído
contra a parede; a parede está manchada de um púrpura
carregado.
Ela quer dizer: Ainda está aqui alguém? Quer gritar. Mas o
telefone toca e ela não acredita que vai parar enquanto não
atender.
Segue o som, encostada à parede.
A chuva e o vento entram pelas janelas partidas.
Tenho de atender o telefone.
Se os seus olhos se abrissem, não seria capaz de processar a
quantidade de sangue na casa.
Triiiiiiiim
Verá tudo isso mais tarde. Mas agora o telefone soa tão alto,
está tão perto.
Malorie vira-se, encosta-se à parede, depois desliza, com uma
dor excruciante, para a alcatifa. O telefone está na pequena mesa
de apoio. Sente dor e ardor no corpo todo. Pondo o rapaz ao lado
da rapariga no seu colo, ela estende a mão e procura o telefone
que toca incessantemente.
— Estou?
— Olá.
É um homem. A sua voz soa tão calma. Tão horrivelmente
deslocada.
— Quem fala? — pergunta Malorie.
Ela mal consegue entender que está a usar um telefone.
— Chamo-me Rick. Recebemos a sua mensagem há alguns dias.
Acho que podemos dizer que temos estado ocupados. Como é
que se chama?
— Quem fala?
—  Repito, o meu nome é Rick. Um homem chamado Tom
deixou-nos uma mensagem.
— Tom.
— Sim. Ele vive aí, não vive?
— Eu chamo-me Malorie.
— Você está bem, Malorie? Parece transtornada.
Malorie respira fundo. Acha que nunca mais vai estar bem.
— Sim — responde ela. — Estou bem.
—  Neste momento não temos muito tempo. Está interessada
em sair de onde está? Para um lugar mais seguro? Presumo que a
resposta seja sim.
— Sim — diz Malorie.
— Então é isto que tem de fazer. Tome nota se puder. Tem uma
caneta?
Malorie diz que sim e pega na caneta que Tom mantinha ao lado
da lista telefónica.
Os bebés choram.
— Parece que você tem um bebé consigo?
— Sim.
—  Imagino que seja por esse motivo que quer encontrar um
sítio melhor. Aqui vai a informação, Malorie. Siga o rio.
— O quê?
— Siga o rio. Sabe onde é?
—  Sim… sim. Sei onde �ca. Fica mesmo atrás da casa. A 800
metros do poço, segundo me disseram.
— Muito bem. Siga o rio. É a coisa mais perigosa que pode fazer,
mas imagino que se você e o Tom sobreviveram até aqui, vão
conseguir. Encontrei a vossa morada no mapa e parece que vai
ter de percorrer pelo menos 30 quilómetros. Ora bem, o rio vai-
se dividir…
— Vai o quê?
—  Desculpe. Provavelmente estou a falar demasiado depressa.
Mas estou a guiá-la para um lugar melhor.
— Como assim?
— Bem, para começar não temos janelas. Temos água corrente.
E cultivamos a nossa própria comida. Somos o mais autónomo
que é possível hoje em dia. Temos muitos quartos. Agradáveis. A
maioria de nós pensa que está melhor agora do que antes.
— Quantos são vocês?
— Cento e oito.
Para Malorie, o número podia ser qualquer um. Ou podia ser
in�nito.
—  Mas primeiro deixe-me dizer-lhe como chegar aqui. Seria
uma tragédia se as linhas fossem desativadas antes de saber para
onde ir.
— Está bem.
—  O rio vai dividir-se em quatro canais. O que você quer é o
segundo a contar da direita. Por isso não pode ir junto à margem
direita e esperar acertar. É complicado. E vai ter de abrir os
olhos.
Malorie abana lentamente a cabeça. Não.
Rick continua.
— E é assim que vai saber quando chegar a altura — diz ele. —
Vai ouvir uma gravação. Uma voz. Não podemos passar o dia
sentados à beira do rio. É muito perigoso. Em vez disso, temos lá
um altifalante. É ativado por movimento. Por causa de
dispositivos como esse, conhecemos muito bem o bosque e a
água em volta das nossas instalações. Quando o altifalante for
ativado, a gravação será reproduzida durante 30 minutos, em
loop. Vai ouvi-la. A mesma gravação de quarenta segundos
sucessivamente repetida. É alta. E clara. E quando a ouvir, é
quando vaiter de abrir os olhos.
— Obrigada, Rick. Mas não posso fazer isso.
A sua voz soa apática. Destruída.
—  Eu entendo que é assustador. Claro que sim. Mas suponho
que é o senão. Não há outra forma.
Malorie pensa em desligar. Mas Rick continua.
—  Temos tantas coisas boas a acontecer aqui. Fazemos
progressos todos os dias. Claro que não estamos perto de onde
queríamos chegar. Mas estamos a tentar.
Malorie começa a chorar. As palavras, o que aquele homem lhe
diz — é esperança que lhe dá? Ou será alguma variação mais
profunda da incrível desesperança que já sente?
— Se eu �zer o que está a pedir-me — diz Malorie —, como é
que vos encontro a partir daí?
— Da separação do rio?
— Sim.
—  Temos um sistema de alarme. É a mesma tecnologia usada
para acionar a gravação que vai ouvir. Quando seguir o canal
certo, avançará mais cem metros. Então ativará o nosso alarme.
Uma vedação será baixada. Ficará presa. E nós vamos sair para
ver o que �cou preso na vedação.
Malorie estremece.
— Ah, sim? — pergunta.
— Sim. Você parece cética.
Visões do velho mundo cruzam-lhe a mente, mas com cada
memória vem uma trela, uma corrente e um sentimento
instintivo que lhe diz que este homem e este lugar podem ser
bons, podem ser maus, talvez melhores do que o lugar onde está
agora, podem ser piores, mas ela nunca mais voltará a ser livre.
— Quantas pessoas estão aí? — pergunta Rick.
Malorie escuta o silêncio da casa. As janelas estão partidas. A
porta provavelmente está aberta. Ela tem de se levantar. De
fechar a porta. Cobrir as janelas. Mas parece-lhe que tudo isto
está a acontecer a outra pessoa.
— Três — diz ela, apática. — Se o número mudar…
—  Não se preocupe com isso, Malorie. Não importa quantas
pessoas traz. Temos espaço su�ciente para algumas centenas e
estamos a construir mais. Venha assim que puder.
— Rick, pode vir ajudar-me agora?
Ela ouve Rick respirar fundo.
—  Sinto muito, Malorie. É um risco muito grande. Sou
necessário aqui. Eu percebo que parece egoísmo. Mas
infelizmente vai ter de vir ter connosco.
Malorie assente silenciosamente. No meio do sangue, da perda,
entende que aquele homem tem de preservar a sua segurança.
Mas eu não posso abrir os olhos agora e tenho dois recém-
nascidos no colo que ainda não viram o mundo e a sala cheira a
urina, sangue e morte. O ar entra com força vindo da rua. Está frio
e sei que isso signi�ca que a janela está partida ou que a porta da
rua está aberta. Perigosamente aberta. Portanto, tudo isso me
parece muito bem, Rick, a sério, mas ainda não sei como vou chegar
à casa de banho, quanto mais descer sozinha um rio de 50
quilómetros ou o que quer que você tenha dito.
—  Malorie, vou voltar a procurá-la. Vou ligar novamente. Ou
acha que vai vir já?
— Não sei. Não sei quando poderei ir.
— OK.
— Mas obrigada.
Parece o agradecimento mais sincero da vida de Malorie.
— Volto a ligar daqui a uma semana, Malorie.
— OK.
— Malorie?
— Sim?
— Se eu não ligar, isso pode signi�car que as linhas �nalmente
foram desativadas do nosso lado. Ou pode signi�car que foram
desativadas do seu lado. Acredite em mim quando lhe digo que
vamos estar aqui. Venha quando quiser. Estaremos aqui.
— OK — diz Malorie.
Rick dá-lhe o seu número de telefone. Malorie, usando a caneta,
escreve os números às cegas numa página da lista telefónica
aberta.
— Adeus, Malorie.
— Adeus.
Apenas uma simples e banal conversa ao telefone.
Malorie pousa o auscultador. Depois deixa tombar a cabeça e
chora. Os bebés mexem-se, irrequietos, no seu colo. Ela chora
durante mais 20 minutos, sem parar, até que grita quando ouve
algo a arranhar a porta da cave. É Victor. Ele está a ladrar para o
soltarem. De alguma forma, abençoadamente, ele foi trancado na
cave. Talvez Jules o tenha feito, sabendo o que estava a acontecer.
Depois de voltar a pendurar os cobertores e de fechar as
portas, ela usa uma vassoura para vasculhar cada centímetro da
casa à procura de criaturas. Passam seis horas até que se sente
su�cientemente segura para abrir os olhos, altura em que vê o
que aconteceu na casa enquanto estava a ter o bebé.
Mas antes disso, com os olhos bem fechados, Malorie levanta-
se e atravessa a sala até chegar ao cimo das escadas da cave.
E aí encontra o corpo de Tom.
Não sabe que é ele, pensando antes que é um saco de açúcar
que toca com o pé, e ajoelha-se em frente ao balde de água do
poço e começa o trabalho laborioso de limpar as crianças e de se
limpar a si própria.
Falará com Rick várias vezes nos próximos meses. Mas ao �m
de pouco tempo as linhas acabarão por ser desligadas.
Vai demorar seis meses a limpar a casa dos corpos e do sangue.
Vai encontrar Don na cozinha, a tentar chegar à cave. Como se
tivesse corrido para lá, enlouquecido, a pedir a Gary que lhe
devolva a sanidade. Vai procurar Gary. Em toda a parte. Mas
nunca vai encontrar sinal dele. Vai sempre lembrar-se dele. Lá
fora. No mundo.
A maioria dos habitantes da casa será enterrada num
semicírculo em volta do poço. Sentirá para sempre os altos no
chão, os túmulos que escavou e encheu de olhos vendados,
sempre que vai buscar água para si ou para as crianças.
Tom será enterrado mais perto da casa. O relvado onde leva as
crianças, de olhos vendados, para apanharem ar fresco. Um lugar
onde espera que os seus espíritos corram mais livres.
Passarão quatro anos até ela decidir dirigir-se para o lugar que
Rick descreveu ao telefone.
Mas por agora limita-se a lavar. Agora limita-se a limpar os
bebés. E os bebés choram.
43
A voz gravada de Tom ouve-se novamente.
Ele está a deixar-lhe uma mensagem.
—  … dois setenta e três Shillingham… chamo-me Tom… De
certeza que entende o alívio que sinto ao apanhar o seu
voicemail…
A venda ainda está a um centímetro dos seus olhos fechados.
Ela levanta a mão e aproxima os dedos do pano preto. Por um
momento, ela e a criatura agarram a mesma venda. Esta criatura,
ou outras como ela, roubaram-lhe Shannon, a mãe, o pai e Tom.
Esta coisa, e coisas como ela, roubaram a infância das crianças.
De certa forma, Malorie não tem medo. Elas já lhe �zeram de
tudo.
— Não — diz ela, puxando o pano. — Isto é meu.
Por um momento, nada acontece. Então, algo lhe toca no rosto.
Malorie faz uma careta. Mas é apenas a venda, a regressar ao seu
lugar sobre o nariz e as têmporas.
Vais ter de abrir os olhos.
É verdade. A voz gravada de Tom signi�ca que chegou onde
Rick disse que os canais se separavam. Ele fala como falou em
tempos, na sala de estar da casa, quando costumava dizer, talvez
eles não nos queiram fazer mal. Talvez estejam surpreendidos com
o que nos fazem. É uma sobreposição, Malorie. O mundo deles e o
nosso. Apenas um acidente. Talvez eles nem gostem de nos fazer
mal.
Mas quaisquer que sejam as suas intenções, Malorie tem de
abrir os olhos, e pelo menos um está próximo.
Ela viu as crianças fazerem coisas incríveis. Uma vez, depois de
folhear a lista telefónica, o Rapaz gritou que estava na página
cento e seis. Estava perto. E Malorie sabe que vai precisar de uma
façanha assim, da parte deles, agora mesmo.
Há movimento na água à sua esquerda. A criatura já não está
curiosa com a venda e está a afastar-se, ou está à espera para ver
o que Malorie faz a seguir.
— Rapaz? — diz ela, e não precisa de dizer mais. Ele entende a
pergunta.
A princípio �ca em silêncio. À escuta. Depois responde.
— Está a ir embora, mamã.
Apesar dos pássaros distantes, em guerra, e da voz bonita e
calmante de Tom vinda do altifalante, parece que está a haver um
momento de silêncio. O silêncio que emana daquela coisa.
Onde é que ela está agora?
O barco a remos, liberto, está a ser puxado pela corrente.
Malorie sabe que o som da água à sua frente é o som da divisão.
Não tem muito tempo.
—  Rapaz — diz, com a garganta seca. — Estás a ouvir mais
alguma coisa?
O Rapaz está calado.
— Rapaz?
— Não, mamã. Não ouço nada.
— Tens a certeza? A certeza absoluta?
Ela parece histérica. Independentemente de estar pronta ou
não, chegou o momento.
— Sim, mamã. Estamos sozinhos outra vez.
— Para onde foi?
— Foi embora.
— Em que direção?
Silêncio.Depois:
— Está atrás de nós, mamã.
— Rapariga?
— Sim. Está atrás de nós, mamã.
Malorie está em silêncio.
As crianças disseram-lhe que a coisa está atrás deles.
Se há uma coisa em que pode acreditar no novo mundo, é que
os treinou bem.
Ela con�a neles.
Tem de con�ar.
Agora estão no ponto exato de onde a voz de Tom vem. Parece
que ele está no barco com eles.
Ela engole em seco.
Limpa as lágrimas dos lábios.
Respira fundo.
Então sente-o. Tal como quando deixaram Tom e Jules entrar
novamente em casa. Tal como pensavam que estavam a deixar
Gary do lado de fora.
O Momento Intermédio.
Entre a decisão de abrir os olhos e fazê-lo.
Malorie vira-se para os canais e abre os olhos.
A princípio, tem de os semicerrar. Não por causa da luz, mas
das cores.
Arqueja, levando uma mão à boca.
A mente é esvaziada de pensamentos, preocupações,
ansiedades e esperanças. Não conhece palavras para explicar o
que vê.
É caleidoscópico. In�nito. Magní�co.
Olha, Shannon! Aquela nuvem parece a Angela Markle da nossa
turma!
No mundo antigo, ela poderia ter olhado para um mundo duas
vezes mais brilhante sem ter de semicerrar os olhos. Mas agora, a
beleza fere-a.
Seria capaz de olhar para sempre. Certamente mais alguns
segundos. Mas a voz de Tom impele-a a continuar.
Como se estivesse em câmara lenta, ela inclina-se na direção da
voz, saboreando todas as palavras. É como se ele estivesse ali. A
dizer-lhe que ela está tão perto. Malorie entende que não pode
guardar as cores que vê. Tem de fechar os olhos novamente. Tem
de se separar de toda aquela maravilha, aquele mundo.
Fecha os olhos.
Regressa à escuridão que conhece tão bem agora.
Começa a remar.
À medida que se aproxima do segundo canal a contar da direita,
parece que está a remar com os anos. As recordações. Rema com
a pessoa que era quando descobriu que estava grávida, quando
encontrou Shannon morta, quando respondeu ao anúncio no
jornal. Rema com a pessoa que era quando chegou à casa, quando
se encontrou com os colegas de casa pela primeira vez e quando
concordou em deixar Olympia entrar. Rema com a pessoa que era
quando Gary chegou. Rema consigo própria, numa toalha no
sótão, enquanto Don arrancava os cobertores das janelas do
andar de baixo.
Agora é mais forte. É mais corajosa. Criou sozinha dois �lhos
neste mundo.
Malorie mudou.
O barco balança subitamente ao tocar numa das margens do
canal. Malorie percebe que entraram.
A partir dali ela rema como a pessoa que era quando teve as
crianças sozinha. Quatro anos. A treiná-las. A criá-las. A mantê-
las protegidas de um mundo exterior que deve ter-se tornado
mais perigoso a cada dia. Também rema com Tom e com as
dezenas de coisas que ele disse, as inúmeras coisas que ele fez e a
esperança que a inspirou, que a encorajou e fez com que
acreditasse que era melhor enfrentar a loucura com um plano do
que �car parada e deixá-la levar-nos em pedaços.
O barco avança depressa agora. Rick disse que era apenas uma
centena de metros.
Ela rema com a pessoa que era quando acordou naquela manhã.
A pessoa que pensava que o nevoeiro podia ocultá-los de alguém
como Gary, que ainda podia estar lá, a vê-los descer o rio. Rema
com a pessoa que era quando o lobo a atacou. Quando o homem
do barco enlouqueceu. Quando os pássaros enlouqueceram. E
quando a criatura, a coisa que mais teme, brincou com a sua
única forma de proteção.
A venda.
Pensando no tecido e em tudo o que signi�cou para ela, Malorie
ouve o que parece uma explosão metálica.
O barco a remos bate em algo. Malorie veri�ca rapidamente
como estão as crianças.
É a vedação, percebe. Acionaram o alarme de Rick.
Malorie, com o coração aos saltos, já sem precisar de remar,
vira a cabeça para o céu e grita. É alívio. É raiva. É tudo.
— Estamos aqui — chama em voz alta. — Estamos aqui!
Das margens, ouvem movimento. Algo está a aproximar-se
rapidamente deles.
Malorie aperta os remos. Parece-lhe que as suas mãos vão �car
para sempre naquela posição.
Enquanto se encolhe, algo lhe toca no braço.
— Está tudo bem! — diz uma voz. — Chamo-me Constance. Está
tudo bem. Estou com o Rick.
— Tem os olhos abertos?
— Não. Tenho uma venda.
A mente de Malorie é inundada com sons distantes e familiares.
É esta a voz de uma mulher. Não ouviu outra voz feminina desde
que Olympia enlouqueceu.
— Eu tenho duas crianças comigo. Somos só nós os três.
— Crianças? — pergunta Constance, subitamente entusiasmada.
— Dê-me a mão, vamos tirar-vos do barco. Vou levar-vos a
Tucker.
— Tucker? — Malorie faz uma pausa.
— Sim, eu mostro-lhe, é onde vivemos. As nossas instalações.
Constance ajuda Malorie a agarrar as crianças primeiro. Têm as
mãos dadas enquanto Malorie é puxada para fora do barco.
— Vai ter de me desculpar por estar armada — diz Constance
timidamente.
— Armada?
—  Nem imagina o tipo de animais que já acionaram o nosso
alarme. Está ferida? — pergunta Constance.
— Estou. Sim.
— Nós temos medicamentos. Temos médicos.
Os lábios de Malorie estalam dolorosamente quando os estica
para sorrir como não sorria há mais de quatro anos.
— Medicamentos?
— Sim. Medicamentos, ferramentas, papel. Tantas coisas.
Eles começam a caminhar, lentamente. O braço de Malorie
aperta os ombros de Constance. Não consegue andar sem apoio.
As crianças agarram as calças de Malorie, seguindo-a de olhos
vendados.
—  Dois �lhos — diz Constance, com voz calmante. — Nem
imagino o que você passou hoje.
Ela diz hoje, mas ambas sabem que quer dizer durante anos.
Sobem uma colina e o corpo de Malorie pulsa de dor. Depois, o
piso por baixo deles muda, subitamente. Betão. Um passeio.
Malorie ouve um leve estalido.
— O que é isto?
— Este barulho? — pergunta Constance. — É uma bengala. Mas
já não precisamos dela. Chegámos.
Malorie ouve-a bater rapidamente a uma porta.
Ouve-se o som de metal pesado a abrir e Constance leva-os
para dentro.
A porta fecha-se ruidosamente atrás deles.
Malorie sente cheiros que não sentia há anos. Comida. Comida
cozinhada. Serradura, como se alguém estivesse a construir algo.
Também o ouve. O zumbido ligeiro de uma máquina. Várias
máquinas a zumbir ao mesmo tempo. O ar parece-lhe limpo e
fresco, e o som das conversas ecoa ao longe.
— Já podem abrir os olhos — diz docemente Constance.
— Não! — grita Malorie, agarrando o Rapaz e a Rapariga. — As
crianças não! Eu abro-os primeiro.
Mais alguém se aproxima. Um homem.
— Meu Deus — diz ele. — É mesmo você? Malorie?
Ela reconhece a voz monocórdica e rouca de um homem. Anos
antes, ouviu aquela voz do outro lado de uma linha telefónica.
Debateu consigo mesma, durante quatro longos anos, se ia ou
não voltar a ouvir aquela voz.
É Rick.
Malorie puxa a venda e abre lentamente os olhos,
semicerrando-os contra a luz áspera e branca das instalações.
Estão num grande corredor inundado de luz. É tão brilhante
que Malorie mal consegue manter os olhos abertos. É uma escola
enorme. Os tetos são altos, com candeeiros em forma de cúpula
que fazem com que Malorie se sinta como se estivesse ao ar livre.
As paredes que se unem ao teto estão cobertas de quadros de
anúncios. Mesas. Vitrinas. Não há janelas, mas o ar parece fresco,
como o do exterior. O chão é limpo e frio, o corredor é de tijolo e
muito longo. Voltando-se novamente para Rick, ela olha para o
seu rosto mirrado e entende.
Tem os olhos abertos, mas não se focam em nada. Estão
parados, vidrados e cinzentos, e perderam o brilho há anos. A
cabeleira castanha desgrenhada cobre-lhe as orelhas, mas não
esconde uma cicatriz profunda e desbotada perto do olho
esquerdo. Ele toca-a, apreensivo, como se estivesse a sentir o
olhar de Malorie. Ela repara na bengala de madeira, desgastada e
torta, feita de algum ramo de árvore partido.
— Rick — diz ela, puxando as crianças para junto de si —, você é
cego.
Rick assente.
—  Sim, Malorie. Tal como muitos de nós aqui dentro. Mas a
Constance vê tão bem como você. Já chegámos muito longe.
Malorie olha lentamente para as paredes, absorvendo tudo.
Faixas manuscritas marcam o progresso da sua recuperação, e os
folhetos anunciam tarefas diárias de agricultura,puri�cação de
água e uma lista de avaliações médicas, coberta de marcações.
Os olhos dela �xam-se em algo a um nível superior, e em letras
de latão embutidas num arco de tijolos, lê:
 
ESCOLA DE JANE TUCKER PARA INVISUAIS
 
— O homem… — Rick faz uma pausa. — O que está na gravação,
não está convosco, pois não? — pergunta Rick.
Malorie sente o coração acelerado e engole com di�culdade.
— Malorie? — diz ele, preocupado.
Constance toca no ombro de Rick e sussurra suavemente:
— Não, Rick. Ele não está com eles.
Malorie recua, ainda a agarrar as crianças, movendo-se em
direção à porta.
—  Ele está morto — responde rigidamente, examinando o
corredor à procura de outras pessoas. Sem con�ar. Ainda não.
Rick começa a tatear com a bengala, aproximando-se de
Malorie, estendendo a mão para lhe tocar.
— Malorie, nós contactámos muitas pessoas ao longo dos anos,
mas menos do que imagina. Quem sabe quantos de nós estão
vivos lá fora? E quem sabe quantos estão sãos? Você é a única
pessoa que esperávamos que descesse o rio. Isso não signi�ca
que mais ninguém poderia fazê-lo, claro, mas depois de
pensarmos muito, decidimos que a voz do Tom não só a avisaria
de que tinha chegado, como também diria aos estranhos que
estavam perto de alguma civilização, se fossem travados pela
vedação primeiro. Se eu soubesse que ele já não estava consigo,
teria insistido em usar outra coisa. Por favor, aceite as minhas
desculpas.
Ela observa-o atentamente. A sua voz parece esperançosa,
otimista, até. Há muito tempo que não ouvia um tom de voz como
aquele. Ainda assim, o seu rosto revela o stress e a idade de viver
neste novo mundo, tal como o dela. Tal como os seus
companheiros de casa, anos antes.
Enquanto ele e Constance começam a explicar como funcionam
as instalações, os campos de batatas e de abóboras, a colheita de
bagas no verão, um meio de puri�car a água da chuva, Malorie
deteta uma �gura obscura que se movimenta por trás da cabeça
de Rick.
Um pequeno grupo de jovens mulheres emerge de um quarto
envergando simples roupas azuis claras. Orientam-se com
bengalas, agitando as mãos à sua frente. As mulheres movem-se
de forma silenciosa, fantasmagórica, passando por Malorie, e ela
sente um aperto no estômago quando vê os seus olhos
cavernosos e vazios. Sente-se zonza, nauseada, a ponto de
vomitar.
Onde os olhos das mulheres deviam estar, estão duas cicatrizes
enormes e escuras.
Malorie aperta as crianças com mais força. Elas enterram a
cabeça contra as suas pernas.
Constance estende a mão para ela, mas Malorie afasta-se,
procurando freneticamente a venda no chão, arrastando consigo
as crianças.
— Ela viu-as — diz Constance a Rick.
Ele assente.
— Não se aproximem de nós! — diz Malorie. — Não nos toquem.
Não se aproximem de nós! O que é que está a acontecer aqui?!
Constance olha por cima do ombro e vê as mulheres a deixarem
o corredor. O espaço �ca em silêncio, à exceção da respiração
ofegante de Malorie e dos seus soluços abafados.
—  Malorie — começa Rick —, é como costumávamos fazer as
coisas. Teve de ser. Não havia escolha. Quando chegámos aqui,
estávamos famintos. Como colonos esquecidos numa terra
estrangeira e hostil. Não tínhamos as comodidades que temos
agora. Precisávamos de comida. Por isso caçámos. Infelizmente,
ainda não tínhamos a segurança que temos agora. Certa noite,
enquanto um grupo estava fora, à procura de comida, uma
criatura entrou. Perdemos muitas pessoas naquela noite. Uma
mãe, que num momento estava completamente racional, perdeu
o juízo e matou quatro crianças num acesso de fúria. Demorámos
meses a recuperar, a reconstruir. Prometemos nunca mais correr
esse risco. Para o bem de toda a comunidade.
Malorie olha para Constance, que não tem cicatrizes.
— Não foi uma questão de escolha — continua Rick. — Tivemos
de nos cegar com o que tínhamos, garfos, facas de cozinha, os
nossos dedos. A cegueira, Malorie, era a proteção absoluta. Mas
essa era a maneira antiga de fazer as coisas. Já não fazemos isso.
Ao �m de um ano percebemos que tínhamos forti�cado este
lugar o su�ciente para tirar esse horrível fardo nos nossos
ombros. Até agora, não tivemos falhas de segurança.
Malorie pensa em George e no seu vídeo, nas experiências
falhadas. Lembra-se que quase cegou os �lhos num ato de
desespero.
A Constance vê. Ela não é cega. Se tivesses tido coragem há
quatro anos, pensa Malorie, quem sabe o que te teria acontecido. Às
crianças.
Rick apoia-se em Constance.
— Se tivesse estado cá, entenderia.
Malorie está assustada. Mas entende. E, no seu desespero, quer
con�ar naquelas pessoas. Quer acreditar que levou as crianças
para um lugar melhor.
Virando-se, ela vê o seu re�exo numa janela de um escritório.
Quase não reconhece a mulher que foi, quando estudou a sua
barriga ao espelho na casa de banho, enquanto Shannon gritava
acerca das notícias na televisão na outra sala. O seu cabelo está
fraco, emaranhado e coberto de sujidade e do sangue de tantos
pássaros. O seu couro cabeludo, ferido e vermelho, está visível
em algumas partes. O seu corpo está magro. Os ossos do seu
rosto estão salientes — as suas feições delicadas foram
substituídas por ângulos a�ados — com a pele esticada e
amarelada. Ela abre ligeiramente a boca para revelar um dente
partido. Tem a pele ensanguentada, ferida e pálida. O golpe
profundo do lobo desfeia o seu braço inchado. Ainda assim,
consegue perceber que algo poderoso arde dentro da mulher
re�etida no vidro. Um fogo que a impulsionou durante quatro
anos e meio, que a obrigou a sobreviver, que lhe ordenou que
criasse uma vida melhor para os seus �lhos.
Esgotada, livre da casa, livre do rio, Malorie cai de joelhos. Tira
as vendas dos rostos das crianças. Os olhos delas estão abertos, a
pestanejar e a semicerrarem-se contra as luzes brilhantes. O
Rapaz e a Rapariga olham �xamente, impacientes e inseguros.
Não compreendem onde estão e olham para Malorie à procura de
orientação. Este é o primeiro lugar que viram para além da casa
em toda a sua vida.
Nenhum deles chora. Nenhum se queixa. Olham para Rick, à
escuta.
— Como eu disse — diz Rick cautelosamente —, podemos fazer
muitas coisas aqui. As instalações são muito maiores do que este
corredor leva a crer. Cultivamos a nossa própria comida e
conseguimos capturar alguns animais. Há galinhas que nos dão
ovos frescos, uma vaca que nos dá leite, e duas cabras que
conseguimos criar. Em breve, esperamos ir à procura de mais
animais, para construir uma pequena quinta.
Ela respira fundo e olha para Rick, com esperança, pela
primeira vez.
Cabras, pensa. Para além dos peixes, as crianças nunca viram
um animal vivo.
—  Em Tucker, somos completamente autossu�cientes. Temos
uma equipa médica completamente dedicada a reabilitar os que
estão cegos. Este lugar vai trazer-lhe um pouco de paz, Malorie.
Traz-ma todos os dias.
— E vocês os dois — diz Constance, ajoelhando-se ao lado das
crianças. — Como é que se chamam?
É como se fosse a primeira vez que a questão tinha importância
para Malorie. De repente, há espaço na sua vida para luxos como
nomes.
—  Esta — diz Malorie, pousando uma mão ensanguentada na
cabeça da Rapariga — é a Olympia.
A Rapariga olha rapidamente para Malorie. Cora. Sorri. Agrada-
lhe.
— E este — diz Malorie, apertando o Rapaz contra si — é o Tom.
Ele sorri, tímido e feliz.
De joelhos, Malorie abraça os �lhos e chora lágrimas quentes
que são melhores do que qualquer gargalhada que já sentiu.
Alívio.
As lágrimas correm livremente, suavemente, enquanto pensa
nos companheiros a trabalharem juntos para trazerem água do
poço, a dormirem na sala de estar, a discutirem o novo mundo. Vê
Shannon, a rir, a descortinar formas e �guras nas nuvens, curiosa
com carinho e bondade, a cuidar de Malorie.
Pensa em Tom. A sua mente sempre a trabalhar, a resolver
problemas. Sempre a tentar.
Pensa no amor dele pela vida.
Ao longe, mais ao fundo do longo corredor da escola, outros
emergem de diversas salas. Rick pousa uma mão no ombro de
Constance quando começam a entrar nas instalações. É como se
todo aquele lugar soubesseque deve dar a Malorie e aos �lhos
um momento para si. Como se tudo e todos compreendessem
que, por �m, estão seguros.
Mais seguros.
Agora, ali, abraçada às crianças, parece-lhe que a casa e o rio
são apenas dois lugares míticos, perdidos algures em toda aquela
in�nidade.
Mas sabe que já não estão tão perdidos.
Nem sozinhos.
Agradecimentos
Quando estava a escrever Às Cegas, ouvi mencionar uma criatura
mítica conhecida como o Advogado. Por a notícia ter vindo de um
bom amigo, aceitei conhecer um. A caminho, confessei a esse
amigo que não fazia ideia do que uma pessoa como eu faria com
um Advogado. «Não tenho nada legal para tratar!» Mas o meu
amigo tranquilizou-me — e fez bem. Wayne Alexander fez mais
do que «tratar de coisas legais», quando leu esta história e me
contou uma abundância de histórias suas, cada uma mais
cativante do que a outra.
Pouco tempo depois, o Wayne falou-me de uma segunda
criatura mítica: o Gestor. Senti-me inclinado a confessar: «Mas
eu não tenho nada para gerir!» Sem se deixar deter, o Wayne
apresentou-me a um duo, os Gestores — Candace Lake e Ryan
Lewis que, tal como Wayne, �zeram muito mais do que o seu
título pro�ssional implicava. Não só lemos Às Cegas juntos, como
começámos a brincar com ele, e os nossos e-mails acabaram por
ter um número de palavras superior ao do próprio livro. Pelo
caminho tornámo-nos amigos (o telemóvel do Ryan, em
particular, tornou-se uma espécie de caderno de anotações meu,
inundado de ideias tão pequenas como «Olha! Os armários dos
empregados de limpeza são um bocado assustadores!» e tão
grandiosas como «O que é que achas de um guião de cinema de
mil páginas?»)
Por �m, a Candance e o Ryan começaram a falar de uma
terceira entidade impossível: o Agente. «Mas eu não tenho nada
para ser agenciado!» Misericordiosamente, guiaram-me até uma.
Kristin Nelson ensinou-me rapidamente que, embora fosse bom
ter mil ideias, é igualmente bom tornar uma delas apresentável.
Debruçámo-nos mais sobre Às Cegas. A Kristin e eu alimentámos
o livro, �zemo-lo passar fome e depois alimentámo-lo outra vez.
Vestimos-lhe roupas engraçadas, às vezes mantendo apenas uma
luva ou o chapéu. Outras vezes ele cantava para nós, como os
pássaros de Tom, dizendo-nos quando estava satisfeito.
E quando Às Cegas �cou pronto, a Kristin mencionou uma
quarta e sombria personagem: o Editor. Desta vez tive medo.
«Mas eu tenho algo para editar! Oh não!» Na minha imaginação, o
Editor meditava numa gruta nas montanhas, seguia as regras da
gramática e franzia a sobrancelha à �cção especulativa. Mas claro
que não foi o que aconteceu. Lee Boudreaux é uma artista como o
são os escritores com quem trabalha. E as ideias que sugeriu
foram excelentes, originais e até assustadoras.
Lee e todos na Ecco, OBRIGADO. E Harper Voyager no Reino
Unido, OBRIGADO.
E Dave Simmer, meu amigo, obrigado também, por me
apresentares ao Advogado e por abrires essa porta mítica.
 
Edição original
Título: Bird Box
Texto: © 2014 Josh Malerman
Publicado pela Ecco, uma chancela da HarperCollins, Nova Iorque.
Todos os direitos reservados.
 
Edição em português
Título: Às Cegas
Tradução: Rita Figueiredo
Revisão: Manuela Duarte
Capa: © 2019 Net�ix, Inc. NETFLIX é uma marca registada da Net�ix, Inc. e
seus a�liados.
Paginação eletrónica: Wonder Studio
ISBN edição impressa: 978-989-8869-74-6
ISBN edição ePub: 978-989-564-831-3
 
1.ª edição: março de 2018
Versão 1.0: setembro 2021
 
© 2018 Topseller, uma chancela da 20|20 Editora.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial desta
obra sem prévia autorização da editora.
 
 
Rua Alfredo da Silva, 14 • 2610-016 Amadora • Portugal
Tel. +351 218936000 • GPS 38.742, -9.2304
contacto@topseller.pt • www.topseller.pt • topseller.pt
 
Garantia incondicional de satisfação e qualidade: se não �car satisfeito
com a qualidade deste livro, poderá contactar diretamente a Topseller,
juntando a fatura, e será reembolsado sem mais perguntas. Esta garantia é
adicional aos seus direitos de consumidor e em nada os limita.
 
Às Cegas é uma obra de �cção. Nomes, personagens e episódios resultam
mailto:contacto%40topseller.pt?subject=Ebook%20%C3%80s%20Cegas
http://www.topseller.pt/
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da imaginação do autor ou são usados de forma �ctícia. Qualquer
semelhança com pessoas, acontecimentos ou locais reais é pura
coincidência.
 
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