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Às vezes gostava de ser arquiteto, para poder dedicar um edifício a uma pessoa; uma superestrutura que furasse as nuvens e continuasse a subir em direção ao abismo. E se Às Cegas fosse feito de tijolos em vez de letras, eu organizaria uma cerimónia, convidaria todas as memórias obscuras que tenho e cortaria a �ta com um machado, para todos verem pela primeira vez o nome do edifício. E chamar-se-ia Debbie. Mãe, Às Cegas é para ti. 1 Malorie está parada na cozinha, a pensar. Tem as mãos húmidas. Treme. Bate nervosamente com o dedo do pé no chão de mosaicos estalados. Ainda é cedo, o sol mal espreita sobre a linha do horizonte. Enquanto observa a luz débil do astro-rei a conferir às pesadas cortinas um tom ligeiramente menos preto, pensa: Nevoeiro. As crianças dormem sob estruturas de arame envoltas em tecido negro ao fundo do corredor. Talvez a tenham escutado há momentos, de joelhos no pátio. Qualquer que fosse o ruído que fez deve ter sido captado pelos microfones e transmitido pelos ampli�cadores ao lado das camas delas. Olha para as mãos e deteta um brilho muito subtil sob a luz das velas. Sim, estão húmidas. Ainda estão cobertas de orvalho matinal. Agora, na cozinha, Malorie respira fundo antes de apagar a vela. Olha em volta para o pequeno espaço, reparando nos utensílios enferrujados e nos pratos rachados. A caixa de cartão que é usada como caixote de lixo. As cadeiras, algumas reparadas com cordel. As paredes estão sujas, dos pés e das mãos das crianças. Mas há também nódoas antigas. A parte inferior das paredes do corredor está descolorada, púrpuras profundos que desbotaram e se tornaram castanhos com o passar do tempo. São de sangue. A alcatifa da sala de estar também está manchada, por mais que Malorie esfregue. Não há na casa químicos que ajudem a limpá-la. Há muito tempo, Malorie encheu os baldes com água do poço e, usando o casaco de um fato, tentou remover todas as manchas da casa. Mas elas recusaram-se a sair. Mesmo as que se revelaram menos resistentes permaneceram, talvez uma sombra do tamanho original, mas ainda horrivelmente visíveis. Uma caixa de velas esconde uma nódoa no hall. O sofá da sala está num ângulo estranho, movido para ali para ocultar duas manchas que parecem duas cabeças de lobo aos olhos de Malorie. No segundo andar, junto às escadas do sótão, uma pilha de casacos ba�entos esconde arranhões púrpura, profundamente cravados no rodapé. A três metros dali está a nódoa mais negra da casa. Ela não usa a parte mais afastada do segundo andar da casa porque não consegue passar por ela. Esta foi em tempos uma boa casa num agradável subúrbio de Detroit. Em tempos foi uma casa preparada para uma família, uma casa segura. Há menos de meia década um agente imobiliário tê-la-ia mostrado com orgulho. Mas naquela manhã as janelas estão tapadas com cartão e tábuas. Não há água corrente. Um grande balde de madeira está pousado na bancada da cozinha. Cheira a velho. Não há brinquedos convencionais para as crianças. Pedaços de uma cadeira de madeira foram esculpidos na forma de �guras humanas em miniatura, com rostos pequenos pintados. Os armários estão vazios. Não há quadros nas paredes. Passam �os por baixo da porta das traseiras até aos quartos do primeiro andar, onde os ampli�cadores alertam Malorie e as crianças para quaisquer sons vindos do lado de fora da casa. Os três vivem assim. Passam longos períodos sem ir à rua. Quando o fazem, vão de olhos vendados. As crianças nunca viram o mundo fora da sua casa. Nem sequer pelas janelas. E Malorie não olha lá para fora há mais de quatro anos. Quatro anos. Ela não tem de tomar esta decisão hoje. É outubro no Michigan. Está frio. Uma viagem de 32 quilómetros pelo rio será difícil para as crianças. Talvez ainda sejam demasiado pequenas. E se uma delas cair à água? O que faria Malorie, com os olhos vendados? Um acidente, pensa Malorie. Que horrível. Depois de tantas di�culdades, depois de toda esta sobrevivência, morrer por causa de um acidente. Malorie olha para as cortinas. Começa a chorar. Quer gritar com alguém. Quer implorar a alguém que possa ouvi-la. Isto é injusto, diria. Isto é cruel. Olha por cima do ombro, para a entrada da cozinha e para o corredor que conduz ao quarto das crianças. Do outro lado da ombreira sem porta, as crianças dormem profundamente, cobertas com tecido negro, escondidas da luz e da vista. Não se mexem. Não dão o menor sinal de estarem acordadas. No entanto, podem estar a escutá-la. Às vezes, de tanto as pressionar para ouvirem, de toda a importância que atribui aos seus ouvidos, Malorie acredita que elas conseguem ouvir os seus pensamentos. Podia esperar pelos dias cheios de sol, pelo calor, para dedicar mais cuidado ao barco. Podia informar as crianças, ouvir o que têm a dizer. As sugestões delas podiam ser boas. Têm apenas 4 anos, mas foram treinadas para escutar. Capazes de ajudarem a guiar um barco pilotado às cegas. Malorie não conseguiria fazer a viagem sem elas. Precisa dos seus ouvidos. Ser-lhe-ia igualmente útil o conselho delas? Aos 4 anos de idade, terão elas algo a dizer acerca de quando é a melhor altura para deixarem a casa para sempre? Deixando-se cair numa cadeira da cozinha, Malorie esforça-se para conter as lágrimas. O pé descalço continua a bater no linóleo desbotado. Lentamente, olha para o cimo das escadas da cave. Ali falou em tempos com um homem chamado Tom acerca de um homem chamado Don. Olha para o lava-loiça, para onde Don em tempos carregou baldes de água do poço, a tremer do frio da rua. Inclinando-se para a frente, consegue ver o hall, onde Cheryl costumava preparar a comida para os pássaros. E entre ela e a porta da rua está a sala, silenciosa e escura, onde há demasiadas memórias de demasiadas pessoas para serem digeridas. Quatro anos, pensa, e tem vontade de esmurrar a parede. Malorie sabe que quatro anos podem facilmente tornar-se oito. E oito podem igualmente tornar-se doze. E nessa altura as crianças serão adultos. Adultos que nunca viram o céu. Que nunca olharam por uma janela. Quais seriam as consequências, para as suas mentes, de viverem como vitelos durante 12 anos? Malorie pergunta-se se existirá um ponto em que as nuvens no céu se tornam irreais e que o único lugar onde se sentem em casa é atrás do tecido preto das suas vendas. Malorie engole em seco e imagina-se a criá-los sozinha até à adolescência. Seria capaz de o fazer? Seria capaz de os proteger durante mais dez anos? Conseguiria protegê-los durante tempo su�ciente para eles serem capazes de a proteger a ela? E para quê? Para que tipo de vida está ela a protegê-los? És uma má mãe, pensa. Por não encontrar uma forma de os deixar conhecer a vastidão do céu. Por não encontrar uma forma de os deixar correr livremente no pátio, na rua, no bairro de casas vazias e de carros estacionados e desgastados pelo tempo. Ou por os ter deixado espreitar uma única vez para o espaço, quando o céu �ca preto e �ca súbita e maravilhosamente polvilhado de estrelas. Estás a salvar a vida deles para uma vida que não vale a pena viver. Malorie vê as cortinas ganharem um tom ainda mais claro através das lágrimas que lhe toldam a visão. Se há nevoeiro lá fora, não será por muito mais tempo. E se existe a hipótese de este a poder ajudar, se a ocultar e às crianças enquanto se dirigem para o rio, para o barco a remos, então tem de as acordar agora. Dá uma palmada na mesa da cozinha e limpa as lágrimas dos olhos. Levantando-se e saindo da cozinha, Malorie atravessa o corredor e entra no quarto das crianças. — Rapaz! — grita. — Rapariga! Acordem. O quarto está às escuras. A única janela tem tantos cobertores a tapá-la que a luz do sol não entra nem quando este atinge o zénite. Há dois colchões, um em cada lado do quarto. Por cima deles há dosséis negros. Em tempos, o arame que sustenta o tecido foi usado para delimitar um pequeno jardim junto ao poço no quintal da casa. Mas durante os últimos quatro anos serviu de armadura, protegendo as crianças não apenas do que podia vê- las, mas também do queelas podiam ver. Por baixo dele, Malorie escuta movimento e ajoelha-se para soltar o arame que está preso a pregos cravados no chão de madeira. Já está a tirar do bolso as vendas quando as duas crianças a �tam com expressões sonolentas e surpreendidas. — Mamã? — Levantem-se. Agora. A mamã precisa que sejam rápidos. As crianças reagem rapidamente. Não choramingam nem se queixam. — Onde vamos? — pergunta a Rapariga. Malorie estende-lhe uma venda e diz: — Põe isto. Vamos ao rio. Os dois pegam nas vendas e apertam o tecido negro que lhes cobre os olhos. São versados naquele gesto. Especialistas, se é que aos quatro anos podem ser especialistas em alguma coisa. Malorie sente-se destroçada. São apenas crianças e deviam estar curiosos. Deviam estar a perguntar por que motivo iam ao rio naquele dia — a um rio onde nunca estiveram. Mas em vez disso fazem o que lhes é dito. Malorie não põe a sua venda por enquanto. Primeiro vai preparar as crianças. — Traz o teu puzzle — diz à Rapariga. — E tragam ambos os vossos cobertores. O entusiasmo que sente é impossível de conter. Parece mais histeria. Indo de divisão em divisão, Malorie procura coisas, pequenos objetos, de que possam precisar. De repente, sente-se horrivelmente preparada. Sente-se insegura, como se a casa e o chão por baixo dela tivessem desaparecido, expondo-a completamente ao mundo exterior. No entanto, na obstinação do momento, agarra-se ao conceito da venda. Independentemente das ferramentas que decida levar, dos objetos domésticos que possam ser usados como armas, sabe que as vendas são a sua proteção mais forte. — Tragam os vossos cobertores! — Lembra-lhes, ouvindo os dois pequenos corpos a prepararem-se. Depois entra no quarto para os ajudar. O Rapaz, pequeno para a idade, mas dono de uma força que orgulha Malorie, está a tentar decidir entre duas camisas que são ambas demasiado grandes para ele. Em tempos pertenceram a um adulto, há muito desaparecido. Malorie escolhe por ele e observa-o enquanto o seu cabelo negro desaparece para dentro do tecido e depois volta a emergir pela gola. No seu estado ansioso, Malorie reconhece que o Rapaz cresceu um pouco recentemente. A Rapariga, de tamanho médio para a idade, está a tentar en�ar um vestido pela cabeça, um vestido que ela e Malorie costuraram a partir de um lençol velho. — O ar está frio, Rapariga. Um vestido não serve. A Rapariga faz uma careta; tem o cabelo louro despenteado do sono. — Eu também visto umas calças, mamã. E temos os nossos cobertores. A raiva apodera-se de Malorie. Não quer resistência. Não hoje. Nem mesmo se a Rapariga tiver razão. — Hoje não há vestidos. O mundo lá fora, os centros comerciais e restaurantes vazios, os milhares de veículos sem uso, os produtos esquecidos nas prateleiras abandonadas das lojas, tudo exerce pressão sobre a casa. Tudo sussurra aquilo que os aguarda. Ela tira um casaco do roupeiro no pequeno quarto ao fundo do corredor. Depois sai do quarto por aquela que sabe que será a última vez. — Mamã — diz a Rapariga, encontrando-a no corredor. — Precisamos das buzinas das bicicletas? Malorie respira fundo. — Não — responde. — Vamos estar todos juntos. Durante toda a viagem. Quando a Rapariga volta a entrar no quarto, Malorie re�ete no quão patético é que as buzinas de bicicletas sejam o maior entretenimento das crianças. Brincaram com elas durante anos. Toda a sua vida, a buzinar de lados opostos da sala. O som forte costumava irritar Malorie. Mas nunca lhas tirou. Nunca as escondeu. Mesmo nos momentos ansiosos do início da maternidade, Malorie compreendia que naquele mundo, qualquer coisa que �zesse rir as crianças era uma coisa boa. Mesmo quando as buzinas serviam para assustar Victor. Oh, as saudades que Malorie tem daquele cão! Nos primeiros tempos a criar os �lhos sozinha, as suas fantasias de ir para o rio incluíam Victor, o border collie, sentado ao seu lado no barco a remos. Victor avisá-la-ia se um animal se aproximasse. Talvez conseguisse mesmo afugentar algo. — OK — diz ela, com o corpo ágil apoiado na ombreira da porta do quarto das crianças. — Pronto. Agora vamos. Houve alturas, tardes plácidas, noites de tempestade, em que Malorie lhes disse que este dia podia chegar. Sim, já lhes tinha falado do rio. De uma viagem. Tivera o cuidado de não lhe chamar a sua «fuga» porque não conseguia suportar a ideia de eles viverem o seu dia a dia a pensar que havia algo de que fugir. Em vez disso, falou-lhes de uma manhã futura em que os acordaria, apressada, a exigir que se preparassem para deixar a casa para sempre. Sabia que eles conseguiam detetar a sua incerteza, da mesma forma que conseguiam ouvir uma aranha a subir pelo vidro de uma janela por trás da cortina. Durante anos, mantiveram um pequeno saco de comida no armário da cozinha, guardado até se estragar, sendo sempre substituído, sempre reabastecido, a prova de Malorie de que podia acordá-los como lhes dissera que faria. Sabem, pensava, estudando nervosamente as cortinas, a comida no armário faz parte de um plano. E agora esse dia chegou. Nesta manhã. Nesta hora. O nevoeiro. O Rapaz e a Rapariga dão um passo em frente e Malorie ajoelha-se diante deles. Veri�ca as vendas. Estão bem �xas. Naquele momento, olhando de um pequeno rosto para o outro, Malorie tem a perfeita consciência de que a sua partida começou �nalmente. — Ouçam-me — diz-lhes, agarrando-lhes os queixos. — Hoje vamos subir o rio num barco a remos. Pode ser uma viagem longa. Mas é crucial que ambos façam tudo o que eu disser. Entendem? — Sim. — Sim. — Está frio lá fora. Têm os vossos cobertores. Têm as vossas vendas. Neste momento não precisam de mais nada. Entendem? — Sim. — Sim. — Não podem tirar a venda, seja em que circunstância for.Se o �zerem, vou magoar-vos. Entendem? — Sim. — Sim. — Preciso dos vossos ouvidos. Preciso que ambos escutem o mais atentamente que conseguirem. No rio, precisam de escutar o que está para lá da água, para lá do bosque. Se ouvirem um animal no bosque, digam-me. Se ouvirem alguma coisa na água, digam-me. Entendido? — Sim. — Sim. — Não façam perguntas que não tenham a ver com o rio. Tu vais estar sentado na parte da frente — explica, dando um toque no Rapaz. Depois dá um toque na Rapariga. — E tu vais estar sentada na parte de trás. Quando chegarmos ao barco, eu vou guiar-vos para esses lugares. Eu vou sentada no meio, a remar. Não quero que falem um com o outro dos vossos lugares no barco a menos que ouçam algo no bosque. Ou no rio. Entendem? — Sim. — Sim. — Não vamos parar por nenhum motivo. Não enquanto não chegarmos ao nosso destino. Eu digo-vos quando chegar a altura. Se tiverem fome, comam deste saco. Malorie encosta o saco às costas das pequenas mãos das crianças. — Não adormeçam. Não adormeçam. Hoje, mais do que nunca, preciso dos vossos ouvidos. — Vamos levar os microfones? — pergunta a Rapariga. — Não. Enquanto fala, Malorie olha de um rosto vendado para o outro. — Quando sairmos desta casa, vamos dar as mãos e caminhar ao longo do caminho até ao poço. Vamos atravessar a pequena clareira no bosque atrás da nossa casa. O caminho até ao rio está coberto de ervas altas. Podemos ter de nos pôr de gatas em algumas partes e, se isso acontecer, quero que se agarrem ao meu casaco ou ao casaco um do outro. Entendido? — Sim. — Sim. Parecem assustados? — Ouçam. Vamos a um lugar onde nenhum de vocês esteve. Vamos para longe, tão longe desta casa como nunca fomos. Lá fora há coisas que vos podem fazer mal, que podem fazer mal à mamã, se não me ouvirem, agora, esta manhã. As crianças estão em silêncio. — Compreendem? — Sim. — Sim. Malorie treinou-os bem. — Muito bem — diz ela, com um toque de histeria na voz. — Está na hora. Vamos partir agora. Vamos partir. Ela pressiona as cabeças das crianças contra a sua testa. Depois dá a mão a cada uma delas. Atravessam rapidamente a casa. Na cozinha, Malorie, trémula, limpa os olhos e tira a sua própria venda do bolso. Aperta-a bem atrás na cabeça, no seu longo cabelo escuro. Para, com a mão na maçaneta daporta, da porta que se abre para o caminho que fez para ir buscar inúmeros baldes de água. Está prestes a deixar para trás a casa. A realidade deste momento é avassaladora. Quando abre a porta, o ar frio entra e Malorie dá um passo em frente, com a mente turva de terror e de cenários demasiado assustadores para mencionar à frente das crianças. Gagueja enquanto fala, quase a gritar. — Deem-me a mão. Os dois. O Rapaz pega na mão esquerda de Malorie. A Rapariga entrelaça os dedos na direita. Vendados, saem da casa. O poço está a 20 metros de distância. Pequenos pedaços de madeira, em tempos pertencentes a molduras, ladeiam o caminho, ali colocados para os guiarem. Ambas as crianças tocaram na madeira com a biqueira dos sapatos inúmeras vezes. Malorie disse-lhes certa vez que a água era o único medicamento de que algum dia iam precisar. Por causa disto, sabe Malorie, as crianças sempre respeitaram o poço. Nunca se queixaram por terem de ir buscar água com ela. Junto ao poço, o chão é irregular sob os seus pés. Parece-lhes pouco natural, macio. — Aqui está a clareira — grita Malorie. Ela guia cuidadosamente as crianças. Um segundo caminho começa a dez metros do poço. A entrada deste caminho é estreita e bifurca para dentro do bosque. O rio �ca a menos de cem metros dali. No bosque, Malorie larga momentaneamente as mãos das crianças para tatear a entrada estreita. — Agarrem-se ao meu casaco! Tateia ao longo dos ramos até encontrar uma blusa sem mangas atada a uma árvore à entrada do caminho. Ela mesma a atou ali há mais de três anos. O Rapaz agarra o bolso dela e sente a Rapariga a agarrar o seu. Malorie grita-lhes enquanto caminha, perguntando constantemente se estão a segurar os casacos um do outro. Os ramos das árvores batem-lhe na cara. Ela não grita. Em pouco tempo chegam à marca que Malorie cravou na terra. A perna lascada de uma cadeira da cozinha, espetada ali, no centro do caminho, para a fazer tropeçar, para a reconhecer. Descobrira o barco a remos quatro anos antes, atracado a quatro casas de distância da sua. Passou um mês desde a última vez que o foi ver, mas acredita que ainda lá está. Apesar disso, é difícil não imaginar o pior. E se alguém o tiver apanhado primeiro? Outra mulher, não muito diferente dela, a viver a cinco casas de distância na direção oposta, a usar todos os dias de quatro anos para reunir coragem para fugir. Uma mulher que em algum momento tropeçou por aquela mesma margem escorregadia e tateou o mesmo ponto de salvação, a ponta de aço do barco a remos. O ar faz arder os arranhões no rosto de Malorie. As crianças não reclamam. Isto não é uma infância, pensa Malorie, guiando-as para o rio. É então que o ouve. Antes de chegar à doca, ouve o barco a remos a balançar na água. Para e veri�ca as vendas das crianças, apertando ambas. Guia-as para as tábuas de madeira. Sim, pensa, ainda cá está. Da mesma forma que os carros ainda estão estacionados na rua em frente à sua casa. Da mesma forma que as casas da sua rua ainda estão vazias. Está frio, fora do bosque, longe da casa. O som da água tem tanto de assustador como de excitante. Ajoelhando-se onde crê que o barco deve estar, ela larga as mãos das crianças e tateia a ponta de aço. As pontas dos seus dedos encontram primeiro a corda que o prende. — Rapaz — diz, puxando a ponta gelada do barco para a doca. — Na parte da frente. Entra para a parte da frente. — Ela ajuda-o. Quando ele está instalado, segura-lhe no rosto com as duas mãos e diz novamente: — Escuta. Para além da água. Escuta. Diz à Rapariga para �car na doca enquanto desata às cegas a corda, antes de subir para o banco do meio. Ainda meio levantada, ajuda a Rapariga a subir a bordo. O barco dá um sacão violento e Malorie aperta a mão da Rapariga com demasiada força. A Rapariga não grita. Há folhas, paus e água no fundo do barco. Malorie vasculha no meio deles em busca dos remos que escondeu no lado direito do barco. Os remos estão frios. Molhados. Cheiram a bolor. Ela prende-os nos encaixes de aço. Parecem-lhe fortes, resistentes quando usa um para se afastar da doca. E então… Estão no rio. A água está calma. Mas há sons. Movimento no bosque. Malorie pensa no nevoeiro. Espera que tenha ocultado a sua fuga. Mas o nevoeiro vai dissipar-se. — Crianças — diz Malorie, respirando audivelmente —, escutem. Por �m, depois de quatro anos de espera, de treino e de busca pela coragem para partir, rema para longe da doca, da margem e da casa que a protegeu e aos seus �lhos durante o que lhe pareceu uma vida. 2 Faltam nove meses para as crianças nascerem. Malorie vive com a irmã, Shannon, numa modesta casa alugada que nenhuma das duas decorou. Mudaram-se para ali há três semanas, apesar das preocupações da amiga. Tanto Malorie como Shannon são mulheres populares e inteligentes, mas na companhia uma da outra têm tendência para se tornarem con�ituosas, como se viu no dia em que levaram as suas caixas para dentro da casa. — Estava a pensar que faz mais sentido o quarto maior ser para mim — disse Shannon, no patamar do segundo piso. — Uma vez que tenho a cómoda maior. — Oh, vá lá — respondeu Malorie, segurando uma caixa de livros por ler. — A janela desse quarto é melhor. As irmãs debateram o assunto durante muito tempo, cautelosamente tentando não dar razão aos amigos e familiares, começando a discutir logo na primeira tarde. Por �m, Malorie concordou que deviam atirar uma moeda ao ar, que saiu em favor de Shannon, resultado que até hoje Malorie acredita ter sido manipulado. Neste momento, Malorie não está a pensar nas pequenas coisas que a irmã faz que a enlouquecem. Não está a limpar, silenciosamente, a confusão de Shannon, a fechar as portas dos armários, a seguir o seu rasto de camisolas e meias espalhadas pelos corredores. Não está a bufar, passivamente, a abanar a cabeça enquanto liga a máquina de lavar loiça ou enquanto afasta uma das caixas por abrir de Shannon do centro da sala de estar, onde as estorva às duas. Em vez disso, está de pé diante do espelho da casa de banho do primeiro andar, nua, a estudar a sua barriga no re�exo. Não é a primeira vez que te falha o período, diz a si própria. Mas não serve de consolo, porque há semanas que se sente ansiosa, sabendo que devia ter tido mais cuidado com Henry Martin. Tem o cabelo negro caído sobre os ombros. Os lábios estão voltados para baixo numa curiosa expressão triste. Pousa as mãos na barriga lisa e acena lentamente com a cabeça. Independentemente do que diga a si própria, sente-se grávida. — Malorie! — grita Shannon da sala. — O que é que estás a fazer aí? Malorie não responde. Vira-se de lado e inclina a cabeça. Os seus olhos azuis parecem cinzentos sob a luz pálida da casa de banho. Planta a palma de uma mão no linóleo cor-de-rosa do lavatório e arqueia as costas. Está a tentar encolher a barriga, como se isso pudesse provar que não há vida lá dentro. — Malorie! — chama novamente Shannon. — Mais uma notícia na televisão! Aconteceu algo no Alasca. Malorie ouve a irmã, mas naquele momento não se importa muito com o que acontece no mundo exterior. Nos últimos dias, a Internet explodiu com uma notícia a que as pessoas estavam a chamar «o Relatório Rússia». Neste, um homem que seguia no lugar do passageiro de um camião em trânsito ao longo de uma autoestrada coberta de neve nos arredores de São Petersburgo pediu ao amigo, que ia ao volante, para encostar e atacou-o, arrancando-lhe os lábios com as unhas. Depois suicidou-se na neve, usando uma serra que havia no compartimento de carga do camião. Uma história horrível, mas cujo destaque Malorie atribui à forma aparentemente absurda que a Internet tem de tornar famosos acontecimentos aleatórios. Mas depois surgiu um novo caso. Circunstâncias semelhantes. Desta vez em Yakutsk, a cerca de 8000 quilómetros a leste de São Petersburgo. Neste, uma mãe, de acordo com todos os testemunhos «estável», enterrou os �lhos vivos no quintal da família antes de se suicidar com pedaços a�ados de pratos partidos. E um terceiro caso, em Omsk, naRússia, quase 3000 quilómetros a sudoeste de São Petersburgo, surgiu online e rapidamente se tornou um dos assuntos mais discutidos em todas as redes sociais. Desta vez havia vídeo. Enquanto tivera estômago, Malorie vira um homem a brandir um machado, com a barba vermelha de sangue, a tentar atacar o homem que estava a �lmá-lo. Por �m conseguiu. Mas Malorie não viu essa parte. Tentou deixar de seguir o assunto. Shannon, porém, sempre mais dramática, insistia em transmitir-lhe as notícias assustadoras. — Alasca — repete Shannon do outro lado da porta da casa de banho. — É na América, Malorie! O cabelo louro de Shannon denuncia as raízes �nlandesas da mãe das duas. Malorie parece-se mais com o pai: olhos fortes e fundos, e a pele suave e clara de alguém do Norte. Tendo sido criadas na Península Superior, ambas tinham sonhado viver no sul do estado, perto de Detroit, onde imaginavam que havia festas, concertos, oportunidades de emprego e homens em abundância. Esta última parte não se revelou frutuosa para Malorie até conhecer Henry Martin. — Porra — grita Shannon. — Também pode ter havido algo no Canadá. Isto é grave, Malorie. O que é que estás aí a fazer? Malorie abre a torneira e deixa a água fria correr-lhe sobre os dedos. Molha a cara. Olhando para o espelho, pensa nos pais, ainda na Península Superior. Ainda não sabem de Henry Martin. Ela nem sequer falou com ele desde a única noite que passaram juntos. No entanto, ali está, provavelmente ligada a ele para sempre. Subitamente, a porta da casa de banho abre-se. Malorie estende a mão para uma toalha. — Credo, Shannon. — Ouviste o que eu disse, Malorie? A notícia está por toda a parte. As pessoas estão a começar a dizer que está relacionado com a visão de algo. Não é estranho? Ainda agora ouvi a CNN dizer que é a única constante em todos os casos. Que as vítimas viram algo antes de atacarem as pessoas e de se suicidarem. Dá para acreditar? Dá? Malorie vira-se lentamente para a irmã. O seu rosto está inexpressivo. — Estás bem, Malorie? Não estás com boa cara. Malorie começa a chorar. Morde o lábio inferior. Agarrou a toalha, mas não se embrulhou nela. Ainda está de pé diante do espelho como se estivesse a examinar a sua barriga nua. Shannon repara. — Oh, merda — diz Shannon. — Estás com medo de estar… Malorie já está a acenar que sim. As irmãs aproximam-se na casa de banho cor-de-rosa e Shannon abraça Malorie, acariciando-lhe o cabelo negro, acalmando-a. — OK — diz. — Vamos ter calma. Vamos fazer um teste. É isso que as pessoas fazem. OK? Não te preocupes. Aposto que mais de metade das pessoas que fazem testes descobrem que não estão grávidas. Malorie não responde. Limita-se a soltar um suspiro profundo. — OK — diz Shannon. — Vamos lá. 3 Que distância alcança a audição de uma pessoa? Remar de olhos vendados é ainda mais difícil do que Malorie imaginara. O barco já chocou com as margens muitas vezes e �cou preso durante vários minutos, tempo em que ela se viu cercada por visões de mãos invisíveis que se estendem para as vendas que cobrem os olhos das crianças. Dedos que emergem e voltam a desaparecer na água, na lama onde o rio encontra a terra. As crianças não gritaram, não se queixaram. São demasiado pacientes para isso. Mas até onde alcança a audição de uma pessoa? O Rapaz ajudou-a a soltar o barco, levantando-se e empurrando um tronco coberto de musgo, e agora Malorie rema novamente. Apesar destes primeiros percalços, Malorie sente que estão a avançar. É revigorante. Os pássaros cantam nas árvores agora que o sol nasceu. Os animais andam por entre a folhagem nos bosques que os rodeiam. Os peixes saltam da água, provocando pequenos respingos que eletri�cam os nervos de Malorie. Tudo isto é ouvido. Nada é visto. Desde que nasceram que as crianças foram treinadas para compreender os sons da �oresta. Em bebés, Malorie tapava-lhes os olhos com t-shirts e levava-os ao limiar do bosque. Ali, apesar de saber que eram demasiado pequenos para entenderem o que lhes dizia, descrevia-lhes os sons da �oresta. O restolhar de folhas, dizia. Um animal pequeno, como um coelho. Sempre consciente de que podia ser algo muito pior. Pior ainda do que um urso. Nesses dias, e nos dias que se seguiram, quando as crianças já tinham idade su�ciente para aprenderem, Malorie treinou-se como as tinha treinado a elas. Mas nunca ouviria tão bem como elas haviam de ouvir um dia. Tinha 24 anos quando conseguiu perceber a diferença entre uma gota de chuva e uma batida leve na janela, contando apenas com a audição. Ela tinha sido educada com visão. Isso faria dela uma professora desadequada? Quando levava folhas para dentro de casa e pedia às crianças que identi�cassem a diferença entre ela a pisar uma e a apertar uma na mão, teriam sido as lições certas a dar-lhes? Até onde alcança a audição de uma pessoa? Malorie sabe que o Rapaz gosta de peixes. Frequentemente apanhava um no rio, com o auxílio de uma cana de pesca ferrugenta feita com um guarda-chuva que tinha encontrado na cave. O Rapaz gostava de o ver agitar-se no balde do poço na cozinha. Também começara a desenhá-los. Malorie lembra-se de pensar que teria de apanhar todos os animais do planeta e levá- los para casa para as crianças saberem com o que se pareciam. De que outras coisas gostariam se tivessem a oportunidade de as ver? O que acharia a Rapariga de uma raposa? De um guaxinim? Até os carros eram um mito que tinha como única referência os desenhos amadores de Malorie. Botas, arbustos, jardins, montras, prédios, ruas e estrelas. Teria de recriar o planeta para eles. Mas o melhor que conseguiram foram peixes. E o Rapaz adorava-os. Agora, no rio, ouvindo uma nova agitação na água, ela tem medo que a curiosidade o leve a tirar a venda. Até onde alcança a audição de uma pessoa? Malorie precisa que as crianças ouçam o que existe nas árvores, no vento, nas margens de terra que levam a um mundo inteiro de criaturas vivas. O rio é um an�teatro, pensa Malorie, enquanto rema. Mas também é um túmulo. As crianças têm de escutar. Malorie não consegue afastar visões de mãos a surgirem da escuridão, a agarrarem as cabeças das crianças, a desatarem deliberadamente aquilo que as protege. Respirando com di�culdade e a suar, Malorie reza para que seja possível alcançar a segurança con�ando na audição. 4 Malorie conduz. As irmãs usam o seu carro, um Ford Festiva de 1999, porque tem mais gasolina. Estão a apenas cinco quilómetros de casa, mas já há sinais de que as coisas mudaram. — Olha! — diz Shannon, apontando para várias casas. — Cobertores a tapar as janelas. Malorie está a tentar prestar atenção ao que Shannon diz, mas os seus pensamentos regressam constantemente à sua barriga. A explosão do Relatório Rússia nos media preocupa-a, mas não o leva tão a sério como a irmã. As outras pessoas na Internet estão mais céticas, tal como Malorie. Ela leu blogues, especialmente o Tolices, que publica fotogra�as de pessoas a tomarem precauções e depois adiciona-lhes legendas cómicas. À medida que Shannon alternadamente aponta para fora do carro e protege os olhos, Malorie lembra-se de uma delas. Era uma mulher a tapar a janela com um cobertor. Por baixo, a legenda dizia: Querido, o que é que achas de mudarmos a cama para aqui? — Acreditas nisto? — pergunta Shannon. Malorie assente em silêncio. Vira à esquerda. — Vamos — diz Shannon. — Tens de admitir que isto está a tornar-se interessante. Em parte, Malorie concorda. É interessante. No passeio, um casal passa com o jornal levantado à altura das têmporas. Alguns condutores têm os espelhos retrovisores virados para cima. Distraidamente, Malorie pergunta-se se estes são os sinais de uma sociedade a começar a acreditar que se passa algo de errado. E se sim, o quê? — Não entendo — diz Malorie, em parte tentando distrair-se dos seus pensamentos e em parte ganhando algum interesse. — O que é que não entendes? — Eles acham que não é seguro olhar para a rua? Olhar para parte nenhuma? — Sim — responde Shannon. — É exatamente isso que acham.É o que tenho estado a dizer-te. Malorie diz a si própria que Shannon sempre foi muito dramática. — Bem, parece-me uma loucura — responde. — E olha para aquele tipo! Shannon olha para onde Malorie está a apontar. Depois desvia o olhar. Um homem de fato caminha com uma bengala de cego. Tem os olhos fechados. — Ninguém tem vergonha de se comportar assim — diz Shannon, com o olhar �xo nos sapatos. — É para veres o quanto isto se tornou estranho. Quando entram na Stokely’s Drugs, Shannon tem uma mão levantada à frente dos olhos. Malorie repara e depois olha para o outro lado do parque de estacionamento. Os outros estão a fazer o mesmo. — O que é que tens medo de ver? — pergunta ela. — Ainda ninguém sabe a resposta. Malorie já viu o grande letreiro amarelo da drogaria mil vezes. Mas nunca lhe pareceu tão pouco convidativo. Vamos lá comprar o teu primeiro teste de gravidez, pensa, saindo do carro. As irmãs atravessam o parque de estacionamento. — Acho que estão onde diz medicamentos — sussurra Shannon, abrindo a porta da loja, ainda de olhos tapados. — Shannon, para. Malorie dirige-se para a secção de planeamento familiar. Há as marcas First Response, Clearblue Easy, New Choice e seis outras. — Há tantos — diz Shannon, tirando uma embalagem da prateleira. — Já ninguém usa preservativos? — Qual é que levo? Shannon encolhe os ombros. — Este parece-me tão bom como qualquer outro. Um homem ao fundo do corredor abre uma caixa de ligaduras. Ergue uma delas à altura dos olhos. As irmãs levam o teste à caixa. Andrew, que é da idade de Shannon e uma vez a convidou para sair, está a trabalhar. Malorie quer que aquele momento acabe depressa. — Uau — diz Andrew, estudando a pequena caixa. — Cala-te, Andrew — responde Shannon. — É para a nossa cadela. — Vocês agora têm uma cadela? — Sim — responde Shannon, pegando no saco onde ele guardou a embalagem. — E ela é muito popular no nosso bairro. O caminho até casa é uma tortura para Malorie. O saco de plástico entre os dois assentos sugere que a sua vida já mudou. — Olha — diz Shannon, apontando para a rua com a mesma mão que tinha estado a usar para proteger os olhos. As irmãs abrandam e param. À porta de uma casa na esquina veem uma mulher em cima de um pequeno escadote, a pregar uma manta por cima da janela saliente da casa. — Quando chegar a casa vou fazer o mesmo — diz Shannon. — Shannon. A rua delas, normalmente cheia de crianças, está vazia. Não se vê o triciclo azul coberto de autocolantes. Não se veem bolas e tacos de basebol. Quando entram em casa, Malorie dirige-se para a casa de banho e Shannon liga imediatamente a televisão. — Acho que só precisas de fazer chichi para cima dele, Malorie! — grita Shannon. Na casa de banho, Malorie consegue ouvir o noticiário. Quando Shannon chega à porta da casa de banho, Malorie já está a olhar �xamente para a risca cor-de-rosa e a abanar a cabeça. — Oh, céus! — exclama Shannon. — Tenho de telefonar à mãe e ao pai — diz Malorie. Parte dela já está a preparar-se, sabendo que, apesar de ser solteira, vai ter aquela criança. — Tens de ligar ao Henry Martin — acrescenta Shannon. Malorie lança um olhar rápido à irmã. Desde o início daquele dia que sabe que Henry Martin não terá um papel importante na educação daquela criança. De certa forma, já o aceitou. Shannon dirige-se com a irmã para a sala, onde caixas cheias de objetos por desencaixotar ocupam o espaço em frente ao televisor. No ecrã passa um cortejo fúnebre. Os jornalistas da CNN estão a discuti-lo. Shannon avança para o televisor e baixa o volume. Malorie senta-se no sofá, pega no telemóvel e liga a Henry Martin. Ele não atende, por isso ela envia-lhe uma mensagem. Assunto importante. Liga-me quando puderes. Subitamente, Shannon salta do sofá e grita. — Viste aquilo, Malorie? Um incidente no Michigan! Acho que disseram que foi na Península Superior! Malorie já está a pensar nos pais. Quando Shannon volta a aumentar o volume, as irmãs descobrem que um casal de idosos de Iron Mountain foi encontrado pendurado numa árvore num bosque próximo. O apresentador do noticiário diz que se enforcaram com os cintos. Malorie telefona à mãe. Esta atende ao �m de dois toques. — Malorie. — Mãe. — Imagino que estejas a ligar por causa das notícias? — Não. Estou grávida, mãe. — Oh, meu Deus, Malorie. — A mãe �ca em silêncio por um momento. Malorie consegue ouvir a televisão em pano de fundo. — Estás numa relação séria com alguém? — Não, foi um acidente. Agora Shannon está de pé em frente ao televisor. Tem os olhos arregalados. Está a apontar para o televisor, como se quisesse recordar a Malorie o quão importante aquilo é. A mãe está em silêncio, do outro lado da linha. — Estás bem, mãe? — Bem, agora estou mais preocupada contigo, querida. — Sim. Foi uma má altura. — De quanto tempo estás? — Cinco semanas, acho. Talvez seis. — E vais manter a criança? Já tomaste essa decisão? — Sim. Quero dizer, acabo de descobrir. Há minutos. Mas vou. Sim. — Já disseste ao pai da criança? — Escrevi-lhe. Também lhe vou telefonar. Agora Malorie faz uma pausa. Depois continua. — Sentes-te segura aí, mãe? Estás bem? — Não sei, não sei mesmo. Ninguém aqui sabe e estamos todos muito assustados. Mas neste momento estou mais preocupada contigo. No ecrã, uma mulher, com a ajuda de um diagrama, explica o que pode ter acontecido. Está a desenhar uma linha de uma pequena estrada onde o carro do casal foi encontrado abandonado. A mãe de Malorie está a dizer-lhe que conhece alguém que conhecia o casal de idosos. O sobrenome deles era Mikkonen, diz. A mulher no ecrã está agora junto ao que parece relva ensanguentada. — Meu Deus — diz Shannon. — Oh, quem me dera que o teu pai estivesse em casa — diz a mãe. — E tu estás grávida. Oh, Malorie. Shannon está a agarrar no telefone. Está a perguntar se a mãe sabe mais pormenores do que os que surgem nas notícias. O que dizem as pessoas da zona? Foi o único incidente? As pessoas estão a tomar precauções? Enquanto Shannon continua a falar descontroladamente para o telefone, Malorie levanta-se do sofá. Dirige-se para a porta de entrada e abre-a. Olhando para os dois lados da rua, pergunta-se: Isto será mesmo grave? Não se veem vizinhos nos jardins. Não há rostos à janela das outras casas. Um carro passa e Malorie não consegue ver o rosto do condutor. Está a escondê-lo com a mão. No relvado em frente à entrada está o jornal daquela manhã. Malorie avança para ele. A manchete da primeira página fala do número crescente de incidentes. Diz apenas: MAIS UM. Shannon provavelmente já lhe contou tudo o que o jornal diz. Malorie pega nele e, virando-o, para ao ver algo na última página. É um anúncio classi�cado. Uma casa em Riverbridge está a abrir as portas a estranhos. Uma «casa segura», diz. Um refúgio. Um lugar que os donos esperam que sirva de «santuário» à medida que as notícias tenebrosas aumentam de dia para dia. Malorie, sentindo os primeiros sinais do pânico, volta a olhar para a rua. Vê a porta de um vizinho a abrir-se e depois a fechar- se rapidamente. Ainda com o jornal na mão, Malorie olha por cima do ombro para a sua casa, onde ainda ecoam os sons da televisão. Lá dentro, na parede mais afastada da sala, Shannon está a prender um cobertor por cima das janelas. — Anda — diz Shannon. — Entra. E fecha essa porta. 5 Faltam seis meses para as crianças nascerem. A barriga de Malorie já se nota. Todas as janelas da casa estão tapadas com cobertores. A porta da frente nunca é deixada destrancada e nunca é deixada aberta. Notícias de acontecimentos inexplicáveis têm surgido com uma frequência alarmante. O que em tempos foram notícias de última hora duas vezes por semana surge agora todos os dias. Membros do governo são entrevistados na televisão. Histórias de lugares tão a leste como o Maine e tão a sul como a Florida levam as duas irmãs a tomarem precauções. Shannon, que lê dezenas de blogues todos os dias, teme um emaranhado de ideias, um pouco de tudo o que lê. Malorie não sabe no que acreditar. Notícias novassurgem na Internet de hora a hora. É a única coisa de que toda a gente fala nas redes sociais e é o único tópico das notícias. Novos websites são inteiramente dedicados às mais recentes informações sobre o assunto. Um site apresenta apenas um mapa global, com pequenos rostos vermelhos sobre as cidades em que algo aconteceu. Da última vez que Malorie o consultou, havia mais de 300 rostos. Na Internet chamam-lhe «o Problema». Existe uma crença comum muito difundida de que o que quer que seja «o Problema», começa sem dúvida quando a pessoa vê algo. Malorie recusou-se a acreditar o máximo de tempo que conseguiu. As irmãs discutiam constantemente, Malorie citando as páginas que diziam que era histeria de massas, Shannon citando tudo o resto. Mas ao �m de pouco tempo Malorie teve de ceder, quando as páginas que frequentava começaram a publicar histórias sobre os seus entes queridos e os autores desses blogues admitiram alguma preocupação. Dúvida, pensou Malorie. Até entre os céticos. Durante dias Malorie experienciou uma espécie de vida dupla. Nenhuma das irmãs voltou a sair de casa. Certi�cavam-se ambas de que as janelas estavam cobertas. Viam a CNN, a MSNBC e a Fox News até �carem �sicamente incapazes de ver as mesmas histórias a repetirem-se. E enquanto Shannon assumia uma postura mais séria e até mesmo solene, Malorie agarrava-se a uma réstia de esperança de que tudo aquilo simplesmente desaparecesse. Mas não desapareceu. E piorou. Ao �m de três meses a viverem como reclusas, os piores medos de Malorie e Shannon concretizaram-se quando os pais pararam de atender o telefone. Também já não respondiam aos e-mails. Malorie queria conduzir até à Península Superior, mas Shannon recusava-se. — Vamos ter de esperar que estejam em segurança, Malorie. Vamos esperar que o telefone tenha sido desligado. Conduzir para onde quer que seja nesta altura seria uma estupidez. Nem que fosse até ao supermercado, e conduzir nove horas seria um suicídio. «O Problema» terminava sempre em suicídio. A Fox News tinha dito a palavra tantas vezes que agora já usavam sinónimos. «Autodestruição», «Autoimolação», «Hari-kari». Um jornalista descreveu-o como «eliminação pessoal», expressão que não pegou. As instruções do governo eram reproduzidas no ecrã. Foi ordenado um recolher obrigatório nacional. As pessoas eram aconselhadas a trancar as portas, cobrir as janelas e, acima de tudo, a não olharem para a rua. Na rádio, a música foi inteiramente substituída por debates. Um blackout, pensa Malorie. O mundo, o exterior, está a ser desligado. Ninguém tem respostas. Ninguém sabe o que se passa. As pessoas estão a ver algo que as leva a fazer mal aos outros. A fazer mal a si próprias. As pessoas estão a morrer. Mas porquê? Malorie tenta acalmar-se, concentrando-se na criança que cresce dentro de si. Parece estar a ter todos os sintomas mencionados no seu livro, Grávida. Pequenos sangramentos. Peito dorido. Fadiga. Shannon destaca as oscilações de humor de Malorie, mas são os desejos que a enlouquecem. Demasiado assustadas para conduzirem até à loja, as irmãs �cam reduzidas às coisas que acumularam pouco depois de terem comprado o teste de gravidez. Mas os gostos de Malorie mudaram. As comidas normais enojam-na. Por isso combina coisas. Brownies de laranja. Frango com molho cocktail. Peixe cru com tostas. Sonha com gelados. Frequentemente, olhando para a porta da rua, pensa como seria fácil sentar-se ao volante do carro e conduzir até à loja. Sabe que demoraria apenas 15 minutos. Mas sempre que se prepara para o fazer, a televisão transmite mais uma história horrenda. E, além disso, quem sabe se os funcionários das lojas continuam a ir trabalhar? — O que é que achas que as pessoas estão a ver? — pergunta Malorie a Shannon. — Não sei, Mal. Não sei mesmo. Fazem constantemente esta pergunta uma à outra. Surgem imensas teorias na Internet. Todas aterrorizam Malorie. Doença mental resultante das ondas de rádio da tecnologia sem �os é uma delas. Um salto evolutivo errado da humanidade é outra. Os fãs do New Age dizem que é por a humanidade estar em contacto com um planeta prestes a explodir ou com um Sol a morrer. Há pessoas que acreditam que há criaturas lá fora. O governo não diz nada a não ser para as pessoas trancarem a porta. Malorie, sozinha, senta-se no sofá, massajando lentamente a barriga enquanto vê televisão. Preocupa-a não haver nada positivo para ver e a possibilidade de o bebé sentir a sua ansiedade. O livro Grávida disse-lhe que aconteceria. O bebé experiencia as emoções da mãe. Ainda assim, não consegue desviar o olhar do ecrã. Numa secretária encostada à parede atrás dela, o computador portátil está aberto e ligado. O rádio toca baixinho. Em conjunto, dão a Malorie a sensação de estar numa sala de guerra. No centro de tudo, enquanto tudo se desmorona. É avassalador. E está a tornar-se aterrador. Já não há anúncios. E os jornalistas fazem longas pausas, revelando a sua surpresa ao receberem as notícias em direto. Por cima de todo este burburinho dos media, Malorie ouve Shannon a mexer-se no segundo andar. Então, enquanto Gabriel Townes, um dos principais jornalistas da CNN, lê em silêncio uma folha de papel que acaba de receber, Malorie ouve um estrondo vindo de cima. Para. — Shannon! — chama. — Estás bem? Gabriel Townes não parece estar bem. Tem aparecido muito na televisão nos últimos tempos. A CNN revelou que muitos dos seus repórteres deixaram de se apresentar para trabalhar. Townes tem dormido lá. «Atravessamos isto juntos» é o seu novo slogan. O seu cabelo já não está impecável. Usa pouca maquilhagem. Mais alarmante é o tom exausto com que transmite as notícias. Parece deprimido. — Shannon? Vem cá. Parece que o Townes acaba de receber uma atualização. Mas não obtém resposta. Do andar de cima vem apenas silêncio. Malorie levanta-se e baixa o som da televisão. — Shannon? Baixinho, Gabriel Townes está a discutir uma decapitação em Toledo. É a menos de 130 quilómetros de onde Malorie está a assistir. — Shannon?! O que é que estás a fazer aí em cima? Não obtém resposta. Townes fala baixinho na televisão. Não há grá�cos a acompanhar o relato. Não há música. Não há peças intercalares. Malorie, de pé no centro da sala, está a olhar para o teto. Baixa ainda mais o volume da televisão e depois desliga o rádio e dirige-se para as escadas. Junto ao corrimão, ergue lentamente o olhar para o patamar alcatifado. As luzes estão desligadas, mas um pequeno raio do que parece ser a luz do sol re�ete-se na parede. Pousando a mão no corrimão de madeira, Malorie dá um passo para a alcatifa. Olha por cima do ombro, para a porta de entrada, e imagina uma amálgama de todas as notícias que ouviu. Começa a subir as escadas. — Shannon? Agora está no topo. A tremer. Avançando pelo corredor, vê a luz do sol a vir do quarto de Shannon. Lentamente, aproxima-se da porta aberta e olha lá para dentro. Um canto da janela está exposto. Uma parte do cobertor que se soltou está pendurada. Malorie desvia rapidamente o olhar. Há silêncio e um ligeiro zumbido vindo da televisão do andar de baixo. — Shannon? Ao fundo do corredor, a porta da casa de banho está aberta. A luz está acesa. Malorie caminha para ela. Ali, sustém a respiração e vira-se para olhar. Shannon está no chão, voltada para o teto. Tem uma tesoura cravada no peito. Está rodeada de sangue, que forma uma poça nos mosaicos do chão. Parece impossível que o corpo dela pudesse ter tanto sangue. Malorie grita, agarrando-se à ombreira da porta, e deixa-se cair para o chão, a chorar. A luz forte da casa de banho expõe todos os detalhes. Os olhos imóveis da irmã. A forma como a blusa de Shannon se enterra no peito juntamente com as lâminas da tesoura. Malorie rasteja até à banheira e vomita. O sangue da irmã cola- se a ela. Tenta despertar Shannon, mas sabe que isso não vai acontecer. Levanta-se, falando com Shannon, dizendo-lhe que vai buscar ajuda. Limpando o sangue das mãos, Malorie corre para o fundo das escadas e encontra o telemóvel no sofá. Ligapara a polícia. Ninguém atende. Volta a ligar. Não obtém resposta. Depois liga aos pais. Continua a não obter resposta. Vira-se e corre para a porta da rua. Tem de ir buscar ajuda. Agarra a maçaneta da porta, mas não é capaz de a rodar. Meu Deus, pensa Malorie. A Shannon nunca faria isto voluntariamente. Meu Deus, é verdade! Há qualquer coisa lá fora. E o que quer que Shannon tenha visto deve estar perto da casa. Um pedaço de madeira é tudo o que a separa daquilo que matou a sua irmã. Do que a sua irmã viu. Do outro lado da madeira da porta ouve-se o vento. Não há mais nenhum som. Não há carros. Não há vizinhos. Apenas quietude. Está sozinha. Subitamente, em agonia, percebe que precisa de alguém. Precisa de segurança. Tem de encontrar uma forma de sair daquela casa. Com a imagem de Shannon gravada na sua mente, Malorie corre para a cozinha. Ali, de debaixo do lava-loiça, tira uma pilha de jornais. Folheia-os, maníaca. A respirar com di�culdade e de olhos arregalados, consulta a última página de cada um. Por �m encontra-o. O anúncio classi�cado. Riverbridge. Estranhos a convidarem estranhos para a sua casa. Malorie volta a lê-lo. Depois lê-o mais uma vez. Deixa-se cair de joelhos, com o jornal apertado nas mãos. Riverbridge �ca a 20 minutos dali. Shannon viu algo lá fora, algo que a matou. Malorie tem de ir para um lugar seguro com o seu �lho. Subitamente, a respiração pesada dá lugar a um �uxo interminável de lágrimas quentes. Não sabe o que fazer. Nunca teve tanto medo. Tudo dentro dela parece quente, como se estivesse a arder. Chora ruidosamente. Através das lágrimas, volta a ler o anúncio. E as lágrimas caem para cima do jornal. 6 — O que é, Rapaz? — Ouviste isto? — O quê? O que é que ouviste? Fala! — Escuta. Malorie escuta. Para de remar e escuta. Há o som do vento. O som do rio. O grasnar de pássaros ao longe e a agitação ocasional de pequenos animais por entre as árvores. Há o som da sua própria respiração e os seus batimentos cardíacos. E para além de todo este ruído, algures dentro dele, há um som que a enche imediatamente de medo. Há algo na água com eles. — Não falem! — sibila Malorie. As crianças �cam em silêncio. Ela pousa os cabos dos remos sobre as pernas dobradas e �ca imóvel. Há algo grande na água. Algo que emerge e chapinha. Apesar de todo o seu trabalho para proteger as crianças da loucura, Malorie interroga-se se as terá su�cientemente bem preparado para as realidades antigas. Tais como animais selvagens que reclamariam um rio que os seres humanos deixaram de frequentar. O barco a remos inclina-se para a esquerda de Malorie. Ela sente o calor de algo a tocar no aro de aço onde a ponta dos remos está pousada. Os pássaros nas árvores calam-se. Ela sustém a respiração, pensando nas crianças. O que é que está a brincar com a proa do seu barco? Será uma criatura? pensa, histérica. Por favor, não, Deus, que seja um animal. Por favor! Malorie sabe que mesmo que as crianças tirassem as vendas, mesmo que gritassem antes de enlouquecer, ainda assim ela não abriria os olhos. Sem o impulso dos remos, o barco começa a mover-se novamente. Ela agarra num dos remos e prepara-se para o brandir. Mas é então que ouve o som da água a abrir-se. A coisa está em movimento. Parece mais distante. Malorie respira tão depressa que arqueja. Ouve uma agitação entre os ramos na margem à sua esquerda e imagina que a coisa rastejou para a beira do rio. Ou talvez tenha caminhado. Estará ali uma criatura? A estudar os ramos das árvores e a lama aos seus pés? Pensamentos como estes recordam-lhe Tom. O doce Tom, que passou todas as horas de todos os dias a tentar descobrir como sobreviver naquele horrível novo mundo. Deseja que ele ali estivesse. Ele saberia a origem daquele som. É um urso-negro, diz para si própria. O canto dos pássaros regressa. A vida nas árvores continua. — Portaram-se bem — arqueja Malorie. Tem a voz abafada do stress. Começa a remar e pouco depois o som da Rapariga a brincar com as peças do puzzle mistura-se com o som dos remos na água. Ela imagina as crianças, vendadas com os seus panos negros, o sol a expô-las à visibilidade, à deriva pela corrente abaixo. A sua própria venda está apertada em volta da cabeça, húmida. Irrita- lhe a pele junto às orelhas. Às vezes, consegue ignorar isto. Outras vezes, só consegue pensar em coçar-se. Apesar do frio, mergulha regularmente as pontas dos dedos na água e molha o tecido onde a arranha. Mesmo por cima das orelhas. Na cana do nariz. Na parte de trás da cabeça, onde está o nó. Molhar o tecido ajuda, mas Malorie nunca se habituará completamente a sentir o tecido contra o rosto. Mesmo os seus olhos, pensa enquanto rema, mesmo as suas pestanas se ressentem do tecido. Um urso-negro, diz novamente a si própria. Mas com pouca convicção. Debates como este orientaram todas as ações de Malorie durante os últimos quatro anos e meio. Desde o momento em que decidiu responder ao anúncio no jornal e que chegou à casa em Riverbridge. Todos os sons que ouviu desde então lhe trouxeram visões de coisas muito piores do que qualquer animal. — Vocês �zeram um bom trabalho — diz Malorie às crianças, a tremer. A intenção é tranquilizá-las, mas a sua voz denuncia medo. 7 Riverbridge. Malorie já tinha estado naquela zona uma vez, havia vários anos. Fora numa festa de Ano Novo. Mal se recorda do nome da rapariga que a organizou. Marcy qualquer coisa. Maribel, talvez. Shannon conhecia-a, e Shannon conduzira, naquela noite. As estradas estavam cobertas de neve derretida. Montes de neve cinzenta e suja ladeavam as estradas secundárias. As pessoas usaram o gelo do telhado para as bebidas. Alguém se pôs seminu e escreveu 2009 na neve. Agora estamos no pico do verão, a meio de julho, e é Malorie quem conduz. Assustada, sozinha e a sofrer. O caminho é agonizante. Seguindo a não mais de 60 km/h, Malorie procura freneticamente sinais nas ruas, outros carros. Fecha os olhos e depois volta a abri-los, ainda a conduzir. As estradas estão desertas. Todas as casas por que passa têm cobertores ou tábuas a cobrir as janelas. As montras estão vazias. Os parques de estacionamento dos centros comerciais estão desertos. Ela mantém o olhar �xo na estrada imediatamente à sua frente e conduz, segundo o caminho marcado no mapa ao seu lado. Sente as mãos fracas sobre o volante. Tem os olhos doridos de tanto chorar. Sente uma culpa insuportável por ter deixado a irmã, morta, no chão da casa de banho da sua casa. Não a enterrou. Simplesmente partiu. Os hospitais não atenderam os seus telefonemas. As casas funerárias também não. Malorie cobrira-a parcialmente, com uma écharpe azul e amarela que Shannon adorava. A emissão de rádio desaparece e volta. Um homem está a discutir a possibilidade de guerra. Se a humanidade se unir, diz ele, mas depois só se ouve estática. Passa por um carro abandonado à beira da estrada. As portas estão abertas. Um casaco pende do lugar do passageiro e toca no chão da rua. Malorie volta rapidamente o olhar para a frente. Depois fecha os olhos. Depois abre-os. O rádio está a funcionar. O homem ainda está a falar da guerra. Algo se move para a direita e ela vê-o pelo canto do olho. Não olha diretamente. Fecha o olho direito. À sua frente, no meio da estrada, um pássaro pousa e depois volta a levantar voo. Quando Malorie chega a esse ponto, vê que o pássaro estava interessado num cão morto. Malorie passa por cima dele. O carro ressalta; ela bate com a cabeça no tejadilho e a mala balança no banco traseiro. Malorie está a tremer. O cão não parecia apenas morto, parecia deformado. Fecha os olhos. Volta a abri-los. Um pássaro, talvez o mesmo, grasna do céu. Malorie percorre a Roundtree Street. Ballam Street. Horton. Sabe que está perto. Algo sai a correr à sua esquerda. Fecha o olho esquerdo. Passa por uma carrinha dos correios vazia e por cartas espalhadas pelo chão. Um pássaro voa demasiado baixo e quase bate no para- brisas. Ela grita, fecha ambos os olhos e depois abre-os. Quando o faz, vê a placa com o nome da rua queprocura. Shillingham. Vira à direita, travando ao dobrar a esquina para Shillingham Lane. Não precisa de consultar o mapa para encontrar o número: 273. Esteve na sua mente durante todo o caminho. Para além de alguns carros estacionados em frente a uma casa à direita, a rua está vazia. O bairro é comum, suburbano. A maioria das casas é quase idêntica. Os relvados estão desmazelados. Todas as janelas estão tapadas. Na sua ânsia, Malorie olha para a casa em frente à qual os carros estão estacionados e sabe que é a que procura. Fecha os olhos e trava a fundo. Parada e com a respiração acelerada, a imagem difusa da casa continua na sua mente. A garagem �ca do lado direito. A porta da garagem, bege, está fechada. Um telhado castanho repousa sobre paredes brancas e de tijolos. A porta de entrada é de um castanho mais escuro. As janelas estão tapadas. A casa tem um sótão. Preparando-se, ainda de olhos fechados, Malorie vira-se e agarra na pega da mala de viagem. A casa dista cerca de 15 metros do local onde parou. Sabe que não está perto do passeio. Não quer saber. Tentando acalmar-se, respira fundo, lentamente. A mala está ao seu lado no lugar do passageiro. De olhos fechados, põe-se à escuta. Não ouvindo nada do lado de fora do carro, abre a porta do lado do condutor e sai, pegando nas suas coisas. O bebé dá um pontapé. Malorie arqueja, lutando com a bagagem. Quase abre os olhos para olhar para a barriga. Em vez disso, pousa as mãos nela e massaja-a. — Chegámos — sussurra. Pega na mala e, às cegas, cuidadosamente, caminha para o relvado em frente à casa. Quando sente a relva sob a sola dos sapatos, caminha mais depressa, chocando com um arbusto rasteiro. As agulhas picam-lhe os pulsos e a anca. Malorie recua, à escuta, e sente cimento debaixo dos sapatos, caminhando cuidadosamente para onde pensa que �ca a porta de entrada. Acerta. Pousando ruidosamente a mala no alpendre, apalpa a superfície de tijolo e encontra uma campainha. Toca. A princípio não obtém resposta. É tomada pelo medo de ter chegado ao seu �m. Conduziu até ali, enfrentou aquele mundo, para nada? Volta a tocar à campainha. E mais uma vez. E outra. Ninguém atende. Bate freneticamente na porta. Ninguém responde do lado de dentro. Então… ouve vozes abafadas vindas do interior. Oh meu Deus! Está aqui alguém! Há alguém em casa! — Olá? — diz baixinho. O som da sua própria voz nas ruas desertas assusta-a. — Olá! Li o anúncio no jornal! Silêncio. Malorie espera, à escuta. Depois alguém responde. — Quem é você? — pergunta um homem. — De onde veio? Malorie sente alívio, esperança. Sente vontade de chorar. — Chamo-me Malorie! Vim de Westcourt! Segue-se uma pausa. E depois: — Tem os olhos fechados? É a voz de outro homem. — Sim! Tenho os olhos fechados. — Tem os olhos fechados há muito tempo? Deixem-me entrar! pensa. DEIXEM-ME ENTRAR! — Não — responde. — Ou sim. Venho a conduzir desde Westcourt. Fechei-os sempre que pude. Ouve vozes abafadas. Algumas parecem zangadas. As pessoas estão a debater se devem ou não deixá-la entrar. — Eu não vi nada! — grita ela. — Juro. É seguro. Tenho os olhos fechados. Por favor. Li o anúncio no jornal. — Mantenha-os fechados — diz por �m um homem. — Vamos abrir a porta. Quando o �zermos, entre o mais rápido possível. OK? — OK. Sim. OK. Ela espera. O ar está inerte, calmo. Nada acontece. Então ouve um estalido. Entra apressadamente. Mãos estendem-se e puxam- na para dentro. A porta bate com estrondo atrás dela. — Agora espere — diz uma mulher. — Precisamos de investigar. Precisamos de ter a certeza de que entrou sozinha. Malorie mantém os olhos fechados e escuta. Parece-lhe que estão a examinar as paredes com paus de vassoura. Mais do que um par de mãos toca-lhe nos ombros, no pescoço, nas pernas. Agora há alguém atrás dela. Ouve o som de dedos na porta fechada. — Muito bem — diz um homem. — Estamos seguros. Quando Malorie abre os olhos, vê cinco pessoas en�leiradas à sua frente. Ombros com ombros, enchem o hall. Ela �ta-os. Eles �tam-na. Um deles está a usar uma espécie de capacete. Tem os braços cobertos com o que parecem ser bolas de algodão e �ta adesiva. Canetas, lápis e outros objetos a�ados projetam-se da �ta, como uma versão infantil de armamento medieval. Dois deles seguram cabos de vassoura. — Olá — diz este homem. — Eu chamo-me Tom. Estou certo de que compreende porque é que atendemos a porta assim. Alguma coisa podia entrar consigo. Apesar do capacete, Malorie vê o cabelo louro-acastanhado de Tom. Os seus traços são fortes. Os seus olhos azuis brilham de inteligência. Não é muito mais alto do que Malorie. Tem a barba por fazer, de um tom que é quase ruivo. — Compreendo — responde Malorie. — Westcourt — diz Tom, avançado para ela. — É muito longe. O que você fez foi extremamente corajoso. Porque é que não se senta, para podermos falar do que viu pelo caminho? Malorie assente, mas não se move. Está a agarrar a mala com tanta força que tem os nós dos dedos brancos e doridos. Um homem mais alto e corpulento dirige-se a ela. — Venha — diz —, deixe-me levar a sua mala. — Obrigada. — Chamo-me Jules. Estou aqui há dois meses, tal como a maioria de nós. O Tom e o Don chegaram um pouco mais cedo. O cabelo curto e escuro de Jules parece sujo. Como se tivesse estado a trabalhar na rua. Parece dócil. Malorie olha para os colegas de casa um por um. Há uma mulher e quatro homens. — Eu sou o Don — diz Don. Também tem cabelo escuro. Um pouco mais comprido. Usa calças pretas e uma camisa roxa com as mangas enroladas até aos cotovelos. Parece mais velho do que Malorie, terá talvez uns 27 ou 28 anos. — Você pregou-nos um susto enorme, sabe? Há semanas que ninguém bate a esta porta. — Desculpem. — Não faz mal — diz o quarto homem. — Todos nós �zemos o mesmo. Eu sou o Felix. Felix parece cansado. Malorie acha que tem um aspeto jovem. Deve ter 21 ou 22 anos. O nariz comprido e o cabelo castanho volumoso dão-lhe uma aparência quase de desenho animado. É alto, como Jules, mas mais magro. — E eu sou a Cheryl — diz a mulher, estendendo-lhe a mão. Malorie aperta-a. A expressão de Cheryl é menos amigável do que a de Tom e Felix. O cabelo castanho esconde parte do rosto da mulher. Usa uma blusa sem mangas. Também ela parece ter estado a trabalhar. — Jules, ajudas-me a tirar isto? — pergunta Tom. Está a tentar tirar o capacete, mas a armadura improvisada impede-o. Jules ajuda-o. Sem capacete, Malorie consegue vê-lo melhor. O cabelo louro- claro está despenteado por cima do rosto pálido. A sugestão de sardas dá um pouco de cor ao seu rosto. A barba está a começar a despontar, mas o bigode é mais pronunciado. A camisa de xadrez e as calças castanhas trazem à memória de Malorie um professor que teve em tempos. Olhando para ele pela primeira vez, apercebe-se de que o homem está a olhar para a sua barriga. — Não quero ofendê-la, mas está grávida? — Sim — responde ela timidamente, com medo que isso lhes pareça um fardo. — Oh, merda — diz Cheryl. — Só pode estar a brincar. — Cheryl — diz Tom —, assim vais assustá-la. — Ouça, Malorie, não é? — começa Cheryl. — Não quero parecer desagradável, mas trazer uma mulher grávida para esta casa é uma grande responsabilidade. Malorie está em silêncio. Olha de um rosto para o seguinte, observando as expressões que fazem. Parecem estar a estudá-la. A decidir se querem ou não aceitar a tarefa de abrigar uma pessoa que vai acabar por dar à luz. Subitamente, Malorie apercebe-se de que não pensou nas coisas nesses termos. No caminho para ali, não lhe passou pela cabeça que podia ter o bebé ali. As lágrimas começam a cair. Cheryl abana a cabeça e, cedendo, aproxima-se dela. — Meu Deus — diz. — Venha cá. — Eu não estive sempre sozinha — explica Malorie. — A minha irmã, Shannon, estava comigo. Agora está morta. Deixei-a. Agora está a chorar. Através da visão turva, vê que os quatro homens estão a observá-la. Parecem compassivos. Imediatamente, Malorie percebe que todos, à sua maneira, estão a chorar uma perda. — Venha — diz Tom. — Vamos mostrar-lhea casa. Pode usar a casa de banho ao cimo das escadas. Eu durmo aqui em baixo. — Não — responde Malorie. — Eu não posso aceitar �car com o quarto de um de vós. — Faço questão — diz Tom. — A Cheryl dorme ao fundo do corredor, ali ao fundo. O Felix está no quarto ao lado do que vai ser o seu. A�nal de contas, está grávida. Vamos ajudá-la o melhor que pudermos. Estão a caminhar ao longo de um corredor. Passam por um quarto do lado esquerdo. Depois por uma casa de banho. Malorie vê o seu re�exo no espelho e desvia imediatamente o olhar. À esquerda, vê uma cozinha. Há baldes grandes em cima da bancada. — Esta é a sala — diz Tom. — Passamos muito tempo aqui. Malorie vira-se e vê-o a apontar para a divisão maior. Há um sofá. Uma mesa de canto com um telefone. Candeeiros. Uma poltrona. Alcatifa. Um calendário que parece desenhado com um marcador na parede entre quadros emoldurados. As janelas estão tapadas com cobertores pretos suspensos. Malorie ergue o olhar quando um cão entra subitamente na sala. É um border collie. O cão �ta-a com uma expressão curiosa antes de avançar para os seus pés e �car à espera de festas. — Este é o Victor — diz Jules. — Tem seis anos. Tenho-o desde cachorro. Malorie faz uma festa ao cão. Pensa em Shannon e em como ela teria gostado dele. A seguir Jules sai da sala, carregando a mala de Malorie por uma escada alcatifada. Ao longo das paredes há molduras. Algumas contêm fotogra�as, outras, quadros. No cimo das escadas, vê-o entrar num quarto. Mesmo dali de baixo consegue ver que a janela está tapada com um cobertor. Cheryl guia-a para o sofá. Malorie senta-se, exausta da tristeza e do choque. Cheryl e Don dizem que vão preparar comida. — Enlatados — diz Felix. — Fomos buscá-los no dia em que cheguei. Foi pouco antes de o primeiro incidente ter sido anunciado na Península Superior. O homem da loja achou que éramos loucos. Comprámos tanta comida que ainda temos para mais três meses. — Agora um pouco menos — diz Don, desaparecendo na cozinha. Malorie pergunta-se se ele estaria a insinuar que havia mais bocas para alimentar por causa da sua chegada. Então, sentando-se ao seu lado no sofá, Tom pergunta-lhe que coisas viu no caminho até lá. Está curioso em relação a tudo. Tom é o tipo de homem que usaria qualquer informação que ela lhe desse, e Malorie sente que os detalhes insigni�cantes de que se recorda não o ajudam em nada. Conta-lhe acerca do cão morto. Da carrinha dos correios. Das lojas e ruas vazias, e do carro abandonado com o casaco. — Há algumas coisas que tenho de lhe dizer — diz Tom. — Primeiro, esta casa não pertence a nenhum de nós. O dono morreu. Explico-lhe isso mais tarde. Não há Internet. Está em baixo desde que cá chegámos. Temos quase a certeza de que as pessoas que operam os transmissores de redes móveis deixaram de aparecer para trabalhar. Ou estão mortas. Já não recebemos correio nem jornais. Veri�cou o seu telemóvel recentemente? Os nossos deixaram de funcionar há semanas. Mas há um telefone �xo, se é que acredita na nossa sorte, embora não saiba a quem poderíamos telefonar. Cheryl entra na sala com um prato de cenouras e ervilhas. Traz também um pequeno copo de água. — O telefone �xo ainda funciona — diz Tom —, pelo mesmo motivo que as luzes ainda estão ligadas. A central elétrica desta zona funciona com energia hidroelétrica. Não sei dizer-lhe se também deixará de funcionar um dia, mas se os operadores da central tiverem deixado as condutas abertas, pode funcionar para sempre. Isso signi�ca que é o rio que dá energia a esta casa. Sabia que há um rio por trás da casa? Salvo alguma desgraça, enquanto o rio correr, podemos ter sorte. Podemos sobreviver. Será pedir demasiado? Provavelmente. Mas quando for ao poço nas traseiras buscar água, e é a água que usamos para tudo, conseguirá ouvir o rio a correr a cerca de 80 metros dali. Não temos água corrente. Acabou pouco depois da minha chegada. Para ir à casa de banho usamos baldes e revezamo-nos a carregar os baldes de despojos para as latrinas. São valas que escavámos no bosque. Claro que tudo isto tem de ser feito de olhos vendados. Jules desce as escadas. Victor, o cão, segue-o. — Já está instalada — diz ele, acenando com a cabeça para Malorie. — Obrigada — diz ela, timidamente. Tom aponta para uma caixa de cartão em cima de uma pequena mesa junto à parede. — As vendas estão ali dentro. Pode usar qualquer uma, sempre que quiser. Estão todos a olhar para ela. Cheryl está sentada no braço da poltrona. Don está de pé à entrada da cozinha. Jules está ajoelhado ao lado de Victor junto às escadas. Felix está junto a um dos cobertores que tapam as janelas. Todos perderam alguém, pensa Malorie. Estas pessoas experienciaram coisas terríveis, como eu. Bebendo do copo que Cheryl lhe deu, vira-se para Tom. Não consegue parar de pensar em Shannon. Mas tenta, falando cautelosamente com Tom. — Que coisa era aquela que tinha vestida quando eu cheguei? — A armadura? — Sim. — Ainda não sei ao certo — responde Tom, a sorrir. — Estou a tentar construir um fato. Algo que proteja mais do que apenas os nossos olhos. Não sabemos o que pode acontecer se uma daquelas coisas nos tocar. Malorie olha para os outros colegas de casa. Depois volta a olhar para Tom. — Vocês acreditam que há criaturas lá fora? — Sim — responde Tom. — O George, o antigo dono desta casa, viu uma. Imediatamente antes de morrer. Malorie não sabe o que dizer. Leva instintivamente uma mão à barriga. — Não estou a tentar assustá-la — diz Tom. — E vou contar-lhe a história do George em breve. Mas a rádio tem vindo a dizer o mesmo. Acho que já existe um consenso. Alguma coisa viva está a fazer-nos isto. E basta ver uma durante um segundo, talvez até menos. Tudo naquela sala parece �car mais escuro. Malorie sente-se zonza, com tonturas. — O que quer que sejam — diz Tom —, as nossas mentes não conseguem entendê-los. São como o in�nito. Algo demasiado complexo para compreendermos. Entende? As palavras de Tom estão a escapar a Malorie. Victor arfa pesadamente aos pés de Jules. Cheryl está a perguntar-lhe se está bem. Tom ainda está a falar. Criaturas… in�nito… as nossas mentes têm tetos, Malorie… estas coisas… estão para além disso… mais alto do que isso… fora do nosso alcance… fora… Mas nesse momento Malorie desmaia. 8 Malorie acorda no seu novo quarto. Está escuro. Por um momento abençoado, o último que terá, Malorie acorda com a ideia de que todas estas notícias de criaturas e loucura não passaram de um pesadelo. Com a mente turva, lembra-se de Riverbridge, de Tom, de Victor, do caminho para lá, mas nada disso se torna claro até que, olhando para o teto, se dá conta de que nunca acordou naquele quarto. E Shannon continua morta. Sentando-se lentamente na cama, olha para a única janela do quarto. Um cobertor preto está pregado à parede, protegendo-a do mundo exterior. Em frente aos seus pés há um velho toucador. O tom cor-de-rosa está desbotado, mas o espelho parece limpo. Olhando para ele, percebe que está mais pálida do que o habitual. Isso faz o seu cabelo parecer ainda mais preto. Na base do espelho há mais pregos, parafusos, um martelo e uma chave- inglesa. À exceção da cama, não há mais móveis. Levantando-se, balança os pés para fora do colchão e vê, no chão de alcatifa cinzenta, um segundo cobertor, cuidadosamente dobrado. Um suplente, pensa. Ao lado dele há uma pequena pilha de livros. Voltando-se para a porta do quarto, Malorie ouve vozes que vêm do andar de baixo. Ainda não conhece estas pessoas, e não consegue identi�car quem está a falar, exceto quando é Cheryl, a única mulher, ou Tom, cuja voz a guiará durante anos. Quando se levanta, sente a alcatifa áspera e velha sob os seus pés. Atravessa o quarto e espreita para o corredor. Sente-se bem. Descansada. Já não tem tonturas. Vestindo as mesmas roupas em que desmaiou na noite anterior, Malorie desce as escadas para a sala. Antes de ela chegar ao chão de madeira, Jules passa, carregando um monte de roupas. — Olá — diz ele, com um aceno de cabeça.Malorie observa-o enquanto ele se dirige para a casa de banho ao fundo do corredor. Ali, ouve-o a mergulhar as roupas num balde de água. Quando se volta para a cozinha, vê Cheryl e Don junto ao lava- loiças. Malorie entra na cozinha quando Don está a tirar um copo de dentro de um balde. Cheryl ouve-a e vira-se. — Deixou-nos preocupados ontem à noite — diz. — Sente-se melhor? Malorie, percebendo agora que desmaiou na noite anterior, cora ligeiramente. — Sim, estou bem. É só muita coisa para assimilar. — Foi assim para todos nós — diz Don. — Mas vai acabar por se habituar. Não tarda, estará a dizer que temos uma vida de luxo. — O Don é um cínico — diz Cheryl em tom de brincadeira. — Não sou — responde Don. — Adoro isto. Malorie dá um salto quando Victor lhe lambe a mão. Quando se ajoelha para lhe fazer uma festa, ouve música vinda da sala de jantar. Atravessa a cozinha e espreita lá para dentro. A sala está vazia, mas o rádio está ligado. Olha novamente para Cheryl e Don junto ao lava-loiças. Atrás deles está a porta da cave. Malorie prepara-se para lhes fazer perguntas acerca dela quando ouve a voz de Felix a vir da sala de estar. Ele está a recitar a morada da casa. — … Duzentos e setenta e três, Shillingham… chamo-me Felix… estamos à procura de outros sobreviventes… Malorie espreita para dentro da sala. Felix está a usar o telefone �xo. — Ele está a ligar para números ao acaso. Malorie sobressalta-se novamente, desta vez ao ouvir a voz de Tom, que está a espreitar para dentro da sala ao seu lado. — Não temos uma lista telefónica? — pergunta ela. — Não. É uma fonte constante de frustração para mim. Felix está a marcar outro número. Tom, com um papel e um lápis na mão, pergunta: — Quer vir ver a cave? Malorie segue-o até ao outro lado da cozinha. — Vais fazer o inventário? — pergunta Don quando Tom abre a porta da cave. — Sim. — Diz-me o que temos. — OK. Tom é o primeiro a entrar. Malorie segue-o pelas escadas de madeira. O chão da cave é de terra batida. No meio da escuridão ela consegue cheirar e sentir a terra sob os seus pés. O espaço é subitamente iluminado quando Tom puxa o cordão ligado a uma lâmpada. Malorie �ca assustada com o que vê. Parece mais um armazém do que uma cave. Prateleiras aparentemente in�nitas estão recheadas de comida enlatada. Do chão ao teto, aquele lugar parece um bunker. — Foi o George que construiu tudo isto — explica Tom, fazendo um gesto para as estantes de madeira. — Era um visionário. À esquerda, apenas parcialmente iluminada, Malorie repara numa tapeçaria transparente suspensa. Atrás dela há uma máquina de lavar roupa e uma de secar. — Parece muita comida — diz Tom, apontando para as latas. — Mas não é. E ninguém se preocupa mais do que o Don com o quanto nos resta. — Com que frequência faz o inventário? — pergunta Malorie. — Uma vez por semana. Mas às vezes, quando �co inquieto, venho aqui e volto a veri�car tudo, mesmo que o tenha feito no dia anterior. — Está frio. — Sim, é uma cave clássica de armazenamento a frio. É ideal. — O que acontece se �carmos sem comida? Tom �ta-a. As suas feições parecem suaves sob aquela luz. — Temos de ir buscar mais. Vasculhamos os supermercados, as outras casas, tudo o que conseguirmos. — Certo — diz Malorie, acenando com a cabeça. Enquanto Tom marca o papel, Malorie estuda a cave. — Suponho que este é o espaço mais seguro da casa — diz. Tom faz uma pausa. Pensa no assunto. — Creio que não. Acho que o sótão é mais seguro. — Porquê? — Reparou na fechadura da entrada da cave? A porta é muito velha, pode ser trancada, mas é frágil. É quase como se esta cave tivesse sido construída primeiro, anos antes de decidirem acrescentar-lhe uma casa. Mas a porta do sótão… essa tem um trinco incrível. Se precisarmos de nos barricar, se uma daquelas coisas entrar na casa, acho que é para o sótão que devemos ir. Malorie olha instintivamente para cima. Massaja os ombros. Se precisarmos de nos barricar. — A avaliar pela comida que nos resta — diz Tom —, dá-nos para viver mais três ou quatro meses. Parece muito tempo, mas passa depressa. Os dias começam a confundir-se. Foi por isso que começámos a escrever o calendário na parede da sala. Sabe, de certa forma, o tempo já não tem signi�cado. Mas é uma das únicas coisas que ainda se assemelha às vidas que tínhamos. — A passagem do tempo? — Sim, e o que fazemos com ele. Malorie avança para um banquinho de madeira e senta-se. Tom ainda está a tomar notas. — Vou mostrar-lhe todas as tarefas quando voltarmos lá para cima — diz ele. Depois, apontando para um espaço entre as prateleiras e a tapeçaria suspensa, diz: — Está a ver aquilo ali? Malorie olha, mas não percebe do que ele está a falar. — Venha cá. Tom guia-a até à parede, onde alguns tijolos estão partidos. Vê- se terra por trás deles. — Não consigo decidir se isto me assusta ou agrada — diz ele. — O que quer dizer com isso? — Bem, o chão está exposto. Isso quer dizer que devemos começar a escavar? A construir um túnel? Uma segunda cave? Mais espaço? Ou é apenas mais uma forma de entrar na casa? Os olhos de Tom parecem brilhantes sob a luz da cave. — O problema é que se as criaturas quisessem realmente entrar na nossa casa… não teriam o menor problema em fazê-lo — diz ele. — E suponho que já o teriam feito. Malorie �ta a abertura de terra na parede. Imagina-se a rastejar por túneis, grávida. Imagina larvas. Ao �m de um breve silêncio, pergunta: — O que fazia antes de isto acontecer? — O meu emprego? Era professor. Do 8.º ano. Malorie assente. — Por acaso achei que tinha ar de professor. — Sabe uma coisa? Já me disseram isso. Muitas vezes! Confesso que me agrada. — Ele �nge ajeitar a gola da camisa. — Turma — diz —, hoje vamos falar de comida enlatada. Portanto, calem essas bocas, porra! Malorie ri-se. — O que é que você fazia? — pergunta Tom. — Ainda não tinha chegado aí — diz Malorie. — Perdeu a sua irmã, não foi? — pergunta ele docemente. — Sim. — Sinto muito. — Depois diz: — Eu perdi uma �lha. — Oh, meu Deus, Tom. Tom para, como se tentasse decidir se devia ou não contar mais a Malorie. Depois conta. — A mãe da Robin morreu no parto. Parece cruel estar a dizer- lhe isto, tendo em conta que está grávida. Mas se vamos conhecer-nos, é uma história que precisa de saber. A Robin era uma miúda fantástica. Aos 8 anos era mais inteligente do que o pai. Ela gostava das coisas mais estranhas. Gostava mais das instruções de um brinquedo do que do próprio brinquedo. Dos créditos de um �lme mais do que do �lme. Da forma como algo estava escrito. De uma expressão no meu rosto. Uma vez disse- me que eu parecia o sol por causa do meu cabelo. Perguntei-lhe se brilhava como o sol, e ela disse: «Não, papá, brilhas mais como a lua, quando está escuro lá fora.» » Quando surgiram os relatos dos incidentes nas notícias e as pessoas começaram a levar isto a sério, eu era o tipo de pai que dizia que não ia viver com medo. Tentei muito continuar com a nossa vida quotidiana. E queria especialmente transmitir essa ideia à Robin. Ela tinha ouvido coisas na escola. Eu não queria que ela tivesse tanto medo. Mas ao �m de algum tempo deixei de conseguir �ngir. Os pais começaram a tirar os �lhos da escola. Depois a escola fechou. Temporariamente. Ou até terem a con�ança da comunidade para continuarem a oferecer um lugar seguro para os seus �lhos. Foram tempos negros, Malorie. Eu também era professor, e a escola onde dava aulas fechou as portas na mesma altura. Então, de repente, começámos a passar muito tempo juntos em casa. Vi o quanto ela tinha crescido. A mente dela estava a tornar-se tão grande. Ainda assim, era muito nova para entender o quanto as notícias eram assustadoras. Fiz o meu melhor para não lhas esconder, mas o pai em mim não conseguia evitar mudar de canal às vezes. » A rádio tornou-se demasiado sombria para ela suportar. A Robin começou a ter pesadelos. Passei muito tempo a acalmá-la. Sentia sempre que estava a mentir-lhe. Combinámos que nenhum de nós olharia pela janela. Concordámos que ela não podia sairsem a minha permissão. De alguma forma, eu tinha de a fazer acreditar que tudo era simultaneamente seguro e horrivelmente inseguro. » Ela começou a dormir na minha cama, mas uma manhã acordei e descobri que ela não estava lá. Na noite anterior tinha dito que queria que as coisas voltassem ao que eram. Disse que queria a mãe, que nunca conheceu. Fiquei devastado quando a ouvi dizer, com 8 anos, que a vida era injusta. Quando acordei e não a encontrei, disse a mim mesmo que ela estava apenas a habituar-se a isto. A esta nova vida. Mas acho que talvez a Robin tenha perdido parte da sua juventude na noite anterior, quando percebeu, antes de mim, o quão grave isto era, o que estava a acontecer do lado de fora da nossa casa. Tom faz uma pausa. Fita o chão da cave. — Encontrei-a na banheira, Malorie. A boiar. Os seus pequenos pulsos cortados com a lâmina com que me vira fazer a barba mil vezes. A água estava vermelha. O sangue pingava para fora da banheira. Sangue nas paredes. Era uma criança. Tinha 8 anos. Teria olhado para a rua? Ou terá simplesmente tomado aquela decisão sozinha? Nunca vou saber. Malorie estende os braços para Tom e abraça-o. Mas ele não chora. Em vez disso, ao �m de um momento, volta para as prateleiras e começa a tomar notas. Malorie pensa em Shannon. Também morreu na casa de banho. Também pôs �m à própria vida. Quando Tom termina, pergunta a Malorie se está pronta para voltar para o andar de cima. Quando estende a mão para o cordão da lâmpada, vê que ela está a olhar para a terra visível na parede. — É assustador, não é? — pergunta ele. — Sim. — Bem, não deixe que seja. É apenas um dos medos velhos. — Qual? — O medo da cave. Malorie assente. E depois Tom puxa o cordão e a luz apaga-se. 9 Criaturas, pensa Malorie. Que palavra reles. As crianças estão em silêncio e nada se move nas margens. Ela consegue ouvir os remos a cortarem a água. O ritmo do seu remo acompanha o do seu coração, e depois falha. Quando as cadências se opõem, sente-se a ponto de morrer. Criaturas. Malorie nunca gostou daquela palavra. Parece desadequada. As coisas que a assombraram durante mais de quatro anos não são criaturas. Uma lesma é uma criatura. Um porco-espinho. Mas as coisas que se esconderam atrás das janelas tapadas e que a mantiveram de olhos vendados não são o tipo de coisas que um exterminador pode eliminar. Bárbaro também não parece certo. Um bárbaro é imprudente. Um bruto também. Ao longe, um pássaro canta no céu. Os remos cortam a água com cada movimento. «Beemote» não tem existência comprovada. Podem ser do tamanho de um dedo. Embora estejam no início do seu percurso ao longo do rio, os músculos de Malorie estão doridos de remar. A sua camisa está encharcada de suor. Tem os pés frios. A venda continua a irritá- la. «Demónio.» «Diabo.» «Vilão.» Talvez sejam tudo isso. A sua irmã morreu porque viu um. Os seus pais devem ter tido o mesmo destino. «Diabrete» é um termo demasiado suave. «Selvagem» é demasiado humano. Malorie não tem apenas medo das coisas que podem viver no rio, também se sente fascinada por elas. Saberão o que fazem? Quererão fazê-lo? Neste momento, parece que o mundo inteiro está morto. Parece-lhe que o barco a remos é o último lugar no mundo onde há vida. O resto do mundo estende-se para lá da proa do barco, um planeta vazio, a �orescer e vazio com cada remada. Se não sabem o que fazem, não podem ser «vilões». As crianças estão caladas há muito tempo. Um segundo canto de pássaros ouve-se no céu. Um peixe chapinha na água. Malorie nunca viu este rio. Como será? Terá árvores ao longo das suas margens? Existirão casas ao longo dele? São monstros, pensa Malorie. Mas sabe que são mais do que isso. São o in�nito. — Mamã — grita o Rapaz subitamente. Uma ave de rapina grasna e o eco alastra pelo rio. — O que é, Rapaz? — Parece um motor. — O quê? Malorie para de remar. Põe-se à escuta. Longe, para lá do som da água do rio, ouve-se o som de um motor. Malorie reconhece-o imediatamente. É o som de outro barco a aproximar-se. Em vez de se sentir animada com a perspetiva de encontrar outro ser humano naquele rio, Malorie tem medo. — Baixem-se os dois — ordena. Pousa os cabos dos remos nos joelhos. O barco �utua. O Rapaz ouviu-o, diz a si mesma. O Rapaz ouviu-o porque o educaste bem e agora ele ouve melhor do que alguma vez verá. Respirando fundo, Malorie espera. O som do motor torna-se mais alto. O barco está a subir o rio. — Ai! — geme o Rapaz. — O que é, Rapaz? — A minha orelha! Fui atingido por uma árvore. Malorie pensa que é uma coisa boa. Se uma árvore tocou no Rapaz, é porque provavelmente estão perto de uma das margens. Talvez a folhagem os oculte. O outro barco está agora muito mais próximo. Malorie sabe que se conseguisse abrir os olhos podia vê-lo. — Não tirem as vendas dos olhos — diz Malorie. E então o motor do barco está ao nível deles. Não passa. Quem quer que seja, pensa Malorie, consegue ver-nos. O motor do barco para abruptamente. O ar cheira a gasolina. Passos atravessam o que deve ser o convés. — Olá! — diz uma voz. Malorie não responde. — Olá! Está tudo bem. Podem tirar as vendas dos olhos! Sou apenas um homem comum. — Não, não podem — diz Malorie às crianças. — Não há nada aqui, senhora. Acredite em mim. Estamos sozinhos. Malorie está imóvel. Por �m, sentindo que não tem alternativa, responde. — Como é que sabe? — Senhora — responde ele —, estou a olhar. Tive os olhos abertos durante toda a minha viagem hoje. Ontem, também. — Não se pode simplesmente olhar — diz ela. — Você sabe que não. O estranho ri-se. — A sério — continua ele —, não há nada a temer. Pode con�ar em mim. Só estamos nós os dois neste rio. Apenas duas pessoas comuns cujos caminhos se cruzaram. — Não! — Malorie grita para as crianças. Ela solta a Rapariga e volta a pegar nos remos. O homem suspira. — Não há necessidade de viver assim, senhora. Pense nestas crianças. Quer roubar-lhes a oportunidade de ver um dia lindo como este? — Não se aproxime do nosso barco — diz Malorie com um tom severo. Silêncio. O homem não responde. Malorie prepara-se. Sente-se encurralada. Vulnerável. No barco a remos contra a margem. Naquele rio. Naquele mundo. Algo chapinha na água. Malorie abafa um grito. — Senhora — insiste o homem —, é uma visão incrível, se não se importar com um pouco de neblina. Quando foi a última vez que olhou para o mundo cá fora? Há anos? Já viu este rio? O estado do tempo? Aposto que nem se lembra do aspeto de diferentes climas. Ela lembra-se muito bem do mundo exterior. Lembra-se de ser estudante e ir a pé para casa através de um túnel de folhas de outono. Lembra-se dos quintais vizinhos, dos jardins e das casas. Lembra-se de estar deitada na relva do seu jardim com Shannon e de decidir que nuvens se pareciam com os rapazes e raparigas da sua turma. — Vamos manter os olhos vendados — diz Malorie. — Eu deixei-me disso, senhora — diz ele. — Segui em frente com a minha vida. Não quer fazer o mesmo? — Deixe-nos em paz — ordena ela. O homem suspira novamente. — Eles não podem assombrá-la para sempre — diz ele. — Não podem forçá-la a viver assim para sempre. Sabe que tenho razão, não sabe? Malorie põe o remo direito numa posição que crê que lhe permite impulsionar-se para longe da margem. — Eu devia arrancar-vos as vendas — diz o homem subitamente. Malorie não se move. Ele parece rude. Um pouco irritado. — Somos apenas duas pessoas — continua ele. — Que se encontraram num rio. Quatro se incluirmos as crianças. E elas não podem ser responsabilizadas pela forma como está a criá-las. Eu sou o único aqui que teve a coragem de olhar para fora. As suas preocupações só a mantêm segura durante tempo su�ciente para se preocupar ainda mais. A voz vem agora de um lugar diferente. Malorie pensa que ele avançou para a frente do barco a motor. Só quer deixá-lo para trás. Só quer afastar-se mais da casa que deixaram naquela manhã. — Digo-lhe uma coisa — diz de repente o homem, horrivelmente perto —, eu já vi um. Malorie agarra o Rapaz e puxa-opela parte de trás da camisa. Ele bate no fundo de aço do barco e grita. O homem ri-se. — Eles não são tão feios como pensa, senhora. Ela empurra a margem com o remo. Está a �utuar. É difícil encontrar algo sólido. Parece só encontrar galhos e raízes. Lama. Ele vai enlouquecer, pensa Malorie. Vai magoar-te. — Para onde vai? — grita o homem. — Vai chorar sempre que ouvir um galho a estalar? Malorie não consegue soltar o barco. — Mantenham os olhos vendados! — grita ela para as crianças. O homem disse que viu um. Quando? Quando? — Acha que estou louco, não é? Por �m, o remo crava-se em terra. Malorie empurra, grunhindo. O barco a remos move-se. Ela acha que pode ter-se soltado. Então choca com o barco do homem e ela grita. Ele encurralou-te. Vai obrigá-los a abrir os olhos? — Quem é o louco aqui? Olhe para si agora. Duas pessoas cruzam-se num rio… Malorie balança para frente e para trás. Sente um espaço atrás do barco a remos, algum tipo de abertura. —… Uma delas olha para o céu… Malorie sente o remo a cravar-se na terra. — … A outra tenta guiar um barco com os olhos vendados. O barco a remos está quase solto. — Portanto, tenho de perguntar… — Saia da frente! — grita ela. — … Quem é o louco? O homem ri-se. O riso parece erguer-se para o céu de que ele fala. Ela pensa em perguntar: Onde estava quando o viu? Mas não o faz. — Deixe-nos! — grita Malorie. A luta faz a água fria salpicar para dentro do barco. A Rapariga grita. Malorie diz a si mesma: Pergunta ao homem onde estava quando o viu. Talvez a loucura ainda não se tenha instalado. Talvez esteja a demorar mais no caso dele. Talvez ele tenha um último gesto benevolente antes de perder toda a noção da realidade. O barco a remos solta-se. Tom disse que era diferente para todos. Disse que um homem louco nunca podia �car mais louco. E as pessoas mais sãs podiam demorar muito tempo a enlouquecer. — Abra os olhos, por amor de Deus! — grita o homem. A voz dele mudou. Parece bêbedo, diferente. — Pare de fugir, senhora. Abra os olhos! — suplica ele. — Não lhe deem ouvidos! — grita Malorie. O Rapaz está pressionado contra ela e a Rapariga geme atrás de si. Malorie treme. — A vossa mãe é louca, crianças. Tirem as vendas. Subitamente, o homem uiva, gargarejando. Parece que algo morreu na sua garganta. Quanto tempo faltará para se estrangular com uma das cordas do barco ou para encostar a cabeça à hélice do motor? Malorie rema furiosamente. A venda não lhe parece su�cientemente apertada. O que ele viu está próximo. O que ele viu está aqui neste rio. — Não tirem as vendas! — grita novamente Malorie. Está a passar pelo outro barco. — Entendem? Respondam-me. — Sim! — diz o Rapaz. — Sim! — diz a Rapariga. O homem uiva novamente, mas agora está mais para trás. Parece que está a tentar gritar, mas esqueceu-se de como se faz. Quando o barco a remos avança mais 40 metros e o som do motor atrás deles já está quase fora do seu alcance, Malorie aproxima-se e toca no ombro do Rapaz. — Não te preocupes, mamã — diz o Rapaz. Então, Malorie estende a mão para trás e encontra a mão da Rapariga. Aperta-a. Depois, soltando-os aos dois, volta a pegar nos remos. — Estás seca? — pergunta à Rapariga. — Não — responde ela. — Usa o cobertor para te secares. Agora. O ar tem novamente um cheiro limpo. As árvores. A água. O cheiro de gasolina �cou para trás. Lembras-te do cheiro da casa? pensa Malorie. Apesar do horror de ter encontrado o homem no barco, lembra-se. O ar velho e abafado da casa. Já lá estava no dia em que ela tinha chegado. E nunca melhorara. Ela não odeia o homem do barco. Só sente pena dele. — Vocês portaram-se muito bem — diz Malorie às crianças, tremendo, remando pelo rio abaixo. 10 Malorie está a viver na casa há duas semanas. Os companheiros sobrevivem quase inteiramente dos enlatados que há na cave e dos restos de carne congelada que têm no congelador. Todas as manhãs, Malorie sente alívio ao constatar que ainda têm eletricidade. A rádio é a única fonte de novidades, mas o último DJ que resta, Rodney Barrett, não tem nada de novo para contar. Em vez disso, divaga. Zanga-se. Pragueja. Os colegas de casa já o ouviram a dormir durante a emissão. Mas apesar de tudo isto, Malorie entende porque continuam a ouvi-lo. Independentemente de a voz dele soar baixinho em pano de fundo ou encher a sala onde está o rádio, ele é a última ligação que têm ao mundo exterior. Malorie já sente que está dentro de um cofre. A claustrofobia é incrível, e pesa sobre ela e sobre o bebé. No entanto, esta noite, os colegas de casa estão a dar uma espécie de festa. Os seis estão reunidos em volta da mesa de jantar. Juntamente com os enlatados, papel higiénico, baterias, velas, cobertores e ferramentas na cave, existem algumas garrafas de rum — que complementam agradavelmente a erva trazida por Felix (que admitia timidamente que estava mais à espera de um ajuntamento hippie do que do grupo que encontrou à chegada). Malorie, por causa da sua condição, é a única que não bebe nem fuma. Ainda assim, alguns estados de espírito são contagiosos, e quando Rodney Barrett, inusitadamente, passa uma música suave, Malorie consegue sorrir, e às vezes até rir, apesar dos horrores insondáveis que se tornaram um lugar-comum. Há um piano na sala de jantar. Tal como a pilha de livros de humor ao lado da cómoda do seu quarto, o piano parece um vestígio, quase deslocado, de outra vida. Neste momento, Tom está ao piano. — Em que nota é esta música? — grita Tom, suado, do outro lado da sala de jantar para Felix, que está sentado à mesa. — Conheces as notas? Felix sorri e abana a cabeça. — Como é que haveria de saber? Mas canto contigo daqui, Tom. — Por favor, não — diz Don, bebendo rum e sorrindo. — Não, não — diz Felix com um sorriso —, eu canto muito bem! Felix tropeça quando se levanta. Junta-se a Tom ao piano. Juntos, cantam It’s De-Lovely. O rádio está pousado num aparador espelhado. A música que Rodney Barrett está a passar contrasta com a música de Cole Porter. — Como está, Malorie? — pergunta Don, sentado do outro lado da mesa. — Está a gostar da casa? — Estou bem — diz ela. — Tenho pensado muito no bebé. Don sorri. Quando o faz, Malorie vê tristeza no seu rosto. Sabe que Don também perdeu uma irmã. Todos os habitantes da casa sofreram uma perda devastadora. Os pais de Cheryl, assustados, foram para o Sul. Desde então ela não voltou a falar com eles. Felix espera ter notícias dos irmãos com todos os telefonemas aleatórios que faz. Jules fala frequentemente da noiva, Sydney, que encontrou na sarjeta junto ao prédio onde vivia antes de responder ao mesmo anúncio que levou Malorie ali. Tinha a garganta cortada. Mas a história de Tom, pensa Malorie, é a pior. Se é que essa palavra ainda signi�ca alguma coisa. Agora, observando-o ao piano, o coração de Malorie aperta-se por ele. Por um momento, quando It’s De-Lovely termina, o som do rádio faz-se ouvir. Soam também os últimos acordes da música que Rodney Barrett está a passar. Então ele começa a falar. — Ouçam, ouçam — diz Cheryl. Está a atravessar a sala para junto do rádio. Inclina-se para o aparelho e aumenta o volume. — Ele parece mais deprimido do que o habitual. Tom ignora o rádio. Suando, sorvendo a sua bebida, ele toca os primeiros acordes de I Got Rhythm, de Gershwin. Don está a virar-se para ver do que Cheryl está a falar. Jules, acariciando Victor, sentado no chão com as costas para a parede, vira lentamente a cabeça para o rádio. — Criaturas — diz Rodney Barrett. Está com a voz arrastada. — O que é que nos tiraram? O que estão a fazer aqui? Têm algum propósito? Don levanta-se da mesa e junta-se a Cheryl ao pé do rádio. Tom para de tocar. — Nunca o ouvi falar diretamente com as criaturas — diz ele do banco do piano. — Perdemos mães, pais, irmãs e irmãos — diz Rodney Barrett. — Perdemos esposas e maridos, amantes e amigos. Mas nada dói tanto como as crianças que nos tiraram. Como ousam pedir a uma criança que olhe para vocês? Malorie olha para Tom. Ele está a ouvir. Tem uma expressão distanteno olhar. Ela levanta-se e caminha até ele. — Não é a primeira vez que ele usa um tom intenso — diz Cheryl de Rodney Barrett. — Mas nunca desta maneira. — Não — diz Don. — Parece que está mais bêbedo do que nós. — Tom — diz Malorie, sentada ao lado dele no banco. — Ele vai-se matar — diz Don, subitamente. Malorie olha para cima, querendo dizer a Don para se calar, e então ouve o mesmo que Don ouviu. A desolação na voz de Rodney Barrett. — Hoje eu vou enganar-vos — diz Barrett. — Vou tomá-la antes, a única coisa que ainda me podem tirar. — Oh, meu Deus — diz Cheryl. O rádio �ca silencioso. — Desliga, Cheryl — diz Jules. — Desliga. Quando ela estende a mão para o rádio, o som de um tiro explode das colunas. Cheryl grita. Victor ladra. — Que raio acabou de acontecer? — pergunta Felix, olhando �xamente para o rádio. — Ele fê-lo — diz Jules com um vazio na voz. — Não acredito. Depois, silêncio. Tom levanta-se do banco do piano e desliga o rádio. Felix sorve um gole da bebida. Jules está de joelhos, a acalmar Victor. Então, subitamente, como se fosse um eco do tiro, alguém bate à porta de entrada. Uma segunda batida segue-se rapidamente. Felix dá um passo na direção da porta e Don agarra-lhe no braço. — Não abras a porta — diz ele. — Então. Qual é o teu problema? — Eu não ia abrir, meu! — diz Felix, soltando o braço. A batida ouve-se de novo. Uma voz feminina chama lá fora. — Olá? Os habitantes da casa estão calados e imóveis. — Alguém que lhe responda — diz Malorie, levantando-se do banco do piano para o fazer. Mas Tom adianta-se. — Sim! — responde. — Estamos aqui. Quem é você? — Olympia! Chamo-me Olympia! Deixam-me entrar? Tom faz uma pausa. Parece bêbedo. — Está sozinha? — pergunta ele. — Sim! — Tem os olhos fechados? — Sim, tenho os olhos fechados. Estou muito assustada. Por favor, deixe-me entrar? Tom olha para Don. — Alguém que vá buscar as vassouras — diz Tom. Jules sai para as ir buscar. — Acho que não podemos aceitar mais bocas para alimentarmos — diz Don. — Estás louco — diz Felix. — Há uma mulher lá fora… — Eu entendo o que está a acontecer, Felix — responde Don enraivecido. — Não podemos abrigar o país inteiro. — Mas ela está lá fora neste momento — diz Felix. — E estamos bêbedos — diz Don. — Vá lá, Don — diz Tom. — Não façam de mim o vilão — diz Don. — Sabem tão bem como eu quantas latas temos na cave. — Olá? — chama novamente a mulher. — Espere! — responde Tom. Tom e Don olham-se. Jules entra no hall. Entrega uma das vassouras a Tom. — Façam o que quiserem — diz Don. — Mas vamos morrer de fome mais cedo por causa disto. Tom volta-se para a porta. — Pessoal — diz —, fechem os olhos. Malorie escuta enquanto os sapatos dele atravessam o chão de madeira do hall. — Olympia? — chama Tom. — Sim! — Vou abrir a porta agora. Quando o �zer, quando sentir que está aberta, entre o mais rápido possível. Entendeu? — Sim! Malorie ouve a porta da frente abrir-se. Há uma agitação. Imagina que Tom puxou a mulher para dentro, como os habitantes da casa a puxaram para dentro duas semanas antes. E então a porta fecha-se. — Mantenha os olhos fechados! — diz Tom. — Vou examinar o que está à sua volta. Para me certi�car de que nada entrou consigo. Malorie ouve as cerdas das vassouras contra as paredes, o chão, o teto e a porta da frente. — OK — diz Tom, por �m. — Vamos abrir os olhos. Quando Malorie o faz, vê uma mulher muito bonita, pálida e de cabelo escuro ao lado de Tom. — Obrigada — diz ela ofegante. Tom começa a perguntar-lhe algo, mas Malorie interrompe-o. — Você está grávida? — pergunta a Olympia. Olympia olha para a barriga dela. A tremer, ela ergue o olhar, acenando que sim com a cabeça. — Estou de quatro meses — diz ela. — Incrível — diz Malorie, aproximando-se. — Eu também. — Merda — diz Don. — Eu sou vossa vizinha — diz Olympia. — Lamento ter-vos assustado desta maneira. O meu marido está na força aérea. Não tenho notícias dele há semanas. Pode estar morto. Eu ouvi-vos. O piano. Demorei algum tempo a ganhar coragem para caminhar até aqui. Normalmente, teria trazido cupcakes. Apesar do horror que todos os presentes ouviram, a inocência de Olympia ilumina a escuridão. — Estamos felizes por a receber — diz Tom, mas Malorie consegue detetar na voz dele a exaustão e a pressão de cuidar de duas mulheres grávidas. — Entre. Guiam Olympia ao longo do corredor em direção à sala de estar. Ao fundo da escada, ela abafa um grito e aponta para uma fotogra�a pendurada na parede. — Oh! — diz. — Este homem está cá? — Não — diz Tom. — Já não. Deve conhecê-lo. George. Era o dono desta casa. Olympia assente. — Sim, vi-o muitas vezes. Então, os habitantes da casa reúnem-se na sala de estar. Tom senta-se com Olympia no sofá. Malorie escuta calmamente enquanto Tom faz perguntas a Olympia sobre os objetos que tem em casa. O que ela tem. O que deixou para trás. O que podem usar ali. 11 Malorie tem a sensação de que está a remar há três horas. Os músculos dos braços doem-lhe. Água fria ensopa o fundo do barco, água que salpicou, pouco a pouco, com cada movimento dos remos. Momentos antes, a Rapariga disse a Malorie que tinha de fazer chichi. Malorie disse-lhe para o fazer. Agora, a urina da Rapariga mistura-se com a água do rio e parece quente contra os sapatos de Malorie. Está a pensar no homem do barco, com quem se cruzaram. As crianças não tiraram as vendas, pensa Malorie. Foi a primeira voz humana que ouviram para além das suas. No entanto, elas não lhe deram ouvidos. Sim, treinou-as bem. Mas não é agradável pensar assim. Treinar as crianças signi�ca que as assustou tão completamente que nunca lhe desobedecerão. Quando era criança, Malorie rebelava- se constantemente contra os pais. O açúcar estava proibido em casa. Malorie comia-o às escondidas. Não eram permitidos �lmes de terror. Malorie descia as escadas em bicos de pés à meia-noite para os ver na televisão. Quando os pais lhe disseram que não podia dormir no sofá da sala de estar, mudou a cama para lá. Eram as emoções da infância. Os �lhos de Malorie não as conheciam. Quando eram bebés, treinou-os para fecharem os olhos. De pé junto às suas camas de arame, de mata-moscas na mão, esperava. Quando um deles acordava e abria os olhos, ela batia-lhes com força no braço. Eles choravam. Malorie aproximava-se e fechava- lhes os olhos com os dedos. Se mantivessem os olhos fechados, levantava a camisa e amamentava-os. A recompensa. — Mamã — diz a Rapariga —, era o mesmo homem que canta no rádio? A Rapariga está a falar de uma cassete que Felix gostava de ouvir. — Não — diz o Rapaz. — Então quem era? — pergunta a Rapariga. Malorie vira-se para a Rapariga, para a sua voz soar mais alta. — Pensei que tínhamos combinado que não iam fazer perguntas que não tenham que ver com o rio. Estamos a romper esse compromisso? — Não — diz calmamente a Rapariga. Quando tinham 3 anos, ela treinou-os para tirarem água do poço. Amarrando uma corda em volta da sua cintura, apertava a outra ponta em volta do Rapaz. Então, dizendo-lhe para tatear à procura do caminho com os dedos dos pés, mandava-o lá fora para o fazer sozinho. Malorie ouvia o som do balde a ser levantado desajeitadamente. Ouvia-o a debater-se enquanto o carregava até ela. Muitas vezes ouviu o balde cair-lhe das mãos. Sempre que isso acontecia, mandava-o lá fora enchê-lo outra vez. A Rapariga odiava aquela tarefa. Dizia que o piso era «muito irregular» à volta do poço. Dizia que sentia que viviam pessoas debaixo da relva. Malorie negou comida à Rapariga até ela aceitar fazê-lo. Mal tinham começado a andar, Malorie sentava-os em lados opostos da sala e caminhava sobre a alcatifa. Quando perguntava: «Onde estou eu?», o Rapaz e a Rapariga apontavam. Depois subia as escadas, voltava a descer e perguntava-lhes: «Onde fui?» As crianças apontavam. Quando erravam, Malorie gritava com elas. Mas não erravam muitas vezes. E ao �m de pouco tempo deixaram de errar de todo. O que diria o Tom daquilo? pergunta-se. Dir-te-ia que estavas a ser a melhor mãe do mundo. E tu acreditarias.Sem Tom, Malorie só pode contar consigo. E muitas vezes, sentada sozinha à mesa da cozinha, enquanto as crianças dormiam no quarto, fazia a si mesma a pergunta inevitável: És uma boa mãe? Isso ainda existe? Agora, Malorie sente uma pancadinha suave no joelho. Arqueja. Mas é apenas o Rapaz. Está a pedir o saco de comida. No meio do barco, Malorie leva a mão ao bolso do casaco e dá-lhe o saco. Escuta enquanto os seus pequenos dentes esmagam as nozes que estiveram em latas nas prateleiras da cave durante os quatro anos e meio que antecederam o momento em que os acordou naquela manhã. Então, Malorie para de remar. Está com calor. Demasiado calor. Está a suar como se fosse junho. Tira o casaco e pousa-o no banco do barco a remos ao seu lado. Então, sente uma pancadinha nas costas. A Rapariga também tem fome. És uma boa mãe? pergunta-se novamente, entregando-lhe um segundo saco de comida. Como pode esperar que os seus �lhos sonhem tão alto como as estrelas, se não conseguem erguer a cabeça para as contemplar? Malorie não sabe a resposta. 12 Tom está a construir algo com um velho estojo de guitarra e uma almofada de sofá. Olympia está a dormir no andar de cima, no quarto ao lado de Malorie. Felix deu-lho tal como Tom deu o seu a Malorie. Felix passa a dormir no sofá da sala de estar. Na noite anterior, Tom tomou notas detalhadas das coisas que Olympia tem em casa quando ela lho disse. Mas o que começou como uma conversa esperançosa resultou na decisão dos habitantes da casa de que as poucas coisas que poderiam usar não compensavam o risco de ir buscá-las. Papel. Outro balde. A caixa de ferramentas do marido de Olympia. Ainda assim, como Felix fez notar, se e quando a necessidade desses objetos superasse o risco, podiam ir buscá-los. Algumas coisas, disse Don, podiam ser necessárias mais cedo do que esperavam. Frutos secos enlatados, atum, massas, condimentos. Enquanto falavam da comida, Tom detalhou aos outros o stock ainda existente na cave. O facto de ser uma quantidade �nita preocupava profundamente Malorie. Neste momento, Jules está a dormir na salinha ao fundo do corredor. Está deitado num colchão no chão numa das pontas da sala. O colchão de Don está no outro lado. Entre eles há uma mesa alta de madeira onde pousaram as suas coisas. Victor está lá com eles. Jules ressona. O pequeno rádio com leitor de cassetes emite música suave. O som vem da sala de jantar, onde Felix e Don estão a jogar às cartas com um baralho do Pee-Wee Herman. Cheryl está a lavar roupa num balde no lava-loiça. Malorie está sozinha com Tom no sofá da sala de estar. — O antigo dono da casa — pergunta Malorie. — George, não foi como disseste que era o nome dele? Foi ele que colocou o anúncio? Ele estava cá quando chegaste? Tom, que está a tentar fazer uma capa protetora e acolchoada para o interior do para-brisas de um carro, olha Malorie nos olhos. O seu cabelo parece mais claro sob a luz da lâmpada. — Eu fui o primeiro a responder ao anúncio no jornal — diz Tom. — O George foi fantástico. Recebeu estranhos na sua casa quando todos estavam a trancar as portas. E também era progressista, um grande pensador. Estava constantemente a apresentar ideias. Talvez pudéssemos olhar pelas janelas através de lentes? De vidro refratado? De telescópios? Binóculos? Essa foi a sua grande ideia. Se era uma questão de visão, talvez precisássemos apenas de alterar a nossa linha de visão. Ou de mudar as formas físicas como vemos as coisas. Ao olhar através de um objeto, talvez as criaturas não conseguissem fazer-nos mal. Nós os dois estávamos realmente à procura de uma forma de resolver o problema. E o George, sendo o tipo de homem que era, não se �cava pela discussão de possibilidades. Também queria testar as teorias. Enquanto Tom fala, Malorie pensa no rosto que se vê nas fotogra�as ao longo da escada. — Na noite em que o Don chegou, estávamos os três sentados na cozinha, a ouvir rádio, quando o George sugeriu que podia haver alguma variedade de «vida» responsável pelo que estava a acontecer. Isto foi antes de a MSNBC propor essa teoria. O George disse que teve a ideia ao ler um livro antigo, Impossibilidades Possíveis, que falava de formas de vida irreconciliáveis. Dois mundos cujos compostos eram inteiramente estranhos podiam causar danos um ao outro se se cruzassem. E se essa outra forma de vida pudesse chegar aqui de alguma forma… Bem, o que o George estava a dizer aconteceu. Eles encontraram realmente uma forma de viajar até aqui, intencionalmente ou não. Eu adorei a história. Mas ele não. Na altura ele passava muito tempo na Internet, a pesquisar produtos químicos, ondas gama, qualquer coisa invisível que pudesse causar danos se olhássemos para ela por não sabermos que estávamos a olhar para ela. Sim, o Don passava-se muito connosco por causa disso. É uma pessoa intensa. Já deves ter percebido que se zanga com facilidade. Mas o George era o tipo de homem que, quando tinha uma ideia, fazia tudo para a pôr em prática por mais perigosa que fosse. » Quando o Felix e o Jules chegaram, o George estava pronto para testar a sua teoria sobre visão refratada. Li com ele tudo o que conseguiu encontrar na Internet. Tantos sites sobre visão e como funcionam os olhos e as ilusões de ótica e a luz refratada, sobre o funcionamento dos telescópios e muito mais. Estávamos sempre a falar acerca disso. Quando o Don, o Felix e o Jules estavam a dormir, o George e eu sentávamo-nos à mesa da cozinha e desenhávamos diagramas. Ele andava de um lado para o outro, depois parava, virava-se para mim e perguntava-me coisas como: «Sabemos se alguma das vítimas usava óculos? Talvez uma janela fechada pudesse proteger-nos, se aplicássemos determinados ângulos.» Depois passávamos mais meia hora a discutir o assunto. » Acompanhávamos constantemente as notícias, à espera de mais uma pista, alguma informação que pudéssemos usar para encontrar uma forma de nos protegermos. Mas as notícias começaram apenas a repetir-se. E o George começou a �car impaciente. Quanto mais falava sobre testar a sua teoria da «visão alterada», mais queria tentar. Eu tinha medo, Malorie. Mas o George era como o capitão de um navio a afundar, e não tinha medo de morrer. E se resultasse? Bem, isso signi�caria que ele tinha ajudado a curar o planeta da sua epidemia mais aterradora. Enquanto Tom fala, a luz da lâmpada dança nos seus olhos azuis. — O que é que ele usou? — pergunta Malorie. — Uma câmara de vídeo — diz Tom. — Ele tinha uma lá em cima. Uma daquelas câmaras de VHS antigas. Fê-lo sem nos contar. Certa noite, instalou-a por trás de um dos cobertores que tapavam as janelas da sala de jantar. Fui o primeiro a acordar naquela manhã e encontrei-o a dormir ali no chão. Quando ele me ouviu, levantou-se e correu para a câmara. «Tom», disse, «consegui. Tenho cinco horas de �lmagens. Está tudo aqui, aqui, dentro desta câmara. Posso ter nas mãos a cura para isto. Visão indireta. Filme. Temos de ver isto». » Eu disse-lhe que achava que era má ideia. Também não me parecia provável que ele tivesse capturado alguma coisa em apenas cinco horas. Mas ele tinha um plano, que nos expôs. Disse que precisava que um de nós o amarrasse a uma cadeira num dos quartos no andar de cima. Ele ia ver a gravação lá dentro. Na ideia dele, amarrado à cadeira não conseguiria ferir-se se as coisas corressem mal. O Don �cou muito zangado. Disse ao George que ele era uma ameaça para todos nós. Disse, com razão, que não fazíamos ideia daquilo com que estávamos a lidar, e que, se alguma coisa acontecesse ao George, algo podia acontecer a todos nós. Mas o Felix e eu não nos opusemos. Votámos. O Don era o único que não queria que ele o �zesse. Falou em ir embora. Convencemo-lo a desistir da ideia. Finalmente, o George disse- nos que não precisava de permissão na sua própria casa para fazer o que queria. Por isso eu ofereci-me para o amarrar à cadeira. — E amarraste-o? — Sim. O olhar de Tom �xa-se na alcatifa. — Começou com o George a arquejar. Como se tivesse alguma coisa alojada na garganta. Jáestava lá em cima há duas horas e não tinha feito o menor ruído. Então começou a chamar-nos. «Tom! Seu cabrão. Anda cá. Anda cá.» Ria-se, depois gritava e depois uivava. Parecia um cão. Ouvimos a cadeira a bater com força no chão. Ele estava a praguejar aos gritos. O Jules levantou- se para o ajudar e eu agarrei-o por um braço para o impedir. Não podíamos fazer nada a não ser ouvir. E ouvimos tudo. Tudo até a cadeira cair e os gritos pararem. Então esperámos. Esperámos muito tempo. Por �m, subimos as escadas juntos. De olhos vendados, desligámos o vídeo e abrimos os olhos. Vimos o que o George tinha feito a si mesmo. Tinha feito tanta força contra as cordas que elas lhe tinham atravessado os músculos até ao osso. Todo o seu corpo parecia creme para bolos, sangue e pele dobrados sobre as cordas no peito, na barriga, no pescoço, nos pulsos, nas pernas. O Felix vomitou. O Don e eu ajoelhámo-nos ao lado do George e começámos a limpar. Quando terminámos, o Don insistiu que queimássemos a gravação. E foi o que �zemos. E enquanto ela ardia, eu não conseguia parar de pensar que com ela desaparecia a nossa primeira teoria. Parece que, independentemente do prisma por que forem vistos, eles nos fazem mal. Malorie está em silêncio. — Mas sabes uma coisa? Ele tinha razão. De certa forma. Ele levantou a hipótese de que eram criaturas muito antes de os noticiários o dizerem. Claramente tinha percebido algo. Talvez se ele tivesse abordado a questão de uma forma diferente, pudesse ter sido o tipo de homem que muda o mundo. Tom tem lágrimas nos olhos. — Sabes o que mais me preocupa nesta história, Malorie? — O quê? — A câmara só esteve a gravar durante cinco horas e apanhou algo. Quantos deles estarão lá fora? Malorie observa os cobertores que tapam as janelas. E depois volta a olhar para Tom. Ele está a ajustar o protetor de para- brisas que está a construir. Ouve-se uma música suave vinda da sala de estar. — Bem — diz Tom, levantando-o —, espero que algo deste género ajude. Sabes, não podemos parar de tentar só porque o George morreu. Às vezes acho que aquilo marcou o Don. Não há dúvida de que algo mudou nele. Tom levanta o grande objeto à sua frente. Malorie ouve um estalo e a construção de Tom cai feita em pedaços aos seus pés. Ele vira-se para Malorie. — Não podemos parar de tentar. 13 Felix encaminha-se para o poço. Na mão direita transporta um dos seis baldes da casa. É o de madeira. A pega de ferro negra dá- lhe um ar antigo. É mais pesado do que os outros, mas Felix não se importa. Pelo contrário, agrada-lhe. Mantém-no centrado, diz. Tem a corda amarrada à cintura. A outra extremidade está atada a uma estaca de aço cravada no chão em frente à porta das traseiras da casa. Há muita corda. Parte da corda roça-lhe nas perneiras das calças e nos sapatos. Ele tem medo de tropeçar, por isso levanta-a com a mão esquerda e afasta-a do corpo. Tem os olhos vendados. Os pedaços de molduras antigas que assinalam o caminho permitem-lhe perceber se está demasiado perto de um dos lados. — É como jogar ao Operação! — grita para Jules, que o espera, com os olhos vendados, junto à estaca. — Lembras-te desse jogo? Sempre que o meu dedo do pé toca na madeira, ouço um sinal sonoro. Jules ainda não parou de falar desde que Felix começou a caminhada em direção ao poço. É assim que os habitantes da casa executam aquela tarefa. Um vai buscar água, o outro mostra-lhe a que distância está da casa com a sua voz. Jules não está a dizer nada de especial. Recita as notas que teve na faculdade. Os seus primeiros três empregos depois de terminar o curso. Felix consegue ouvir algumas palavras, outras não. Não importa. Enquanto Jules estiver a falar, Felix sente-se um pouco menos como se estivesse à deriva no mar. Mas não muito menos. Choca com o poço quando o alcança. Arranha a perna na aresta de uma pedra e espanta-o que um embate tão suave lhe cause tanta dor; nem imagina como seria se estivesse a correr. — Estou no poço, Jules! Estou a prender o balde. Jules não é o único à espera de Felix. Cheryl está atrás da porta das traseiras fechada. Está de pé na cozinha, a ouvir através da porta. O colega de casa que espera na cozinha só está lá para o caso de algo correr mal no exterior. Ela espera que o seu papel como «rede de segurança» não seja necessário hoje. Por cima da boca do poço há uma barra de madeira. Em cada extremidade há um gancho de ferro. É por isso que Felix gosta de levar o balde de madeira quando vai buscar água. É o único que encaixa perfeitamente nos ganchos. Ele amarra a corda do poço ao balde. Depois de o prender, gira a manivela, esticando ao máximo a corda. Com as mãos livres, limpa-as às calças de ganga. Então ouve algo a mover-se ali fora. Virando rapidamente a cabeça, Felix ergue as mãos em frente ao rosto. Mas não acontece nada. Nada vem na sua direção. Consegue ouvir Jules a falar junto à porta das traseiras. Diz algo acerca de trabalhar como mecânico. A reparar coisas. Felix escuta. Com a respiração acelerada, ele dá à manivela uma vez na direção oposta, com a audição focada no resto do jardim. A corda está apenas su�cientemente solta para lhe permitir soltar o balde dos ganchos e deixá-lo pendurado, suspenso, por cima da boca de pedra do poço. Ele aguarda mais um minuto. Jules chama-o. — Está tudo bem, Felix? Felix escuta um pouco mais antes de responder. Enquanto responde, sente que a sua voz denuncia a sua localização exata. — Sim. Pareceu-me ter ouvido algo. — O quê? — Pareceu-me ter ouvido algo! Estou a tirar a água agora. Girando a manivela, Felix baixa o balde. Ouve-o a bater nos lados de pedra do interior do poço. Seguem-se ecos ocos. Felix sabe que é preciso dar cerca de 20 voltas à manivela para o balde chegar à água. Está a contar. — Onze, doze, treze… Aos dezanove ouve o som de algo a bater em água no fundo do poço. Quando acha que o balde está cheio, volta a puxá-lo para cima. Prendendo-o nos ganchos, solta a corda e começa a caminhar novamente na direção de Jules. Vai fazer isto três vezes. — Estou a trazer o primeiro! — grita Felix. Jules ainda está a falar de reparar carros. Quando Felix chega junto dele, Jules toca-lhe no ombro. Normalmente, nesta altura, o colega de casa que está parado junto à estaca bate na porta das traseiras, alertando a pessoa que espera lá dentro que o primeiro balde foi trazido. Mas Jules hesita. — O que é que ouviste? — pergunta. Felix, carregando o balde pesado, pensa. — Provavelmente era um veado. Não tenho a certeza. — Veio do bosque? — Não sei de onde veio. Jules está imóvel. Então Felix ouve-o a mover-se. — Estás a tentar certi�car-te de que estamos sozinhos? — Sim. Quando está satisfeito, Jules bate duas vezes na porta das traseiras. Tira o balde das mãos de Felix. Cheryl abre rapidamente a porta e Jules passa-lhe o balde. A porta fecha-se. — Aqui está o segundo — diz Jules, entregando outro balde a Felix. Felix caminha em direção ao poço. O balde que transporta agora é feito de chapa metálica. Há três destes na casa. No fundo tem duas pedras pesadas. Tom pô-las lá quando determinou que o balde não era su�cientemente pesado para submergir. É pesado, mas não tanto como o de madeira. Jules está outra vez a falar. Agora enumera raças de cães. Felix já ouviu tudo isto antes. Jules teve um labrador branco, Cherry, que a�rma ser o cão mais ansioso que já conheceu. Quando o seu sapato toca num pedaço de madeira no chão, Felix quase cai. Está a caminhar muito depressa. Tem consciência disso. Abranda. Desta vez, junto ao poço, estende a mão para o encontrar. Pousa o balde no bordo de pedra e começa a prender a corda da barra transversal à pega do balde. Ouve algo. Outra vez. Parece madeira a estalar ao longe. Quando Felix se vira, derruba acidentalmente o balde. Ele cai lá para dentro; a manivela gira sem ele. O balde bate no fundo. Ouvem-se ecos de metal contra pedra. Jules chama-o. Felix, virando-se, sente-se incrivelmente vulnerável. Mais uma vez, não sabe de onde veio o som. Escuta, com a respiração acelerada. Inclinando-secontra a pedra, ele espera. O vento agita as folhas das árvores. Mais nada. — Felix? — Deixei cair o balde no poço! — Estava preso? Ele faz uma pausa. Felix vira-se nervosamente para o poço. Puxa a corda da barra e descobre que sim, tinha-a prendido à pega antes de deixar cair o balde. Solta a corda. Vira-se para o resto do jardim. Faz uma pausa. Então começa a puxar o segundo balde. Enquanto caminha de volta para a casa, Jules enche-o de perguntas. — Estás bem, Felix? — Sim. — Deixaste-o cair? — Sim. Pensei ter ouvido algo outra vez. — O que é que te pareceu? Um galho a quebrar-se? — Não. Sim. Talvez. Não sei. Quando Felix chega ao pé de Jules, este pega no balde. — Tens a certeza de que queres fazer isto hoje? — Sim. Já tirei dois baldes. Está tudo bem. Estou só a ouvir coisas lá fora, Jules. — Queres que eu vá buscar o último? — Não. Eu vou. Jules bate à porta das traseiras. Cheryl abre, recebe o balde e dá o terceiro a Jules. — Vocês estão bem? — pergunta ela. — Sim — diz Felix. — Estamos ótimos. Cheryl fecha a porta. — Aqui tens — diz Jules. — Se precisares de mim, diz. Lembra- te, estás ligado a mim. Ele puxa a corda. — OK. Na terceira viagem ao poço, Felix tem de se lembrar de abrandar novamente. Sabe porque é que tem pressa. Quer voltar para dentro, onde pode olhar para o rosto de Jules, onde os cobertores nas janelas o fazem sentir-se mais seguro. Ainda assim, chega ao poço mais cedo do que esperava. Lentamente, amarra a corda da barra do poço à pega do balde. Então para. Não se ouve nada para além da voz de Jules, vinda da outra extremidade da corda. O mundo parece anormalmente silencioso. Felix gira a manivela. — Um, dois… Jules está a falar. A sua voz parece distante. Muito distante. — … seis, sete… Jules parece ansioso. Porque é que parece ansioso? Deveria estar também? — … dez, onze… Gotas de suor formam-se por trás da venda que cobre os olhos de Felix. O suor corre-lhe lentamente para o nariz. Não tarda nada vamos estar dentro de casa outra vez, pensa Felix. Só preciso de encher o terceiro balde e dar à… Volta a ouvir aquele som. Pela terceira vez. Mas agora sabe de onde vem. Está a vir do interior do poço. Ele solta a manivela e recua. O balde cai, batendo contra a pedra, antes de bater na água lá em baixo. Algo se moveu. Algo se moveu na água. Algo se moveu na água? Subitamente, sente frio, muito frio. Está a tremer. Jules chama-o, mas Felix não quer responder. Não quer fazer o menor ruído. Ele espera. E quanto mais espera, mais assustado �ca. Como se o silêncio estivesse a tornar-se mais intenso. Como se estivesse prestes a ouvir algo que não quer ouvir. Mas quando nenhum som surge, começa lentamente a convencer-se de que estava enganado. Claro, pode ter sido algo no poço, mas também pode ter sido algo no rio. Ou no bosque. Ou na relva. Pode ter vindo de qualquer lugar. Ele avança novamente para o poço. Antes de estender a mão para a corda, toca no bordo de pedra do poço. Corre os dedos por ele. Está a tentar determinar a sua largura. Caberias aqui dentro? Alguém conseguiria caber aqui dentro? Não tem a certeza. Vira-se para a casa, pronto para largar o balde. Depois volta-se para o poço e começa a girar a manivela, depressa. Estás a ouvir coisas. Estás a perder o juízo, meu. Puxa o raio do balde. Volta para dentro. Agora. Mas enquanto gira a manivela, Felix sente o início de um medo que pode ser grande demais para enfrentar. O balde parece-lhe um pouco mais pesado do que o habitual. NÃO ESTÁ mais pesado! PUXA o balde e VOLTA para dentro AGORA! Quando o balde chega ao bordo do poço, Felix para. Lentamente, estende uma mão para ele. Tem a mão a tremer. Quando os seus dedos tocam na pega húmida de aço, ele engole em seco. Prende a manivela. E então en�a a mão no balde. — Felix? Jules está a chamá-lo. Felix não sente nada a não ser água no balde. Vês? Estás a imaginar… Atrás dele, ouve passos molhados na relva. Felix deixa cair o balde e corre. Cai. Levanta-te. Volta a levantar-se e corre. Jules está a chamá-lo. Ele está a responder. Cai novamente. Levanta-te. Levanta-te. Levanta-se e corre. As mãos de Jules tocam-lhe. A porta das traseiras está a abrir-se. As mãos de outra pessoa agarram-no. Ele está lá dentro. Estão todos a falar ao mesmo tempo. Don está a gritar. Cheryl está a gritar. Tom ordena a todos que se acalmem. A porta das traseiras está fechada. Olympia pergunta o que está a acontecer. Cheryl pergunta o que aconteceu. Tom está a dizer a todos para fecharem os olhos. Alguém está a tocar em Felix. Jules grita, ordenando a todos que se calem. Eles calam-se. Então Tom fala, em voz baixa. — Don, viste junto à porta das traseiras? — Como é que queres que eu saiba se o �z bem, meu? — Só estou a perguntar se procuraste. — Procurei. Sim. Procurei. Tom pergunta: — Felix, o que aconteceu? Felix conta-lhes. Todos os detalhes de que se lembra. Tom pede-lhe que repita o que aconteceu no �m. Quer saber mais sobre o que aconteceu junto à porta das traseiras. Antes de o deixarem entrar. Quando o deixaram entrar. Felix repete. — OK — diz Tom novamente. — Vou abrir os olhos. Malorie �ca tensa. — Estou bem — diz Tom. — Está tudo bem. Malorie abre os olhos. Na bancada da cozinha há dois baldes com água do poço. Felix está de pé, vendado, junto à porta das traseiras. Jules está a tirar-lhe a venda. — Tranquem essa porta — ordena Tom. — Está trancada — responde Cheryl. — Jules — diz Tom —, empilha as cadeiras da sala de jantar em frente a esta porta. Depois bloqueia a janela da sala de jantar com a mesa. — Tom — diz Olympia —, estás a assustar-me. — Don, vem comigo. Vamos bloquear a porta da frente com o aparador. Felix, Cheryl, virem o sofá na sala. Bloqueiem uma das janelas. Encontrem algo para bloquear a outra. Os colegas de casa estão a olhar para Tom. — Vamos — ordena ele, impaciente. — Vamos! Quando começam a dispersar, Malorie toca no braço de Tom. — O que é? — A Olympia e eu podemos ajudar. Estamos grávidas, não incapacitadas. Vamos pôr os colchões do andar de cima contra as janelas. — OK. Mas façam-no com os olhos vendados. E tenham mais cuidado do que nunca. Então, Tom sai da cozinha. Quando Malorie e Olympia passam pela sala de estar, Don já lá está, a mover o sofá. No andar de cima, as duas mulheres colocam delicadamente o colchão de Malorie de lado contra o cobertor que tapa a janela. Fazem o mesmo nos quartos de Olympia e Cheryl. Novamente no andar de baixo, as portas e as janelas estão barricadas. Os colegas de casa estão na sala de estar. Estão muito juntos. — Tom — diz Olympia —, há alguma coisa lá fora? Tom faz uma pausa antes de responder. Malorie vê algo mais profundo do que medo nos olhos de Olympia. Também o sente. — Talvez. Tom está a olhar para as janelas. — Mas pode ter sido… um veado, não pode? Não pode ter sido um veado? — Talvez. Um a um, os colegas de casa sentam-se no chão alcatifado da sala de estar. Estão ombros com ombros, costas com costas. No centro da sala, com o sofá contra uma janela e as cadeiras da cozinha empilhadas contra a outra, �cam sentados em silêncio. Escutam. 14 A água fria do rio salpica as calças de Malorie enquanto ela rema. Sempre que isso acontece, ela imagina uma das criaturas no rio, a pôr as mãos em concha, a atirar-lhe água para cima, a troçar da sua tentativa de fuga. Ela estremece. O livro do bebé de Olympia, recorda Malorie, ensinou-lhe muitas coisas. Mas havia uma frase no livro Finalmente… um Bebé! que a marcou especialmente: O seu bebé é mais inteligente do que você pensa. A princípio, Malorie teve di�culdade em aceitar isto. No novo mundo, os bebés tinham de ser treinados para acordar de olhos fechados. Tinham de ser educados com medo. Não havia espaço para incógnitas. No entanto, havia momentos em que o Rapaz e a Rapariga a surpreendiam. Uma vez, depois de ter tirado do corredor os brinquedos improvisados das crianças, Malorie entrou na sala de estar. Ali, ouviu algo a mover-se no quarto ao fundo do corredor no andar de cima. — Rapaz? — chamou. — Rapariga?Mas sabia que as crianças estavam no quarto. Tinha-as trancado nos berços menos de uma hora antes. Malorie fechou os olhos e entrou no corredor. Sabia que som era aquele. Sabia exatamente onde estava cada objeto daquela casa. Era o som de um livro a cair da mesa no quarto que Don e Jules tinham partilhado em tempos. Malorie parou à porta do quarto das crianças. Lá dentro ouviu um suave ressonar. Um segundo estrondo no outro quarto e Malorie abafou um grito. A casa de banho �cava a poucos metros de distância. As crianças estavam a dormir. Se conseguisse entrar na casa de banho, poderia defender-se. Às cegas, com os braços levantados à frente do rosto, avançou rapidamente, chocando com a parede antes de entrar na casa de banho. Lá dentro, bateu com a anca contra o lavatório. Tateando freneticamente ao longo da parede, encontrou uma toalha pendurada. Atou-a �rmemente em volta da cabeça para tapar os olhos. Deu dois nós. Então, atrás da porta aberta, encontrou o que procurava. O machado do jardim. Armada, de olhos vendados, saiu da casa de banho. Agarrando o cabo do machado com as duas mãos, avançou em direção à porta que sabia que estava sempre fechada. A porta que agora estava aberta. Entrou. Balançou o machado às cegas, ao nível dos olhos. O machado atingiu a parede de madeira e Malorie gritou quando as farpas saltaram. Virou-se e balançou novamente, desta vez atingindo a parede oposta. — Sai daqui! Deixa os meus �lhos em paz! Ofegante, esperou. Por uma resposta. Por um movimento. Pelo que quer que tivesse derrubado os livros ali dentro. Então ouviu o Rapaz aos seus pés, a gemer. — Rapaz? Atordoada, ajoelhando-se, Malorie encontrou-o rapidamente. Tirou a toalha e abriu os olhos. Nas suas mãos minúsculas, viu que ele tinha uma régua. Ao seu lado estavam os livros. Ela pegou-lhe e levou-o para o quarto. Ali, viu a cobertura de arame do berço aberta. Pousou-o no chão ao lado dela. Então voltou a fechá-la e pediu ao Rapaz que a abrisse. O Rapaz limitou- se a olhar para ela. Ela brincou com o pequeno fecho, pedindo- lhe para lhe mostrar se era capaz de o abrir. E ele mostrou. Malorie deu-lhe uma bofetada. Finalmente… um bebé! Lembrou-se do livro de Olympia que agora era seu. E a única frase que tentara ignorar voltou à sua mente. O seu bebé é mais inteligente do que você pensa. Aquilo costumava preocupá-la. Mas hoje, no barco, usando os ouvidos das crianças como guia, agarra-se a ela, esperando que as crianças estejam o mais preparadas possível para o que possa surgir mais à frente no rio. Sim, espera que sejam mais inteligentes do que o que está à sua frente. 15 — Não vou beber aquela água — diz Malorie. Os colegas de casa estão esgotados. Dormem juntos na sala de estar, embora ninguém durma por muito tempo. — Não podemos passar dias sem beber, Malorie — diz Tom. — Pensa no bebé. — É nele que estou a pensar. Na cozinha, em cima da bancada, os dois baldes que Felix trouxe continuam intocados. Um a um, os colegas de casa lambem os lábios secos, tentando humedecê-los. Já passaram 24 horas e a probabilidade de �carem muito mais tempo naquela incerteza pesa nas mentes de todos. Estão sedentos. — Podemos beber a água do rio? — pergunta Felix. — Bactérias — responde Don. — Depende — diz Tom. — Do quão fria a água está. Da profundidade. Da velocidade a que corre. — E de qualquer forma — diz Jules —, se alguma coisa entrou no poço, tenho a certeza de que entrou no rio. Contaminação, pensa Malorie. É a palavra do momento. Na cave há três baldes de urina e fezes. Ninguém quer levá-los para a rua. Ninguém quer ir lá fora hoje. O cheiro na cozinha é forte e penetra levemente na sala de estar. — Eu beberia a água do rio — diz Cheryl. — Era capaz de arriscar. — Queres ir lá fora? — pergunta Olympia. — Pode haver algo do outro lado da porta! — Eu não sei o que ouvi — diz Felix. Já o disse várias vezes. Disse que se sente culpado por os ter assustado a todos. — Provavelmente era uma pessoa — diz Don. — Provavelmente alguém que nos quer roubar. — Temos de descobrir isso agora? — pergunta Jules. — Só passou um dia. Não ouvimos nada. Vamos esperar. Mais um dia. A ver se nos sentimos melhor. — Eu até era capaz de beber dos baldes — diz Cheryl. — É um poço, por amor de Deus. Os animais estão constantemente a cair em poços. Morrem lá. Provavelmente estivemos este tempo todo a beber água com animais mortos. — A água deste bairro sempre foi boa — diz Olympia. Malorie levanta-se. Caminha até à porta da cozinha. A água brilha na borda do balde de madeira, brilha no metal. O que é que isto nos pode fazer? pergunta-se. — Consegues imaginar-te a beber uma pequena quantidade de um deles? — pergunta Tom. Malorie vira-se. Ele está ao lado dela. O seu ombro roça no dela à entrada da cozinha. — Não sou capaz, Tom. — Não te pediria que o �zesses. Mas posso perguntar. Quando Malorie o olha nos olhos, sabe que ele está a falar a sério. — Tom. Tom vira-se para os outros na sala de jantar. — Vou beber — diz ele. — Não precisamos de heróis — diz Don. — Não é essa a minha intenção, Don. Estou com sede. Os colegas de casa estão calados. Malorie vê em cada rosto o sentimento que alberga em si mesma. Por mais assustada que esteja, quer que alguém beba. — Isso é uma loucura — diz Felix. — Vá lá, Tom. Vamos conseguir encontrar outra solução. Tom entra na sala de jantar. À mesa, olha Felix nos olhos. — Tranca-me na cave. Vou beber lá. — Vais enlouquecer com o cheiro — diz Cheryl. Tom faz um sorriso triste. — Temos um poço, mesmo no nosso quintal — diz ele. — Se não pudermos usá-lo, não podemos usar nada. Deixem-me fazer isto. — Sabes quem nos fazes lembrar? — pergunta Don. Tom �ca à espera. — O George. Com uma diferença: ele tinha uma teoria. Tom olha para a mesa da sala de jantar que está a barricar a janela. — Estamos aqui há meses — diz ele. — Se alguma coisa entrou para o poço ontem, provavelmente já lá entrara antes. — Estás a racionalizar — diz Malorie. Tom responde sem se virar para ela. — E temos alternativa? Claro, o rio. Mas podemos �car doentes. Muito doentes. Não temos medicamentos. A única coisa que tivemos até agora é a água do poço. É o único medicamento que temos. O que mais podemos fazer? Caminhar até ao próximo poço? E depois? Esperamos que nada entre nesse? Malorie observa, um por um, os colegas de casa a concordar com Tom. A rebelião natural no rosto de Don dá lugar à preocupação. O medo nos olhos de Olympia transforma-se em culpa. Malorie não quer que ele o faça. Pela primeira vez desde a sua chegada à casa, o papel de Tom, o quanto é integral para tudo o que acontece ali, ofusca-a. Mas, em vez de o travar, ela deixa-se inspirar por ele. E ajuda-o. — Na cave não — diz ela. — E se enlouqueceres lá dentro e destruíres as nossas reservas de comida? Tom vira-se para ela. — Muito bem — concorda ele. — Então, no sótão. — Um salto da janela do sótão é muito mais alto do que de uma das janelas aqui de baixo. Tom olha �xamente para os olhos de Malorie. — OK, então o meio-termo — diz ele. — O segundo andar. Têm de me trancar nalgum lugar. E não há lugar aqui em baixo. — Podes usar o meu quarto. — Esse quarto — diz Don —, é o que o George usou para ver o vídeo. Malorie olha novamente para Tom. — Eu não sabia. — Vamos a isto — diz Tom. Ele faz uma pausa, por um breve momento, antes de passar por Malorie e entrar na cozinha. Malorie segue-o. Os colegas de casa seguem-no. Quando ele tira um copo do armário, Malorie agarra- lhe suavemente no braço. — Bebe através disto — diz ela. Dá-lhe um �ltro de café. — Não sei. Um �ltro. Quem sabe? Tom pega no �ltro. Olha-a nos olhos. E depois mergulha o copo no balde de madeira. Quando o retira, ergue-o no ar. Os colegas de casa formam um semicírculo à sua volta. Observam o conteúdo do copo. Os detalhes da história de Felix voltam a arrepiar Malorie. Com o copo na mão, Tom sai da cozinha. Jules tira uma corda da despensa da cozinha e segue-o. Os outros colegas de casa não falam. Malorie pousa uma mão na barriga e a outra na bancada.Depois levanta-a rapidamente, como se tivesse acabado de a pousar numa substância mortífera. Contaminação. Mas não havia água onde ela pousou a mão. No andar de cima, a porta do quarto fecha-se. Ela �ca à escuta enquanto Jules amarra a corda em volta da maçaneta da porta e prende a outra ponta ao corrimão da escada. Agora, Tom está trancado. Como George. Felix caminha de um lado para o outro. Don está encostado à parede, de braços cruzados, a �tar o chão. Quando Jules regressa, Victor aproxima-se dele. Ouve-se um som vindo do andar de cima. Malorie abafa um grito. Os colegas de casa olham para o teto. Esperam. Escutam. Felix move-se como se se preparasse para ir lá. Depois para. — Ele já deve ter bebido — diz Don em voz baixa. Malorie avança para a entrada da sala de estar. Ali, a dez metros de distância, começa a escada. Há apenas silêncio. Depois ouve-se uma batida. E Tom grita. Tom grita Tom grita Tom grita Tom Malorie já está a avançar para a escada, mas Jules ultrapassa-a. — Fica aqui! — ordena. Ela vê-o a subir os degraus. — Tom! — Jules, estou bem. Ao ouvir a voz de Tom, Malorie expira. Apoia-se no corrimão. — Bebeste? — pergunta Jules através da porta. — Sim. Bebi. Estou bem. Os outros colegas de casa estão agora reunidos atrás dela. Começam a falar. Primeiro em voz baixa. Depois com entusiasmo. Lá em cima, Jules desata a corda. Tom sai do quarto com o copo vazio na mão. — Que tal? — pergunta Olympia. Malorie sorri. Os outros também. É engraçado, e ao mesmo tempo sinistro, perguntar como foi beber um copo de água. — Bem — diz Tom, descendo a escada —, foi provavelmente o melhor copo de água que já bebi. Quando ele chega ao fundo da escada, olha Malorie nos olhos. — Gostei da ideia do �ltro — diz ele. Quando passa por ela, pousa o copo na mesa do telefone. Depois volta-se para os outros. — Vamos voltar a pôr os móveis no lugar. Vamos voltar a pôr este sítio em ordem. 16 No rio, Malorie sente o calor do sol do meio-dia. Em vez de lhe dar paz, relembra-a do quanto devem estar visíveis. — Mamã — sussurra o Rapaz. Malorie inclina-se para a frente. Uma farpa do remo espeta-se na sua mão. Já é a terceira. — O que é? — Shhh — diz o Rapaz. Malorie para de remar. Põe-se à escuta. O Rapaz tem razão. Algo se move na terra à sua esquerda. Galhos que se quebram. Mais do que um. O homem do barco viu algo neste rio, grita a mente de Malorie. Poderá ser ele? Pode estar no bosque? Pode estar atrás dela, à espera que �que presa, pronto para lhe arrancar a venda? A das crianças? Mais galhos a quebrarem-se. O que quer que seja, move-se lentamente. Malorie pensa na casa que deixaram para trás. Estavam em segurança ali. Porque é que partiram? O lugar para onde se dirigem será mais seguro? Como pode ser? Num mundo onde não se pode abrir os olhos, uma venda não é tudo o que se pode desejar? Partimos porque algumas pessoas optam por aguardar notícias e outras fazem as suas próprias notícias. Como Tom costumava dizer. Malorie sabe que nunca vai deixar de se sentir inspirada por ele. Só o facto de pensar nele, ali, no rio, a enche de esperança. Tom, quer dizer-lhe, as tuas ideias eram boas. — Rapaz — sussurra ela, remando novamente, com medo de estar demasiado perto da margem esquerda —, o que é que estás a ouvir? — Está perto, mamã. — Depois diz: — Tenho medo. Há um momento de silêncio. Durante esse tempo, Malorie imagina um perigo a apenas centímetros de distância. Para de remar novamente, para ouvir melhor. Inclina o pescoço para a esquerda. A frente do barco a remos bate em algo duro. Malorie grita. As crianças gritam. Chocámos com a margem! Malorie faz um movimento para espetar um remo onde crê que está a lama, mas não encontra nada. — Deixa-nos em paz! — grita, com o rosto contorcido. Subitamente, anseia pelas paredes da casa. Não há paredes neste rio. Não há nenhuma cave por baixo dele. Nenhum sótão por cima. — Mamã! Quando a Rapariga grita por ela, algo emerge dos ramos. Algo grande. Malorie volta a lançar o remo, mas só acerta em água. Agarra no Rapaz e na Rapariga e puxa-os para si. Ouve rosnar. — Mamã! — Silêncio! — grita ela, puxando a Rapariga ainda mais para junto de si. Será o homem? Enlouquecido? As criaturas rosnam? Fazem algum barulho? Um segundo rosnado agora e, subitamente, Malorie percebe o que é. É algo canino. Lobos. Não tem tempo para se encolher antes de uma garra de lobo lhe rasgar o ombro. Ela grita. Sente imediatamente o sangue quente a jorrar-lhe ao longo do braço. A água fria agita-se no fundo do barco. A urina também. Eles sentem o cheiro, pensa Malorie, frenética, virando a cabeça em todas as direções e brandindo o remo ao acaso. Eles sabem que não nos podemos defender. Ouve outro rosnado. É uma matilha. A ponta do barco a remos �ca presa em algo. Malorie não consegue encontrá-lo com o remo. Mas o barco gira, como se os lobos tivessem agarrado a proa. Eles podem entrar! ELES PODEM ENTRAR! Rasteja para a frente do barco. Tens de o soltar. Balançando o remo acima das cabeças das crianças, gritando, Malorie levanta-se. O barco inclina-se para a direita. Ela pensa que o barco se vai virar. Endireita-se. Os lobos rosnam. O ombro arde-lhe, com uma dor que nunca tinha sentido. Agarrando nele, às cegas, descontroladamente, ela agita o remo na direção da ponta do barco. Mas não consegue alcançá-la. Então dá um passo em frente. — Mamã! Ela cai de joelhos. O Rapaz está agora ao seu lado. Está a agarrar-lhe na camisa. — Preciso que me largues! — grita ela. Algo salta para a água. Malorie vira a cabeça na direção do som. Esta parte será muito rasa? Eles conseguem entrar no barco? Os lobos conseguem ENTRAR NO BARCO?? Virando-se rapidamente, ela rasteja até à ponta do barco a remos e estica a mão, às cegas. Atrás dela, as crianças gritam. A água salpica-a. O barco balança. Os lobos rosnam. E na escuridão dos seus próprios olhos fechados, a mão de Malorie sente um toco. Grita ao esticar os dois braços. O ombro esquerdo dói-lhe. Sente o ar gelado de outubro na sua pele ferida. Com a segunda mão, sente um segundo coto de árvore. Estamos presos. Só isso! Estamos presos! Enquanto ela faz força contra os dois cotos, algo bate no barco. Ela ouve garras a arranhar, a tentar trepar. O barco roça contra a madeira. Há chapinhados na água. Malorie ouve o som vindo de todas as direções. Ouve outro rosnar e sente calor. Há algo perto do seu rosto. Ela berra e volta a empurrar. E �nalmente consegue soltar o barco. Virando-se demasiado depressa, Malorie tropeça e cai no banco do meio. — Rapaz! — grita. — Mamã! E depois tateia à procura da Rapariga e descobre o seu corpo colado ao banco do meio. — Estão bem? Falem comigo! — Tenho medo — diz a Rapariga. — Eu estou bem, mamã! — diz o Rapaz. Malorie rema depressa. O ombro esquerdo, que já passou o ponto de exaustão, resiste. Mas ela obriga-o a funcionar. Malorie rema. As crianças estão encolhidas junto aos seus joelhos e pés. A água abre-se sob a madeira. Ela rema. O que mais pode fazer? O que mais pode fazer, senão remar? Os lobos podem estar a vir aí. Até que ponto o rio é raso naquela parte? Malorie rema. Parece-lhe que tem o braço pendurado. Mas ela rema. O lugar para onde está a levar as crianças pode já não existir. A viagem excruciante, atravessando o rio às cegas, pode não resultar em nada. Quando chegarem lá, ao fundo do rio, estarão em segurança? E se o que procura não estiver lá? 17 — Nós assustamo-los — diz Olympia subitamente. — O que é que queres dizer com isso? — pergunta Malorie. As duas estão sentadas no terceiro degrau da escada. — Os nossos colegas de casa. Eles têm medo das nossas barrigas. E eu sei porquê. É porque um dia vão ter de fazer os partos. Malorie olha para a sala de estar. Está na casa há dois meses. Está grávida de cinco meses. Também pensou nisso. Claro que sim. — Quem é que achas que vai fazê-lo? — pergunta Olympia, com os olhos grandes e inocentes �xos em Malorie. — O Tom — diz Malorie. — OK, mas eu sentir-me-ia muito melhor se houvesse um médico nacasa. Este pensamento está sempre na mente de Malorie. O dia inevitável em que dará à luz. Sem médico. Sem medicamentos. Sem amigos ou família. Tenta imaginar que é uma experiência breve. Algo que vai acontecer depressa e acabar logo. Imagina o momento em que lhe rebentam as águas, e depois imagina-se a pegar no bebé. Não quer pensar no que acontece entre uma coisa e outra. Os outros estão reunidos na sala de estar. As tarefas da manhã estão terminadas. Durante todo o dia, Malorie teve a sensação de que Tom está a pensar em alguma coisa. Tem estado distante. Isolado com os seus pensamentos. Agora ele está de pé no centro da sala, rodeado por todos os habitantes da casa, e revela o que tem estado a pensar. É exatamente o que Malorie esperava que não fosse. — Tenho um plano — diz ele. — Oh, sim? — pergunta Don. — Sim. — Tom faz uma pausa, como que para se certi�car uma última vez daquilo que se prepara para dizer. — Precisamos de guias. — O que queres dizer com isso? — pergunta Felix. — Quero dizer que vou procurar cães. Malorie levanta-se da escada e caminha até à entrada da sala de estar. A ideia de Tom sair de casa cativou a sua atenção, bem como a dos outros. — Cães? — pergunta Don. — Sim — diz Tom. — Cães vadios. Antigos animais de estimação. Deve haver centenas lá fora. À solta. Ou presos dentro de casas de onde não podem sair. Se vamos sair para arranjar comida, coisa que todos sabemos que temos de fazer, eu gostava de ter ajuda. Os cães podem alertar-nos. — Tom, não sabemos o efeito que eles têm nos animais — diz Jules. — Eu sei. Mas não podemos �car parados. A tensão na sala aumentou. — Estás louco — diz Don. — Estás mesmo a pensar ir lá para fora. — Vamos armados — diz Tom. Don inclina-se para a frente na poltrona. — O que é que tens em mente? — Tenho andado a fazer capacetes — diz Tom. — Para proteger as nossas vendas. Vamos levar facas. Os cães podem guiar-nos. Se um deles enlouquecer? Soltamos a trela. Se o animal vier atrás de nós, matamo-lo com a faca. — Às cegas. — Sim. Às cegas. — Não me agrada — diz Don. — Porquê? — Pode haver gente perigosa lá fora. Criminosos. As ruas não são o que eram, Tom. Já não estamos nos subúrbios. Estamos no caos. — Bem, algo tem de mudar — diz Tom. — Precisamos de fazer progressos. Caso contrário estamos à espera de notícias num mundo onde já não há notícias. Don �ta o tapete. Depois volta-se para Tom. — É muito perigoso. Não há razão para isso. — Há todas as razões para isso. — Eu digo que devemos esperar. — Esperar pelo quê? — Por socorro. Por alguma coisa. Tom olha para os cobertores que tapam as janelas. — Não vai chegar ajuda, Don. — Isso não signi�ca que devamos correr para a rua à procura dela. — Vamos a votos — diz Tom. Don olha para os rostos dos outros colegas de casa. É óbvio que está à procura de alguém que concorde com ele. — Votar — diz Don. — Essa ideia também não me agrada. — Porquê? — pergunta Felix. — Porque não estamos a tentar decidir de que baldes beber e em que baldes urinar, Felix. Estamos a falar de um ou mais de nós saírem desta casa, sem um bom motivo. — Não é sem um bom motivo — diz Tom. — Pensa nos cães como um sistema de alarme. O Felix ouviu algo junto ao poço há duas semanas. Seria um animal? Um homem? Uma criatura? O cão adequado talvez tivesse ladrado. Estou a falar de procurar aqui no bairro. Talvez no próximo também. Dá-nos doze horas. É tudo o que peço. Doze horas, pensa Malorie. Tirar água do poço leva apenas meia hora. Mas o número, por ser �nito, acalma-a. — Não percebo porque é que haveríamos de procurar cães de rua — diz Don. Aproxima-se de Victor, que está aos pés de Jules. — Temos aqui um. Vamos treiná-lo. — Nem pensar — responde Jules, levantando-se. — Porquê? — Eu não o trouxe para ser sacri�cado. Até sabermos como os cães são afetados, não estou de acordo. — Sacri�cado — diz Don. — Boa escolha de palavras. — A resposta é não — repete Jules. Don vira-se para Tom. — Estás a ver? A única pessoa da casa que tem um cão é contra. — Eu não disse que era contra a ideia do Tom — diz Jules. Don olha em volta da sala. — Então são todos a favor? A sério? Acham todos que é boa ideia? Olympia olha para Malorie, de olhos arregalados. Don, vendo uma oportunidade para conseguir uma aliada, aproxima-se dela. — O que achas, Olympia? — pergunta. — Oh! Eu… bem… Eu… não sei! — Don — diz Tom. — Vamos fazer uma votação a sério. — Eu concordo — diz Felix. Malorie olha em volta da sala. — Eu também — diz Jules. — Também eu — diz Cheryl. Tom volta-se para Don. Quando o faz, Malorie sente algo a afundar-se dentro de si. A casa precisa dele, percebe Malorie. — Eu vou contigo — diz Jules. — Já que não te deixo usar o meu cão, posso ao menos ajudar-te a encontrar outros. Don abana a cabeça. — Vocês são loucos. — Então vamos começar a fazer um capacete para ti também — diz Tom, plantando uma mão no ombro de Jules. Na manhã seguinte, Tom e Jules estão a dar os últimos retoques no segundo capacete. Vão sair hoje. Malorie acha que está tudo a acontecer demasiado depressa. Acabaram de votar a favor de se sair, mas é preciso saírem já? Don não tenta esconder os seus sentimentos. Os outros, tal como Malorie, estão esperançosos. Malorie sabe que é difícil não se deixarem levar pela energia de Tom. Se fosse Don quem estivesse prestes a sair, talvez tivesse menos esperança de o ver regressar com cães-guia. Mas Tom tem aquela energia. Quando ele diz que vai fazer algo, parece que já está feito. Malorie assiste do sofá. Os livros Grávida e Finalmente… um bebé! falam da «transmissão de stress» entre a mãe e o �lho. Malorie não quer que o seu bebé sinta a ansiedade que sente agora, enquanto observa Tom a preparar-se para sair da casa. Junto à parede estão dois sacos de viagem, cheios até meio com enlatados, lanternas e cobertores. Ao lado deles estão facas grandes e as antigas pernas de um banquinho de cozinha, esculpidas em forma de estacas. Vão usar as vassouras como bengalas. — Talvez os animais não consigam enlouquecer por terem cérebros demasiado pequenos — diz Olympia. Pela expressão no rosto de Don, parece que quer dizer algo. Mas ele contém-se. — É possível que os animais não tenham a capacidade de enlouquecer — diz Tom, ajustando uma correia do capacete. — Talvez seja preciso um certo nível de inteligência para perder o juízo. — Bem, eu gostaria de saber esse tipo de coisas antes de ir lá para fora — diz Don. — Talvez haja níveis de loucura — continua Tom. — Sempre tive muita curiosidade para saber como é que as criaturas afetam as pessoas que já são loucas. — Por que é que não trazes também algumas? — bufa Don. — Tens a certeza de que queres arriscar a vida na esperança de que os animais não sejam tão inteligentes como nós? Tom olha-o nos olhos. — Eu gostaria de te dizer que tenho demasiado respeito pelos animais, Don. Mas neste momento, a única coisa que me preocupa é sobreviver. Finalmente, Jules aperta o capacete. Vira a cabeça para ver como lhe assenta. A parte de trás abre-se e o capacete cai no chão, desfeito. Don abana lentamente a cabeça. — Merda — diz Tom, apanhando as partes do capacete. — Eu já tinha resolvido isto. Não te preocupes, Jules. Pegando nas partes, Tom volta a montá-las e, em seguida, reforça a correia com uma segunda. Coloca-o na cabeça de Jules. — Pronto. Melhor. Ao ouvir aquelas palavras, Malorie sente náuseas. Desde aquela manhã que sabe que Tom e Jules iam sair, mas o momento parece surgir demasiado depressa. Não vás, quer dizer a Tom. Precisamos de ti. Eu preciso de ti. Mas ela entende que o motivo por que a casa precisa de Tom é que ele é o tipo de homem capaz de fazer o que está a fazer. Junto à parede, Felix e Cheryl ajudam Tom e Jules a porem os sacos às costas. Tom está a atacar o ar com uma das estacas. Malorie sente uma segunda onda de náusea. Não há maior lembrança do horror daquele novo mundo do que ver Tom e Jules equipados daquela maneira para uma volta ao quarteirão. Com os olhos vendados, armados, parecem soldados de uma guerraimprovisada. — OK — diz Tom. — Deixa-nos sair. Felix avança para a porta. Os colegas de casa estão reunidos atrás dele, no hall. Malorie vê-os a fechar os olhos e faz o mesmo. Na sua escuridão privada, o seu coração bate com mais força. — Boa sorte — diz de repente, sabendo que se arrependeria se não o �zesse. — Obrigado — diz Tom. — Lembrem-se do que eu disse. Voltamos dentro de 12 horas. Têm todos os olhos fechados? Os habitantes da casa respondem que sim. E então a porta da frente abre-se. Malorie ouve o som dos passos deles no alpendre. E depois a porta fecha-se. Malorie sente que algo imperativo foi trancado do lado de fora. Doze horas. 18 Enquanto o barco a remos desliza, levado lentamente pela corrente, Malorie apanha um punhado de água do rio e lava a ferida no ombro. Não é uma tarefa fácil e a dor é intensa. — Estás bem, mamã? — pergunta o Rapaz. — Não façam perguntas — responde ela. — Escutem. Quando o lobo a atacou, o mundo de trevas atrás dos olhos vendados de Malorie explodiu numa dor vermelha. Agora, enquanto limpa a ferida, os tons que vê são roxos e cinzentos e teme que isso signi�que que está quase a desmaiar. A perder os sentidos. Deixando as crianças entregues a si próprias. Tirou o casaco. A camisola de alças está ensanguentada e Malorie está a tremer, interrogando-se se será por causa do frio ou sobretudo devido à perda de sangue. Tira uma faca do bolso direito do casaco e corta-lhe uma das mangas, que ata �rmemente em volta do ombro. Lobos. Quando as crianças �zeram três anos, as lições de Malorie começaram a tornar-se complexas. Ordenou às crianças que se lembrassem de dez, vinte sons seguidos antes de revelarem o que achavam que eram. Malorie caminhava pela casa, depois no exterior, depois no andar de cima. Ao longo do caminho, fazia barulho. Quando regressava, as crianças diziam-lhe o que tinha feito. Em pouco tempo, a Rapariga conseguiu acertar todos os vinte. Mas o Rapaz recitava quarenta, cinquenta sons, acrescentando os ruídos involuntários que ela fazia pelo caminho aos que eram intencionais. Começaste no nosso quarto, mamã. Suspiraste antes de saíres. Depois caminhaste até à cozinha e, pelo caminho, o teu tornozelo estalou. Sentaste-te na cadeira do meio à mesa da cozinha. Pousaste os cotovelos na mesa. Limpaste a garganta e depois entraste na cave. Deste os quatro primeiros passos mais devagar do que os seis últimos. Bateste com o dedo indicador nos dentes. Mas por mais que lhes tivesse ensinado, as crianças não podiam estar preparadas para nomear os animais que vagueavam pelo bosque junto ao rio. Malorie sabia que os lobos estavam em vantagem. Bem como qualquer outra coisa com que se deparassem. Ela aperta ainda mais o torniquete. O ombro lateja. As coxas doem-lhe. O pescoço dói-lhe. Naquela manhã, sentia-se su�cientemente forte para remar ao longo de 30 quilómetros. Agora, ferida, precisa de descansar. Pondera essa possibilidade. Sabe que no velho mundo, uma pausa teria sido recomendável. Mas parar ali podia signi�car a morte. Um grito ruidoso vindo de cima faz Malorie sobressaltar-se. Parecia o som de uma ave de rapina. Como se tivesse 30 metros de comprimento. À frente, algo agita a água. É breve, mas o som é perturbador. Algo se move no bosque à esquerda. Mais pássaros grasnam. O rio está a ganhar vida e o medo de Malorie cresce a cada indício disso mesmo. À medida que a vida cresce à sua volta, parece diminuir dentro de si. — Estou bem — mente. — Quero que escutemos com atenção. Só isso. Mais nada. Remando novamente, Malorie tenta não pensar na dor. Não tem uma ideia clara de até onde precisa de ir. Mas sabe que é uma longa distância. Pelo menos igual à que já percorreu. Anos antes, os habitantes da casa não sabiam se os animais endoideciam. Discutiam constantemente o assunto. Tom e Jules caminharam pelo bairro, à procura de cães que os guiassem. Enquanto Malorie e os outros esperavam pelo seu regresso, ela foi consumida por imagens terríveis de animais raivosos e enlouquecidos. Hoje tem os mesmos pensamentos. À medida que o rio ganha vida com a natureza, ela imagina o pior. Tal como fazia antigamente, antes de as crianças nascerem, quando a inércia da porta da frente a lembrava que coisas como a loucura estavam sempre à espreita lá fora, quer alguém que amasse também estivesse ou não. 19 Com cinco meses, a gravidez de Malorie está a desenvolver-se. É o �m dos «meses de enjoos», mas persistem algumas di�culdades. Tem azia. Doem-lhe as pernas. Sangra das gengivas. O seu cabelo escuro está mais forte, bem como todos os pelos no seu corpo. Sente-se monstruosa, distorcida, transformada. Mas enquanto atravessa a casa, carregando um balde de urina, nenhuma dessas coisas ocupa um lugar tão grande nos seus pensamentos como o paradeiro e a segurança de Tom e Jules. É espantoso o quanto já se sente ligada a cada um de seus colegas de casa, pensa. Antes de chegar, tinha ouvido tantas histórias de pessoas a fazerem mal umas às outras, antes de se ferirem a si próprias. Nessa altura, os horrores preocupavam Malorie por causa do que signi�cavam para si e para o seu �lho. Agora, a segurança de toda a casa consome-a. Há cinco horas que os homens partiram. E a cada minuto que passa, a tensão aumenta, pelo que agora Malorie não consegue lembrar-se se os companheiros estão a repetir as suas tarefas ou a executá-las pela primeira vez. Malorie pousa o balde ao pé da porta das traseiras. Dentro de alguns minutos Felix vai despejá-lo lá fora. Agora está junto à mesa da sala de jantar, a consertar uma cadeira. Passando pela cozinha, Malorie entra na sala de estar. Cheryl está a limpar as superfícies. As molduras dos quadros. O telefone. Malorie nota que os braços de Cheryl parecem pálidos e magros. Nos dois meses que ali passou, os seus corpos �caram muito piores. Não comem bem. Não fazem exercício su�ciente. Ninguém apanha sol. Tom está lá fora, à procura de uma vida melhor para todos eles. Mas quão melhor pode tornar-se? E quem informaria os habitantes da casa se eles desaparecessem lá fora, para sempre? Ansiosa, Malorie pergunta a Cheryl se precisa de ajuda. Cheryl diz que não antes de sair da sala, mas Malorie não �ca sozinha. Victor está sentado atrás da poltrona, de frente para os cobertores que tapam as janelas. Tem a cabeça levantada. Está de língua de fora, a arfar ruidosamente. Malorie pensa que ele está à espera, como ela, que o dono regresse. Como se percebesse que está a ser observado, Victor vira-se lentamente para Malorie. E depois volta a olhar para os cobertores. Don entra na sala. Senta-se na poltrona, depois levanta-se e sai. Olympia vem ao andar de baixo. Procura algo debaixo do lava- loiça. Malorie observa-a quando ela percebe que tem na mão aquilo que procura. Ela volta para o andar de cima. Cheryl regressa e veri�ca as molduras. Só faz isso. Está a repetir o trabalho. Todos estão a repetir as suas tarefas. A passar nervosamente pela casa, tentando ocupar as suas mentes. Quase não falam. Mal levantam o olhar. Ir buscar água ao poço é uma coisa, e os colegas de casa preocupam-se uns com os outros quando o fazem. Mas o que Tom e Jules estão a fazer é quase impossível de suportar. Malorie levanta-se e dirige-se para a cozinha. Mas há apenas um lugar na casa que se parece menos com a casa. Malorie quer ir para lá. Precisa de ir. De se afastar. A cave. Felix está na cozinha, mas não dá sinais de a ver passar por ele. Não diz nada quando ela abre a porta da cave e desce as escadas para o piso de terra batida lá em baixo. Ela puxa o cordão e a luz acende-se, iluminando o espaço como aconteceu quando Tom lha mostrou dois meses antes. Mas agora parece diferente. Tem menos latas. Menos cores. E Tom não está ali, a fazer listas, a contar em rações o tempo que os habitantes da casa têm antes de chegarem a fome e o desespero. Malorie avança para as prateleiras e lê distraidamente os rótulos. Milho. Beterraba. Atum. Ervilhas. Cogumelos. Salada de frutas. Feijão-verde. Ginjas. Arandos. Toranja. Ananás. Feijão frito. Misturade vegetais. Piripíri. Castanhas-d’-água. Tomate picado. Tomate inteiro. Molho de tomate. Chucrute. Feijão cozido. Cenouras. Espinafres. Variedades de caldo de galinha. Lembra-se de quando o espaço parecia transbordar de mantimentos. As latas pareciam formar uma parede. Agora há buracos. Grandes. Como se tivesse havido uma batalha e a primeira vítima tivessem sido as suas reservas. Haverá comida su�ciente, que dure até o bebé chegar? Se Tom e Jules não regressarem, a comida que resta permitir-lhe-á aguentar-se até esse dia tão temido? O que farão quando se acabarem os enlatados? Vão caçar? O bebé pode beber o leite da mãe. Mas só se a mãe tiver comido. Acariciando a barriga, Malorie aproxima-se do banquinho e senta-se. Apesar do ar fresco ali em baixo, está a suar. Os passos inquietos dos colegas de casa são ruidosos. O teto estala. Afastando o cabelo da testa, Malorie reclina-se contra as prateleiras. Conta latas. Sente as pálpebras pesadas. Sabe-lhe bem descansar. E então… dormita. Quando acorda, Victor está a ladrar no andar de cima. Senta-se rapidamente. O Victor está a ladrar. Para o que é que está a ladrar?! Atravessando a cave a passos largos, Malorie sobe as escadas e corre para a sala de estar. Os outros já lá estão. — Para com isso! — grita Don. Victor está de frente para as janelas, a ladrar. — O que é que se passa? — pergunta Malorie, surpresa com o pânico na sua própria voz. Don volta a gritar para Victor. — Ele está apenas agitado, sem o Jules — diz Felix, nervoso. — Não — diz Cheryl. — Ele ouviu alguma coisa. — Não sabemos isso, Cheryl — responde Don. Victor ladra novamente. É um som forte. Agudo. Zangado. — Victor! — diz Don. — Vá lá! Os habitantes da casa estão reunidos muito perto uns dos outros no centro da sala de estar. Estão desarmados. Se Cheryl estiver certa, se Victor pensa que há algo do lado de fora da casa, o que podem fazer? — Victor! — volta a gritar Don. — Eu mato-te! Mas Victor não para. E Don, por mais que grite, tem tanto medo como Malorie. — Felix — diz Malorie, olhando �xamente para a janela da frente. — Disseste-me que há um jardim lá fora. Temos utensílios? — Sim. — Felix também está a olhar para os cobertores pretos. — Estão dentro da casa? — Sim. — Porque é que não vais buscá-las? Felix volta-se para ela e faz uma pausa. Depois sai da sala. Malorie passa mentalmente revista a tudo o que há na casa. As pernas de todos os móveis são potenciais armas. Todos os objetos sólidos servem de munição. Victor continua a ladrar e está cada vez mais agitado. E nos breves intervalos em que para, Malorie ouve os passos ansiosos de Felix, à procura das ferramentas de jardim que podem protegê-los do que quer que esteja lá fora. 20 É meio-dia do dia seguinte. Tom e Jules não regressaram. Já passou mais do dobro das doze horas que Tom prometeu. E a cada hora que passa, as emoções dentro da casa �cam mais pesadas. Victor ainda está sentado junto à janela coberta. Os habitantes da casa �caram acordados até tarde, reunidos, à espera que o cão parasse de ladrar. — Eles vão acabar por nos apanhar — disse Don. — Não há motivos para pensar o contrário. É o �m, pessoal. E se é uma criatura que os nossos cérebros são incapazes de compreender, é bem merecido. Eu sempre achei que o �m viria por causa da nossa própria estupidez. Por �m, Victor parou de ladrar. Agora, na cozinha, Malorie mergulha as mãos num balde de água. Don e Cheryl foram ao poço naquela manhã. Sempre que batiam à porta para entregar mais um balde cheio a Felix, o coração de Malorie sobressaltava-se, esperando, acreditando que era Tom. Ela molha o rosto e passa os dedos molhados pelos cabelos emaranhados e suados. — Raios partam — diz. Está sozinha na cozinha. Está a olhar para as cortinas que cobrem a única janela. Está a pensar nas in�nitas coisas terríveis que podem ter acontecido. O Jules matou o Tom. Ele viu uma criatura e arrastou o Tom para o rio pelos cabelos. Mergulhou-o no rio até ele se afogar. Ou ambos viram alguma coisa. Numa casa. Aniquilaram-se um ao outro. Os corpos destruídos estão caídos no chão da sala de um estranho. Ou foi só o Tom que viu alguma coisa. O Jules tentou detê-lo, mas o Tom escapou. Está algures no bosque. A comer insetos. A comer casca de árvore. A comer a própria língua. — Malorie? Malorie dá um salto quando Olympia entra na cozinha. — O que é? — Estou muito preocupada, Malorie. Ele disse 12 horas. — Eu sei — diz Malorie. — Estamos todos preocupados. Malorie estende a mão para o ombro de Olympia e ouve a voz de Don da sala de jantar. — Não estou convencido de que devamos deixá-los entrar. Malorie corre para a sala de jantar. — Então, Don — diz Felix, já lá dentro. — Como é que és capaz de dizer isso? — O que é que achas que está a acontecer lá fora, Felix? Achas que estamos a viver num bairro simpático? Se houver alguém vivo lá fora, não está a sobreviver à conta dos seus bons modos. Quem nos diz que o Tom e o Jules não foram raptados? Podem ser reféns neste momento. E os seus captores podem estar a extorquir-lhes informações sobre a nossa comida. A nossa comida. — Vai à merda, Don — diz Felix. — Se eles regressarem, eu vou deixá-los entrar. — Se forem eles — diz Don. — E se tivermos a certeza de que não há uma arma apontada à cabeça do Tom do outro lado da porta. — Importam-se de se calar! — diz Cheryl, passando por Malorie e entrando na sala de jantar. — Não podes estar a falar a sério, Don — diz Malorie. Don vira-se para ela. — Podes crer que estou a falar a sério. — Queres impedi-los de entrar? — pergunta Olympia, agora de pé ao lado de Malorie. — Não foi isso que eu disse — responde Don. — Estou a dizer que pode haver pessoas más lá fora. Entendes, Olympia? Ou é demasiado complicado para ti? — És mesmo estúpido — responde Malorie. Por um segundo, Don parece preparar-se para a atacar. — Não quero ter esta discussão — diz Cheryl. — Já passaram mais de 24 horas — diz Don com um tom de censura. — Olha… vai fazer outra coisa qualquer por um momento, sim? — disse Felix. — Estás a piorar a situação, para todos. — Precisamos de começar a pensar num futuro sem eles. — Só passou um dia — diz Felix. — Sim, um dia lá fora. Don senta-se ao piano. Parece ceder, por um momento. Depois continua. — A boa notícia é que desta forma as nossas reservas vão durar mais tempo. — Don! — repreende-o Malorie. — Tens um bebé a caminho, Malorie. Não tens esperança de sobreviver? — Don, estou capaz de te matar — diz Cheryl. Don levanta-se do banco do piano. Tem o rosto vermelho de raiva. — O Tom e o Jules não vão voltar, Cheryl. Aceita isso. E quando tiveres vivido mais uma semana porque pudeste comer a comida deles e depois quando comeres o Victor, talvez nessa altura entendas que a esperança é coisa que já não existe. Cheryl avança para ele. Tem os punhos cerrados. O seu rosto está a pouca distância do de Don. Victor ladra da sala de estar. Felix põe-se entre Don e Cheryl. Don afasta-o. Quando Malorie avança para eles, Felix levanta a mão. Vai bater em Don. Ele recua. Alguém bate à porta da rua. 21 Malorie está a pensar especi�camente em Don. — Mamã — diz o Rapaz —, a venda dos olhos está a magoar-me. — Apanha um pouco de água do rio, com cuidado — diz Malorie —, e esfrega-a onde te dói. Não tires a venda. Uma vez, depois de os habitantes da casa terem terminado o jantar, Malorie �cou sozinha com Olympia à mesa da sala de jantar. Estavam a falar sobre o marido de Olympia. De como ele era. Do seu desejo de ter um �lho. Don entrou na sala sozinho. Não prestou atenção ao que Olympia estava a dizer. — Vocês deviam cegar esses bebés — disse ele. — Assim que nascerem. Foi como se já estivesse a pensar no assunto há muito tempo e tivesse decidido comunicar-lhes a sua decisão. Sentou-se com elas à mesa e explicou-se. Quando o fez, Olympia �cou mais calada. Achava aquilo uma loucura. E pior, achava que era cruel. Mas Malorie não pensava assim. Uma parte profunda do seu íntimo compreendia o que Don estava a dizer. Todos os momentos da sua maternidadeiminente seriam centrados em proteger os olhos do �lho. Poderia fazer muito mais se eliminasse essa preocupação. A seriedade com que Don o disse transmitiu mais do que crueldade a Malorie. Ele abriu a porta a um mundo de possibilidades angustiantes, coisas que talvez tivessem de ser feitas, ações que ela poderia ter de tomar e que ninguém do velho mundo estaria completamente preparado para suportar. E a sugestão, por muito negra que fosse, nunca desapareceu completamente da sua mente. — Está melhor, mamã — diz o Rapaz. — Shhh — diz Malorie. — Escuta. Quando as crianças tinham seis meses de idade, ela já as tinha posto a dormir nos seus berços de arame. Era de noite. O mundo do outro lado das janelas e das paredes estava silencioso. A casa estava escura. Nos primeiros dias com os bebés, Malorie punha-se frequentemente a ouvi-los respirar enquanto dormiam. O que podia ser uma observação ternurenta para algumas mães era um estudo para Malorie. Pareciam saudáveis? Estariam a receber nutrientes su�cientes da água do poço e do leite materno de uma mãe que não comia uma refeição decente há um ano? Estava sempre a pensar na saúde deles. Na sua dieta. Na sua higiene. E nos seus olhos. Devias cegar esses bebés assim que nascerem. Sentada à mesa da cozinha às escuras, Malorie entendeu claramente que o problema não era tanto o dilema moral como o facto de estar a ser confrontada com algo que não tinha a certeza de ser �sicamente capaz de fazer. Olhando para o corredor, escutando as suas pequenas expirações, acreditava que a ideia de Don não era má. Todo o tempo que passas acordada é passado a protegê-los de olhar para a rua. Veri�cas os cobertores. Veri�cas os berços. Eles não se vão lembrar destes dias quando forem mais velhos. Não se vão lembrar da visão. As crianças, sabia, não seriam espoliadas de nada no mundo novo se nunca sequer tivessem podido vê-lo. Levantando-se, caminhou até à porta da cave. No andar de baixo, no chão de terra da cave, havia uma lata de diluente. Em tempos longínquos, tinha lido o rótulo lateral e sabia o perigo que a substância representava se entrasse em contacto com os olhos. Uma pessoa podia �car cega, dizia, se não lavasse os olhos dentro de 30 segundos. Malorie dirigiu-se para a lata. Pegou nela e levou-a ao andar de cima. Faz isto depressa. E não lhes laves os olhos. Eram apenas bebés. Como poderiam lembrar-se daquilo? Iriam ter medo dela para sempre ou isso seria um dia enterrado debaixo de uma montanha de memórias cegas? Malorie atravessou a cozinha e entrou no corredor escuro que ia dar ao quarto das crianças. Conseguia ouvi-las a respirar lá dentro. À porta, fez uma pausa e olhou para a escuridão em que elas dormiam. Naquele momento, acreditou que conseguiria fazê-lo. Em silêncio, Malorie entrou no quarto. Pousou a lata no chão e levantou as coberturas de tecido que protegiam os berços. Nenhuma das crianças se mexeu. Ambas continuaram a respirar calmamente, como se estivessem a ter sonhos agradáveis, o mais distantes possível dos pesadelos que se avizinhavam. Rapidamente, Malorie soltou a cobertura de arame do berço da Rapariga. Curvou-se e levantou a lata. A Rapariga respirou calmamente. Malorie levou a mão dentro do berço e ergueu a cabeça da bebé. Tirou a venda dos olhos da Rapariga. A Rapariga começou a chorar. Tem os olhos abertos, pensou Malorie. Deita-o. Puxou a cabeça da Rapariga para mais perto da beira do berço e, em seguida, aproximou a lata de diluente do seu rosto vermelho e choroso. O Rapaz acordou e começou a chorar também. — Parem! — disse Malorie, afastando as próprias lágrimas. — Vocês não querem ver este mundo. Inclinou um pouco mais a lata e sentiu o conteúdo deslizar sobre a sua mão antes de salpicar o chão aos seus pés. Senti-lo na sua pele tornou-o real. Não era capaz de fazer aquilo. Soltou a cabeça da bebé e a Rapariga continuou a chorar. Pousando a lata no chão, Malorie recuou lentamente para fora do quarto. As crianças �caram a chorar na escuridão. No corredor, Malorie encostou-se à parede para se apoiar e levou uma mão à boca. E vomitou. — Mamã — diz agora o Rapaz, no rio —, resultou! — O que é que resultou? — pergunta Malorie, arrancada às memórias. — A venda já não me magoa. — Rapaz — diz ela. — Não fales mais. A não ser que ouças alguma coisa. Malorie respira fundo e sente algo parecido com vergonha. A dor no ombro piorou. Ela está tonta de fadiga. Uma sensação mais profunda de desorientação instala-se. Parece-lhe que se passa algo de muito errado dentro dela. No entanto, consegue ouvir as crianças: o Rapaz a respirar à sua frente, a Rapariga a brincar com as peças do puzzle na parte de trás do barco a remos. Não estão cegos por baixo das vendas. E este dia pode terminar com a possibilidade de um mundo ainda mais novo, em que as crianças veem coisas que nunca viram. Se conseguir levá-las até lá. 22 Malorie ouve algo a mexer-se do outro lado da porta. Também ouve alguém a ofegar. Algo está a arranhar a madeira. Ela e os outros estão no hall. Felix apenas gritou, a perguntar quem era. No momento entre a pergunta e a resposta, aquele arranhar parece-lhes poder ter sido causado por qualquer coisa. Criaturas, pensa ela. Mas não são criaturas que estão à porta. São Tom e Jules. — Felix! É o Tom! — Tom! — Ainda temos os capacetes. Mas não estamos sozinhos. Encontrámos cães. Felix, a suar, expira fortemente. Para Malorie, o alívio é tão grande que dói. Victor está a ladrar. Está a abanar a cauda. Jules chama-o. — Victor, amigo! Voltei! — OK — diz Felix aos companheiros que estão dentro da casa. — Fechem os olhos. — Espera — diz Don. — Para quê? — responde Felix. — Como é que sabemos que eles estão sozinhos? Como é que sabemos que eles não estão a ser seguidos? Quem sabe o que pode tê-los seguido? Felix faz uma pausa. Então pergunta a Tom: — Tom! Estás sozinho? São só vocês e os cães? — Sim. — Isso não signi�ca que seja verdade — diz Don. — Don — intervém Malorie, impaciente —, se alguém quisesse entrar nesta casa, podia fazê-lo em qualquer altura. — Estou a tentar ser cauteloso, Malorie. — Eu sei. — Eu também vivo aqui. — Eu sei. Mas o Tom e o Jules estão do outro lado da porta. Eles voltaram. Temos de os deixar entrar agora. Don �ta-a. Depois olha para o chão do hall. — Um dia destes vocês vão-nos matar — diz ele. — Don — diz Malorie, vendo que ele está, �nalmente, a ceder —, vamos abrir a porta agora. — Sim. Eu sei. Não importa o que eu diga. Don fecha os olhos. Malorie faz o mesmo. — Estás preparado, Tom? — pergunta Felix. — Sim. Malorie ouve a porta da frente a abrir-se. Os sons das patas nos mosaicos do hall fazem parecer que entraram muitas pessoas de uma só vez. A porta da frente fecha-se rapidamente. — Passem-me uma vassoura — diz Felix. Malorie ouve as cerdas contra as paredes, o chão e o teto. — OK — diz Felix. — Estamos prontos. O momento entre a decisão de abrir os olhos e fazê-lo realmente é a coisa mais assustadora do novo mundo. Malorie abre os olhos. O hall explode em cor. Dois huskies movem-se rapidamente, cheiram o chão e estudam as pessoas, estudam Victor. A emoção que Malorie sente ao ver o rosto de Tom é incomparável. No entanto, ele não parece bem. Parece exausto. Sujo. E como se tivesse passado por algo que Malorie só pode imaginar. Tem algo na mão. É branco. Uma caixa. Su�cientemente grande para conter uma pequena televisão. Sons emanam de dentro dela. Chilreios. Olympia lança-se para a frente e abraça Tom, que se ri enquanto tenta tirar o capacete. Jules tira o seu e ajoelha-se para abraçar Victor. Cheryl chora. A expressão de Don é uma mistura de espanto e vergonha. Quase nos pegámos à pancada, pensa Malorie. O Tom esteve fora um dia e meio e quase nos pegámos à pancada. — Bem, oh meu Deus — diz Felix, observando de olhos arregalados os novos animais. — Resultou! O olhar de Tom e Malorie cruza-se. Ele não tem o mesmo brilho com que partiu. O que é que eles terão vivido lá fora? — Estes são huskies — diz Jules, fazendo um gesto na direção dos cães. —São afáveis, mas demoram um pouco a habituar-se. Então, Jules solta um uivo de alívio. Como veteranos de guerra a regressarem a casa, pensa Malorie. De uma volta ao quarteirão. — O que é que há na caixa? — pergunta Cheryl. Tom levanta-a um pouco mais. Tem o olhar vidrado. Distante. — A caixa, Cheryl — diz ele, segurando-a com uma mão e levantando um pouco a tampa com a outra —, tem pássaros. Os habitantes da casa reúnem-se num círculo em volta da caixa. — Que tipo de pássaros são? — pergunta Olympia. Tom abana a cabeça. — Não sabemos. Encontrámo-los na garagem de um caçador. Não fazemos ideia de como sobreviveram. Achamos que os donos lhes deixaram muita comida. Como podem ver, são barulhentos. Mas só quando estamos perto. Fizemos a experiência. Sempre que nos aproximamos da caixa, eles fazem mais barulho. — Então são o nosso jantar? — pergunta Felix. Tom faz um sorriso cansado. — São um sistema de alarme. — Sistema de alarme? — pergunta Felix. Jules explica: — Vamos pendurar a caixa lá fora. Junto à porta da frente. Conseguimos ouvi-los aqui. Apenas uma caixa de pássaros, pensa Malorie. Contudo, parece um progresso. Tom fecha lentamente a tampa. — Têm de nos contar tudo o que aconteceu — diz Cheryl. — E vamos — responde Tom. — Mas vamos para a sala de jantar. Gostávamos de nos sentar um pouco. Os colegas de casa sorriem. Exceto Don. Don, que os declarou mortos. Don, que já contava as rações deles como suas. No corredor, Tom pousa a caixa de pássaros no chão, encostada à parede. Então, os colegas de casa reúnem-se na sala de jantar. Felix vai buscar água para Tom e Jules. Quando têm os copos à sua frente, contam a história do que viveram lá fora. 23 Quando a porta se fecha atrás deles, Tom tem mais medo do que pensava que teria. Aqui fora, as criaturas estão mais perto. Quando chegarmos à rua, pensa, quando nos afastarmos o su�ciente da casa, será que nos vão atacar? Imagina mãos frias a fecharem-se sobre as suas. A sua garganta cortada. O seu pescoço partido. A sua mente destruída. Mas Tom tem perfeita consciência de que nenhuma notícia descreveu um homem a ser atacado. É isto que tenho de pensar, decide, ainda parado no alpendre. Forçando essa �loso�a a enraizar-se na sua mente, procurando as suas raízes, ele permite-se respirar, lentamente. Quando o faz, surgem outros sentimentos. Por um lado, há o sentimento de liberdade desenfreada, levemente imprudente. Tom já esteve lá fora desde que chegou à casa. Foi buscar água ao poço tantas vezes como todos os outros. Levou merda e urina para as trincheiras. Mas desta vez é diferente. O ar parece diferente. Antes de ele e Jules concordarem em começar a andar, uma brisa passa por cima deles. Roça-lhe o pescoço. Os cotovelos. Os lábios. É uma das sensações mais estranhas que já conheceu. Acalma-o. Enquanto as criaturas espreitam por trás de cada árvore e letreiro na sua imaginação, o ar limpo e aberto inebria-o. Nem que seja por um momento. — Estás pronto, Jules? — pergunta ele. — Sim. Como homens verdadeiramente cegos, batem no chão à sua frente com vassouras. Saem do alpendre. Um metro mais adiante, Tom sente que já não está a pisar cimento. Com a relva sob os pés, é como se a casa tivesse desaparecido. Está à deriva no mar. Vulnerável. Por um segundo, não está seguro de ser capaz de fazer aquilo. Então pensa na �lha. Robin. Só vou buscar uns cães. Isto é bom. Isto ajuda-o. A vassoura passa por cima do que deve ser o passeio e Tom pisa o betão da rua. Ali, para e ajoelha-se. De joelhos, procura um canto do relvado em frente à casa. Descobre-o. Em seguida, tira uma pequena estaca de madeira do saco e crava-a na terra. — Jules — diz —, marquei o nosso relvado. Podemos precisar da ajuda para encontrar o caminho de regresso. Quando se levanta e se vira, Tom choca com o capô de um carro. — Tom — diz Jules —, estás bem? Tom endireita-se. — Sim — responde —, acho que choquei com o carro da Cheryl. Senti os painéis de madeira do exterior. Os sons das botas de Jules e da vassoura guiam Tom para longe do carro. Em circunstâncias diferentes, com o sol a tocar-lhe apenas as pálpebras, sem venda nem capacete para o obscurecer, Tom sabe que passaria por um mundo de tons de pêssego e laranja. Os seus olhos fechados veriam as cores mudarem com as nuvens, alterarem-se com as sombras das copas das árvores e dos telhados. Mas hoje vê apenas preto. E nalgum lugar da escuridão, imagina Robin, a sua �lha. Pequena, inocente, brilhante. Ela encoraja-o a caminhar, anda, papá, para mais longe da casa, em direção a coisas que podem ajudar os que ainda estão lá dentro. — Merda! — exclama Jules. Tom ouve-o cair na rua. — Jules! Tom paralisa. — Jules, o que aconteceu? — Tropecei em alguma coisa. Também o sentes? Parecia uma mala. Usando a vassoura, Tom traça um arco amplo. As cerdas tocam um objeto. Tom gatinha para junto dele. Pousando a vassoura ao seu lado no chão quente, usa as duas mãos para sentir o que está ali no meio da rua. Não demora muito a perceber o que é. — É um corpo, Jules. Tom ouve Jules a levantar-se. — Acho que é uma mulher — diz Tom. E depois afasta rapidamente as mãos do rosto dela. Levanta-se e os dois seguem caminho. Tudo parece demasiado rápido. As coisas estão a acontecer demasiado depressa. No velho mundo, descobrir um cadáver na rua demoraria horas a assimilar. No entanto, eles seguem caminho. Atravessam um relvado e chegam a uns arbustos. Atrás dos arbustos há uma casa. — Aqui — diz Jules. — É uma janela. Estou a tocar no vidro de uma janela. Seguindo a voz dele, Tom junta-se a Jules junto à janela. Tateiam ao longo dos tijolos da casa até chegarem à porta da frente. Jules bate à porta. Chama. Bate novamente. Os dois esperam. Tom fala. Preocupa-o que naquele mundo silencioso a sua voz possa atrair alguma coisa. Mas não vê alternativa. Explica aos possíveis habitantes que não querem fazer-lhes mal, que estão ali à procura de mais mantimentos, de qualquer coisa que os possa ajudar. Jules bate novamente à porta. Esperam novamente. Não há movimento do lado de dentro. — Vamos entrar — diz Jules. — OK. Caminham novamente para junto da janela. Do saco, Tom tira uma pequena toalha. Enrola-a em volta do punho e dá um soco no vidro, partindo-o. Não há nenhum cobertor. Nenhum cartão. Nem madeira. Aquilo, sabe, signi�ca que quem viveu ali o fez sem proteção. Talvez tenham deixado a cidade antes de as coisas se tornarem realmente más. Talvez estejam em segurança noutro lugar. Tom chama através da janela partida. — Está aí alguém? Não obtendo resposta, Jules limpa os vidros. Depois ajuda Tom a entrar. No interior, Tom derruba algo. O objeto aterra com um forte baque. Jules entra pela janela atrás dele. É então que ouvem música, um piano, na sala com eles. Tom levanta a vassoura para se defender. Mas Jules está a falar com ele. — Fui eu, Tom! — explica ele. — Desculpa, a minha vassoura bateu no piano. Tom respira pesadamente. Enquanto se acalma, os dois �cam em silêncio. — Não podemos abrir os olhos aqui — diz Jules. — Eu sei — responde Tom. — Há corrente de ar. Há outra janela aberta. Ele quer muito poder abrir os olhos. Mas a casa não é segura. — Ainda assim, estamos aqui — diz Tom. — Vamos levar o que pudermos. Mas a maior parte do primeiro andar está vazia de qualquer coisa útil. Na cozinha, vasculham os armários. Tom tateia a superfície de uma prateleira até encontrar algumas pilhas. Velas pequenas. Canetas. Enquanto guarda cada uma das coisas no saco, anuncia-o a Jules. — Vamos andando — diz Tom. — E o andar de cima? — Este lugar não me agrada. E se houvesse comida, estaria aqui. Usando as vassouras, encontram o caminho até à porta da frente, destrancam-na e voltam a sair. Não voltam para o meio da rua. Em vez disso, atravessam o jardim até à casa vizinha, uma casa ainda mais longe da sua. Num segundo alpendre, fazem o mesmo ritual. Batem à porta. Anunciam-se. Esperam. Quando não ouvem nenhum movimento vindo de dentro, partem uma janela. Desta vez é Jules quem o faz. O punho dele entra emcontacto com algum tipo de proteção fraca. Pensa que é cartão. — Pode haver alguém aqui — sussurra. Esperam uma resposta ao barulho que �zeram. Não se houve nada. Tom grita. Diz à casa que são vizinhos. Que estão à procura de animais e que podem oferecer abrigo em troca. Não obtém resposta. Jules limpa os vidros e ajuda Tom a entrar pela janela. Lá dentro, voltam a colocar o cartão. Usando as vassouras, examinam o lugar. Demoram horas. Movendo-se costas com costas, balançam as vassouras em arcos. Tom guia-os, dizendo a Jules para onde ir. Quando terminam, quando estão convencidos de que a casa está vazia, as janelas estão cobertas e as portas estão trancadas, Tom declara a casa segura. Ambos os homens compreendem o que deve acontecer em seguida. Vão tirar os capacetes e as vendas, e abrir os olhos. Nenhum dos dois viu nada para além do interior da sua casa durante muitos meses. Jules é o primeiro. Tom ouve-o a soltar a correia do capacete. Então faz o mesmo. Depois de deslizar a venda até à linha do cabelo, Tom vira-se, de olhos fechados, para Jules. — Pronto? — Pronto. Os dois homens abrem os olhos. Uma vez, quando era criança, Tom e um amigo esgueiraram-se para a casa de um vizinho por uma porta das traseiras deixada destrancada. Não tinham um plano, nenhum interesse. Só queriam ver se conseguiam fazê-lo. Mas conseguiram mais do que esperavam quando, escondidos numa despensa, foram obrigados a esperar durante todo o jantar da família. Quando �nalmente escaparam, o amigo perguntou-lhe como se sentia em relação àquilo. — Sujo — respondera na altura. Agora com os olhos abertos, dentro da casa de um estranho, sente o mesmo. Esta não é a sua casa. Mas estão dentro dela. Estas não são as suas coisas. Mas podiam ser. Morava ali uma família. Tinham um �lho. Tom reconhece um brinquedo ou dois. Uma fotogra�a diz que era um rapaz. O cabelo louro e o sorriso jovem fazem-lhe lembrar Robin. De certa forma, todas as coisas que Tom tem encontrado desde a morte de Robin a trazem à sua lembrança. E ali, na casa de um estranho, imagina como viveram. A criança a contar à mãe e ao pai o que ouviu na escola. O pai a ler as primeiras notícias no jornal. A mãe a chamar a criança para dentro. Todos eles, juntos no sofá, a verem as notícias, assustados, quando o pai estende uma mão para o �lho e pega na mão da mãe. Robin. Não há provas de que tenham tido um animal de estimação. Nenhum brinquedo de cão esquecido. Nenhuma cama de gato. E a casa não cheira a cão. Mas é na ausência de pessoas que Tom pensa. — Tom — diz Jules. — Vai ver o andar de cima. Eu continuo aqui. — OK. Ao fundo da escada, Tom olha para cima. Ele tira a venda do bolso e volta a pô-la sobre os olhos. Apesar de terem veri�cado a casa, Tom não consegue subir as escadas de olhos abertos. Terão veri�cado su�cientemente bem? Enquanto sobe, usa a vassoura como guia. O seu ombro roça em fotogra�as penduradas na parede. Lembra-se da fotogra�a de George, pendurada na parede de casa. A ponta da bota bate num degrau e ele tropeça para a frente. Sente alcatifa debaixo das mãos. Volta a levantar-se. Mais escadas. São tantas que parece impossível, como se já tivesse atravessado o telhado da casa. Por �m, as cerdas da vassoura dizem-lhe que chegou ao topo. Mas a sua mente é mais lenta do que a vassoura e ele tropeça novamente, e desta vez choca com uma parede. Há silêncio ali em cima. Ele ajoelha-se e pousa a vassoura ao seu lado. Depois pega no saco e abre-o, procurando a lanterna. Encontra-a. Levantando-se novamente, usa a vassoura como guia. Virando para a direita, o seu punho bate em algo frio e duro. Ele para e tateia. É de vidro, ele pensa. Uma jarra. Há um cheiro desagradável. Não o tinha sentido antes. A sua mão toca num molho de folhas tristes e mortas. Tateando lentamente ao longo dos caules, percebe que são �ores. Rosas talvez. Mortas há muito tempo. Volta a virar-se para a esquerda. O cheiro das rosas mortas desaparece quando é confrontado com algo muito mais forte. Para no corredor. Como é que ele e Jules deixaram escapar aquele cheiro? — Olá? Não obtém resposta. Tom cobre o nariz e a boca com a mão que tem livre. O cheiro é pestilento. Ele avança pelo corredor. Chegando a uma porta à direita, entra numa divisão. É uma casa de banho. As cerdas da vassoura fazem eco contra os azulejos. Há um cheiro húmido e a mofo de canos sem uso. Toca com a vassoura na cortina do duche e examina a banheira com a vassoura. Então encontra o armário dos medicamentos. Ali há frascos de comprimidos. Tom guarda-os. Ajoelha-se e vasculha os armários debaixo do lavatório. Ouve algo atrás de si e vira-se. Está de frente para a banheira. Acabaste de a veri�car. Não havia ali nada. Tem uma mão pousada no lavatório atrás de si. A outra levanta lentamente a vassoura. Levanta-a à sua frente, de olhos vendados. — Há alguém aqui comigo? Avança em direção à banheira. Balança a vassoura uma vez. Depois duas vezes. Sente o estômago às voltas. Quente. O cheiro. Tom lança-se para a frente e balança a vassoura descontroladamente em volta da banheira. Examina o teto por cima dela. Depois, recuando novamente, deixa a vassoura cair no chão da casa de banho, onde ela toca em algo e faz o mesmo som que ele ouviu quando se ajoelhou diante dos armários. Localiza rapidamente uma garrafa de plástico. Está vazia. Tom suspira. Sai da casa de banho e avança pelo corredor. Rapidamente, chega a outra porta. Esta está fechada. Consegue ouvir o som distante dos movimentos de Jules no andar de baixo. Tom respira fundo e abre a porta. Está frio ali dentro. A vassoura diz-lhe que há algo à sua frente. Ele tateia e descobre um colchão. É uma pequena cama. Sem abrir os olhos, sabe que aquele é o quarto do rapaz. Fecha a porta, vasculha completamente o quarto com a vassoura e depois acende a luz. Então tira a venda e abre os olhos. Vê galhardetes pendurados na parede. São de equipas desportivas locais. Um é do jardim zoológico. O edredão tem desenhos de carros de Fórmula 1. O espaço está abafado. Não tem sido usado. Uma vez que a eletricidade funciona, ele guarda a lanterna no saco. Uma breve busca diz-lhe que não há ali nada de útil. Pensa no quarto de Robin. Volta a fechar os olhos e sai. Mais adiante no corredor, o cheiro torna-se mais horrível. Tem de tapar a boca. Ao fundo do corredor, chega a uma parede. Quando se vira, a vassoura toca numa porta atrás de si. Tom paralisa quando a porta se abre lentamente. Tu e o Jules veri�caram este quarto? VERIFICARAM?! — Olá? Não obtém resposta. Tom entra devagar. Liga as luzes e tateia as paredes à procura das janelas. Encontra duas. Ambas fortemente forti�cadas com madeira. O quarto é grande. É o quarto principal. Ele atravessa o quarto. Ali, o cheiro é tão forte que parece sólido, como se pudesse tocar-lhe. A vassoura guia-o para o que parece um quarto de vestir. Roupas. Casacos. Pensa levá-los consigo. Pensa no inverno que em breve enfrentarão. Virando-se, descobre outra porta mais pequena. Uma segunda casa de banho. Mais uma vez, veri�ca o armário dos medicamentos e as gavetas. Mais frascos de comprimidos. Pasta de dentes. Escovas de dentes. Procura uma janela. Encontra-a. Coberta com madeira. Usa a vassoura para encontrar a saída da casa de banho. Fecha a porta atrás de si. Acreditando que veri�cou as janelas, acreditando que está em segurança, Tom, de pé, ao lado do roupeiro, abre os olhos. Uma criança está sentada na cama, a olhar para ele. Tom fecha os olhos. É este o aspeto das criaturas? Não estavas em segurança! NÃO ESTAVAS EM SEGURANÇA! Sente o coração a bater muito depressa. O que é que viu? Um rosto. Um rosto velho? Não, era jovem. Jovem? Mas degradado. Quer chamar Jules. Mas quanto mais tempo passa com os olhos fechados, mais clara a imagem se torna. Era o rapaz. O das fotogra�as no andar de baixo. Volta a abrir os olhos. O rapaz está de fato. Encostado a uma cabeceira escura, tem o rosto voltado para Tom de uma forma que não é natural. Tem os olhos abertos. A boca aberta. As mãos cruzadas sobre o colo.Morreste de fome aqui, pensa Tom. No quarto dos teus pais. Avançando para ele, com a boca e o nariz tapados, Tom compara-o com as fotogra�as. O rapaz parece mumi�cado. Mirrado. Há quanto tempo morreste? Quão perto estive de te tirar daqui? Ele �ta os olhos mortos do rapaz. Robin, pensa. Sinto muito. — Tom! — grita Jules lá de baixo. Tom vira-se. Atravessa o quarto e entra no corredor. — Jules! Estás bem? — Sim! Sim! Anda cá depressa! Encontrei um cão. Tom sente-se dividido. O pai que há em si não quer deixar aquele rapaz. Robin está sepultada atrás da casa que deixou há muito tempo. — Se eu tivesse sabido que estavas aqui — diz Tom, virando-se para o quarto principal —, teria vindo mais cedo. E então vira-se e corre para a escada. Jules encontrou um cão. Encontra Jules ao fundo da escada. Antes que Tom tenha a oportunidade de lhe falar do rapaz, Jules já está a atravessar a cozinha, a falar do que encontrou. À frente da escada que conduz à cave, Jules aponta e diz a Tom para olhar. Com atenção. Ao fundo da escada, deitados de costas, estão os pais. Estão vestidos como se fossem para a igreja. Têm as roupas rasgadas nos ombros. Em cima do peito da mãe está um pedaço de uma folha de papel. Com marcador, alguém escreveu: DeScaNseM eM PaZ — Acabei de encontrar o rapaz que escreveu isso — diz Tom. — O rapaz que os pôs aqui. — Devem ter morrido de fome — diz Jules. — Não há comida na casa. Não sei do que é que ele se alimentou para sobreviver. Jules aponta para trás dos pais. Tom agacha-se e vê um husky encolhido entre casacos de peles numa prateleira. Está quase emaciado. Tom imagina que se tem alimentado dos pais mortos. Jules tira um pedaço de carne do seu saco, parte um pedaço e atira-o ao cão. A princípio, o cão sai do esconderijo hesitante. Depois devora a carne. — É afável? — pergunta Tom em voz baixa. — Descobri que os cães fazem rapidamente amizade com as pessoas que os alimentam — diz Jules. Jules atira cuidadosamente mais carne pela escada. Fala-lhe com um tom encorajador. Mas o cão dá trabalho. E demora. Os dois homens passam o resto do dia na casa. Com a carne, Jules está a criar uma ligação. Enquanto o faz, Tom vasculha os mesmos lugares que Jules já vasculhou. Há muito poucas coisas que não tenham já na sua casa. Não encontra uma lista telefónica. Nem comida. Jules, conhecendo os cães muito melhor do que Tom, diz-lhe que ainda não estão prontos para sair. Que o cão é demasiado errático, que ainda não con�a nele. Tom pensa nas 12 horas que deu aos companheiros de casa para o seu regresso. O tempo está a passar. Por �m, Jules diz a Tom que acha que o cão está pronto para sair da casa. — Então vamos seguir caminho — diz Tom. — Temos de continuar a trabalhar com ele enquanto avançamos. Não podemos dormir aqui, com este cheiro de morte. Jules concorda. Mas são precisas algumas tentativas para conseguir pôr a trela no cão. E passa ainda mais tempo. Quando Jules �nalmente consegue, Tom decidiu ignorar as 12 horas; numa tarde conseguiram um cão, quem sabe o que a manhã do dia seguinte pode trazer-lhes. Ainda assim, o tempo está a passar. No hall de entrada, põem as vendas e os capacetes. Depois, Tom destranca a porta da frente e eles saem da casa. Agora, Tom usa a vassoura, mas Jules usa o cão. O husky arfa. Voltando a atravessar o relvado, afastando-se ainda mais de Malorie, Don, Cheryl, Felix e Olympia, chegam a outra casa. Tom espera que seja a casa onde vão passar a noite. Se as janelas estiverem protegidas, se uma busca à casa lhes der con�ança, e se não forem recebidos com o cheiro de morte. 24 A dor no ombro de Malorie é tão exata, tão detalhada, que consegue ver o contorno dela na sua mente. Consegue vê-la mover-se enquanto o ombro se move. Não é uma dor ardente como foi quando aconteceu. Agora é profunda, pesada e latejante. As cores pálidas da decomposição, em vez dos tons explosivos do impacto. Imagina o aspeto que o fundo do barco a remos deve ter agora. Urina. Água. Sangue. As crianças perguntaram-lhe se estava bem. Ela disse que sim. Mas elas sabem quando lhes estão a mentir. Malorie treinou-as para ouvirem para além das palavras. Agora não está a chorar, mas esteve. Lágrimas silenciosas atrás da venda. Silenciosas para ela. Mas as crianças conseguem encontrar sons no silêncio. OK, meninos, costumava dizer, sentada à mesa da cozinha. Fechem os olhos. Eles fechavam. O que é que estou a fazer? Estás a sorrir. Correto, Rapariga. Como é que sabias? Respiras de maneira diferente quando sorris, mamã. E no dia seguinte repetiam. Estás a chorar, mamã! Correto. E porque é que estou a chorar? Estás triste. Não é o único motivo. Estás assustada! Correto. Vamos tentar outra. Agora a água está a �car mais fria. Malorie sente os salpicos com cada remada extenuante. — Mamã — diz o Rapaz. — O que é? Ela �ca imediatamente alerta ao ouvir o som da voz dele. — Estás bem? — Já me perguntaste isso. — Mas não pareces bem. — Eu disse que estou. Quer dizer que estou. Não me questiones. — Mas estás a respirar de maneira diferente! — diz a Rapariga. Está. Ela sabe que está. Com di�culdade, pensa. — É só por causa do esforço — mente Malorie. Quantas vezes ela questionou o seu dever como mãe quando treinou as crianças para se tornarem máquinas de escuta? Para Malorie, às vezes era horrível vê-las desenvolverem-se. Como se tivesse sido encarregada de cuidar de duas crianças mutantes. Pequenos monstros. Criaturas capazes de aprender a ouvir um sorriso. Capazes de lhe dizer que estava com medo antes que ela se apercebesse. A ferida do ombro é grave. E há anos que Malorie receia sofrer um ferimento daquela magnitude. Houve outros casos em que escapou por pouco. Cair das escadas da cave quando as crianças tinham dois anos. Tropeçar enquanto carregava um balde de água do poço, batendo com a cabeça numa pedra. Uma vez pensou que tinha partido o pulso. Um dente lascado. Era difícil lembrar-se do aspeto das suas pernas sem hematomas. E agora a carne do ombro parece arrancada do corpo. Ela quer parar o barco. Quer procurar um hospital. Correr pelas ruas, a gritar, preciso de um médico, preciso de um médico, PRECISO DE UM MÉDICO OU VOU MORRER E OS MEUS FILHOS VÃO MORRER SEM MIM! — Mamã — diz a Rapariga. — O que é? — Estamos voltados na direção errada. — O quê? Quando �cou mais exausta, usou demasiado o seu braço mais forte. Agora está a remar contra a corrente e nem se tinha dado conta. De repente, a mão do Rapaz está pousada na sua. Malorie recua, e depois para. Com os dedos sobre os dela, ele move-se com ela, como se virasse a manivela do poço. Neste mundo frio e doloroso, o Rapaz, ouvindo as suas di�culdades, está a ajudá-la. 25 O husky está a lamber a mão de Tom. Jules ressona à sua esquerda no chão alcatifado da sala da casa. Atrás dele, uma televisão gigante repousa silenciosa num móvel de carvalho. Há caixas de discos encostadas à parede. Candeeiros. Um sofá xadrez. Uma lareira de pedra. Um grande quadro com uma praia ocupa o espaço acima da lareira. Tom pensa que é no norte do Michigan. No teto, imóvel, há uma ventoinha empoeirada. O cão está a lamber-lhe as mãos porque na noite anterior ele e Jules banquetearam-se com batatas fritas velhas. Esta casa revelou-se um pouco mais frutífera do que a anterior. Os homens ensacaram alguns enlatados, papel, dois pares de botas de criança, dois casacos pequenos e um balde de plástico resistente antes de adormecerem. Ainda assim, não encontraram uma lista telefónica. Nos tempos modernos, com telemóveis em todos os bolsos, a lista telefónica, ao que parece, caiu em desuso. Há provas de que os proprietários originais deixaram deliberadamente a cidade. Direções para uma pequena cidade no Texas, na fronteira com o México. Um manual de sobrevivência marcado a caneta. Listas longas de suprimentos que incluíam gasolina e peças de automóvel. Pelos recibos, Tom percebeu que compraram dez lanternas, três canas de pesca, seis facas, água engarrafada, propano, nozes, três sacos-cama, um gerador, uma besta, óleo de culinária,gasolina e lenha. Enquanto o cão lhe lambe a mão, Tom pensa no Texas. — Pesadelos — diz Jules. Tom olha e vê que o amigo está acordado. — Sonhei que não encontrávamos o caminho de regresso a casa — continua Jules. — Que eu nunca mais via o Victor. — Lembra-te da estaca que cravámos no relvado — diz Tom. — Não me esqueci — diz Jules. — Sonhei que alguém a tinha tirado. Jules levanta-se e os homens comem um pequeno-almoço de frutos secos. O husky recebe uma lata de atum. — Vamos atravessar a rua — diz Tom. Jules concorda. Os homens arrumam as coisas e partem pouco depois. Lá fora, a relva dá lugar a betão. Estão novamente na rua. O sol está quente. O ar fresco sabe-lhes bem. Tom prepara-se para o dizer, mas, de repente, Jules grita. — O que é isto? Tom, cego, vira-se. — O quê? — É um poste, Tom. Como… Acho que é uma tenda. — No meio da rua? — Sim. No meio da nossa rua. Tom aproxima-se de Jules. As cerdas da vassoura tocam em algo que parece feito de metal. Com cautela, ele estende as mãos no meio da escuridão e toca no que Jules encontrou. — Não entendo — diz Tom. Pousando a vassoura, Tom usa ambas as mãos para tatear acima da sua cabeça, ao longo da lona. Faz-lhe lembrar uma feira onde levou a �lha em tempos. As estradas tinham sido bloqueadas com cones cor de laranja. Centenas de artistas vendiam pinturas, esculturas, desenhos. Estavam instaladas lado a lado, demasiadas para as conseguir contar. Cada um vendia os seus produtos numa tenda de lona. Tom entra para debaixo dela. Usa a vassoura para descrever um arco largo no ar por cima de si. Não há ali nada, exceto os quatro postes que sustentam a lona. Militar, Tom pensa. Muito diferente de uma feira de rua. Quando ele era criança, a mãe costumava gabar-se às amigas que o seu �lho «se recusava a deixar um problema sem resposta». Ele tenta descobrir a solução, dizia. Não há uma única coisa na nossa casa que não o interesse. Tom lembra-se de ver os rostos das amigas da mãe, como sorriam quando ela dizia aquelas coisas. Brinquedos? dizia a mãe. O Tom não precisa de brinquedos. Um galho de uma árvore é um brinquedo. Os �os dentro do leitor de vídeo são brinquedos. A forma como as janelas funcionam. Toda a vida foi descrito assim. O tipo de homem que quer saber como algo funciona. Pergunta ao Tom. Se ele não souber, aprende. Ele arranja coisas. Tudo. Mas para Tom, aquele comportamento não era estranho. Até ter tido Robin. Nessa altura, o fascínio da criança com o funcionamento das coisas surpreendia-o. Agora, debaixo daquela tenda, Tom não sabe se é como a criança que quer entender a tenda ou como o pai que o aconselha a afastar-se dela. Os homens examinam a tenda às cegas durante muitos minutos. — Talvez possamos usar isto — diz Tom a Jules, mas Jules já está a chamá-lo, ao longe. Tom atravessa a rua. Segue a voz de Jules até se encontrarem noutro relvado. A primeira casa em que entram está destrancada. Concordam que não devem abrir os olhos ali. Entram. Há correntes de ar no interior. Os homens sabem que as janelas estão abertas antes de as veri�carem. A vassoura de Tom diz-lhe que a primeira sala em que entram está cheia de caixas. Estas pessoas, pensa, estavam a preparar-se para partir. — Jules — diz Tom —, vê isto. Vou ver o resto da casa. Já passaram 24 horas desde que deixaram a sua própria casa. Agora, com alcatifa sob os pés, caminha lentamente pela casa de um estranho. Encontra um sofá. Uma cadeira. Uma televisão. Mal consegue ouvir Jules e o husky. O vento sopra através das janelas abertas. Tom encontra uma mesa. Tateia ao longo da superfície até os seus dedos pararem em alguma coisa. Uma tigela, pensa. Levantando-a, ouve algo cair na mesa. Procura com a mão, encontra-o e descobre que é um utensílio que não esperava. É como uma colher de gelado, mas mais pequena. Tom desliza um dedo por ela. Contém uma substância espessa. Ele estremece. Não é gelado. E uma vez Tom tocou algo assim. No bordo da banheira. Junto ao seu pequeno pulso. O sangue era assim. Espesso. Morto. O sangue de Robin. A tremer, ele aproxima a tigela do peito enquanto pousa a colher. Desliza lentamente os dedos pela curva cerâmica e lisa da tigela até tocar em algo no fundo. Abafa um grito e deixa cair a tigela no chão alcatifado. — Tom? A princípio, Tom não responde. Aquilo em que tocou… no passado também tocou em algo assim. Robin tinha-o trazido da escola. Da aula de ciências. Tinha-o guardado numa lata de café sem tampa cheia de moedas. Tom descobriu-o quando Robin estava na escola. Quando estava a vasculhar a casa à procura daquele cheiro. Sabia que o tinha encontrado quando, no interior da lata, em cima de um monte de moedas, viu uma pequena bola descolorada. Instintivamente, pegou-lhe. Pareceu-lhe esponjosa entre os dedos. Era um olho de porco. Dissecado. Robin mencionara que o tinha feito na aula. — Tom? O que se passa aí? O Jules está a chamar-te. Responde. — Tom? — Estou bem, Jules! Deixei cair uma coisa. Recuando, com vontade de sair daquela sala, a sua mão toca em algo. Também conhece aquela sensação. Isto era um ombro, pensa. Há um corpo sentado numa cadeira à mesa. Tom imagina-o. Sentado. Sem olhos. A princípio, não se consegue mover. Está de frente para onde o corpo deve estar. Sai apressadamente da sala. — Jules — diz —, vamos embora daqui. — O que é que aconteceu? Tom conta-lhe. Em poucos minutos estão fora da casa. Decidiram procurar o caminho de regresso a casa. Um cão é su�ciente. Entre a tenda e o que Tom encontrou na tigela, nenhum deles quer passar mais tempo ali fora. Atravessam um relvado. Depois um caminho de acesso a uma casa. Outro. O cão está a puxar Jules. Tom esforça-se para os acompanhar. Sente que está a perder-se ali na escuridão da sua venda. Chama Jules. — Estou aqui — diz Jules. Tom segue a voz dele. Alcança-o. — Tom — diz Jules. — O cão está a insistir muito nesta garagem. Ainda a tremer por causa da sua descoberta na casa, e ainda assustado com a falta de sentido da tenda no meio da rua, Tom diz que devem continuar a procurar o caminho de casa. Mas Jules quer saber o que tanto interessa ao cão. — É uma garagem independente — diz Jules. — Ele está a agir como se houvesse lá dentro algo com vida. Uma porta lateral está trancada. Encontrando apenas uma janela, Jules parte-a. Diz a Tom que ela está protegida. Com cartão. É pequena, mas um deles deve entrar. Jules diz que vai fazê-lo. Tom diz que também vai. Prendem o cão a um tubo de descarga do algeroz e ambos os homens entram pela janela. Lá dentro, algo rosna. Tom volta-se para a janela. Jules chama-o. — Parece outro cão! Tom também acha que sim. O seu coração bate muito depressa, demasiado depressa, parece-lhe, e mantém uma mão apoiada no parapeito da janela, pronto para sair. — Não acredito — diz Jules. — O que é? — É outro husky. — O quê? Como é que sabes? — Porque estou a tocar-lhe no focinho. Tom larga a janela. Percebe que o cão está a comer. Jules está a dar-lhe comida. Então, junto ao cotovelo de Tom, ouve-se outro som. Primeiro parece o som de risos de crianças. Depois parece música. Finalmente, o som inconfundível de chilrear. Pássaros. Cuidadosamente, Tom recua. O chilrear para. Ele avança novamente. O som aumenta de intensidade. Claro, pensa Tom, sentindo a emoção que esperava quando deixaram a casa no dia anterior. Enquanto Jules conversa calmamente com o cão, Tom aproxima-se dos pássaros até que os gritos deles se tornam insuportáveis. Tateia ao longo de uma prateleira. — Tom — diz Jules na escuridão —, tem cuidado… — Eles estão numa caixa — diz Tom. — O quê? — Eu cresci com um tipo cujo pai era caçador. Os pássaros dele faziam o mesmo som. Fazem mais barulho quanto mais nos aproximamos deles. As mãos de Tom estão dentro da caixa. Está a pensar. — Jules — diz ele —, vamos para casa. — Eu gostava de ter mais tempo com o cão. — Vais ter de o fazer em casa. Podemos fechá-los num quarto se houver algum problema. Mas encontrámos o que procurávamos. Vamos para casa. Jules põe a trela ao segundo husky. Este é menosdifícil. Enquanto saem da garagem pela porta lateral, Jules pergunta a Tom: — Vais trazer os pássaros? — Sim. Tive uma ideia. Lá fora, pegam no primeiro husky e dirigem-se para casa. Jules caminha com o segundo cão, Tom com o primeiro. Lentamente, atravessam relvados, depois passeios, até chegarem à marca que deixaram no dia anterior. No alpendre, antes de bater à porta, Tom ouve os colegas de casa a discutirem lá dentro. Então parece-lhe ouvir um som vindo da rua atrás de si. Ele vira-se. Espera. Pergunta-se a que distância estará a tenda dali. Então bate à porta. No interior, a discussão para. Felix pergunta quem é. Tom responde. — Felix! É o Tom! 26 Vais ter de abrir os olhos… — Tens de comer, Rapariga — diz Malorie. A sua voz é débil. O Rapaz comeu nozes do saco. A Rapariga recusa-se. — Se não comeres — diz Malorie entre caretas —, vou parar este barco e deixar-te aqui. Malorie sente a mão da Rapariga nas suas costas. Para de remar e tira algumas nozes do saco, que lhe estende. Até aquele toque suave lhe faz doer o ombro. Mas um pensamento paira acima da dor. Uma verdade que Malorie não quer enfrentar. Sim, o mundo por trás da venda é de um cinzento doente. Sim, está com medo de estar a perder a consciência. Mas uma realidade muito mais sombria atravessa a sua miríade de medos e problemas, tortuosa, inteligente. Flutua, depois paira, e �nalmente pousa na linha da frente da sua imaginação. É uma coisa que ela tem vindo a proteger, a esconder do resto de si mesma toda a manhã. Mas há anos que é o foco da sua tomada de decisão. Dizes a ti mesma que esperaste quatro anos porque tiveste medo de perder a casa para sempre. Dizes a ti mesma que esperaste quatro anos porque querias treinar as crianças primeiro. Mas nenhuma dessas coisas é verdade. Esperaste quatro anos porque aqui, nesta viagem, neste rio, onde espreitam loucos e lobos, onde as criaturas devem estar próximas, NESTE DIA, vais ter de fazer algo que não fazes na rua há ainda mais de quatro anos. Hoje vais ter de abrir os olhos. Na rua. É verdade. Ela sabe que é. Parece que sempre o soube. E o que é que a assusta mais — a possibilidade de uma criatura na sua linha de visão? Ou a insondável paleta de cores que explodirão diante de si quando abrir os olhos? Com que se parecerá o mundo agora? Será que o vais reconhecer? Será cinzento? Será que as árvores enlouqueceram? As �ores, as ervas, o céu? O mundo inteiro terá enlouquecido? Será que luta contra si próprio? A Terra refuta os seus próprios oceanos? O vento intensi�ca-se. Terá visto alguma coisa? Também terá enlouquecido? Pensa, diria Tom. Estás a fazê-lo. Estás a remar. Continua a remar. Tudo isto signi�ca que vais conseguir. Vais ter de abrir os olhos. Tu consegues. Porque precisas. Tom. Tom. Tom. Tom. Tom. Anseia por ele agora mais do que nunca. Mesmo neste mundo mais novo, ali no rio, quando o vento começa a uivar, a água fria lhe salpica as calças de ganga, os animais selvagens andam pelas margens, onde o seu corpo está ferido, a sua mente é prisioneira dos cinzentos, mesmo ali, Tom vem até ela como algo brilhante, algo certo, algo bom. — Estou a comer — diz a Rapariga. Isto também é bom. Malorie encontra forças para a incentivar. — Muito bem — diz entre respirações pesadas. Mais movimento no bosque à esquerda. Parece um animal. Pode ser o homem do barco. Pode ser uma criatura. Pode ser uma dúzia delas. O barco a remos irá cruzar-se com um bando de ursos esfomeados, à procura de peixe? Malorie está ferida. A palavra continua a vir-lhe à mente. Também está às voltas na sua cabeça. Como Tom. Como os tons de cinzento atrás da venda. Como os ruídos do rio e do novo mundo. O seu ombro. A sua ferida. Aconteceu. Aquilo de que as pessoas a teriam avisado se tivesse havido alguém presente para a avisar. Segue o rio se quiseres, mas não te esqueças de que podes magoar-te. Oh, eu não sei se o faria no teu lugar. Podes-te magoar. Isso é muito perigoso. O que seria das crianças se te magoasses? O mundo agora é dos animais, Malorie. Não saias. Não sigas esse rio. Podes ferir-te. Ferida. FERIDA. FERIDA! Shannon. Pensa na Shannon. Agarra-te a ela. Ela tenta. Uma memória abre caminho por entre a multidão de pensamentos negros. Lembra-se de estar com Shannon numa colina. Estava sol. Ela protegeu os olhos com o antebraço. Apontou para o céu. É o Allan Harrison! dissera, referindo-se a um rapaz da sua turma. Aquela nuvem parece o Allan Harrison! Estava a rir. Qual? Aquela! Estás a ver? Shannon aproximou-se dela no relvado. Encostou a cabeça à de Malorie. Sim! Haha! Também o vejo! E olha aquela! É a Susan Ruth! As irmãs �caram ali horas, a desencantar rostos nas nuvens. Bastava um nariz. Uma orelha. Talvez a de cima tivesse caracóis, como a Emily Holt. Lembras-te do céu? pergunta-se, ainda a remar. Era tão azul. E o sol era tão amarelo como no desenho de uma criança. A relva era verde. O rosto de Shannon era pálido, liso, branco. Bem como as suas mãos, que apontavam para as nuvens. Naquele dia, para onde quer que olhassem, havia cores. — Mamã? — pergunta o Rapaz. — Mamã, estás a chorar? Quando abrires os olhos, Malorie, vais vê-las novamente. Todo o teu mundo virá à luz. Viste paredes e cobertores. Escadas e alcatifas. Manchas e baldes de água do poço. Corda, facas, um machado, arame, �os de altifalantes e colheres. Conservas, velas e cadeiras. Fita, pilhas, madeira e gesso. Há anos que a única coisa que pudeste ver foram os rostos dos teus colegas de casa e os rostos dos teus �lhos. As mesmas cores. As mesmas cores. As mesmas cores durante anos. ANOS. Estás preparada? E o que mais te assusta? As criaturas ou tu mesma, quando as memórias de um milhão de visões e cores vierem na tua direção? O que mais te assusta? Malorie rema agora muito devagar. A menos de metade da velocidade a que avançava há dez minutos. A mistura de água, urina e sangue agita-se junto aos seus tornozelos. Animais ou loucos ou criaturas movem-se nas margens. O vento é frio. Tom não está ali. Shannon não está ali. O mundo cinzento atrás da sua venda começa a girar, como lama espessa a escorrer para um esgoto. Ela vomita. No último instante, pergunta-se se será uma coisa terrível, aquilo que lhe está a acontecer. Desmaiar. O que acontecerá às crianças? Ficarão bem se a mamã delas desmaiar? E mais nada. As mãos de Malorie largam os remos. Na sua mente, Tom está a observá-la. As criaturas também a observam. E então, enquanto o Rapaz lhe faz uma pergunta, Malorie, a capitã deste pequeno navio, perde completamente os sentidos. 27 Malorie acorda de um sonho acerca de bebés. Ou o dia acaba de romper ou a noite apresta-se a cair, é o que ela calcula. A casa está em silêncio. Quanto mais a gravidez avança, mais vívida se torna a sua realidade. Ambos os livros Grávida e Finalmente… um Bebé! mencionam brevemente os partos em casa. Claro que é possível fazê-lo sem a ajuda de um pro�ssional, mas os livros não o recomendam. Higiene, dizem. Circunstâncias imprevistas. Olympia odeia ler aquelas partes, mas Malorie sabe que devem fazê-lo. Um dia, a dor de que a sua mãe e de que todas as mães falam virá até si na mesma forma: o parto. Só uma mulher pode experienciá- la e, por este motivo, todas as mulheres estão ligadas. Agora o momento aproxima-se. Agora. E quem estará lá quando isso acontecer? No velho mundo, a resposta era fácil. Shannon, claro. A mãe e o pai. Os amigos. Uma enfermeira que lhe diria que estava a portar-se bem. Haveria �ores numa mesa. Os lençóis teriam um cheiro fresco. Seria cuidada por pessoas que já tinham dado à luz outros bebés; agiriam com a tranquilidade de quem descasca um pistacho. E a tranquilidade que expressariam seria exatamente o que acalmaria os seus nervos impossíveis. Mas essa já não era a resposta. Agora, o parto que Malorie espera parece-se mais com o de uma loba: bruto, cruel, desumano. Não haverá médicos. Nem enfermeiras. Não haverá medicamentos. Ah, como imaginou que saberia o que fazer! Quão preparada pensou que estaria! Revistas, sites, vídeos,conselhos do seu obstetra, histórias de outras mães. Mas agora nada disso está ao seu dispor. Nada! Não vai dar à luz num hospital, vai acontecer ali mesmo, naquela casa. Num dos quartos daquela casa! E o máximo que pode esperar é ter Tom a assistir enquanto Olympia lhe segura a mão e olha horrorizada. Haverá cobertores a tapar as janelas. Talvez tenha uma t-shirt debaixo do rabo. Beberá um copo da água turva do poço. E mais nada. É assim que vai acontecer. Volta a deitar-se de costas. Respirando com força e devagar, Malorie �ta o teto. Fecha os olhos e volta a abri-los. Será capaz de fazer isto? Será capaz? Tem de ser. E assim repete mantras, palavras para se preparar. No �nal de contas, não importa se acontece num hospital ou no chão da cozinha. O teu corpo sabe o que fazer. O teu corpo sabe o que fazer. O teu corpo sabe o que fazer. O bebé que vai nascer é a única coisa que importa. Abruptamente, como se estivessem a imitar o som do bebé para o qual Malorie se prepara, ouve os pássaros a chilrearem do lado de fora da porta da rua. Desperta dos seus pensamentos e vira-se na direção do som. Enquanto se senta lentamente na cama, ouve uma batida vinda do andar de baixo. Paralisa. Era a porta? É o Tom? Alguém saiu? Ouve novamente o mesmo som e, surpreendida, senta-se. Pousa uma mão na barriga e escuta. O som repete-se. Malorie balança lentamente os pés para o chão, levanta-se e atravessa o quarto. Para junto à porta, com uma mão na barriga, uma na madeira da ombreira da porta, e escuta. Outra batida. Desta vez mais ruidosa. Caminha até ao cimo das escadas e para novamente. Quem será? Tem o corpo frio por baixo do pijama. O bebé mexe-se. Malorie sente-se um pouco fraca. Os pássaros ainda estão a fazer barulho. Será um dos habitantes da casa? Ela volta a entrar no quarto e pega numa lanterna. Dirige-se para o quarto de Olympia e aponta a lanterna à cama. Ela está a dormir. No quarto ao fundo do corredor, vê Cheryl na cama. Malorie desce lentamente as escadas até à sala de estar. Tom. Tom está a dormir na alcatifa. Felix está no sofá. — Tom — diz Malorie, tocando-lhe no ombro. — Tom, acorda. Tom vira-se de barriga para baixo. Depois olha para cima, de repente, para Malorie. — Tom — diz ela. — Está tudo bem? — Está alguém a bater à porta da rua. — O quê? Agora? — Agora mesmo. Ouve-se outra batida. Tom vira o rosto para o corredor. — Meu Deus. Que horas são? — Não sei. É tarde. — OK. Tom levanta-se rapidamente. Faz uma pausa, como se estivesse a tentar acordar por completo, deixando o sono no chão. Está completamente vestido. Ao lado de onde ele estava a dormir, Malorie vê o começo de outro capacete. Tom acende o candeeiro da sala. Então os dois dirigem-se para a porta da frente. Param no corredor. Outra série de batidas. — Olá? — diz uma voz de homem. Malorie agarra o braço de Tom. Tom acende a luz do corredor. — Olá? — repete o homem. Seguem-se mais batidas. — Preciso que me deixem entrar! — diz o homem. — Não tenho para onde ir. Olá? Por �m, Tom avança na direção da porta. Do fundo do corredor, Malorie deteta um movimento. É Don. — O que se passa? — pergunta ele. — Alguém está à porta — responde Tom. Don, meio a dormir, parece confuso. Depois diz: — Bem, e o que é que vais fazer? Mais batidas. — Eu preciso de um lugar para onde ir — diz a voz. — Não consigo passar mais tempo sozinho aqui fora. — Vou falar com ele — diz Tom. — Não somos uma merda de um albergue, Tom — diz Don. — Só vou falar com ele. Então Don avança na direção deles. Malorie ouve passos no andar de cima. — Se estiver aí alguém, eu posso… — Quem é você? — pergunta �nalmente Tom. Há um momento de silêncio. Depois: — Oh, graças a Deus, há alguém aí! O meu nome é Gary. — Ele pode ser má pessoa — diz Don. — Pode estar louco. Felix e Cheryl aparecem ao fundo do corredor. Parecem exaustos. Jules também está ali. Os cães estão atrás dele. — O que se passa, Tom? — Ouça, Gary — diz Tom —, fale-nos um pouco de si. Os pássaros estão a chilrear. — Quem é? — pergunta Felix. — Chamo-me Gary e tenho 46 anos. Tenho barba castanha. Não abro os olhos há muito tempo. — A voz dele não me agrada — diz Cheryl. Agora Olympia também lá está. Tom pergunta: — Porque é que está na rua? Gary responde: — Tive de sair da casa onde estava. As pessoas não eram boas. Aconteceu uma situação. — O que diabos signi�ca isso? — pergunta Don. Gary faz uma pausa. Depois explica: — Eles tornaram-se violentos. — Isso não basta — diz Don aos outros. — Não abram esta porta. — Gary — pergunta Tom —, há quanto tempo está aí fora? — Dois dias, acho. Quase três. — Onde é que tem vivido? — Vivido? Nos relvados. Debaixo dos arbustos. — Merda — diz Cheryl. — Ouçam — diz Gary. — Tenho fome. Estou sozinho. E tenho muito medo. Entendo as vossas reservas, mas não tenho para onde ir. — Tentou outras casas? — pergunta Tom. — Sim! Estou há horas a bater às portas. Você é o primeiro a responder. — Como é que ele sabia que estávamos aqui? — pergunta Malorie aos outros. — Talvez não soubesse — diz Tom. — Ele esteve muito tempo a bater à porta. Ele sabia que estávamos aqui. Tom volta-se para Don. A sua expressão pergunta a Don o que acha. — Nem pensar. Agora Tom está a suar. — Eu sei que tu queres — continua Don com um tom furioso. — Tens esperança de que ele tenha informações. — Pois tenho — responde Tom. — Tenho esperança de que ele tenha ideias. Também estou a pensar que ele precisa da nossa ajuda. — Certo. Pois eu estou a pensar que pode haver sete homens lá fora, prontos para nos cortar a garganta. — Meu Deus — diz Olympia. — O Jules e eu estivemos lá fora há dois dias — diz Tom. — Ele tem razão quando diz que as outras casas estão vazias. — Então porque é que não dorme numa delas? — Não sei, Don. Comida? — E vocês estiveram lá fora ao mesmo tempo que ele e ele não vos ouviu? — Porra — diz Tom. — Não sei responder a isso. Ele podia estar na rua de trás. — Vocês não viram essas casas. Como é que sabes que ele está a dizer a verdade? — Deixa-o entrar — diz Jules. Don encara-o. — Não é assim que as coisas funcionam aqui. — Então vamos votar. — Vá lá — diz Don, furioso. — Se um de nós não quer abrir a porra da porta, não devemos abrir a porra da porta. Malorie pensa no homem no alpendre. Na sua imaginação, tem os olhos fechados. Está a tremer. Os pássaros continuam a chilrear. — Olá? — diz Gary novamente. Parece tenso, impaciente. — Sim — diz Tom. — Desculpe, Gary. Ainda estamos a discutir o assunto. — Então vira-se para os outros. — Votem — diz. — Sim — diz Felix. Jules assente. — Desculpa — diz Cheryl. — Não. Tom olha para Olympia. Ela abana a cabeça. — Detesto pôr-te nesta posição, Malorie — diz ele —, mas estamos empatados. O que é que fazemos? Malorie não quer responder. Não quer ter esse poder. O destino daquele estranho foi despejado aos seus pés. — Talvez ele precise de ajuda — diz ela. No entanto, assim que o diz, arrepende-se. Tom vira-se para a porta. Don estende a mão e agarra-lhe o pulso. — Eu não quero que esta porta se abra — sibila. — Don — diz Tom, soltando lentamente o pulso da mão de Don —, nós votámos. Vamos deixá-lo entrar. Tal como nós deixámos entrar a Olympia e a Malorie. Tal como o George nos deixou entrar aos dois. Don �ta Tom durante o que Malorie sente que é uma eternidade. Será que é desta que se pegam à pancada? — Ouve o que te digo — diz Don. — Se algo mau resultar disto, se a minha vida for posta em perigo por causa de uma merda de um voto, não vou parar para vos ajudar quando me puser a andar para fora desta casa. — Don — diz Tom. — Olá? — chama Gary. — Mantenha os olhos fechados! — grita Tom. — Vamos deixá-lo entrar. A mão de Tom está na maçaneta da porta. — Jules, Felix — diz Tom —, usem as vassouras. Cheryl, Malorie, preciso que se aproximem dele, que o revistem. OK? Agora fechem todos os olhos. Na escuridão, Malorie ouve a porta a abrir-se. Há um silêncio. Então Gary fala. — A porta está aberta? — pergunta ansiosamente. — Despache-se — diz Tom. Malorie ouve passos. A porta da frentefecha-se. Ela avança. — Mantenha os olhos fechados, Gary — diz ela. Ela estende a mão para ele, encontra-o e aproxima os dedos do seu rosto. Sente o nariz, as bochechas, os olhos. Toca-lhe nos ombros e pede-lhe uma das mãos. — Isto é novidade para mim — diz ele. — O que é que procura? — Shhh! — Ela apalpa-lhe as mãos e conta os dedos. Tateia as unhas e os pelos dos dedos. — OK — diz Felix. — Acho que ele está sozinho. — Sim — diz Jules. — Ele está sozinho. Malorie abre os olhos. Vê um homem, muito mais velho do que ela, com uma barba castanha e um casaco de tweed por cima de uma camisola preta. Cheira como se tivesse passado semanas lá fora. — Obrigado — diz ele, ofegante. A princípio ninguém responde. Limitam-se a observá-lo. O seu cabelo castanho, penteado para o lado, está desgrenhado. É mais velho e mais pesado do que qualquer um dos habitantes da casa. Tem na mão uma pasta castanha. — O que é que tem aí? — pergunta Don. Gary olha para a pasta como se se tivesse esquecido que a tinha. — As minhas coisas — responde. — O que apanhei antes de sair. — Que coisas são essas? — pergunta Don. Gary, parecendo simultaneamente surpreendido e compreensivo, abre a pasta. Vira-a para os habitantes da casa. Papéis. Uma escova de dentes. Uma camisa. Um relógio. Don assente. Quando Gary fecha a pasta, repara na barriga de Malorie. — Oh meu Deus — diz. — Você está quase, não está? — Sim — responde ela friamente, ainda sem saber se podem con�ar naquele homem. — Para que são os pássaros? — pergunta ele. — Para dar o aviso — responde Tom. — Claro — diz Gary. — Canários nas minas. Foi uma ideia muito inteligente. Ouvi-os quando me aproximei. Então, Tom convida Gary a entrar mais para dentro da casa. Os cães cheiram-no. Na sala de estar, Tom aponta para a poltrona. — Pode dormir ali esta noite — diz. — É reclinável. Precisa de comer? — Sim — diz Gary, aliviado. Tom guia-o através da cozinha e até à sala de jantar. — Temos enlatados na cave. Vou buscar alguma coisa para si. Tom faz um gesto discreto a pedir a Malorie que o siga até à cozinha. Ela obedece. — Eu vou �car acordado com ele mais algum tempo — diz Tom. — Dorme um pouco se quiseres. Estamos todos exaustos. Está tudo bem. Vou dar-lhe comida, água e falamos com ele amanhã. Todos juntos. — Nem pensar que vou voltar para a cama agora — diz Malorie. Tom sorri, cansado. — OK. Ele dirige-se para a cave. Malorie junta-se aos outros na sala de jantar. Quando Tom regressa, traz pêssegos enlatados. — Nunca imaginei que um dia a ferramenta mais valiosa do mundo seria um abre-latas — diz Gary. Estão todos juntos à volta da mesa da sala de jantar. Tom interroga Gary. Como é que sobreviveu lá fora? Onde dormiu? É óbvio que Gary está exausto. Por �m, um por um, a começar por Don, os habitantes da casa voltam para os seus quartos. Quando Tom leva Gary de volta para a sala de estar, Malorie e Olympia levantam-se da mesa. Nas escadas, Olympia pousa a mão sobre a de Malorie. — Malorie — diz ela —, importas-te que durma contigo esta noite? Malorie volta-se para ela. — Não — responde. — Não me importo nada. 28 É a manhã seguinte. Malorie levanta-se e veste-se. Parece que estão todos lá em baixo. — Vocês também tinham eletricidade? — pergunta Felix quando Malorie entra na sala de estar. Gary está sentado no sofá. Sorri ao ver Malorie. — Este — diz Gary, fazendo um gesto na direção dela —, é o anjo que sentiu o meu rosto quando entrei. Tenho de admitir que o contacto humano quase me fez chorar. Malorie acha que Gary fala um pouco como um ator. Com muitos �oreados. — Então um voto decidiu realmente o meu destino? — pergunta Gary. — Sim — responde Tom. Gary assente. — Na casa de onde vim, não havia nenhuma dessas cortesias. Se alguém tinha uma ideia, ia em frente, muito vigorosamente, quer os outros aprovassem quer não. É muito bom conhecer pessoas que mantiveram o civismo das nossas vidas anteriores. — Eu votei contra — diz Don bruscamente. — Sim? — pergunta Gary. — Sim. Votei. Sete pessoas debaixo de um teto são mais do que su�cientes. — Compreendo. Um dos huskies levanta-se e aproxima-se de Gary. Gary faz-lhe uma festa atrás das orelhas. Tom começa a explicar-lhe as mesmas coisas que explicou a Malorie. Energia hidroelétrica. A comida na cave. A falta de uma lista telefónica. Como George morreu. Ao �m de algum tempo, Gary começa a falar sobre um antigo colega de casa seu. Um «homem perturbado» que não acreditava que as criaturas eram perigosas. — Ele acreditava que a reação das pessoas a elas era psicossomática. Por outras palavras, toda esta conversa de loucura não era causada pelas criaturas, mas sim pelas pessoas que as viam. Conversa de loucura, pensa Malorie. Aquelas palavras desdenhosas pertenciam ao antigo colega de casa? Ou seriam de Gary? — Eu gostava de vos falar da minha experiência na minha antiga casa — continua Gary. — Mas aviso-vos desde já que é uma história horrível. Malorie quer ouvir. Todos eles querem. Gary desliza os dedos pelo cabelo. Então começa. — Não houve nenhum anúncio no jornal e não éramos tão jovens como vocês. Não tínhamos sentido de comunidade nem houve um esforço conjunto. O meu irmão, Duncan, tem um amigo que levou o Relatório Rússia muito a sério. Ele foi um dos primeiros crentes. A ideia de que o governo ou alguém estava a tentar acabar connosco coincidia bem com as suas teorias da conspiração e paranoia. Eu próprio ainda tenho momentos em que não consigo acreditar que isto está a acontecer. E quem pode censurar-me? Tenho mais de 40 anos. Estava tão habituado à vida que tinha, nunca imaginei uma vida assim. Resisti. Mas o Kirk, o amigo do meu irmão, tinha a certeza, desde o início. E nada, ao que parece, podia fazê-lo mudar de ideias. Uma tarde, o Duncan ligou-me e disse-me que o Kirk tinha sugerido que nos reuníssemos na casa dele durante alguns dias, ou até sabermos mais acerca desta «coisa». » Que coisa? — perguntei. » Gary, está em todos os noticiários. » O quê, Duncan? O que aconteceu na Rússia? Não podes estar a falar a sério. » Vá lá — disse o Duncan. — Bebemos umas cervejas, comemos pizza e fazemos-lhe a vontade. Não tens nada a perder. » Eu disse-lhe que não, obrigado. Passar tempo com o louco do Kirk enquanto ele analisava histórias sensacionalistas não me parecia divertido. Mas acabei por passar por lá. » Tinha ouvido as notícias como todas as outras pessoas do país. Comecei a �car preocupado. Eram tantos casos. Ainda assim, absurdamente, tentei manter a descrença. Aquele tipo de coisas simplesmente não acontecia. Mas então ouvi uma notícia que me obrigou a agir. Foi o caso das irmãs do Alasca. Podem estar a perguntar-se porque é que demorei tanto a deixar-me convencer. O caso do Alasca aconteceu relativamente tarde, mas o Alasca também é um território americano e sou provinciano o su�ciente para não me preocupar até as coisas acontecerem perto de casa. Até o apresentador do noticiário estava claramente assustado com o que estava a dizer. Sim, até o homem que transmitiu a notícia o fez a tremer. » Vocês conhecem a história. Uma mulher viu as suas duas vizinhas idosas, irmãs, a saírem de casa. Supôs que tinham ido dar o seu passeio diário. Três horas depois, ouviu na rádio que as irmãs estavam em frente ao hospital, agachadas nos degraus da pedra, a tentar morder as pessoas que passavam. A mulher conduziu até ao hospital, imaginando-se mais próxima das irmãs do que qualquer outra pessoa e provavelmente capaz de ajudar. Mas não foi o caso. E as fotogra�as da CNN mostraram a mulher, cujo rosto fora arrancado e estava literalmente no passeio ao lado do seu crânio ensanguentado. Atrás dela, estavam as duas idosas, mortas, alvejadas pela polícia. Aquela imagem marcou-me. Pessoas tão normais. Num ambiente tão normal. » Para o Kirk, o caso do Alasca validava todas as suas fantasias paranoicas. Apesar do meu medo crescente, eu não estava preparado para trocar a vida que conhecia por esta existência miliciana advogada por ele. Eu estava preparado para tapar as janelas, trancaras portas e esconder-me, mas o Kirk já tinha planos para lutar contra o que pensava ser uma «invasão» — fosse ela extraterrestre ou de outro tipo, nunca percebi. Falava de armas, equipamento e pistolas como um soldado veterano. Claro que não era; nunca se alistou em nada na vida. Gary faz uma pausa. Parece estar a pensar. — Ao �m de pouco tempo, a casa estava cheia de homens semimilitantes. O Kirk estava a gostar do seu novo papel de general, e eu assisti a grande parte das palhaçadas à distância. Avisava regularmente o Duncan para não se envolver demasiado. Um homem como o Kirk podia pôr os amigos em perigo. Os homens tornaram-se cada vez mais belicosos, animados com a fantasia de vencer os vilões da «invasão» do Kirk. Os dias passaram e, no entanto, nada resultou das suas declarações de que iam proteger a cidade, eliminar a causa desta loucura global e garantir o seu lugar na história como o grupo que resolveu o «grande problema». No entanto, houve um homem na casa que tomou medidas para defender o que acreditava. Chamava-se Frank, e o Frank acreditava que as criaturas para as quais o Kirk se preparava não eram uma ameaça. Ainda assim, veio para a casa, com medo, admitiu, do inevitável caos que podia varrer o país. » Enquanto o Kirk planeava inúteis simulacros diários, o Frank tornou-se uma espécie de recluso, quase nunca saindo do seu quarto no segundo andar. E ali, escrevia. Dia e noite, o Frank escrevia com lápis, caneta, marcador e maquilhagem. Um dia, enquanto estava a passar no corredor do andar de cima, ouvi algo atrás da porta fechada. Era um som furioso, laborioso, zangado, agressivo. Entreabri a porta e vi-o debruçado sobre uma secretária, a murmurar acerca da sociedade «cultista e hiper- reativa» que desdenhava, enquanto escrevia. Eu não tinha como saber o que ele estava a escrever. Mas queria descobrir. » Discuti o assunto com o Duncan. O rosto do meu irmão estava pintado com um camu�ado ridículo. Nessa altura ele já estava realmente infetado com os delírios do Kirk e não acreditava que o Frank fosse uma ameaça. O Frank usava frases como histeria de massas e idolatria psicossomática, ao passo que o Kirk e os outros faziam treino de tiro, sem armas, na cave. Todos achavam que o Frank era um paci�sta sem préstimo. Gary passa novamente as mãos pelo cabelo. — Eu tentei descobrir o que o Frank estava a armar fechado no quarto. Comecei a procurar uma oportunidade para ler os seus escritos secretos. » O que é que acham que aconteceria a um homem que já era louco se visse as criaturas lá fora? Acham que ele seria imune, por ter a mente já destruída? Ou acham que a sua loucura alcançaria um nível mais alto? Talvez os doentes mentais venham a herdar este novo mundo, por não poderem enlouquecer ainda mais. Também não sei a resposta. Gary bebe um gole de água. — O meu momento surgiu assim: O Kirk e os outros estavam ocupados na cave. O Frank estava no banho. Tomei a decisão de bisbilhotar rapidamente. Entrei no quarto dele e encontrei os escritos na gaveta da secretária. Não foi fácil porque, por esta altura, eu já tinha medo dele. Embora os outros não lhe dessem importância, troçando das suas ideias, eu suspeitava de possibilidades mais negras. Comecei a ler. Fiquei imediatamente surpreendido com as palavras dele. Não importa há quanto tempo o Frank começara a escrever, parecia impossível já ter escrito tudo aquilo. Dezenas de cadernos, escritos em várias cores, cada um mais furioso do que o outro. Pequenas estrofes manuscritas seguidas de grandes frases sublinhadas, declarando que as criaturas não deviam ser temidas. Referia-se aos restantes de nós como «as pessoas com mentes pequenas» que «deviam ser exterminadas». Ele era realmente perigoso. De repente, ouvindo-o sair do banho, saí a correr do quarto. Talvez o Duncan não estivesse tão errado quando escolheu seguir o Kirk. Aqueles cadernos mostraram-me que havia reações muito piores do que a dele ao novo mundo. Gary respira fundo. Limpa os lábios com as costas da mão. — Quando acordámos no dia seguinte, as cortinas tinham sido arrancadas. Cheryl abafa um grito. — As portas tinham sido destrancadas. Don começa a dizer algo. — E o Frank tinha partido. Levou com ele os cadernos. — Oh, merda — diz Felix. Gary abana a cabeça. — Alguém �cou ferido? — pergunta Tom. Os olhos de Gary enchem-se de lágrimas, mas ele controla-se. — Não — diz ele. — Ninguém. Coisa que tenho a certeza de que o Frank teria incluído nas suas anotações. Malorie leva uma mão à barriga. — Porque é que saiu? — pergunta Don, impaciente. — Saí — diz Gary —, porque o Kirk e os outros começaram a falar muito acerca de ir à procura do Frank. Queriam matá-lo pelo que ele tinha feito. A sala �ca em silêncio. — Nessa altura soube que tinha de partir. Aquela casa estava arruinada. Destruída. A vossa, ao que parece, não está. Por isso… — Gary diz, olhando para Malorie —, agradeço-lhe por me deixar entrar. — Eu não o deixei entrar — diz Malorie. — Fomos todos nós. Que tipo de homem, pergunta-se ela, deixaria o irmão para trás? Ela olha para Don. Para Cheryl. Para Olympia. A história de Gary teria cativado a simpatia dos que tinham votado para não o deixar entrar? Ou teria justi�cado os seus medos? Conversa de loucura. Tom e Felix estão a fazer perguntas a Gary acerca da sua história. Jules também intervém. Mas Cheryl saiu da sala. E Don, que tem uma palavra a dizer acerca de tudo, não está a falar muito. Limita-se a olhar �xamente. Uma divisão está a crescer, pensa Malorie. Exatamente quando começou não importa. Agora é visível. Gary trouxe consigo uma pasta. Uma história. E, de alguma forma, uma divisão. 29 Malorie acorda com os olhos fechados. Já não é tão difícil de fazer como era antes. A consciência volta. Os sons, as sensações e os cheiros da vida. As imagens também. Malorie sabe que, mesmo com os olhos fechados, há visão. Vê tons de pêssego, amarelo, as cores da luz do sol a penetrar a carne. Nos cantos da sua visão estão os cinzentos. Parece que está ao ar livre. Sente ar frio no seu rosto. Lábios gretados. Garganta seca. Quando foi a última vez que bebeu água? O seu corpo está bem. Descansado. Há um latejar algures à esquerda do seu pescoço. O ombro. Leva a mão direita à testa. Quando os dedos lhe tocam no rosto, percebe que estão molhados e sujos. Na verdade, sente as costas todas molhadas. Tem a camisa encharcada em água. Um pássaro canta acima da sua cabeça. De olhos ainda fechados, Malorie vira-se para ele. As crianças estão a respirar com di�culdade. Parece que estão a fazer algo. Estarão a desenhar? A construir algo? A brincar? Malorie senta-se. — Rapaz? O seu primeiro pensamento parece uma piada. Uma impossibilidade. Um erro. Então percebe que é exatamente o que está a acontecer. Estão a respirar com di�culdade porque estão a remar. — Rapaz! — grita Malorie. A sua voz soa mal. Como se a sua garganta fosse feita de madeira. — Mamã! — O que se passa?! O barco a remos. O barco a remos. O barco a remos. Estás no rio. Desmaiaste. DESMAIASTE. Apoiando o ombro debilitado na beira do barco, ela apanha uma mão-cheia de água e leva-a à boca. Depois ajoelha-se sobre a borda do barco, a apanhar água em sucessão rápida. Está a respirar com di�culdade. Mas os cinzentos desapareceram. E o seu corpo parece um pouco melhor. Ela vira-se para as crianças. — Quanto tempo? Quanto tempo? — Adormeceste, mamã — diz a Rapariga. — Tiveste sonhos maus — diz o Rapaz. — Estavas a chorar. A mente de Malorie move-se demasiado depressa. Terá deixado escapar alguma coisa? — Quanto tempo? — grita de novo. — Não muito — responde o Rapaz. — Têm as vendas postas? Respondam! — Sim — dizem eles. — O barco �cou preso — diz a Rapariga. Meu Deus, pensa Malorie. Depois acalma-se o su�ciente para perguntar: — Como é que nos soltámos? Ela encontra o corpo pequeno da Rapariga. Segue os contornos dos braços até achar as mãos. Depois atravessa o barco a remos e procura o Rapaz. Cada um deles está a usar um remo. Eles estão a remar juntos. — Nós soltámo-lo, mamã! — diza Rapariga. Malorie está de joelhos. Percebe que cheira mal. Como um bar. Como uma casa de banho. Cheira a vomitado. — Nós soltámo-lo — diz o Rapaz. Agora, Malorie está junto dele. Tem as mãos trémulas pousadas nas dele. — Estou ferida — diz em voz alta. — O quê? — pergunta o Rapaz. — Preciso que voltem para o lugar onde estavam antes de a mamã adormecer. Agora mesmo. As crianças param de remar. A Rapariga pressiona-se contra o corpo dela enquanto se dirige para o banco traseiro. Malorie ajuda-a. Por �m, Malorie está outra vez sentada no banco do meio. Tem o ombro a latejar, mas não é tão mau como antes. Precisava de descansar. Não estava a dar descanso ao corpo, portanto o corpo reclamou-o. Na névoa da sua mente acordada, Malorie está a �car mais fria, mais assustada. E se isto voltar a acontecer? Terão passado o ponto para onde se dirigem? Novamente com os remos nas mãos, Malorie respira fundo antes de começar a remar. E então começa a chorar. Chora porque desmaiou. Chora porque um lobo a atacou. Chora por tantos motivos que lhe é impossível identi�cá-los a todos. Mas sabe que em parte o faz porque descobriu que as crianças são capazes de sobreviver, mesmo que apenas por um momento, por conta própria. Treinaste-os bem, pensa. Aquele pensamento, muitas vezes feio, deixa-a orgulhosa. — Rapaz — diz entre lágrimas —, preciso que voltes a escutar com atenção. OK? — Estou a escutar, mamã! — E tu, Rapariga, preciso que faças o mesmo. — Eu também estou a escutar! É possível que estejamos bem? pergunta-se Malorie. É possível que tenhas desmaiado e acordado e ainda esteja tudo bem? Não parece verdade. Não está de acordo com as regras do novo mundo. Algo está ali, no rio, com eles. Homens loucos. Animais selvagens. Criaturas. Quanto mais tempo de sono os teria atraído para o barco? Felizmente, agora está a remar novamente. Mas o que os espreita parece agora mais próximo. — Desculpem — diz ela, a chorar, a remar. Tem as pernas encharcadas de urina, água, sangue e vomitado. Mas o seu corpo está repousado. De alguma forma, Malorie pensa, apesar das leis cruéis deste mundo implacável, teve direito a uma pausa. O sentimento de alívio dura uma remada. Depois, Malorie volta a estar alerta e assustada. 30 Cheryl está perturbada. Malorie ouve-a falar com Felix no quarto ao fundo do corredor. Os outros habitantes da casa estão no andar de baixo. Gary começou a dormir na sala de jantar, apesar do chão de madeira. Desde a sua chegada, há duas semanas, Don começou a aceitá-lo muito melhor. Malorie não sabe o que pensar disso. Ele provavelmente está com Gary neste momento. Contudo, no corredor, Cheryl sussurra apressadamente. Parece assustada. Parece que todos estão. Mais do que o normal. O ambiente da casa, em tempos fortemente sustentado pelo otimismo de Tom, �ca mais pesado a cada dia que passa. Às vezes, Malorie pensa, o ambiente pesado é mais forte do que o medo. É medo que Cheryl parece estar a sentir agora. Malorie pensa em juntar-se a eles, talvez até reconfortar Cheryl, mas decide não o fazer. — Faço-o todos os dias, Felix, porque gosto. É o meu trabalho. E os poucos minutos que passo lá fora são preciosos para mim. Faz- me lembrar que já tive um trabalho de verdade. Um que me fazia sair da cama todos os dias. Um de que me orgulhava. Alimentar os pássaros é a única coisa que tenho que me liga à vida que costumava ter. — E dá-te a oportunidade de ir à rua. — Sim, e dá-me a oportunidade de ir à rua. Cheryl tenta controlar a voz e depois continua. Ela está na rua, conta, pronta para alimentar os pássaros. Tateia ao longo da parede à procura da caixa. Na mão direita tem pedaços de maçã de uma lata da cave. A porta da frente fechou- se atrás dela. Jules espera do lado de dentro. De olhos vendados, Cheryl caminha lentamente, usando a casa para se equilibrar. Os tijolos parecem ásperos ao toque. Ao �m de pouco tempo, dão lugar a painéis de madeira de onde se projeta um gancho de metal. É aí que os pássaros estão pendurados. Eles já estão a chilrear. Fazem-no sempre que ela se aproxima. Cheryl voluntariou-se com entusiasmo para alimentar os pássaros quando foi discutida a tarefa. Tem-no feito todos os dias desde então. De certa forma, sente que os pássaros são seus. Fala com eles, contando-lhes os acontecimentos triviais da casa. A sua resposta suave acalma-a como a música fez em tempos. Consegue determinar quão perto está da caixa pelo som dos seus chilreios, explica a Felix. Mas desta vez ela ouve algo para além dos chilreios. Ao fundo do caminho que conduz à casa ouve um «passo abandonado». É a única forma que encontra para o explicar a Felix. Parece-lhe que alguém estava a caminhar, a planear avançar mais, e de repente parou. Cheryl, sempre em alerta máximo quando alimenta os pássaros, surpreende-se ao perceber que está a tremer. Pergunta: — Está aí alguém? Não obtém resposta. Pensa em voltar para a porta. Vai dizer aos outros que está demasiado perturbada para fazer aquilo hoje. Em vez disso, espera. E não ouve mais nenhum som. Na caixa, os pássaros estão ativos. Ela chama-os nervosamente. — Ei, amigos. Ei. O tremor na sua voz assusta-a. Instintivamente, baixa a cabeça e levanta a mão que segura as maçãs para se proteger, como se algo estivesse prestes a tocar-lhe o rosto. Ela dá um passo. Depois outro. Finalmente, alcança a caixa. Às vezes, diz a Felix, o caminho entre a porta da rua e a caixa é como �utuar no espaço. Sem âncora. Hoje, sentiu-se impossivelmente longe da terra. — Ei, ei — diz ela, abrindo a tampa da caixa o su�ciente para poder deitar lá para dentro alguns pedaços de maçã. Normalmente, ouve o som das patinhas minúsculas quando eles correm para a comida. Hoje não o ouve. — Comam, amigos. Não têm fome? Volta a abrir um pouco a tampa e deita lá para dentro os pedaços restantes. Isso, diz a Felix, é sempre a sua parte favorita. Quando fecha a tampa e encosta o ouvido à caixa, a ouvir o som dos seus pequenos corpos enquanto comem. Mas eles não começam a comer. Em vez disso, chilreiam ansiosamente. — Ei, ei — diz Cheryl, tentando afastar o tremor da voz. — Comam, amigos. Afasta o ouvido da caixa, pensando que é a sua presença que está a deixá-los tímidos. Mal o faz, dá um grito estridente. Algo lhe tocou no ombro. Virando-se, às cegas, Cheryl agita violentamente os braços. Não toca em nada. Não consegue mexer as pernas. Não consegue correr para dentro. Algo lhe tocou no ombro e ela não sabe o que foi. As vozes dos pássaros já não têm um som doce. Soam àquilo que Tom queria que eles fossem. Um alarme. — Quem está aí? Tem medo que alguém lhe responda. Não quer que ninguém responda. Decide gritar. Um dos colegas de casa pode ir buscá-la. Puxá-la de volta para a Terra. Mas quando dá um passo, ouve uma folha a ser esmagada sob o seu sapato. Freneticamente, tenta lembrar-se de quando chegou à casa. Olhou pela janela do carro. Havia uma árvore? Ali junto à entrada? Havia? Talvez uma folha a cair da árvore lhe tivesse tocado. Nada mais. Seria muito fácil de descobrir. Se pudesse abrir os olhos só por um momento, poderia ver que estava sozinha. Poderia ver que era apenas uma folha. Mais nada. Mas não podia. A tremer, de costas coladas à casa, desliza lentamente para a porta da frente. Vira a cabeça para a esquerda, depois para a direita, ao menor som. Um pássaro a voar alto no céu. O restolhar das folhas de uma árvore do outro lado da rua. Uma pequena rajada de vento quente. A suar, ela sente �nalmente o tijolo e corre para a porta. — Jesus — diz Felix. — Achas mesmo que pode ter sido uma folha? Ela faz uma pausa. Malorie inclina-se mais para o corredor. — Sim — diz Cheryl subitamente. — Acho. Agora que penso nisso. É exatamente isso que era. Malorie volta para o seu quarto e senta-se na cama. A história de Felix sobre o poço e o que ouviu lá. Victor a ladrar para as janelas cobertas. Cheryl com os pássaros. Malorie pergunta-se se é possível que o mundo lá fora e as coisas de que se escondem se estejam a aproximar deles. 31 Para Malorie,desde a chegada de Gary, a casa parece completamente diferente, dividida. É uma pequena mudança, mas nestas circunstâncias, qualquer mudança é importante. E é Don quem mais a preocupa. Na maior parte dos dias, quando Tom, Jules e Felix estão a conversar na sala de estar, Don está na sala de jantar com Gary. Ele mostrou-se muito interessado na história do homem que arrancou as cortinas e destrancou as portas. Enquanto lava a roupa no lava-loiça, a meio do penúltimo jarro de detergente, Malorie escuta duas conversas ao mesmo tempo. Enquanto Tom e Jules estão a transformar camisas de manga comprida em trelas para os cães, Gary está a explicar a Don a forma de pensar de Frank. Sempre o que Frank pensava. Nunca o que Gary pensa. — Não acho que seja uma questão de umas pessoas estarem mais bem preparadas do que outras — diz Gary. — Penso nisto mais como um �lme em 3D. A princípio, o público pensa que os objetos estão realmente a vir na sua direção. Preparam-se para se protegerem. Mas os mais inteligentes, os que são muito atentos, sabem que nunca correram perigo. Don teve uma mudança de comportamento radical em relação a Gary. Malorie pensa que viu quando aconteceu. Ouve, não acho que essa teoria seja pior do que a nossa, disse-lhe ele uma vez. — É difícil — diz Don agora —, porque não recebemos notícias novas. — Exato. Sim, Don passou de votar contra deixar Gary entrar a ser o único habitante da casa que se senta a conversar com ele. E conversa. E conversa. Ele é cético, pensa Malorie. É a sua natureza. E precisa de alguém com quem conversar. Não signi�ca mais nada. Ele é diferente de ti. Não entendes? Mas estes pensamentos não a tranquilizam. Independentemente de como veja a situação, Gary e Don estão a falar de coisas como histeria e da ideia de que as criaturas não podem fazer mal a alguém que está preparado para as ver. Ela sabe que Don sempre teve muito mais medo das pessoas do que das criaturas. No entanto, fecha os olhos quando a porta da frente se abre e fecha. Não olha pela janela. Nunca aceitou a ideia de que as criaturas não podem fazer-lhes mal. Será que alguém como Gary conseguirá �nalmente convencê-lo? Ela quer discutir o assunto com Tom. Quer chamá-lo de parte e pedir-lhe para os fazer parar. Ou, pelo menos, para ir falar com eles. Talvez as suas palavras in�uenciem a conversa. Talvez a façam parecer mais segura. Sim, quer falar com Tom acerca de Don. Divisão. Hesitante, ela atravessa a cozinha e olha para a sala de estar. Tom e Felix estão a ler um mapa no chão. Estão a medir distâncias segundo a escala do mapa. Jules está a ensinar ordens aos cães. Para. Começa de novo. — Temos de medir o teu passo médio — diz Felix. — O que é que vocês estão a planear? — pergunta Malorie. Tom vira-se para ela. — Distâncias — diz ele. — Quantos passos meus há num quilómetro. Felix está usar a �ta métrica para medir os pés de Tom. — Se eu ouvir música enquanto ando — diz Tom —, posso andar ao ritmo dela. Assim, os passos que medirmos aqui serão aproximados dos que darei lá fora. — É como dançar — diz Felix. Malorie vira-se e vê Olympia agora junto ao lava-loiça. Está a lavar utensílios. Malorie junta-se a ela e continua a lavar a roupa. Depois de quatro meses con�nada naquela casa, Olympia perdeu um pouco do seu brilho. Tem a pele pálida. Os olhos estão mais encovados. — Estás preocupada? — pergunta subitamente Olympia. — Com o quê? — Com aquilo. — Aquilo o quê? — Sobreviver aos nossos partos. Malorie quer dizer a Olympia que vai correr tudo bem, mas não encontra as palavras. Está a pensar em Don. — Eu sempre quis um bebé — diz Olympia. — Fiquei tão animada quando descobri. Senti que a minha vida estava completa. Sabes? Não foi o que Malorie sentiu, mas diz que sim, que sabe. — Oh, Malorie, quem vai fazer os nossos partos? Malorie não sabe. — Os nossos colegas de casa, não vejo… — Mas o Tom nunca fez isto! — Não. Mas era pai. Olympia olhou para as mãos, submersas no balde. — Fazemos assim — diz Malorie com cuidado —, fazemos o parto uma da outra. — Fazermos o parto uma da outra! — diz Olympia, sorrindo �nalmente. — Malorie, és demais! Gary entra na cozinha. Tira um copo de água de um balde na bancada. Depois tira um segundo copo. Malorie sabe que é para Don. Quando ele sai, uma música começa a tocar na sala de estar. Malorie inclina-se para trás para espreitar lá para dentro. Tom tem um pequeno rádio a pilhas na mão. É uma das cassetes de George. Felix, de gatas, mede os passos de Tom enquanto ele anda ao ritmo da música. — O que é que eles estão a fazer? — pergunta Olympia. — Acho que têm um lugar especi�co em mente onde querem ir — diz Malorie. — Estão a tentar descortinar uma forma de se deslocarem lá fora que funcione melhor. Malorie aproxima-se silenciosamente da entrada da sala de jantar. Olhando lá para dentro, vê Don e Gary, de costas para ela, sentados em cadeiras da sala de jantar. Estão a falar baixinho. Mais uma vez, ela atravessa a cozinha. Quando entra na sala de estar, Tom está a sorrir. Tem uma trela em cada mão. Os huskies estão a brincar com elas, a abanar a cauda. Malorie só consegue pensar na discrepância entre as ações animadoras e progressistas dos que estão na sala de estar e os tons conspiradores e silenciosos dos que estão na sala de jantar. Avança novamente para o lava-loiça e começa a lavar. Olympia está a falar, mas Malorie está a pensar noutra coisa. Inclina-se para a frente e consegue ver o ombro de Gary. Atrás dele, apoiado contra a parede, está o único objeto que trouxe consigo do mundo exterior. A sua pasta. Ele mostrou-lhes o conteúdo quando entrou na casa. Don pediu-lhe. Mas ela viu bem o que continha? Algum dos seus colegas de casa viu? — E para! — diz Tom. Malorie vira-se e vê que os cães e ele estão na entrada da cozinha. Os huskies estão sentados. Tom recompensa-os com carne crua. Malorie continua a lavar. Está a pensar na pasta. 32 Ela sabia que aquilo ia acontecer. Como poderia não saber? Todos os sinais estavam lá desde que regressaram com os cães. Tom e Jules treinaram-nos dez, doze horas por dia. Usando a casa, depois o quintal. Cães-guia. A caixa de pássaros pendurada lá fora funciona como um alarme. Tal como Tom disse que funcionaria. Os pássaros chilrearam quando Gary chegou. Chilreiam quando Cheryl os alimenta. Portanto, era apenas uma questão de tempo até Tom declarar que ia usar os cães-guia para voltar a entrar no novo mundo. Mas desta vez é pior. Porque desta vez ele vai mais longe. Demoraram dois dias a ver um quarteirão. Quando os veremos novamente se andarem cinco quilómetros? Cinco quilómetros. Até à casa de Tom. É aí que ele quer ir. — É o único lugar em que con�o a cem por cento — disse ele. — Tenho lá suprimentos. Precisamos deles. Pensos rápidos. Pomadas com antibiótico. Aspirina. Ligaduras. Malorie animou-se ao ouvir falar de medicamentos. Mas a ideia de Tom ir à rua, e durante tanto tempo, é demais para ela suportar. — Não se preocupem — disse Felix naquela mesma noite. — Planeámos tudo ao mínimo detalhe. O Tom e o Jules vão caminhar ao ritmo de uma música. Uma única música. Chama-se Halfway to Paradise e é de um tipo chamado Tony Light. Vão levar o rádio e tocá-la em loop enquanto seguem as instruções que traçámos. Sabemos quantos passos são precisos em cada direção, em cada parte da viagem. — Então planeias dançar até lá? — perguntou Gary. — Que giro. — Não vou dançar — respondeu Tom, com um tom agressivo. — Vou caminhar para obter ajuda. — Tom — disse Cheryl —, podes treinar o quanto quiseres, mas se os teus passos forem um centímetro mais longos lá fora, vão desviar-se do caminho. Vão-te perder. E como raio planeiam voltar? Não vão conseguir. — Vamos sim — disse Tom. — E não é como se estivéssemos indefesos se nos perdermos — acrescentou Jules. — Precisamos dos suprimentos. Sabes isso melhor do que ninguém, Cheryl. Foste a última a fazer o inventário. Sim, aquele dia havia de chegar. Mas Malorie não gosta da ideia. — Tom — disse ela, puxando-o para o lado imediatamente antesde ele e Jules saírem naquela manhã. — Eu acho que a casa não aguentaria se não voltasses. — Nós vamos voltar. — Eu entendo que tu achas que vais — disse Malorie —, mas acho que não percebes o quanto a casa precisa de ti. — Malorie — disse ele, quando Jules o chamou a dizer que estava pronto para ir —, a casa precisa de todos nós. — Tom. — Não te deixes levar pelos nervos como da última vez. Em vez disso, apoia-te no facto de que voltámos da última vez. Vamos voltar novamente. E desta vez, Malorie, age como líder. Ajuda-os quando eles �carem assustados. — Tom. — Tu precisas dos medicamentos, Malorie. De esterilização. Estás perto. Era óbvio que Tom estava numa via só sua, preparado para arriscar repetidamente a vida em nome do avanço da vida na casa. Da última vez eles trouxeram sapatos de criança, recordou Malorie. Volta a recordar-se disso agora. Agora que Tom e Jules se foram, embarcando numa caminhada de cinco quilómetros na paisagem mais perigosa que o mundo já conheceu. Eles saíram naquela manhã. Felix reviu o mapa com eles uma última vez. Gary encorajou-os. Olympia deu-lhes uma pedra Petoskey que disse que sempre lhe trouxe sorte. Mas Malorie não disse uma palavra. Quando a porta da frente se fechou pela segunda vez atrás de Tom, Malorie não o chamou. Não o abraçou. Não se despediu. Agora está arrependida, apenas algumas horas depois da partida deles. No entanto, as poucas palavras que Tom lhe disse antes de partir estão a resultar. Sem ele ali, a casa precisa de uma força orientadora. Uma pessoa que possa manter a calma entre tanta ansiedade, tanto medo justi�cável. Mas é difícil. Os habitantes da casa não estão interessados em otimismo. Cheryl a�ança que as probabilidades de encontrarem uma criatura são, obviamente, muito maiores numa caminhada de cinco quilómetros do que numa volta a dois quarteirões. Ela lembra os que ainda estão na casa de que ninguém sabe como os animais são afetados. O que acontecerá a Tom e a Jules se os huskies virem alguma coisa desta vez? Serão comidos? Ou pior? Cheryl não é a única a oferecer possibilidades sombrias. Don está a sugerir que um grupo alternativo se prepare para sair no caso de Tom e Jules não regressarem. Precisamos de mais comida, diz. Independentemente de eles voltarem ou não. Olympia diz que está com uma dor de cabeça. Diz que isso signi�ca que se aproxima uma grande tempestade. E uma tempestade só pode alterar as medições de Felix quando Tom e Jules forem forçados a procurar abrigo. Cheryl concorda. Don está a entrar na cave para dar «a sua própria olhadela» ao stock, para descobrir exatamente do que precisam e onde devem ir buscá-lo. Olympia está a falar de trovoada e de estar na rua, sem proteção. Cheryl está a discutir o mapa com Felix. Diz que os mapas já não signi�cam nada. Don está a falar dos espaços para dormir. Olympia está a descrever um tornado que viveu na sua juventude. Cheryl e Felix estão a �car exaltados. Olympia parece um pouco histérica. Don está a enlouquecer. Malorie, cansada do pânico crescente, fala por �m. — Pessoal — diz —, há coisas que podemos fazer. Aqui mesmo nesta casa. Precisamos de preparar o jantar. O balde de fezes não foi despejado uma única vez durante o dia. A cave podia estar mais bem organizada. Felix, tu e eu podemos procurar ferramentas no quintal, algo que nos possa ter escapado. Algo que possamos usar. Cheryl, tens de dar comida aos pássaros. Gary, Don, porque é que não fazem telefonemas? Liguem para todas as combinações de números. Sabe-se lá quem conseguirão contactar. Olympia, seria muito útil se lavasses as roupas de cama. Fizemos isso há uma semana, mas uma vez que nos lavamos tão pouco neste lugar, são as pequenas coisas, como lençóis mais limpos, que o tornam suportável. Os colegas de casa olham para Malorie como se ela fosse uma estranha. Por um momento, ela sente vergonha por se a�rmar. Mas, a�nal, resulta. Gary caminha silenciosamente para o telefone. Cheryl vai à cave. Estás perto, disse-lhe Tom antes de partir. Ela pensa nisso, enquanto os colegas de casa se ocupam com as suas tarefas domésticas, enquanto Malorie e Felix vão buscar as vendas, ela pensa nas coisas que Tom e Jules podem trazer. Há algo que possam trazer, qualquer coisa, que proporcione uma vida melhor ao seu bebé? Pegando numa venda, Malorie enche-se de esperança. 33 O rio vai dividir-se em quatro canais, disse-lhe o homem. O que você quer é o segundo a contar da direita. Por isso não pode seguir junto à margem direita e esperar acertar. É complicado. E vai ter de abrir os olhos. Malorie está a remar. E é assim que vai saber quando chegar a altura, disse-lhe o homem. Vai ouvir uma gravação. Uma voz. Não podemos passar o dia sentados à beira do rio. É muito perigoso. Em vez disso, temos lá um altifalante. A gravação é reproduzida em loop. Vai ouvi-la. É alta. Clara. E quando a ouvir, terá de abrir os olhos. A dor no ombro regressa em ondas. As crianças, ouvindo os seus gemidos, oferecem ajuda. No seu primeiro ano sozinha com as crianças, a voz de Tom vinha constantemente até ela. Muitas das suas ideias foram apenas proferidas, nunca postas em prática. Malorie, que tinha todo o tempo do mundo, tentou muitas delas. Devíamos instalar microfones no jardim, disse ele uma vez. O plano de Tom para atualizar o sistema de alarme de pássaros para ampli�cadores. Malorie, sozinha com dois recém-nascidos, queria aqueles microfones. Mas como? Como conseguiria arranjar microfones, ampli�cadores e cabos? Podemos ir de carro a algum lugar, disse Tom uma vez. Isso é uma loucura, respondeu Don. Não, não é. Conduzimos devagar. As ruas estão vazias. O que é o pior que pode acontecer? Malorie, remando, lembra-se de um momento de�nitivo em frente ao espelho da casa de banho. Tinha visto outros rostos no espelho. Olympia. Tom. Shannon. Todos lhe imploravam que deixasse a casa, que �zesse algo mais para garantir a segurança das crianças. Ia ter de correr um risco sozinha. Tom e Jules não estavam ali para fazer isso por ela. A voz de Tom, de então. Sempre a voz de Tom. Na sua cabeça. No quarto. No espelho. Faz um para-choques em volta do carro da Cheryl. Pinta as janelas de preto. Não te preocupes com o que atropelas. Continua. Conduz a oito, nove quilómetros por hora. Agora tens bebés em casa, Malorie. Tens de saber se há alguma coisa lá fora. Se alguma coisa está próxima. Os microfones vão dizer-te isso. Saindo da casa de banho, ela foi para a cozinha. Ali, estudou o mapa que Felix, Jules e Tom tinham usado em tempos para planear um percurso a pé para Tom. As suas anotações ainda lá estavam. Os cálculos de Felix. Usando a escala, ela traçou o seu próprio percurso. Queria o sistema de alarme avançado de Tom. Precisava dele. No entanto, apesar da sua determinação recém-descoberta, ainda não sabia para onde ir. Certa noite já muito tarde, enquanto os bebés dormiam, sentou-se à mesa da cozinha e tentou lembrar-se da sua primeira viagem até à casa. Ainda nem tinha decorrido um ano. Nessa altura, a sua mente estava focada na morada do anúncio. Mas por que coisas passou no caminho? Tentou lembrar-se. Uma lavandaria. Isso é bom. Que mais? As montras das lojas estavam vazias. Parecia uma cidade- fantasma e tinhas medo que as pessoas que tinham posto o anúncio já lá não estivessem. Achaste que teriam enlouquecido ou feito as malas e ido para longe. Sim, muito bem. E mais? Uma padaria. Muito bem. E que mais? Que mais? Sim. Um bar. Boa. O que é que dizia o anúncio à entrada? Não sei. Essa pergunta é ridícula! Não te lembras da tristeza que sentiste ao ler o nome dos… o nome dos… Dos quê? O nome da banda? A banda? Leste o nome de uma banda que ia atuar duas semanas antes. Qual era? Nunca me recordarei do nome da banda. Certo, mas a sensação? Não me lembro. Lembras, sim. A sensação. Eu estava triste. Estava assustada. O que é que as pessoas faziam lá? O quê? No bar. O que é que faziam no bar? Não sei. Bebiam. Comiam. Sim. E mais? Dançavam? Dançavam. Sim. E? E o quê? Como é que dançavam? Não sei.Dançavam ao som do quê? Dançavam ao som da música. Ao som da banda. Malorie levou uma mão à testa e sorriu. Certo. Dançavam ao som da banda. E a banda precisava de microfones. A banda precisava de ampli�cadores. As ideias de Tom permaneceram na casa como fantasmas. Tal como nós �zemos, Tom poderia dizer. Tal como aquela vez em que eu e o Jules caminhámos pelo quarteirão. Não pudeste participar em muitas dessas atividades, Malorie, mas agora podes. Eu e o Jules arranjámos cães e depois usámo-los para caminhar até à minha casa. Pensa nisso, Malorie. Tudo aconteceu em sucessão, cada passo permitiu que o próximo passo acontecesse. Tudo porque não �cámos estagnados. Corremos riscos. Agora tens de fazer o mesmo. Pinta o para-brisas de preto. Don rira-se quando Tom sugeriu conduzir às cegas. Mas foi exatamente o que ela fez. Victor, ele ia ajudá-la. Em tempos, Jules recusou-se a deixá-lo ser usado desta forma. Mas Malorie tinha dois recém-nascidos num quarto ao fundo do corredor. As regras agora eram diferentes. Ainda tinha o corpo dorido do parto. Os músculos das costas estavam sempre tensos. Se se movia demasiado depressa, sentia que a virilha se ia rasgar. Ficava exausta facilmente. Nunca teve o descanso que uma mãe merece. Victor, pensou, ele vai proteger-te. Pintou o para-brisas de preto com a tinta da cave. Colou meias e blusas ao interior do vidro. Usando cola para madeira que tinha encontrado na garagem e �ta adesiva da cave, prendeu cobertores e colchões aos para-choques. Tudo isto na rua. Tudo isto com os olhos vendados. Tudo isto apesar de sofrer a dor de ter dado à luz, castigada, ao que parecia, por cada movimento do seu corpo. Ia ter de os deixar. Iria sozinha. Conduziria meio quilómetro na direção oposta àquela de onde viera na primeira viagem à casa. Viraria à esquerda e avançaria seis quilómetros. Depois virava à direita e fazia mais quatro quilómetros. Teria de procurar o bar a partir daí. Levaria comida para o Victor. Ele ia guiá-la de volta ao carro, de volta à comida, quando ela precisasse. Oito ou nove quilómetros por hora parecia-lhe razoável. Su�cientemente seguro. Mas da primeira vez que tentou, descobriu que iria ser mesmo muito difícil. Apesar das precauções, conduzir sem ver era horrível. O carro saltava violentamente quando ela atropelava coisas que nunca conseguiria identi�car. Chocou com o passeio 20 vezes. Acertou em postes duas vezes. Uma vez num carro estacionado. Era um suspense puro e horrível. A cada estalido do conta-quilómetros, esperava uma colisão, um ferimento. Tragédia. Quando regressou a casa, tinha os nervos em franja. Vinha de mãos vazias e não estava convencida de ter forças para tentar novamente. Mas tentou. Encontrou a lavandaria na sétima tentativa. E por se lembrar dela no seu caminho até à casa da primeira vez, aquilo deu-lhe coragem para voltar a tentar. De olhos vendados e assustada, entrou numa loja de botas, num café, numa gelataria e num teatro. Ouviu os seus sapatos a ecoarem contra o piso de mármore de um edifício de escritórios. Derrubou uma prateleira com postais. Ainda assim, não conseguiu encontrar o bar. Então, na nona tarde, Malorie entrou por uma porta de madeira aberta e soube imediatamente que tinha chegado. O cheiro a fruta azeda, fumo e cerveja pareceu-lhe a coisa mais agradável do mundo. Ajoelhando-se, abraçou-se ao pescoço de Victor. — Encontrámo-lo — disse. Tinha o corpo dorido. Doía-lhe a cabeça. Tinha a boca seca. Imaginou a sua barriga como um balão vazio e morto. Mas estava ali. Procurou o balcão de madeira do bar durante muito tempo. Chocou com cadeiras e bateu com o cotovelo num poste. Tropeçou uma vez, mas uma mesa impediu-a de se estatelar. Passou muito tempo a tentar entender o equipamento com os dedos. Estaria na cozinha? Isto era usado para misturar bebidas? Victor puxou-a, a brincar, e ela virou-se, batendo com a barriga em algo duro. Era o bar. Amarrando a trela de Victor ao que acreditava ser um banco alto de aço, Malorie passou para trás do bar e procurou as garrafas. Cada movimento era uma aguda lembrança de que tinha dado à luz recentemente. Uma a uma, aproximou as garrafas do nariz. Uísque. Algo de pêssego. Algo de limão. Vodca. Gin. E, �nalmente, rum. Como o que os colegas de casa tinham tentado apreciar na noite em que Olympia chegou. Sabia-lhe bem ter a garrafa nas mãos. Como se tivesse esperado mil anos por aquilo. Levou-a para o outro lado do bar. Encontrando o banco, sentou-se, aproximou a garrafa da boca e bebeu. O álcool alastrou-se pelo corpo. E, por um momento, amenizou a dor. Na sua escuridão privada, percebeu que uma criatura poderia estar sentada aqui mesmo, ao seu lado. Era possível que aquele lugar estivesse cheio delas. Três por mesa. A observá-la, silenciosamente. Observando a mulher destroçada de olhos vendados e o cão-guia. Mas naquele momento, naquele momento, ela simplesmente não queria saber. — Victor — disse ela —, queres um pouco? Precisas de uma bebida? Meu Deus, como lhe sabia bem. Bebeu novamente, lembrando-se do quanto podia ser agradável uma tarde num bar. Esquece os bebés, esquece a casa, esquece tudo. — Victor, isto é bom. Mas Malorie apercebeu-se da preocupação do cão. Estava a puxar pela trela amarrada ao banco. Malorie bebeu mais um pouco. Então, Victor ganiu. — Victor? O que é? Victor estava a puxar a trela com mais força. Estava a ganir, não a rosnar. Malorie escutou-o. O cão parecia demasiado nervoso. Ela levantou-se, soltou a trela e deixou-se guiar por ele. — Onde vamos, Victor? Sabia que ele estava a levá-la pelo mesmo caminho, de volta para a porta por onde tinham entrado. Chocaram com mesas pelo caminho. As patas de Victor deslizaram nos mosaicos do chão e Malorie bateu com a canela numa cadeira. O cheiro era mais forte ali. O cheiro de bar. E mais. — Victor? Ele parou. Depois começou a arranhar o chão. É um rato, pensou Malorie. Deve haver tantos aqui. Desenhou um arco com o sapato e encontrou algo pequeno e duro. Puxando Victor para o lado, tateou cautelosamente o chão. Pensou nos bebés e em como morreriam sem ela. — O que é, Victor? Era uma espécie de argola. Parecia de aço. Havia uma pequena corda. Examinando-a de olhos vendados, Malorie percebeu o que era. Levantou-se. — É a porta da cave, Victor. A respiração do cão �cou mais pesada. — Vamos deixar isto em paz. Precisamos de levar algumas coisas daqui. Mas Victor puxou novamente. Podia haver pessoas lá em baixo, pensou Malorie. Escondidas. A viver lá em baixo. Pessoas que poderiam ajudá-la a criar os bebés. — Olá! — chamou. Mas não obteve resposta. O suor pingava de debaixo da venda. As unhas de Victor arranhavam a madeira. O corpo de Malorie parecia a ponto de se quebrar ao meio quando se ajoelhou e abriu o alçapão. O cheiro que de lá saiu sufocou-a, Malorie sentiu o rum subir- lhe à boca e vomitou ali mesmo. — Victor — disse ela, agitada. — Há alguma coisa podre aí em baixo. Alguma coisa… Então sentiu o verdadeiro ardor do medo. Não é o tipo de medo que uma mulher sente enquanto conduz com um para-brisas tapado, mas o tipo de medo que a atinge quando está de olhos vendados e, de repente, percebe que há outra pessoa ali, consigo. Ela procurou a porta, assustada, com medo de cair no buraco da cave e se deparar com o que quer que fosse que estava lá no fundo. O cheiro não era de comida apodrecida. Não era de bebida estragada. — Victor! O cão estava a puxá-la, esfaimado da origem daquele cheiro. — Victor! Vamos! Mas ele continuava. É a isto que um túmulo cheira. É o cheiro da morte. Rapidamente, em agonia, Malorie puxou Victor para fora daquela sala, voltou para o bar e procurou um poste. Encontrou um de madeira. Amarrou a trela, ajoelhou-se e segurou o focinho dele nas mãos, implorando-lhe que se acalmasse. — Precisamos de voltar para os bebés — disse ela. — Tens de te acalmar. Mas Malorie também precisava de se acalmar. Nunca determinámos como os animais são afetados. Nunca descobrimos. Ela virou-se às cegas para o corredor que conduzia à cave. — Victor — disseela, com os olhos cheios de lágrimas. — O que é que viste? O cão estava imóvel. Tinha a respiração acelerada. Demasiado acelerada. — Victor? Ela levantou-se e afastou-se dele. — Victor. Vou aqui ao lado. Vou procurar microfones. Uma parte dela começou a morrer. Parecia que ele estava a enlouquecer. Pensou em Jules. Jules, que amava aquele cão mais do que a si próprio. Aquele cão era a sua última ligação aos colegas de casa. Um grunhido atormentado escapou da boca dele. Era um som que ela nunca o tinha ouvido fazer. Não o tinha ouvido a nenhum cão. — Victor. Desculpa-me por ter vindo aqui. Desculpa. O cão fez um movimento violento e Malorie pensou que ele se tinha soltado. O poste de madeira partiu-se. Victor ladrou. Malorie, recuando, sentiu algo, alguma espécie de degrau, atrás dos seus joelhos cansados. — Victor, não. Por favor. Desculpa-me. O cão balançou o corpo, chocando com uma mesa. — Oh Deus! VICTOR! Para de rosnar! Para! Por favor! Mas Victor não conseguia parar. Malorie tateou o degrau alcatifado atrás de si. Subiu-o de costas, com medo de virar as costas ao que Victor tinha visto. Encolhida e a tremer, ouviu o cão a enlouquecer. O som dele a urinar. O som dos dentes a abocanharem o ar. Malorie gritou. Procurou instintivamente uma ferramenta, uma arma, e deu consigo a agarrar o aço de alguma espécie de suporte. Lentamente, ela levantou-se, tateando o aço. Victor mordeu o ar. Voltou a morder. Parecia que os seus dentes se estavam a partir. No cimo do suporte de aço, os dedos de Malorie agarraram um objeto curto e oblongo. Na ponta, sentiu algo como uma rede metálica. Arquejou. Estava no palco. E tinha na mão o que ali fora procurar. Tinha na mão um microfone. Ouviu o estalar de um osso de Victor. O pelo e a carne tinham- se rasgado. — Victor! Ela guardou o microfone e caiu de joelhos. Mata-o, pensou. Mas não conseguia. Maniacamente, vasculhou o palco. Atrás dela, parecia que Victor estava a roer a própria pata. O teu corpo está arruinado. O Victor está a morrer. Mas tens dois bebés em caixas em casa. Eles precisam de ti, Malorie. Eles precisam de ti, eles precisam de ti, eles precisam de ti. As lágrimas ensoparam a venda e depois pingaram de debaixo dela. A respiração de Malorie vinha alternada com soluços. De joelhos, seguiu um �o até um pequeno objeto quadrado na extremidade do palco. Encontrou mais três �os, que conduziam a mais três microfones. Victor fez um som que nenhum cão devia fazer. Parecia quase humano no seu desespero. Malorie agarrou em tudo o que conseguiu. Os ampli�cadores, su�cientemente pequenos para conseguir carregá-los. Os microfones. Os cabos. Um suporte. — Desculpa, Victor. Sinto muito, Victor. Sinto muito. Quando se levantou, achou que o seu corpo não aguentava. Acreditava que se tivesse um pouco menos de força, cairia para sempre. No entanto, manteve-se de pé. Enquanto Victor continuava a debater-se, Malorie procurou o caminho, tateando de costas para a parede. Finalmente, desceu do palco. Victor viu algo. Onde estaria agora? Não havia como parar as lágrimas. No entanto, um sentimento mais forte apoderou-se dela: uma calma preciosa. A maternidade. Como se ela fosse uma estranha para si mesma, a agir apenas em nome dos bebés. Atravessando o bar, aproximou-se o su�ciente de Victor para sentir que uma parte dele estava a tocar-lhe na perna. Seria o seu tronco? O seu focinho? Estaria a despedir-se? Ou tinha-lhe dado uma lambidela? Continuando a atravessar o bar, Malorie voltou para a porta por onde tinham entrado. A porta escancarada da cave estava próxima. Mas ela não sabia onde. — NÃO SE APROXIMEM DE MIM! NÃO SE APROXIMEM DE MIM! Debatendo-se para carregar todo o equipamento, Malorie deu um passo e não sentiu chão debaixo do seu pé. Perdeu o equilíbrio. Quase caiu. E endireitou-se. A sua voz pareceu-lhe a de uma estranha quando gritou antes de sair do bar. O sol estava quente contra a sua pele. Caminhou apressadamente para o carro. Tinha a cabeça a mil. Tudo estava a acontecer demasiado depressa. Escorregou no passeio de betão e chocou com o carro. Frenética, en�ou apressadamente as coisas na parte de trás. Quando se sentou ao volante, chorou. Que crueldade. Este mundo. Victor. Tinha a chave na ignição e estava prestes a virá-la. Então, com o cabelo preto molhado de suor, fez uma pausa. Quais eram as probabilidades de algo ter entrado no carro? Quais eram as probabilidades de algo estar sentado ao seu lado no banco do passageiro? Se alguma coisa tivesse entrado, ela ia levá-la até às crianças. Para chegar a casa, disse para si mesma (até a voz na sua mente estremecia, até a voz na sua mente parecia estar a chorar), tens mesmo de olhar para o conta-quilómetros. Agitou os braços às cegas no interior do carro, batendo descontroladamente no tabliê, no teto, nas janelas. Tirou a venda. Viu o para-brisas preto. Estava sozinha no carro. Usando o conta-quilómetros, conduziu os mesmos quatro quilómetros na direção inversa, depois seis para Shillingham, depois meio quilómetro até casa, batendo em todos os passeios e sinais que encontrou pelo caminho. A oito quilómetros por hora; pareceu-lhe uma eternidade. Depois de estacionar, Malorie reuniu o que tinha encontrado. Dentro de casa, com a porta trancada atrás de si, abriu os olhos e correu para o quarto dos bebés. Estavam acordados. Tinham os rostos vermelhos. Estavam a chorar. Tinham fome. Muito tempo passado, ela ainda estava acordada, a tremer no chão húmido da cozinha. Olhando para os microfones e para os dois pequenos ampli�cadores ao seu lado, lembrando-se dos sons que Victor produzira. Os cães não são imunes. Os cães podem enlouquecer. Os cães não são imunes. E sempre que pensava que ia parar de chorar, recomeçava. 34 Malorie está na casa de banho do andar de cima. É tarde e a casa está em silêncio. Os outros habitantes da casa estão a dormir. Ela está a pensar na pasta de Gary. Tom disse-lhe para se comportar mais como uma líder na sua ausência. Mas a pasta está a incomodá-la. Tal como o súbito interesse de Don em Gary a incomoda. Tal como tudo o que Gary diz na sua forma pomposa, ensaiada, de falar. Bisbilhotar é errado. Quando as pessoas são forçadas a viver juntas, a sua privacidade é essencial. Mas não é esse o seu dever? Na ausência de Tom, não lhe cabe a ela descobrir se os seus instintos estão certos? Malorie aponta um ouvido ao corredor. Não há qualquer movimento. Saindo da casa de banho, vira-se para o quarto de Cheryl e vê a forma do seu corpo em repouso. Olhando a seguir para o quarto de Olympia, ouve-a a ressonar de forma muito ligeira. Silenciosamente, Malorie desce as escadas, apoiando-se no corrimão. Dirige-se para a cozinha e liga a luz por cima do fogão. É uma lâmpada fraca, que zumbe suavemente. Mas é o su�ciente. Entrando na sala de estar, Malorie vê os olhos de Victor a �tarem-na. Felix está a dormir no sofá. O espaço no chão normalmente ocupado por Tom está vazio. Atravessando a cozinha, ela aproxima-se da sala de jantar. A luz velada do fogão ilumina o su�ciente para lhe permitir ver o corpo de Gary deitado no chão. Está deitado de costas, a dormir. Ela pensa. A pasta está encostada à parede, ao alcance de um braço. Suavemente, Malorie atravessa a sala de jantar. As tábuas do chão rangem sob o seu peso. Ela para e olha �xamente para a boca barbuda, meio aberta, do homem. Ele sibila um pouco, estável e lentamente. Sustendo a respiração, ela dá um último passo em direção a ele e estaca. Parada sobre ele, observa-o de perto sem se mexer. Ajoelha-se. Gary ressona. O coração dela sobressalta-se. Aguarda. Para apanhar a pasta, tem de esticar o braço por cima do peito dele. O braço dela paira a centímetros da camisa do homem enquanto ele dorme. Os dedos dela agarram na pega da pasta quando ele ronca novamente. Ela vira-se. Ele está a olhar para ela. Malorie �ca paralisada. Examina os olhos dele. Expira suavemente. Não estão abertos. Foi a sombra que a enganou. Rapidamente, levanta a pasta, ergue-se e sai da sala. À porta da cave, elapara e escuta. Não ouve nenhum movimento vindo da sala de jantar. A porta da cave abre-se silenciosamente e devagar, mas não consegue evitar o gemido das dobradiças. Parece mais barulhenta do que o habitual. Como se a casa inteira se estivesse a abrir lentamente. E com apenas espaço su�ciente para entrar, ela desliza lá para dentro. A casa está novamente em silêncio. Lentamente, desce as escadas até ao chão de terra. Está nervosa; demora demasiado tempo a encontrar o �o da lâmpada. Quando a liga, o espaço é inundado por uma luz amarela brilhante. Muito brilhante. Como se pudesse acordar Cheryl, que dorme dois pisos acima dela. Olhando em volta, ela espera. Consegue ouvir a sua própria respiração acelerada. Mais nada. Tem o corpo dorido. Precisa de descansar. Mas agora só quer ver o que Gary trouxe consigo. Avançando para o banquinho de madeira, ela senta-se. Abre a pasta, com um estalinho da mola do fecho. Lá dentro vê uma escova de dentes gasta. Meias. T-shirts. Uma camisa. Desodorizante. E papéis. Um caderno. Malorie olha para a porta da cave. Tenta detetar passos. Não há nenhum. Tira o caderno de debaixo das roupas e pousa a pasta no chão. O caderno tem uma capa azul e limpa. Os cantos não estão dobrados. É como se Gary o tivesse mantido, preservado, no melhor estado possível. Ela abre-o. E lê. A caligra�a é tão exata que a assusta. É meticulosamente elaborada. Quem escreveu aquilo fê-lo com paixão. Com orgulho. À medida que ela folheia, vê que algumas frases estão escritas da maneira tradicional, da esquerda para a direita, e outras estão escritas na direção contrária, da direita para a esquerda. Há ainda outras, mais para o interior do caderno, que começam no topo da página e descem. No �nal, as frases são espirais perfeitas, ainda com uma caligra�a cuidada, que criam desenhos e padrões estranhos, feitos de palavras. Conhecer o teto da mente do homem é conhecer o poder total destas criaturas. Se é uma questão de compreensão, certamente os resultados de qualquer encontro com elas devem diferir muito entre dois homens. O meu teto é diferente do vosso. Muito diferente do dos macacos nesta casa. Os outros, envolvidos como estão na histeria hiperbólica, são mais suscetíveis às regras que atribuímos às criaturas. Por outras palavras, estes simplórios, com os seus intelectos infantis, não sobreviverão. Mas alguém como eu, bem, acho que está tudo dito. Malorie vira a página. Que tipo de homem se encolhe quando o �m do mundo chega? Quando os seus irmãos estão a matar-se, quando as ruas da América suburbana estão infestadas de assassinatos… Que tipo de homem se esconde atrás de cobertores e vendas? A resposta é A MAIORIA dos homens. Foi-lhes dito que enlouqueceriam. E como tal, enlouquecem. Malorie olha para as escadas da cave. A luz do fogão passa através da fenda estreita no fundo da porta da cave. Ela pensa que devia tê-la desligado. Pensa em fazê-lo agora. E depois vira a página. Nós fazemos isto a nós mesmos, FAZEMOS ISTO a NÓS MESMOS. Por outras palavras (tomem nota disto!): O HOMEM É A CRIATURA QUE ELE TEME. É o caderno de Frank. Mas porque é que Gary o tem? Porque o escreveu, claro. Porque, Malorie sabe, Frank não arrancou as cortinas da antiga casa de Gary. Foi Gary quem o fez. Malorie levanta-se, com o coração aos saltos. O Tom não está em casa. O Tom está numa caminhada de cinco quilómetros até à sua casa. Ela olha para o fundo da porta da cave. A luz do fogão. Espera vê-la ser obscurecida, de repente, por uns sapatos. Olha para as prateleiras em busca de uma arma. Se ele vier, o que poderá usar para o matar? Mas sem sapatos a obscurecerem a luz, Malorie aproxima mais o caderno do rosto. E lê. Racionalmente, e para lhes provar isto, não tenho escolha. Vou escrever isto mil vezes até me convencer a fazê-lo. Duas mil. Três. Estes homens negam-se a ouvir a voz da razão. Só uma prova os pode convencer. Mas como posso prová-lo? Como posso fazê-los acreditar? Vou arrancar as cortinas e destrancar as portas. À margem há notas numeradas e os números correspondentes estão cuidadosamente escritos no cimo da página. Aqui está a nota 2343. Aqui está a 2344. Incessantes, intermináveis, brutais. Malorie vira a página. Ouve-se um barulho vindo do andar de cima. Ela olha para a porta. Tem medo de pestanejar, de se mover. Espera e olha �xamente. De olhos �xos na porta, ela pega na pasta e volta a guardar o caderno debaixo das coisas de Gary. Estará voltado para o lado certo? Era assim que estava? Ela não sabe. Não sabe. Fecha a pasta e puxa o cordão da lâmpada. Malorie fecha os olhos e sente a terra fria sob os seus pés. Abre os olhos. A escuridão absoluta é cortada apenas pela luz do fogão, debaixo da porta da cave. Malorie observa, à espera. Ela atravessa a cave, enquanto os seus olhos se adaptam à escuridão, vai subindo as escadas cuidadosamente e encosta o ouvido à porta. Ela escuta, respirando de forma errática. A casa está outra vez em silêncio. O Gary está de pé na outra ponta da cozinha. Ele está a olhar para a porta da cave. Quando a abrires, ele vai estar lá. Ela espera. E espera. E não ouve nada. Abre a porta. A dobradiça range. Com a pasta na mão, Malorie olha em volta para a cozinha. O silêncio é avassalador. Mas não está ali ninguém. Ninguém está à sua espera. Com a mão pousada na barriga, atravessa a abertura e fecha a porta atrás de si. Olha para a sala de estar. Para a sala de jantar. Para a sala de estar. Para a sala de jantar. Em bicos de pés, atravessa a cozinha e entra �nalmente na sala de jantar. Gary ainda está de costas. O seu peito sobe e desce. Ele solta um gemido leve. Ela aproxima-se. Ele move-se. Ela espera. Ele mexeu-se… Era apenas o braço dele. Malorie observa-o, �tando o seu rosto e os olhos fechados. Apressadamente, ajoelha-se sobre o corpo do homem, a centímetros da sua pele, e volta a encostar a pasta à parede. Era assim que ela estava? Ela pousa-a. De pé, corre para fora da sala. Na cozinha, os olhos de alguém cruzam-se com os seus sob o brilho da luz. Malorie paralisa. É Olympia. — O que é que estás a fazer? — sussurra Olympia. — Nada — diz ela ofegante. — Achei que tinha deixado ali uma coisa. — Eu tive um sonho horrível — diz Olympia. Malorie está a caminhar em direção a ela, de mãos estendidas para ela. Leva Olympia de volta para o andar de cima. Sobem as escadas juntas. Quando chegam ao topo, Malorie olha para trás, para o fundo da escada. — Tenho de contar ao Tom — diz ela. — O meu sonho? Malorie olha para Olympia e abana a cabeça. — Não. Não. Desculpa. Não. — Malorie? — Sim. — Estás bem? — Olympia. Preciso do Tom. — Bem, ele foi embora. Malorie olha para o fundo da escada. A luz do fogão ainda está acesa. Uma quantidade su�ciente de luz ilumina a entrada da sala de estar e, se alguém entrasse na cozinha vindo da sala de jantar, ela conseguiria ver a sua sombra. Ela olha nervosamente para a sala escura. À espera. Da sombra. Certa de que vem aí. Enquanto observa, pensa no que Olympia acabou de dizer. O Tom foi embora. Pensa na casa como uma grande caixa. Quer sair desta caixa. Tom e Jules, lá fora, ainda estão nesta caixa. O mundo inteiro está fechado. O mundo está con�nado à mesma caixa de cartão que abriga os pássaros lá fora. Malorie compreende que Tom está à procura de uma maneira de abrir a tampa. Está à procura de uma saída. Mas pergunta-se se não haverá uma segunda tampa acima desta, e uma terceira acima dessa. Presos, ela pensa. Para sempre. 35 Faz uma semana que Tom e Jules partiram para a caminhada de cinco quilómetros com os cães. Acima de tudo, neste momento, Malorie quer que voltem para casa. Quer ouvir bater à porta e sentir o alívio de os ter de volta. Quer ouvir o que eles encontraram e ver o que trouxeram. Quer contar a Tom o que leu na cave. Ela não voltou a adormecer na noite anterior. Na escuridão do seu quarto, só conseguia pensar no caderno de Gary. Agora ela está no hall. Escondida do resto da casa, ao que parece. Não pode falar com Felix. Ele podia fazer algo. Ele diria algo.Malorie quer Tom e Jules ali caso ele o faça. Felix precisaria deles. Quem sabe o que Gary é capaz de fazer. O que ele fez. Não pode falar com Cheryl. Cheryl é explosiva e forte. Enfurece-se. Faria algo mais depressa do que Felix. Olympia só �caria mais assustada. Não pode falar com Gary. Não vai fazê-lo. Não sem Tom. Mas, apesar da mudança na sua lealdade, apesar do seu humor imprevisível, Malorie pensa que talvez possa conversar com Don. Ele é bondoso, pensa. Sempre foi. Nas últimas semanas Gary tem sido o diabo a sussurrar no ombro de Don. Don precisava de alguém assim na casa. Alguém que visse o mundo mais como ele. Mas o ceticismo de Don não poderia ser útil neste caso? Ele não achará, depois de tanto conversar com Gary, que havia algo de errado com o recém- chegado? O Gary dorme com a pasta ao alcance do braço. Ele preocupa-se com ela. Protege e acredita nos escritos que contém. Tudo neste novo mundo é difícil, pensa ela, mas nada como o que descobriu no caderno de Gary enquanto Tom estava ausente. Ele pode estar fora muito tempo. Para com isso. Para sempre. Para com isso. Ele pode estar morto. Eles podem ter sido mortos lá fora. O homem que esperas pode estar morto há uma semana, a um relvado de distância. Não está. Ele vai voltar. Talvez. Vai. Talvez. Eles planearam o percurso com o Felix. O que é que o Felix sabe? Fizeram-no juntos. O Tom não se arriscaria a menos que soubesse que tinha a possibilidade de conseguir. Lembras-te do vídeo que o George viu? O Tom é muito parecido com o George. PARA! É. Ele idolatrava-o. E os cães? Não sabemos se os cães são afetados. Não. Mas podem ser. Já imaginaste como seria? Um cão a enlouquecer? Por favor… não. Pensamentos necessários. Visões necessárias. O Tom pode não voltar. Ele vai voltar, ele vai voltar, ele vai… E se ele não voltar, vais ter de contar a outra pessoa. O Tom vai voltar. Já passou uma semana. ELE VAI VOLTAR! Não podes falar com o Gary. Fala com outra pessoa primeiro. O Don. Não. Não, com ele não. O Felix. O Don mata-te. O quê?? O Don mudou, Malorie. Ele está diferente. Não sejas tão ingénua. Ele não nos faria mal. Sim. Faria. Ele atacar-vos-ia a todos com o machado do jardim. PARA!! Ele não quer saber da vida. Disse-te para cegares o teu bebé, Malorie. Ele não nos faria mal. Faria. Fala com o Felix. O Felix vai contar a todos. Diz-lhe para não o fazer. Fala com o Felix. O Tom pode não voltar. Malorie sai do hall. Cheryl e Gary estão na cozinha. Gary está à mesa, sentado, a comer peras de uma lata. — Boa tarde — diz ele, com aquele tom que faz parecer que é ele o responsável pela boa tarde. Malorie pensa que ele percebeu. Acha que ele sabe. Ele estava acordado, ele estava acordado, ele estava acordado. — Boa tarde — responde ela. Entra na sala de estar, deixando-o. Felix está sentado ao telefone na sala de estar. Tem o mapa aberto em cima da mesa de apoio. — Eu não entendo — diz ele, confuso. Felix não parece bem. Anda a comer pouco. As garantias que deu a Malorie há uma semana já não existem. — Já passou tanto tempo, Malorie. Eu sei que o Tom saberia o que fazer lá fora, mas passou tanto tempo. — Precisas de pensar noutra coisa — diz Cheryl, espreitando de um canto. — A sério, Felix. Pensa noutra coisa. Ou simplesmente vai lá fora de olhos abertos. De qualquer forma, estás a levar-te à loucura. Felix expira ruidosamente e desliza os dedos pelos cabelos. Ela não pode falar com Felix. Ele está a perder algo. Perdeu algo. Os seus olhos não têm vida. Está a perder a sensibilidade, o raciocínio. A força. Sem uma palavra, Malorie deixa-o. Passa por Don no corredor. As palavras, o que descobriu, ganham vida dentro dela. Ela quase fala. Don, o Gary não é bom. Ele é perigoso. Ele tem o caderno do Frank na pasta. O quê, Malorie? O que eu disse. Andaste a bisbilhotar? A remexer nas coisas do Gary? Sim. Porque é que me estás a contar isto? Don, eu só preciso de contar a alguém. Entendes isso, não entendes? Porque é que não perguntaste ao Gary? Ei, Gary! Não. Ela não pode contar a Don. Don também perdeu algo. Pode tornar-se violento. Gary também pode. Um empurrão e perdes o bebé, pensa Malorie. Imagina Gary no cimo da escada da cave. O seu corpo quebrado, ensanguentado e amontoado lá em baixo. Gostas de ler na cave, NÃO GOSTAS? Então, vai morrer lá com o teu �lho. Atrás de si, Malorie ouve todos os colegas de casa na sala de estar. Cheryl conversa com Felix. Gary está a falar com Don. Malorie vira-se na direção das vozes e aproxima-se da sala de estar. Vai contar a todos. Quando entra na sala, o seu corpo parece feito de gelo. A derreter. Como se pedaços de si mesma caíssem e afundassem sob a pressão insuportável do que está por vir. Cheryl e Olympia estão no sofá. Felix está à espera junto ao telefone. Don está na poltrona. Gary está de pé, de frente para as janelas cobertas. Quando ela abre a boca, Gary olha lentamente por cima do ombro e o olhar dele encontra o seu. — Malorie — diz ele bruscamente —, estás preocupada com alguma coisa? De repente, claramente, Malorie percebe que todos estão a olhar para ela. À espera que ela fale. — Sim, Gary — diz ela. — Estou. — O que é? — pergunta Don. As palavras estão presas na garganta de Malorie. Sobem como as patas de uma centopeia, alcançam os lábios, procurando �nalmente sair. — Alguém se lembra… Ela para. Ela e os colegas de casa viram-se para os cobertores. Os pássaros estão a chilrear. — É o Tom — diz Felix desesperadamente. — Tem de ser! Gary olha novamente para os olhos de Malorie. Alguém bate à porta da frente. Os habitantes da casa movem-se rapidamente. Felix corre para a porta de entrada. Malorie e Gary permanecem ali. Ele sabe ele sabe ele sabe ele sabe ele sabe. Quando Tom chama, Malorie está a tremer de medo. Ele sabe. Então, tendo ouvido a voz de Tom, Gary sai da sala e dirige-se para o hall. Depois de feitas todas as perguntas e de todos os habitantes da casa terem fechado os olhos, Malorie ouve a porta da frente a abrir-se. O ar fresco entra, e com ele a realidade de quão perto Malorie esteve de enfrentar Gary sem Tom em casa. Ouve-se o som de patas de cães nos mosaicos da entrada. Botas. Algo bate na ombreira da porta. A porta fecha-se rapidamente. Ouve-se o som das vassouras a roçarem as paredes. Tom fala. E a sua voz é a salvação. — O meu plano era telefonar-vos da minha casa. Mas a merda do telefone estava desligado. — Tom — diz Felix, animado mas fraco. — Eu sabia que vocês iam conseguir. Eu sabia! Quando Malorie abre os olhos, não pensa em Gary. Não vê as palavras perfeitamente desenhadas que aguardam na pasta. Vê apenas que Tom e Jules estão novamente em casa. — Assaltámos um supermercado — diz Tom. As palavras soam impossíveis. — Já lá tinha estado alguém. Mas temos muitas coisas boas. Ele parece cansado, mas parece estar bem. — Os cães cumpriram a função — diz ele. — Guiaram-nos. — Ele está orgulhoso e feliz. — Mas trouxe algo da minha casa que espero que nos ajude ainda mais. Felix ajuda-o a tirar o saco das costas. Tom abre o saco e tira algo. Então deixa-o cair no chão. É uma lista telefónica. — Vamos telefonar para todos os números desta lista — diz ele. — Todos. E alguém vai atender. É apenas uma lista telefónica, mas Tom transformou-a num farol. — Agora — diz Tom. — Vamos comer. Os outros prepararam com entusiasmo a sala de jantar. Olympia vai buscar os talheres. Felix enche os copos com água dos baldes. Tom está de volta. Jules está de volta. — Malorie! — chama Olympia. — É carne de caranguejo enlatada! Malorie, suspensa algures entre dois mundos, entra na cozinha e começa a ajudar a preparar o jantar. 36 Alguém está a segui-los. Não faz sentido perguntar-se se ainda estarão muito longe. Não sabe quando ouvirá a voz gravada que lhe diz que chegou. Não sabe se ela ainda existe. Agora, limita-se a remar, a perseverar. Uma hora antes, passaram por algo que pareciam leões envolvidos numa batalha. Ouviu rugidos. Aves de rapina gritavam ameaças do céu. Coisas rosnavam do meio do bosque. A correntedo rio move-se mais depressa. Ela lembra-se da tenda que Tom e Jules encontraram na rua perto da sua casa. Poderia haver algo assim, tão surpreendentemente fora do lugar, ali, no rio? Poderiam chocar com ela… agora? Ali fora, ela sabe, qualquer coisa imaginada é possível. Mas agora é algo muito mais concreto o que a preocupa. Alguém está a segui-los. Sim, o Rapaz também ouviu. Um eco fantasma. Um segundo remar, ao mesmo ritmo que o seu. Quem faria aquilo? E se pretendesse fazer-lhe mal e às crianças, porque é que não o tinha feito quando estava desmaiada? Será alguém que também está a fugir de casa? — Rapaz — diz ela calmamente —, diz-me tudo o que puderes acerca deles. O Rapaz está à escuta. — Não sei, mamã. Ele parece envergonhado. — Ainda lá estão? — Não sei! — Escuta. Ela pondera parar. Virar. Enfrentar o ruído que ouve atrás deles. A gravação será reproduzida em loop. Você vai ouvi-la. É alta. Clara. E quando a ouvir, é quando terá de abrir os olhos. O que é que está a segui-los? — Rapaz — diz ela novamente. — Diz-me o que puderes acerca deles. Malorie para de remar. A água corre à sua volta. — Não sei o que é — diz ele. Ainda assim, Malorie espera. Um cão ladra da margem direita. Um segundo ladrar responde-lhe. Cães selvagens, pensa Malorie. Mais lobos. Ela recomeça a remar. Pergunta mais uma vez ao Rapaz o que está a ouvir. — Desculpa, mamã! — grita ele. A sua voz está rouca das lágrimas. Da vergonha. Ele não sabe. Há anos que o Rapaz não ouve um som que não consiga identi�car. O que ele está a ouvir é algo que nunca ouviu. Mas Malorie acredita que ele ainda pode ajudar. — A que distância estão? — pergunta Malorie. Mas o Rapaz está a chorar. — Não consigo fazer isto! — Fala baixo! — sibila ela. Algo grunhe da margem esquerda. Parece um porco. Depois outro. E mais outro. O rio parece muito estreito. As margens estão demasiado próximas. Haverá algo a segui-los? Malorie rema. 37 Pela primeira vez desde a sua chegada à casa, Malorie sabe algo que os outros não sabem. Tom e Jules acabaram de regressar. Enquanto os colegas de casa preparavam o jantar, Tom levou o novo stock de enlatados para a cave. Malorie encontrou-se com ele lá em baixo. Talvez Gary tenha guardado o caderno porque queria estudar a escrita de Frank. Ou talvez tivesse sido ele a escrevê-lo. Mas Tom precisava de saber. Agora. Sob luz da cave, ele parecia cansado, mas triunfante. O seu cabelo claro estava sujo. O seu rosto parecia mais envelhecido do que da primeira vez em que estivera ali com ele. Ele estava a perder peso. Metodicamente, retirou latas do seu saco e do de Jules e colocou-as nas prateleiras. Começou a falar de como era o interior do supermercado, do fedor de tanta comida apodrecida, quando Malorie encontrou a sua oportunidade. Mas nesse momento a porta da cave abriu-se. Era Gary. — Eu gostava de te ajudar, se puder — disse a Tom do cimo da escada. — OK — disse Tom. — Então anda. Malorie saiu quando os pés de Gary tocaram no chão de terra. Agora estão todos sentados à mesa da sala de jantar. E Malorie ainda está à espera da sua oportunidade. Tom e Jules descrevem calmamente a sua semana. Os factos são incríveis, mas a mente de Malorie está �xada em Gary. Tenta agir de forma natural. Ouve o que eles dizem. Cada minuto que passa é mais um minuto em que Tom não sabe que Gary pode ser uma ameaça para os restantes. Quase parece que ela e os outros estão a intrometer-se no espaço de Gary. Como se Gary e Don tivessem tido a decência de os convidar para a sua sala de jantar, o seu lugar favorito para trocarem palavras sussurradas. Os dois tinham passado tanto tempo ali que o espaço guardava o cheiro deles. Ter-se-iam juntado ao grupo se o jantar tivesse sido servido na sala de estar? Malorie achava que não. Enquanto Tom descreve como foi caminhar cinco quilómetros de olhos vendados, Gary mostra-se afável, falador e curioso. E sempre que abre a boca, Malorie tem vontade de lhe gritar para parar. Primeiro diz a verdade, apetece-lhe dizer. Mas ela espera. — Então dirias que agora estás convencido de que os animais não são afetados? — pergunta Gary, com a boca cheia de caranguejo. — Não, não diria isso — responde Tom. — Ainda não. Talvez não tenhamos passado por nada que eles pudessem ter visto. — É pouco provável — diz Gary. Malorie quase grita. É então que Tom anuncia que tem outra surpresa para todos. — O teu saco é como o do Sport Billy — diz Gary, a sorrir. Quando Tom regressa, traz consigo uma pequena caixa castanha. De dentro dela tira oito buzinas de bicicleta. — Encontrámos isto no supermercado — diz ele. — Na secção de brinquedos. Ele distribui-as. — A minha tem o meu nome escrito — diz Olympia. — Todas têm — responde Tom. — Escrevi-os, com os olhos vendados, a marcador. — Para que são? — pergunta Felix. — Estamos a avançar para uma vida em que passamos cada vez mais tempo lá fora — responde Tom, sentando-se. — Assim podemos comunicar uns com os outros. De repente, Gary toca a buzina. Parece um ganso. Depois parecem um bando de gansos, quando todos tocam as suas buzinas, criando o caos. As olheiras de Felix esticam-se quando ele sorri. — E este — diz Tom —, é o grande �nal. — Leva a mão ao saco e tira uma garrafa. É rum. — Tom! — diz Olympia. — É a verdadeira razão pela qual eu queria voltar à minha casa — brinca ele. Malorie, ouvindo os colegas de casa a rir, vendo os seus rostos sorridentes, não aguenta mais. Levanta-se e bate com as palmas das mãos na mesa. — Eu vasculhei a pasta do Gary — diz ela. — Encontrei o caderno de que ele nos falou. Aquele que falava de arrancar os cobertores das janelas. O que ele disse que o Frank tinha levado consigo. A sala �ca em silêncio. Todos os habitantes da casa estão a olhar para ela. Tem o rosto vermelho e quente. O suor começa a surgir na linha do cabelo. Tom, ainda com a garrafa de rum na mão, estuda o rosto de Malorie. Depois volta-se lentamente para Gary. — Gary? Gary olha para a mesa. Está a tentar ganhar tempo, pensa Malorie. O cabrão está a tentar ganhar tempo para pensar. — Bem — diz ele —, eu quase não sei o que dizer. — Andaste a vasculhar as coisas de outra pessoa? — pergunta Cheryl, levantando-se. — Sim. Andei. Eu sei que isso viola as regras da casa. Mas precisamos de falar sobre o que eu encontrei. A sala �ca novamente em silêncio. Malorie ainda está de pé. Sente-se elétrica. — Gary? — insiste Jules. Gary recosta-se na cadeira. Respira fundo. Cruza os braços sobre o peito. Depois descruza-os. Parece sério. Irritado. Então sorri. Levanta-se e dirige-se para a pasta. Trá-la consigo e pousa- a na mesa. Os outros estão a olhar para a pasta, mas Malorie está a observar o rosto de Gary. Ele abre a pasta e tira o caderno. — Sim — diz Gary. — Tenho-o comigo. Tenho o caderno do Frank. — Do Frank? — repete Malorie. — Sim — diz Gary, virando-se para ela. Então, mantendo o seu tom teatral e pomposo, acrescenta: — Sua bisbilhoteira. De repente, todos começam a falar ao mesmo tempo. Felix está a pedir o caderno. Cheryl quer saber quando é que Malorie o encontrou. Don está a apontar o dedo a Malorie e a gritar. No meio do caos, Gary, ainda a olhar para Malorie, diz: — Sua puta grávida paranoica. Jules atira-se a ele. Os cães estão a ladrar. Tom interpõe-se no meio deles. Está a ordenar a todos para pararem. Para pararem com aquilo. Malorie não se move. Fita Gary. Jules para. — Ela tem de explicar isto já — explode Don. Levantou-se e está a apontar para Malorie, enraivecido. Tom olha para ela. — Malorie? — diz ele. — Eu não con�o nele. Os companheiros �cam à espera de mais. Olympia diz: — O que diz o caderno? — Olympia! — diz Malorie. — O caderno está ali. Lê-o. Mas Felix já o tem nas mãos. — Porque é que guardaste uma lembrança de um homem que pôs a tua vida em perigo? — Exige saber. — É exatamente por isso que o tenho — diz Gary insistentemente. — Eu queria saber o que o Frank estava a pensar. Vivi com ele durante semanas e nunca suspeitei que fosse capaz de tentar matar-nos. Talvez o tenha mantido comoum aviso. Para ter a certeza de que não começava a pensar como ele. Para garantir que nenhum de vocês pensa como ele. Malorie abana veementemente a cabeça. — Disseste-nos que o Frank levou o caderno consigo — diz ela. Gary começa a responder. Então para. — Não tenho uma resposta satisfatória a essa pergunta — diz Gary. — Possivelmente pensei que �cariam assustados se soubessem que eu o tinha comigo. Podes pensar o que quiseres, mas preferia que con�asses em mim. Não te censuro por vasculhares a bagagem de um estranho, tendo em conta as circunstâncias em que todos estamos a viver. Mas ao menos deixa-me defender-me. Agora Tom está a ver o caderno. As palavras passam-lhe à frente dos olhos. Don pega-lhe em seguida. A sua expressão irritada transforma- se lentamente em confusão. Então, como se Malorie estivesse consciente de algo maior do que o que pode ser resolvido com um voto, aponta um dedo a Gary e diz: — Não podes continuar aqui. Tens de sair. — Malorie — diz Don, pouco convicto —, vamos. O homem está a explicar-se. — Don — disse Felix —, enlouqueceste? Com o caderno ainda nas mãos, Don vira-se para Gary. — Gary — diz ele —, tens de perceber que isto é muito grave. — Eu percebo. Claro que percebo. — Esta não é a tua letra? Podes prová-lo? Gary tira uma caneta da pasta e escreve o seu nome numa página do caderno. Tom olha para o nome por um segundo. — Gary — diz Tom —, nós precisamos de falar. Podes �car aqui se quiseres. De qualquer forma também nos ouves da outra sala. — Eu compreendo — diz Gary. — És o capitão deste navio. Como queiras. Malorie tem vontade de lhe bater. — OK — diz Tom calmamente aos outros —, o que fazemos? — Ele tem de sair — diz Cheryl sem hesitar. Então Tom abre a votação. — Jules? — Ele não pode continuar aqui, Tom. — Felix? — Eu quero dizer que não. Quero dizer que não podemos votar para mandar alguém lá para fora. Mas não há motivo para ele ter este caderno. — Tom — diz Don —, desta vez não estamos a votar para mandar sair uma pessoa que quer ir. Estamos a votar para forçar alguém a fazê-lo. Queres este peso na tua consciência? Tom vira-se para Olympia. — Olympia? — Tom — diz Don. — Já votaste, Don. — Não podemos forçar alguém a ir lá para fora, Tom. O caderno está pousado na mesa. Está aberto. As palavras são apresentadas de forma imaculada. — Lamento, Don — diz Tom. Don vira-se para Olympia, à espera. Mas ela não responde. E não importa. A casa decidiu. Gary levanta-se. Pega no caderno e volta a guardá-lo na pasta. Está de pé atrás da cadeira e ergue o queixo. Respira fundo. Assente. — Tom — diz Gary —, achas que podes dar-me um dos teus capacetes? Um favor de vizinho. — Claro — responde Tom calmamente. Então, Tom sai da sala. Regressa com um capacete e comida. Entrega tudo a Gary. — Então é assim que funciona? — pergunta Gary, ajustando a correia do capacete. — Isso é horrível — lamenta Olympia. Tom ajuda Gary a pôr o capacete. Depois guia-o até à porta da rua. Os colegas de casa seguem-nos. — Acho que todas as casas deste quarteirão estão vazias — diz Tom. — Pelo que o Jules e eu vimos. Podes escolher. — Sim — diz Gary, sorrindo nervosamente por baixo da venda. — Suponho que isso é animador. Malorie, a ferver por dentro, observa Gary com atenção. Quando ela fecha os olhos, quando todos o fazem, ela ouve a porta da rua a abrir-se e a fechar. E entre uma coisa e outra pensa ouvir os pés dele no relvado. Quando abre os olhos, Don já não está ali com os outros. Pensa que ele saiu com Gary. É então que ouve algo a mover-se na cozinha. — Don? Ele resmunga. Ela sabe que é ele. Ele murmura algo antes de abrir e fechar a porta da cave. Outro palavrão. Este é dirigido a Malorie. Quando os outros se dispersam silenciosamente, ela entende a gravidade do que �zeram. Parece que Gary está em toda a parte já fora. Foi banido. Ostracizado. Expulso. O que é pior? pergunta a si mesma. Tê-lo aqui, onde podíamos �car de olho nele, ou tê-lo lá fora, onde não podemos? 38 O Gary está a seguir-te? Os sons de alguém atrás deles, distantes, mas audíveis, continuam. Ele está a tentar assustar-te. Podia ultrapassar-te a qualquer momento. Gary. Isso foi há quatro anos! Teria ele esperado quatro anos para se vingar? — Mamã — sussurra o Rapaz. — O que é? Ela teme o que o �lho está prestes a dizer. — O som, está a aproximar-se. Onde é que o Gary esteve durante quatro anos? Esteve a observar-te. À espera fora da casa. Viu as crianças a crescerem. Viu o mundo a �car mais frio, mais escuro, até chegar o nevoeiro, aquele que pensaste que ia ocultar-te. Ele viu através dele. Através do nevoeiro. Viu tudo o que �zeste. Ele viu-te, Malorie. Tudo o que �zeste. — Porra! — grita ela. — É impossível! — Então, virando o pescoço, com os músculos a oferecerem resistência, ela grita: — Deixa-nos em paz! Uma remada já não é o que costumava ser. Não é como quando começaram hoje. Nessa altura tinha dois ombros fortes. Um coração cheio de energia. Quatro anos a impulsioná-la. Apesar de tudo o que passou, recusa-se a acreditar que é possível que Gary esteja atrás de si. Seria tão cruel. Um homem ali durante todos aqueles anos. Não uma criatura, mas um homem. O HOMEM É A CRIATURA QUE ELE TEME Aquela frase, a frase de Gary, apenas oito palavras, �cou gravada na sua mente desde a noite em que a leu na cave. E não é verdade? Quando ouvia um galho a quebrar-se pelos ampli�cadores que tinha ido buscar com Victor, quando ouvia passos no relvado lá fora, o que temia mais? Um animal? Uma criatura? Ou uma pessoa? O Gary. Sempre o Gary. Ele podia ter entrado a qualquer momento. Podia ter partido uma janela. Podia tê-la atacado quando ela ia buscar água ao poço. Porque haveria de esperar? Sempre a segui-la, sempre à espreita, ainda não pronto para atacar. Ele é louco. No velho sentido. O HOMEM É A CRIATURA QUE ELE TEME — É um homem, Rapaz? — Não sei, mamã. — É alguém a remar? — Sim. Mas com as mãos em vez de remos. — Está a avançar depressa? Está à espera? Conta-me mais. Diz- me tudo o que ouves. Quem está a seguir-te? Gary. Quem está a seguir-te? Gary. Quem está a seguir-te? Gary Gary Gary Gary — Acho que quem é não está num barco — diz o Rapaz de repente. Parece orgulhoso por ter �nalmente conseguido fazer uma distinção. — O que é que queres dizer? Está a nadar? — Não, mamã. Não está a nadar. Está a caminhar. Muito atrás, ela ouve algo que nunca ouviu. É como um relâmpago. De um novo tipo. Ou como se os pássaros, todos eles, em todas as árvores, já não estivessem a cantar, já não estivessem a chilrear, mas antes a gritar. O som ecoa, uma vez, áspero, do outro lado do rio, e Malorie sente um arrepio mais gelado do que qualquer ar de outubro podia causar. Ela rema. 39 Don está na cave. Don está sempre na cave. Agora dorme lá. Estará a escavar um túnel no local onde a terra está à mostra? Estará a escavar um túnel para um lugar mais fundo, mais distante, dentro da terra? Para mais longe dos outros? Estará a escrever? Estará a escrever num caderno como o que Malorie encontrou na pasta de Gary? Gary. Já partiu há cinco semanas. O que é que isso fez a Don? Ele precisaria de alguém como Gary? Precisaria de outro ouvido? Don afunda-se mais em si mesmo, como se afunda mais na casa, e agora está na cave. Ele está sempre na cave. 40 É o que Malorie mais tarde considerará a última noite da casa, embora vá passar ali os próximos quatro anos. Ao espelho, a sua barriga parece tão grande que a assusta, parece a ponto de cair do corpo. Ela fala com o bebé. — Vais sair a qualquer momento. Há tantas coisas que quero dizer-te e tantas que não quero. O seu cabelo negro está mais comprido do que alguma vez esteve desde que era criança. Shannon costumava ter inveja dele. Pareces uma princesa. E eu pareço a irmã da princesa, diria. A viver de enlatados e água do poço, consegue ver algumas das suas costelas, apesar da barriga protuberante. Os seus braços estão magros como galhos. As suas feições estão a�adas e marcadas. Os olhos, mais encovados, parecem-lhe impressionantesao espelho. Os habitantes da casa estão reunidos na sala de estar no piso de baixo. Naquela manhã ligaram para os últimos nomes da lista telefónica. Não há mais. Felix disse que �zeram cerca de cinco mil telefonemas. Deixaram dezassete mensagens. Mais nada. Mas Tom está animado. Agora, enquanto Malorie examina o seu corpo ao espelho, ouve um dos cães a rosnar no andar de baixo. Parece Victor. Saindo para o corredor, ela põe-se à escuta. — O que é, Victor? — ouve Jules perguntar. — Ele não gosta dela — diz Cheryl. — Do quê? — Da porta da cave. A cave. Não é segredo que Don não quer ter nada que ver com o resto da casa. Quando Tom instigou o seu plano de telefonar para todos os números da lista telefónica, dando a cada colega de casa um grupo de letras, Don recusou, dizendo ter «falta de fé» no processo. Nas sete semanas a seguir a terem fechado a porta da rua a Gary, Don não se juntou aos outros para as refeições. Quase não fala. Malorie ouve uma cadeira da cozinha a deslizar no chão. — Estás bem, Victor? — pergunta Jules. Malorie ouve a porta da cave a abrir-se e depois Jules chama. — Don? Estás aí em baixo? — Don? — repete Cheryl. Há uma resposta abafada. A porta fecha-se novamente. Curiosa e ansiosa, Malorie puxa a camisa para cobrir a barriga e desce a escada. Quando entra na cozinha, vê que Jules está ajoelhado, a consolar Victor, que agora gane e caminha de um lado para o outro. Malorie olha para a sala de estar. Ali, vê Tom a olhar para as janelas tapadas. Ele está a ouvir os pássaros, pensa ela. O Victor está a assustá-lo. Como se percebesse que ela está a observá-lo, Tom vira-se para Malorie. Victor está a ganir atrás dela. — Jules — diz Tom, entrando na cozinha —, o que é que achas que é? O que é que está a assustá-lo? — Não sei. Obviamente, alguma coisa o alarmou. Ele estava a arranhar a porta da cave hoje de manhã. O Don está lá em baixo. Mas fazê-lo falar é como arrancar dentes. E mais difícil ainda é fazê-lo subir cá acima. — OK — diz Tom. — Então vamos nós lá abaixo. Quando Jules olha para Tom, Malorie vê medo no seu rosto. O que é que Gary lhes fez? Introduziu a descon�ança, pensa Malorie. O Jules tem medo de confrontar o Don. — Vamos — diz Tom. — Está na altura de conversarmos com ele. Jules levanta-se e pousa a mão na maçaneta da porta da cave. Victor começa a rosnar novamente. — Tu �cas aqui, rapaz — diz Jules. — Não — diz Tom. — Vamos trazê-lo connosco. Jules faz uma pausa e depois abre a porta da cave. — Don? — chama Tom. Não obtém resposta. Tom desce primeiro. Seguem-se Jules e Victor. Depois Malorie. Apesar de a luz estar acesa, o ambiente parece-lhe escuro. A princípio, Malorie pensa que estão sozinhos. Esperava ver Don sentado no banquinho. A ler. A pensar. A escrever. Vai dizer que não há ninguém ali em baixo, mas então solta um grito. Don está de pé junto à tapeçaria �na, encostado à máquina de lavar roupa, na sombra. — O que é que se passa com o cão? — pergunta calmamente. Tom fala com cuidado quando responde. — Não sabemos, Don. É como se ele não gostasse de algo aqui. Está tudo bem? — O que é que isso quer dizer? — Tens passado mais tempo aqui nas últimas semanas — diz Tom. — Só quero saber se tudo está bem. Quando Don dá um passo para a frente, para a luz, Malorie abafa um grito. Ele não está bem. Está pálido. Magro. Os seus cabelos escuros estão sujos e ralos. As feições do seu rosto parecem de barro. As olheiras debaixo dos seus olhos parecem ter absorvido parte da escuridão que está a �tar há semanas. — Ligámos para todos os números da lista telefónica — diz Tom, tentando, pensa Malorie, mencionar algo animador naquela cave húmida e escura. — Tiveram sorte? — Nada, por enquanto. Mas quem sabe? — Sim. Quem sabe. Então eles �cam em silêncio. Malorie percebe que a separação que sentiu crescer entre eles está completa. Eles foram ver se Don está bem. Foram visitar Don. Como se ele vivesse agora noutro lugar. A situação parece impossível de reparar. — Queres vir ao andar de cima? — pergunta Tom docemente. Malorie sente uma tontura. Leva a mão à barriga. O bebé. Não devia ter descido a escada para a cave. Mas está tão preocupada com Don como todos os outros. — Para quê? — responde Don por �m. — Não sei para quê — diz Tom. — Talvez te faça bem passar uma noite connosco. Don está a assentir lentamente. Humedece os lábios. Lança um olhar em volta para a cave. Para as prateleiras, as caixas e o banco onde Malorie se sentou, sete semanas antes, quando leu o caderno que estava dentro da pasta de Gary. — Está bem — sussurra Don. — OK. Tom pousa uma mão no ombro de Don. Don começa a chorar. Leva uma mão aos olhos para esconder o choro. — Desculpem — diz. — Estou tão confuso, Tom. — Estamos todos — diz Tom calmamente. — Sobe as escadas. Todos vão gostar de te ver. Na cozinha, Tom tira a garrafa de rum de um armário. Serve um copo para si e outro para Don. Fazem um pequeno brinde e depois bebem. Por um momento, é como se nada tivesse mudado e nada fosse mudar. Os colegas de casa estão juntos novamente. Malorie não se lembra da última vez que viu Don assim, sem Gary agachado ao seu lado, o demónio no seu ombro, a sussurrar �loso�as, a manchar-lhe a mente com a mesma linguagem que ela encontrou no caderno. Victor roça-se nas pernas de Malorie enquanto volta para a cozinha. Ao vê-lo, ela sente uma segunda onda de tonturas. Preciso de me deitar, pensa ela. — Então é melhor ires — responde Tom. Malorie não se deu conta de tê-lo dito em voz alta. Mas não se quer deitar. Quer sentar-se com Tom e Don e os outros, e acreditar, por um momento, que a casa ainda pode ser o que se propôs a ser. Um lugar onde desconhecidos se encontram, reúnem os seus recursos, reúnem forças nos números, enfrentam o impossível, mudam o mundo lá fora. Mas depois, tudo aquilo lhe parece demasiado. Uma terceira onda de náusea atinge-a e Malorie, de pé, tropeça. Jules aparece subitamente ao seu lado. Está a ajudá-la a subir as escadas. Quando ela entra no quarto e se deita, vê que os outros estão ali com ela. Todos. Don, também. Estão a observá-la, preocupados com ela. A olhar. Perguntam-lhe se está bem. Precisa de alguma coisa? Água? Um pano molhado? Ela diz que não, ou pensa que diz que não, mas está à deriva. Quando adormece, ouve um som, vindo do respiradouro, o som de Victor novamente, a rosnar, sozinho, na cozinha. A última coisa que vê antes de fechar os olhos são os colegas de casa reunidos. Estão a observá-la atentamente. Olham para a barriga dela. Sabem que chegou a altura. Victor rosna novamente. Don olha para as escadas. Jules sai do quarto. — Obrigada, Tom — diz Malorie. — Pelas buzinas das bicicletas. Ela pensa ouvir a caixa de pássaros, a bater levemente contra a casa. Mas é só o vento a bater na janela. E então adormece. E sonha com os pássaros. 41 Os pássaros nas árvores estão inquietos. Parece que mil ramos tremem ao mesmo tempo. Como se houvesse um vento perigoso lá em cima. Mas Malorie não o sente ali no rio. Não. Não há vento. Mas algo está a perturbar os pássaros. A dor no seu ombro atingiu um nível que Malorie nunca experimentou antes. Amaldiçoa-se por não ter prestado mais atenção ao seu corpo nos últimos quatro anos. Em vez disso, passou o tempo a treinar as crianças. Até as suas habilidades transcenderem os exercícios que ela inventava. Mamã, uma folha caiu no poço! Mamã, está a chover ao fundo da rua e vem na nossa direção! Mamã, um pássaro pousou no ramo do lado de fora da nossa janela! Conseguirão as crianças ouvir a voz gravada antes dela? Têm de conseguir. E quando isso acontecer, chegará a hora de abrir os olhos. Para ver onde o rio se divide em quatro canais. Tem de escolher o segundo a contar da direita. Foi o que lhe foi ordenado. E em breve terá de o fazer. Os pássaros nas árvores estão a chilrear. Há atividade nas margens. Homem, animal, monstro. Não sabe. O medo que sente está instalado bem no centro da sua alma. E os pássaros nos ramos diretamente por cima deles estão agora a arrulhar. Ela pensa na casa. Na últimanoite que passou com os colegas de casa, todos juntos. O vento batia ruidosamente nas janelas. Aproximava-se uma tempestade. Uma grande tempestade. Talvez os pássaros nas árvores saibam isso. Ou talvez saibam algo mais. — Não consigo ouvir — diz subitamente a Rapariga. — Os pássaros, mamã. Eles estão a fazer muito barulho! Malorie para de remar. Pensa em Victor. — Como é que vos parecem? — pergunta a ambos os �lhos. — Assustados! — diz a Rapariga. — Loucos! — diz o Rapaz. Quanto mais Malorie escuta as árvores, pior lhe parece. Quantos estarão lá em cima? Parece uma in�nidade. As crianças ouvirão a gravação no meio desta cacofonia? Victor enlouqueceu. Os animais enlouquecem. Os pássaros não parecem sãos. Lentamente, às cegas, ela vira a cabeça por cima do ombro para o que os segue. Tens os olhos fechados, pensa. Tal como os tinhas sempre que foste buscar água ao poço. Sempre que conduziste o carro para ir buscar os ampli�cadores. Os teus olhos estavam fechados quando os do Victor não estavam. O que é que te preocupa? Não estiveste já perto deles? Não estiveste já tão perto de um que conseguiste sentir-lhe o cheiro? Estivera. Tu acrescentas os detalhes, pensa ela. É a tua ideia da aparência deles e os detalhes são acrescentados a um corpo e a uma forma que não conheces. A um rosto que pode não ter rosto. As criaturas da sua mente caminham em campos abertos e sem horizonte. Estão do lado de fora das janelas de casas antigas e olham com curiosidade para o vidro. Estudam. Examinam. Observam. Fazem a única coisa que Malorie não tem permissão para fazer. Eles olham. Reconhecerão as �ores dos jardins como bonitas? Entenderão em que direção o rio corre? Entenderão? — Mamã — diz o Rapaz. — O que é? — Este barulho, mamã. Parece alguém a falar. Ela pensa no homem do barco. Pensa em Gary. Mesmo agora, tão longe da casa, ela pensa em Gary. Tenta perguntar ao Rapaz o que quer ele dizer, mas as vozes dos pássaros elevam-se numa onda grotesca, quase sinfónica, a gritar. Parecem demasiados para as árvores poderem sustentá-los. Como se ocupassem todo o céu. Parecem loucos. Parecem loucos. Oh meu Deus, eles parecem loucos. Malorie vira a cabeça por cima do ombro, embora não consiga ver. O Rapaz ouviu uma voz. Os pássaros estão loucos. Quem está a segui-los? Mas já não lhe parece que algo esteja a segui-los. Parece-lhe que algo os apanhou. — É uma voz! — grita o Rapaz, como se falasse dentro de um sonho, como se a sua voz penetrasse o ruído impossível que vem de cima. Malorie tem a certeza. Os pássaros viram algo ali em baixo. O canto em uníssono dos pássaros sobe e atinge um auge antes de abrandar, serpentear e fazer explodir todos os limites. Malorie ouve o som como se estivesse dentro dele. Como se estivesse presa num aviário com mil pássaros chalados. Parece que desceram uma gaiola por cima de todos eles. Uma caixa de cartão. Uma caixa de pássaros. A bloquear o sol para sempre. O que é? O que é? O que é? O in�nito. De onde veio? De onde veio? De onde veio? Do in�nito. Os pássaros gritam. E o barulho que fazem não é música. A Rapariga grita. — Algo me atingiu, mamã! Algo caiu! Malorie também o sente. Pensa que está a chover. Impossivelmente, o som dos pássaros torna-se ainda mais ruidoso. É ensurdecedor, estão a guinchar. Malorie tem de tapar os ouvidos. Ela grita para as crianças, implorando-lhes que façam o mesmo. Alguma coisa lhe bate com força no ombro magoado e ela grita, estremecendo de dor. Descontroladamente, segurando a venda com a mão, ela vasculha o barco à procura do que a atingiu. A Rapariga grita novamente. — Mamã! Mas Malorie descobriu-o. Entre o dedo indicador e o polegar não tem uma gota de chuva, mas o corpo arruinado de um pequeno pássaro. Ela apalpa a asa delicada. Agora Malorie sabe. No céu por cima deles, para onde está proibida de olhar, os pássaros estão em guerra. Os pássaros estão a matar-se uns aos outros. — Cubram as cabeças! Segurem as vendas! Então, como uma onda, eles atingem-nos. Os corpos emplumados vêm de cima. O rio explode com o peso de milhares de aves a caírem na água. Eles acertam no barco. Caem. Malorie é atingida. Eles acertam-lhe na cabeça, no braço. É atingida outra vez. E outra. Com o sangue de pássaro a escorrer-lhe pelo rosto, consegue saboreá-los. Também consegues sentir o cheiro. Morte. Morte. Decomposição. O céu está a cair, o céu está a morrer, o céu está morto. Malorie chama as crianças, mas o Rapaz já está a falar, tentando dizer-lhe algo. — Riverbridge — diz ele. — Dois setenta e três Shillingham… chamo-me … — O quê? Agachada, Malorie inclina-se para a frente. Aproxima os lábios do Rapaz do seu ouvido. — Riverbridge — diz ele. — Dois setenta e três Shillingham. Chamo-me Tom. Malorie endireita-se, ferida, agarrada à venda. Chamo-me Tom. As aves atacam o seu corpo. Batem com estrondo contra o barco. Mas ela não está a pensar nelas. Está a pensar em Tom. Olá! Estou a ligar de Riverbridge. Dois setenta e três Shillingham. Chamo-me Tom. Tenho a certeza de que entende o alívio que sinto por apanhar o seu voicemail. Isso signi�ca que ainda tem eletricidade. Nós também… Malorie começa a abanar a cabeça. não não não não não não não não não não não — NÃO! O Rapaz ouviu-a primeiro. A voz de Tom. Gravada e reproduzida em loop. Ativada pelo movimento. Para ela. Para Malorie. Se alguma vez decidisse seguir o rio. Quando quer que esse dia chegasse. Tom, doce Tom, a falar ali durante todos aqueles anos. A tentar estabelecer contacto. A tentar alcançar alguém. A tentar construir uma ponte entre a sua vida na casa e uma melhor, noutro lugar. Eles usaram a voz dele porque sabiam que a reconhecerias. É agora, Malorie. Este é o momento em que deves abrir os olhos. Quão verde será a relva? Quão coloridas serão as folhas? Quão vermelho será o sangue dos pássaros que se espalha no rio por baixo de si? — Mamã! — chama o Rapaz. A mamã tem de abrir os olhos, tem vontade de dizer. A mamã tem de olhar. Mas os pássaros enlouqueceram. — Mamã! — repete o Rapaz. Ela responde. Quase não reconhece a sua própria voz. — O que é, Rapaz? — Há alguma coisa aqui connosco, mamã. Algo está mesmo aqui. O barco a remos para. Alguma coisa o parou. Ela consegue ouvi-lo a mover-se na água ao lado deles. Não é um animal, pensa. Não é o Gary. É aquilo de que te tens vindo a esconder há quatro anos e meio. É o que te impede de olhar para a rua. Malorie prepara-se. Há algo na água à sua esquerda. A centímetros do seu braço. Os pássaros lá em cima começam a parecer distantes. Como se subissem, subissem, numa espiral lunática em direção aos limites do céu. Ela sente a presença de algo ao seu lado. Os pássaros estão a �car mais silenciosos. A silenciar-se. Desaparecem. Sobem. Desapareceram. A voz de Tom continua. O rio corre em volta do barco a remos. Malorie grita quando sente que a venda lhe está a ser arrancada do rosto. Ela não se move. A venda para a um centímetro dos seus olhos fechados. Consegue ouvi-lo? A respirar? É isso que ouve? É isso? É o Tom, pensa, o Tom está a deixar uma mensagem. A voz dele ecoa através do rio. Parece tão esperançoso. Vivo. Tom. Vou ter de abrir os olhos. Fala comigo. Por favor. Diz-me o que fazer. Tom, vou ter de abrir os olhos. A voz dele vem do espaço à sua frente. É como o sol, a única luz em toda aquela escuridão. A venda é puxada um centímetro mais para longe do seu rosto. O nó faz pressão contra a parte de trás da sua cabeça. Tom, vou ter de abrir os olhos. E então… 42 Ela abre-os. Malorie senta-se na cama e agarra a barriga antes de perceber que já está a uivar há algum tempo. A cama está encharcada. Dois homens entram a correr no quarto. Tudo aquilo parece um sonho (Estou realmente a ter um bebé? Um bebé? Eu estive grávida este tempo todo?) e é assustador (Onde está a Shannon? Onde está a minha mãe?) e, a princípio, não os reconhece como Felix e Jules. — Raios — diz Felix. — A Olympia já está lá em cima. A Olympia começou talvez há duas horas. Lá em cima onde? pensa Malorie. Lá em cima onde? Os homenssão cuidadosos com ela e ajudam-na a chegar-se para a beira da cama. — Estás preparada para fazer isto? — pergunta Jules. Malorie limita-se a olhar para ele, de testa franzida, e com o rosto simultaneamente rosado e pálido. — Eu estava a dormir — diz ela. — Eu só estava… lá em cima onde, Felix? — Ela está pronta — diz Jules, forçando um sorriso, tentando reconfortá-la. — Pareces ótima, Malorie. Pareces pronta. Ela começa a perguntar: — Lá em… Mas Felix responde antes de ela terminar. — Vamos fazer isto no sótão. O Tom diz que é o lugar mais seguro da casa. Caso aconteça algo. Mas não vai acontecer nada. A Olympia já está lá. Está em trabalho de parto há duas horas. O Tom e a Cheryl estão com ela. Não te preocupes, Malorie. Vamos fazer tudo o que pudermos. Malorie não responde. A sensação de que há algo dentro dela que tem de sair é a coisa mais horrível e incrível que já conheceu. Os homens seguram-na, cada um por baixo de um braço, e levam-na para fora do quarto, passando pela porta e em direção ao corredor, em direção à parte de trás da casa. As escadas do sótão já foram baixadas e, enquanto eles a apoiam, Malorie vê os cobertores que tapam a janela ao fundo do corredor. Pergunta-se que horas serão. Se é a noite seguinte. Se passou uma semana. Estou realmente a ter o meu bebé? Agora? Felix e Jules ajudam-na a subir os velhos degraus de madeira. Ela consegue ouvir Olympia no andar de cima. E a voz doce de Tom, dizendo coisas como respira, vais �car bem, estás bem. — Talvez a�nal não vá ser assim tão diferente — diz ela (os homens, graças a Deus, ajudam-na a subir os degraus). — Talvez não seja muito diferente do que eu esperava que fosse. Há ali mais espaço do que imaginava. Uma única vela ilumina o espaço. Olympia está deitada numa toalha no chão. Cheryl está ao lado dela. Os joelhos de Olympia estão levantados e um lençol �no cobre-a da cintura para baixo. Jules ajuda-a a deitar-se na sua própria toalha de frente para Olympia. Tom aproxima-se de Malorie. — Oh, Malorie! — diz Olympia. Está sem fôlego e apenas parte dela exclama, enquanto o resto se agita e contorce. — Estou tão feliz por estares aqui! Malorie, aturdida, não pode deixar de sentir que ainda está a dormir quando olha por cima dos joelhos cobertos e vê Olympia como um re�exo. — Há quanto tempo estás aqui, Olympia? — Não sei. Uma eternidade, parece-me! Felix conversa calmamente com Olympia, perguntando-lhe do que precisa. Depois desce as escadas para o ir buscar. Tom recomenda a Cheryl que mantenha as coisas limpas. Elas vão �car bem, diz, desde que se mantenham limpas. Eles estão a usar lençóis e toalhas limpas. Desinfetante para mãos trazido da casa de Tom. Dois baldes de água do poço. Tom parece calmo, mas Malorie sabe que não está. — Malorie? — pergunta Tom. — Sim? — Do que é que precisas? — Que tal um pouco de água? E música, também, Tom. — Música? — Sim. Algo doce e suave, sabes, talvez algo para… Algo para abafar o som do meu corpo no chão de madeira de um sótão… — a música de �auta. Essa cassete. — OK — diz Tom. — Vou buscá-la. Ele obedece, passando por ela em direção às escadas que descem diretamente atrás das suas costas. Ela dirige a sua atenção para Olympia. Ainda está a ter di�culdades em afastar a névoa do sono. Vê uma pequena faca ao seu lado em cima de uma toalha de papel, a menos de meio metro de distância. Cheryl limitou-se a mergulhá-la em água. — Jesus! — grita Olympia subitamente, e Felix ajoelha-se e pega-lhe na mão. Malorie assiste. Estas pessoas, pensa, o tipo de pessoa que responderia a um anúncio como aquele no jornal. Estas pessoas são sobreviventes. Sente uma onda momentânea de paz. Sabe que não vai demorar muito. Os habitantes da casa cruzam o seu espírito, os seus rostos, um a seguir ao outro. Sente algo como amor em relação a cada um deles.. Meu Deus, pensa, temos sido tão corajosos. — Meu Deus! — grita Olympia de repente. Cheryl aparece rapidamente ao seu lado. Uma vez, quando Tom estava ali à procura de �ta adesiva, Malorie observou-o do fundo da escada. Mas nunca tinha estado ali sozinha. Agora, respirando pesadamente, olha para a cortina que cobre a única janela e sente um arrepio. Até o sótão foi protegido. Um espaço quase nunca usado também precisa de ser vedado. O seu olhar percorre a estrutura da janela de madeira, depois as paredes de madeira, o teto pontiagudo, as caixas de coisas que George deixou para trás. Os seus olhos continuam em direção a um monte de cobertores empilhados. Outra caixa de peças de plástico. Livros velhos. Roupas velhas. Alguém está de pé ao lado das roupas velhas. É Don. Malorie sente uma contração. Tom regressa com um copo de água e o pequeno rádio em que ouvem as cassetes. — Aqui tens, Malorie — diz ele. — Encontrei-a. O som de violinos escapa das pequenas colunas. Malorie acha que é perfeito. — Obrigada — diz. O rosto de Tom parece muito cansado. Tem os olhos meio abertos e inchados. Como se tivesse dormido apenas uma hora ou menos. Malorie sente uma contração tão forte que, a princípio, pensa que não é real. Parece que uma armadilha para ursos se fechou na sua cintura. As vozes vêm de trás dela. Do fundo da escada do sótão. É Cheryl. Jules. Ela mal consegue perceber quem está ali e quem não está. — Oh, Deus! — grita Olympia. Tom está com ela. Felix está novamente ao lado de Malorie. — Vais conseguir — diz Malorie a Olympia. Quando o diz, um trovão estoura na rua. A chuva cai com força contra o telhado. De alguma forma, a chuva é exatamente o som que procurava. O mundo exterior soa como ela se sente. Tormentoso. Ameaçador. Horrível. Os colegas de casa emergem das sombras, depois desaparecem. Tom parece preocupado. Olympia respira com força, ofegante. As escadas rangem. Chegou alguém. É Jules, novamente. Tom está a dizer-lhe que Olympia está mais atrasada do que Malorie. Os trovões estalam lá fora. Quando um relâmpago cai, ela vê o contorno de Don, as suas feições sombrias, os seus olhos encovados por cima de olheiras profundas. Malorie sente uma pressão insuportável na cintura. O seu corpo, ao que parece, está a agir sozinho, refutando o desejo de paz da sua mente. Ela grita e Cheryl deixa Olympia e vem até ela. Malorie nem sabia que Cheryl ainda ali estava. — Isto é horrível — sibila Olympia. Malorie pensa em como as mulheres sincronizam os seus ciclos, mulheres em sintonia com os corpos umas das outras. Apesar de todas as suas conversas sobre quem daria à luz primeiro, nem ela nem Olympia supuseram que podiam entrar em trabalho de parto ao mesmo tempo. Oh, como Malorie desejava um parto tradicional! Mais trovões. Agora está mais escuro ali. Tom traz uma segunda vela, acende- a e pousa-a no chão à esquerda de Malorie. Sob a luz trémula da vela, ela vê Felix e Cheryl, mas Olympia é difícil de distinguir. O tronco e o rosto estão obscurecidos por sombras ondulantes. Alguém desce as escadas atrás dela. Será Don? Não quer virar o pescoço. Tom passa pela luz das velas e depois sai do seu campo de visão. Depois Felix, pensa ela, e depois Cheryl. As silhuetas movem-se dela para Olympia como fantasmas. A chuva cai com mais força no telhado. Há uma agitação forte e abrupta no andar de baixo. Malorie não tem a certeza, mas parece-lhe que alguém está a gritar. A sua mente cansada estará a confundir os sons? Quem está a discutir? Parece uma discussão no andar de baixo. Não consegue pensar nisso agora. Não vai pensar nisso. — Malorie? — Malorie grita quando o rosto de Cheryl aparece de repente ao seu lado. — Aperta a minha mão. Parte-a se precisares. Malorie quer dizer, Traz um pouco de luz para aqui. Traz-me um médico. Faz isto por mim. Em vez disso, responde com um grunhido. Está a ter o bebé. Já não é uma questão de quando. Será que vou ver as coisas de forma diferente agora? Eu via tudo através do prisma deste bebé. Foi assim que vi a casa. Os colegas de casa. O mundo. Foi como vi as notícias quando isto começou e como vi as notícias quando terminou. Fiquei horrorizada, paranoica, irritada e mais. Quando o meucorpo regressar à forma que tinha quando eu andava pelas ruas livremente, voltarei a ver as coisas de forma diferente? Como será o Tom? Como soarão as suas ideias? — Malorie! — chama Olympia da escuridão. — Acho que não consigo fazer isto! Cheryl está a dizer a Olympia que consegue, que está quase lá. — O que é que está a acontecer no andar de baixo? — pergunta Malorie de repente. Don está lá em baixo. Consegue ouvi-lo a discutir. Jules, também. Sim, Don e Jules estão a discutir no corredor por baixo do sótão. Tom está com eles? Felix? Não. Felix sai da escuridão e pega-lhe na mão. — Estás bem, Malorie? — Não — diz ela. — O que é que está a acontecer no andar de baixo? Ele faz uma pausa e depois diz: — Não tenho a certeza. Mas tens coisas maiores com que te preocupar do que as discussões dos outros. — É o Don? — pergunta ela. — Não te preocupes, Malorie. Chove com mais força. É como se cada gota tivesse o seu próprio peso audível. Malorie levanta a cabeça para ver os olhos de Olympia nas sombras, �xos nela. Para além da chuva, da discussão, da agitação no andar de baixo, Malorie ouve algo. Mais doce do que os violinos. O que é isto? — Oh merda! — grita Olympia. — Faz isto parar! Malorie tem cada vez mais di�culdade em respirar. Parece que o bebé está a cortar-lhe o suprimento de ar. Como se estivesse a subir-lhe pela garganta. Tom está ali. Está ao seu lado. — Lamento, Malorie. Ela vira-se para ele. O rosto que vê, a expressão no seu rosto, é algo que vai recordar durante anos depois daquela manhã. — Lamentas o quê, Tom? Lamentas por ter acontecido desta forma? Os olhos de Tom ganham uma expressão triste. Ele acena com a cabeça que sim. Ambos sabem que ele não tem motivos para se lamentar, mas ambos sabem que nenhuma mulher deveria suportar o parto no sótão abafado de uma casa a que chama lar apenas porque não pode sair. — Sabes o que eu acho? — diz ele docemente, aproximando-se para lhe agarrar na mão. — Acho que vais ser uma mãe maravilhosa. Acho que vais criar esta criança tão bem que não será importante se o mundo continua assim ou não. Malorie sente que um gancho de aço enferrujado está a tentar puxar o bebé para fora dela agora. Uma correia de reboque vinda das sombras à sua frente. — Tom — Malorie consegue dizer. — O que se passa lá em baixo? — O Don está perturbado. Só isso. Ela quer falar mais acerca do assunto. Já não está zangada com Don. Está preocupada com ele. De todos os colegas de casa, ele foi quem mais sofreu com o novo mundo. Está perdido nele. Há algo mais vazio do que a falta de esperança no seu olhar. Malorie quer dizer a Tom que gosta de Don, que todos gostam, que ele só precisa de ajuda. Mas a dor é absolutamente tudo o que consegue processar. E as palavras são momentaneamente impossíveis. A discussão lá em baixo parece-lhe agora uma piada. Como se alguém estivesse a brincar com ela. Como se a casa estivesse a dizer-lhe: Vês? Mantém o sentido de humor, apesar da dor que estás a viver no meu sótão. Malorie conheceu exaustão e fome. Dor física e fadiga mental grave. Mas nunca conheceu o estado em que está agora. Não só tem o direito de não ser incomodada por uma discussão entre os colegas de casa, como também quase merece que todos saiam completamente da casa e permaneçam no quintal, de olhos fechados, enquanto ela e Olympia fazem o que os seus corpos precisam de fazer. Tom levanta-se. — Já venho — diz. — Precisas de mais água? Malorie abana a cabeça e volta o olhar para as sombras e lençóis onde decorre a luta de Olympia à sua frente. — Estamos a conseguir! — diz Olympia, soando subitamente maníaca. — Está a acontecer! Tantos sons. As vozes lá em baixo, as vozes no sótão (provenientes das sombras e provenientes de rostos que emergem dessas sombras), a escada, que range sempre que um dos habitantes da casa sobe ou desce para avaliar a situação ali e depois a situação (ela sabe que há um problema no andar inferior, simplesmente não está para se ralar, neste momento) que está a decorrer lá em baixo. A chuva cai, mas há outra coisa. Outro som. Um instrumento, talvez. As notas mais agudas do piano da sala de jantar. Subitamente, estranhamente, Malorie sente outra onda de paz. Apesar das mil lâminas que lhe perfuram os pulmões, o pescoço e o peito, ela compreende que, independentemente do que faça, independentemente do que aconteça, o bebé está a sair. Que importa o mundo para o qual está a trazer este bebé agora? Olympia tem razão. Está a acontecer. A criança está a chegar, a criança está quase fora. E ele sempre fez parte do novo mundo. Ele conhece ansiedade, medo, paranoia. Ele �cou preocupado quando Tom e Jules foram procurar os cães. Ele �cou dolorosamente aliviado quando eles regressaram. Ele �cou assustado com a mudança em Don. Com a mudança na casa. Quando passou de um paraíso de esperança para um lugar amargo e ansioso. O seu coração �cou pesado quando eu li o anúncio que me trouxe aqui, bem como quando li o caderno na cave. Ao pensar na palavra «cave», Malorie ouve realmente a voz de Don lá em baixo. Ele está a berrar. No entanto, algo além da voz dele a preocupa mais. — Estás a ouvir este som, Olympia? — O quê? — resmunga Olympia. Parece que tem a garganta cheia de agrafos. — Aquele som. Parece… — É a chuva — diz Olympia. — Não, não é isso. Há outra coisa. Parece que já tivemos os nossos bebés. — O quê? Malorie acha que soa como um bebé. Algo parecido, para lá dos companheiros ao fundo da escada. Talvez até no primeiro andar, na sala de estar, talvez até mesmo… Talvez até mesmo lá fora. Mas o que signi�ca? O que está a acontecer? Alguém está a chorar no alpendre? Impossível. É outra coisa. Mas está vivo. Um relâmpago explode. O sótão �ca totalmente visível, uma visão de pesadelo, instantânea. O cobertor que tapa a janela permanece �xo na mente de Malorie muito depois de a luz passar e o trovão ressoar. Olympia grita quando aquilo acontece e Malorie, com os olhos fechados, vê a expressão de medo da amiga congelada na sua mente. Mas a atenção dela é atraída para a pressão impossível que sente na cintura. Parece que Olympia podia estar a uivar por ela. Sempre que Malorie sente a horrível faca cravada num dos �ancos, Olympia geme. Devo uivar por ela também? A cassete para. E o mesmo acontece com a agitação lá em baixo. Até a chuva abranda. Os mínimos sons no sótão são agora mais audíveis. Malorie escuta a sua própria respiração. Os passos dos colegas de casa que as ajudam parecem de�nidos. Figuras emergem. Depois desaparecem. Há Tom (tem a certeza). Há Felix (acha). Jules está ao lado de Olympia. O mundo está a recuar? Ou estou a velejar mais para dentro desta dor? Ouve outra vez o barulho. Como um bebé à porta de casa. Algo jovem e vivo vindo do andar de baixo. Só que agora é mais pronunciado. Só que agora não precisa de lutar para se fazer ouvir por cima da discussão e da música e da chuva. Sim, é mais pronunciado, mais de�nido. Quando Tom atravessa o sótão, ela consegue ouvir o som entre os seus passos. A bota entra em contacto com a madeira, depois levanta-se, expondo os sons juvenis lá em baixo. Então, muito claramente, Malorie reconhece o som. São os pássaros. Meu Deus. São os pássaros. A caixa de cartão a bater contra a parede exterior da casa e o suave chilrear dos pássaros. — Está alguma coisa lá fora — diz ela. Primeiro em voz baixa. Cheryl está a poucos metros dela. — Está alguma coisa lá fora! — berra. Jules olha para cima, por trás do ombro de Olympia. Ouve-se um estrondo lá em baixo. Felix grita. Jules passa a correr por Malorie. As suas botas ecoam alto e rápido nas escadas atrás dela. Malorie olha freneticamente em volta do sótão à procura de Tom. Ele não está ali. Ele está lá em baixo. — Olympia — diz Malorie, mais para si mesma. — Estamos sozinhas aqui! Olympia não responde. Malorie tenta não escutar, mas não consegue controlar-se. Parece que agora estão todos na sala. Estão sem dúvida no primeiro andar. Toda a gente está a gritar. O Jules acabou de dizer «não faças isso»? À medida quea agitação aumenta, a dor também aumenta na cintura de Malorie. Malorie, de costas para as escadas, vira o pescoço. Quer saber o que está a acontecer. Quer dizer-lhes para pararem. Há duas mulheres grávidas no sótão que precisam da vossa ajuda. Por favor, parem. Delirante, Malorie deixa o queixo cair para o peito. Os seus olhos fecham-se. Ela sente que pode desmaiar se perder a concentração. Ou pior. A chuva regressa. Malorie abre os olhos. Vê Olympia, com a cabeça inclinada para o teto. As veias do pescoço estão salientes. Lentamente, Malorie examina o sótão. Ao lado de Olympia estão caixas. Depois a janela. Depois mais caixas. Livros antigos. Roupas velhas. Um relâmpago vindo do exterior ilumina o espaço do sótão. Malorie fecha os olhos. Na sua escuridão, vê uma imagem congelada das paredes do sótão. A janela. As caixas. E um homem, de pé, onde Don estava quando ela subiu. Não é possível, pensa. Mas é. E, antes que os seus olhos estejam totalmente abertos, ela percebe quem está ali, quem está no sótão com ela. — Gary — diz Malorie, com uma centena de pensamentos a vir- lhe à mente. — Estavas escondido na cave. Ela pensa em Victor a rosnar à porta da cave. Pensa em Don, a dormir lá em baixo. Quando Malorie olha Gary nos olhos, a discussão no andar de baixo aumenta. Jules está rouco. Don está chocado. Parece que estão a agredir-se. Gary emerge das sombras. Está a aproximar-se dela. Quando fechámos os olhos e o Tom abriu a porta, pensa ela, sabendo que é verdade, o Don esgueirou-o para as profundezas da casa. — O que é que estás a fazer aqui? — grita subitamente Olympia. Gary não olha para ela. Dirige-se apenas para Malorie. — Não te aproximes de mim! — grita Malorie. Ele ajoelha-se ao lado dela. — Tu — diz ele. — Tão vulnerável no teu estado atual. Sempre pensei que terias piedade e não mandarias alguém para um mundo como este. Um novo relâmpago explode. — Tom! Jules! O seu bebé ainda não saiu. Mas deve estar quase. — Não grites — diz Gary. — Não estou zangado. — Por favor, deixa-me em paz. Por favor, deixa-nos. Gary ri-se. — Continuas a dizer isso! Continuas a querer que eu me vá embora! Um trovão ressoa lá fora. Os colegas de casa estão a gritar mais alto. — Nunca chegaste a sair — diz Malorie, com cada palavra a sair- lhe como se removesse uma pequena pedra do peito. — Exato, nunca saí. Os olhos de Malorie enchem-se de lágrimas. — O Don teve a bondade de me ajudar e teve a presença de espírito de perceber que podiam votar a minha expulsão. Don, pensa ela, o que é que foste fazer? Gary aproxima-se. — Importas-te que te conte uma história enquanto fazes isso? — O quê? — Uma história. Algo para afastar a tua mente da dor. E deixa- me dizer-te que estás a fazer um trabalho maravilhoso. Melhor do que a minha mulher. A respiração de Olympia parece difícil, muito irregular, como se não fosse possível sobreviver àquilo. — Uma de duas coisas está a acontecer aqui — diz Gary. — Ou… — Por favor — grita Malorie. — Por favor, deixa-me em paz. — Ou as minhas �loso�as estão corretas, ou, e detesto usar esta palavra, sou imune. Malorie sente que o bebé está mesmo no limiar do seu corpo. No entanto, parece que é muito grande para sair. Malorie arqueja e fecha os olhos. Mas a dor está em toda parte, mesmo na sua escuridão. Eles não sabem que ele está aqui. Oh meu Deus, eles não sabem que ele está aqui. — Eu observei esta rua durante muito tempo — diz Gary. — Vi a forma desajeitada como o Tom e o Jules avançaram pelo quarteirão, aos tropeções. Estava a poucos centímetros do Tom enquanto ele estudava a tenda que me abrigava. — Para com isso. PARA! Mas gritar só piora a dor. Malorie concentra-se. Faz força. Respira. Mas não consegue deixar de ouvir. — Eu achava fascinante, o trabalho a que aquele homem se dava, enquanto eu assistia, ileso, enquanto as criaturas passavam diariamente, todas as noites, às vezes uma dúzia de cada vez. Foi por isso que me estabeleci nesta rua, Malorie. Não fazes ideia do quanto é movimentada. por favor por favor por favor por favor por favor POR FAVOR No andar de baixo, ela ouve a voz de Tom. — Jules! Preciso de ti! Então um estrondo de passos a descerem. — TOM! AJUDA-NOS! O GARY ESTÁ AQUI! TOM! — Ele está ocupado — diz Gary. — Há uma situação grave a acontecer lá em baixo. Gary levanta-se. Avança para a porta do sótão e fecha-a silenciosamente. Depois tranca-a. — Está melhor assim? — pergunta. — O que é que �zeste? — sibila Malorie. Mais gritos vindos do andar de baixo. Parece que toda a gente se está a mover ao mesmo tempo. Por um instante, ela acredita que enlouqueceu. Não importa o quão segura tenha estado, parece que não há como escapar à loucura do novo mundo. Alguém grita no corredor abaixo da porta trancada do sótão. Malorie pensa que é Felix. — A minha mulher não estava preparada — diz Gary, subitamente ao lado dela. — Eu estava a assistir quando ela viu um. Não a avisei de que isto se aproximava. Eu… — Porque é que não nos disseste? — pergunta Malorie, a chorar, a fazer força. — Porque tal como todos os outros, nenhum de vocês teria acreditado em mim — responde Gary. — Exceto o Don. — És louco. Gary ri-se, sorri. — O que é que está a acontecer no andar de baixo?! — grita Olympia. — Malorie! O que é que está a acontecer no andar de baixo?! — Não sei! — É o Don — diz Gary. — Ele está a tentar convencer os outros do que lhe ensinei. — É O DON! A voz vinda de baixo é tão clara como se tivessem falado no sótão. — O DON ARRANCOU-OS! O DON ARRANCOU OS COBERTORES! — Eles não nos vão fazer mal — sussurra Gary. Os pelos da sua barba húmida tocam na orelha de Malorie. Mas ela já não está a ouvi-lo. — Malorie? — sussurra Olympia. — O DON ARRANCOU OS COBERTORES E ABRIU A PORTA! ELES ESTÃO NA CASA! ESTÃO A OUVIR? ELES ESTÃO NA CASA! o bebé está a sair o bebé está a sair o bebé está a sair — Malorie? — Olympia — diz ela, derrotada, sem esperança (é verdade? a sua própria voz está a dizê-lo?). — Sim. Agora eles estão na casa. A tempestade lá fora chicoteia as paredes. O caos no andar de baixo parece impossível. — Eles parecem lobos — grita Olympia. — Eles parecem lobos! Don Don Don Don Don Don Don Don Don Don arrancou os cobertores deixou-os entrar alguém os viu deixou-os entrar alguém enlouqueceu quem foi? o Don deixou-os entrar o Don arrancou os cobertores o Don não acredita que podem fazer-nos mal o Don pensa que é só na nossa mente o Gary ajoelhou-se ao lado dele na cadeira da sala de jantar o Gary falou com ele por trás da tapeçaria na cave o Don arrancou os cobertores o Gary disse-lhe que era falso, o Gary disse-lhe que eles eram inofensivos pode ter enlouquecido quem é quem foi? (força, Malorie, força, tens um bebé, um bebé com que te preocupares, fecha os olhos se tiver de ser, mas faz força) agora eles estão na casa e todos nela parecem lobos. Os pássaros, pensa Malorie, histérica, foram uma boa ideia, Tom. Uma ideia excelente. Olympia está a fazer perguntas, frenética, mas Malorie não pode responder. Tem a mente cheia. — É verdade? Há realmente um dentro da casa? Não pode ser verdade. Nunca o permitiríamos! Há realmente um na casa? Neste momento? Algo choca contra uma parede no andar de baixo. Um corpo talvez. Os cães estão a ladrar. Alguém atirou um cão contra a parede. — O DON ARRANCOU OS COBERTORES! Quem tem os olhos fechados lá em baixo? Quem teve essa presença de espírito? Malorie tê-la-ia? Malorie teria conseguido fechar os olhos depois de os seus companheiros terem enlouquecido? Oh meu Deus, pensa Malorie. Eles vão morrer lá em baixo. O bebé está a matá-la. Gary ainda está a sussurrar-lhe ao ouvido. — O que estás a ouvir lá em baixo, é a isso que me re�ro, Malorie. Eles pensam que devem enlouquecer. Mas não precisam. Passei estações inteiras lá fora. Observei-os durante semanas seguidas. — Impossível — diz Malorie. Não sabe se a palavra é dirigida a Gary, ao ruído no andar de baixo, ou à dor que acredita que nunca passará. — Da primeira vez que vi um, pensei que tinha enlouquecido. — Gary fazum risinho nervoso. — Mas não. E quando percebi lentamente que ainda tinha uma mente sã, comecei a entender o que estava a acontecer. Aos meus amigos. À minha família. A toda a gente. — Não quero ouvir mais nada! — grita Malorie. Sente que se vai rasgar ao meio. Houve um erro, pensa. O bebé que está a tentar sair dela é demasiado grande e vai rasgá-la ao meio. É um rapaz, acredita. — Sabes uma coisa? — Para! — Sabes uma coisa? — Não! Não! Não! Olympia uiva, o céu uiva, os cães uivam no andar de baixo. Malorie acredita que está a ouvir especi�camente Jules. Ouve-o a correr no andar abaixo. Ouve-o a tentar desmanchar algo na casa de banho lá de baixo. — Talvez eu seja imune, Malorie. Ou talvez seja simplesmente consciente. Ela quer dizer-lhe: Sabes o quanto podias ter feito por nós? Não compreendes o que podias ter feito pela nossa segurança? Mas Gary está louco. E provavelmente sempre foi louco. O Don arrancou os cobertores. Gary ajoelhou-se ao lado dele na sala de jantar. Gary falou com ele por trás de uma tapeçaria na cave. Gary foi o demónio no ombro suave de Don. Há uma batida estrondosa na porta do sótão. — DEIXEM-ME ENTRAR! — grita alguém. É o Felix, pensa Malorie. Ou o Don. — JESUS CRISTO DEIXEM-ME ENTRAR! Mas não é nenhum deles. É Tom. — Abre-lhe a porta! — Malorie grita para Gary. — Tens a certeza de que queres que eu faça isso? Não me parece uma ideia segura. — Por favor por favor por favor! Deixa-o entrar! É o Tom, oh meu Deus, é o Tom, é o Tom, oh meu Deus, é o Tom. Ela faz muita força. Oh Deus, ela faz muita força. — Respira — diz-lhe Gary. — Respira. Estás quase lá. — Por favor — grita Malorie. — Por favor! — DEIXEM-ME ENTRAR! DEIXEM-ME SUBIR! Agora Olympia também está a gritar. — Abre-lhe a porta! É o Tom! A loucura lá de baixo está a bater à porta. Tom. Tom enlouqueceu. Tom viu uma das criaturas. Tom enlouqueceu. Ouviste-o? Ouviste a voz dele? É o som que ele faz. É assim que ele soa sem controlo da sua mente, da sua bela mente. Gary levanta-se e atravessa o sótão. A chuva cai no telhado. As batidas na porta do sótão param. Malorie olha para Olympia do outro lado do sótão. Os cabelos pretos de Olympia misturam-se com as sombras. Os olhos dela ardem a partir de dentro. — Estamos… quase… lá — diz ela. O �lho de Olympia está a sair. À luz das velas, Malorie consegue ver que está a meio. Instintivamente, estende a mão para ele, apesar de estar na outra ponta do chão do sótão. — Olympia! Não te esqueças de tapar os olhos do teu �lho. Não te esqueças de… A porta do sótão abre-se com estrondo. A tranca foi vencida. Malorie grita, mas só consegue ouvir o seu próprio coração, mais alto do que todo o novo mundo. Então �ca em silêncio. Gary ergue-se e volta para a janela. Ouvem-se passos pesados atrás dela. O bebé de Malorie está a emergir. As escadas rangem. — Quem é? — grita ela. — Quem é? Estão todos bem? É o Tom? Quem é? Alguém que ela não consegue ver subiu as escadas e está no sótão com elas. Malorie, de costas para as escadas, observa enquanto a expressão de Olympia muda de dor para espanto. Olympia, pensa ela. Não olhes. Portámo-nos tão bem. Fomos tão corajosas. Não olhes. Agarra o teu �lho em vez disso. Tapa-lhe os olhos quando ele sair completamente. Tapa-lhe os olhos. E tapa os teus também. Não olhes. Olympia. Não olhes. Mas percebe que é tarde demais para a amiga. Olympia inclina-se para a frente. Os olhos dela arregalam-se, a sua boca abre-se. O seu rosto forma três círculos perfeitos. Por um momento, Malorie vê a sua expressão contorcer-se, e depois a brilhar. — Estás linda — diz Olympia, a sorrir. É um sorriso quebrado e espasmódico. — Não estás nada mal. Queres ver o meu bebé? Queres ver o meu bebé? A criança, a criança, pensa Malorie, a criança está dentro dela e ela enlouqueceu. Oh meu Deus, a Olympia enlouqueceu, oh meu Deus, esta coisa está atrás de mim e está atrás do meu �lho. Malorie fecha os olhos. Quando o faz, a imagem de Gary permanece, ainda no limite do alcance da luz da vela. Mas não parece tão con�ante como disse que estaria. Parece uma criança assustada. — Olympia — diz Malorie. — Tens de tapar os olhos do bebé. Tens de o agarrar. De agarrar o bebé. Malorie não consegue ver a expressão da amiga. Mas a sua voz revela a mudança dentro dela. — O quê? Queres-me dizer como devo criar o meu �lho? Que tipo de puta és tu? Que tipo de… As palavras de Olympia transformaram-se num rosnado agressivo e gutural. Conversa de loucura. As palavras doentes e perigosas de Gary. Olympia está a contorcer-se. O bebé de Malorie está a sair. Ela faz força. Com uma força que não sabia que tinha, Malorie curva-se para a frente na toalha. Quer o �lho de Olympia. Vai protegê-lo. E assim, no meio de toda aquela dor e loucura, Malorie ouve o primeiro choro do bebé de Olympia. Tapa-lhe os olhos. Por �m, o bebé de Malorie sai e a sua mão está lá para lhe tapar os olhos. A cabeça dele é muito suave e ela acredita que o alcançou a tempo. — Anda cá — diz ela, aproximando o bebé do peito. — Anda cá e fecha os olhos. Gary ri-se ansiosamente do outro lado do sótão. — Incrível — diz ele. Malorie tateia à procura da faca. Encontra-a e corta o seu próprio cordão umbilical. Então corta duas tiras da toalha ensanguentada debaixo de si. Tateia o sexo do bebé e sabe que é um rapaz e não tem ninguém a quem contar. Nem irmã. Nem mãe. Nem pai. Nem uma enfermeira. Nem Tom. Aperta-o com força contra o peito. Lentamente, ela amarra um pedaço da toalha em volta dos olhos dele. Até que ponto é importante ele ver o rosto da mãe quando entra no mundo? Ela ouve o movimento da criatura atrás de si. — Bebé — diz Olympia, mas a sua voz soa rachada. Parece que está a usar a voz de uma mulher mais velha. — O meu bebé — diz. Malorie desliza para a frente. Os músculos do seu corpo resistem. Ela tenta agarrar o �lho de Olympia. — Dá cá — diz, sem ver. — Dá cá, Olympia. Deixa que eu pego- lhe. Deixa-me vê-lo. Olympia grunhe. — Porque é que eu haveria de te deixar? Para que é que queres o meu �lho? Estás louca? — Não. Só quero vê-lo. Os olhos de Malorie ainda estão fechados. O sótão está em silêncio. A chuva bate suavemente no telhado. Malorie desliza para a frente, sobre o sangue por baixo do seu corpo. — Posso? Posso vê-la? É uma menina, não é? Não tinhas razão? Malorie ouve algo tão surpreendentemente visceral que para a meio do caminho. Olympia está a roer algo. Ela percebe que é o cordão umbilical. O seu estômago revolve-se. Ela mantém os olhos bem fechados. Vai vomitar. — Posso vê-la? — Malorie consegue perguntar. — Toma. Toma! — diz Olympia. — Olha para ela. Olha para ela! Por �m, as mãos de Malorie estão a tocar no bebé de Olympia. É uma menina. Olympia levanta-se. Parece que pisa uma poça. É sangue, Malorie sabe. Placenta, suor e sangue. — Obrigada — sussurra Malorie. — Obrigada, Olympia. Esta ação, esta entrega da �lha, vai sempre ser uma memória risonha para Malorie. O momento em que Olympia fez a coisa certa pela �lha, apesar de ter perdido o juízo. Malorie amarra o segundo pedaço da toalha em volta dos olhos da bebé. Olympia caminha em direção à janela coberta. É aí que Gary se deixou �car, de pé. A coisa aguarda atrás de Malorie e ainda está imóvel. Malorie aperta ambos os bebés, protegendo ainda mais os olhos deles com os seus dedos ensanguentados e húmidos. Ambos os bebés choram. E, de repente, Olympia está a debater-se com algo, a deslizar algo. Como se estivesse a trepar a alguma coisa. — Olympia? Parece que Olympia está a preparar algo. — Olympia? O que é que estás a fazer, Olympia? Gary, impede- a. Por favor, Gary. As suas palavras são inúteis. Gary é o mais louco de todos. — Vou lá fora, senhor — diz Olympia a Gary, que deve estar por perto. — Já estou aqui dentro há muito tempo. — Olympia, para. — Vou LÁ FORA — diz ela, a sua voz soando ao mesmo tempo como a de uma criança e de uma centenária no seu leito de morte. — Olympia! É tarde demais. Malorie ouve o vidro da janela do sótão a partir-se. Algo bate contra a casa. Silêncio. Doandar de baixo. Do sótão. Então Gary fala. — Ela está pendurada! Ela está pendurada pelo cordão umbilical! Não. Por favor, Deus, não deixes este homem descrevê-lo. — Ela está pendurada pelo cordão umbilical! É a coisa mais incrível que já vi! Ela está pendurada pelo cordão umbilical! Há riso, alegria na sua voz. A coisa move-se atrás dela. Malorie está no epicentro de toda aquela loucura. Loucura da antiga. O tipo que as pessoas costumavam desenvolver com a guerra, o divórcio, a pobreza e coisas como saber que a amiga… — Pendurada pelo cordão umbilical! Pelo cordão umbilical! — Cala-te! — grita Malorie, às cegas. — Cala-te! Mas as suas palavras são sufocadas, enquanto sente que o que está atrás dela está a inclinar-se. Uma parte da coisa (o seu rosto?) move-se perto dos seus lábios. Malorie só respira. Não se move. O sótão está em silêncio. Ela consegue sentir o calor, o ardor, da coisa ao seu lado. Shannon, pensa, olha as nuvens. Parecem-se connosco. Tu e eu. Ela tapa com mais força os olhos dos bebés. Ouve o que está atrás de si recuar. Parece que está a afastar-se. E mais ainda. Faz uma pausa. Para. Quando ela ouve as escadas de madeira a rangerem, e quando tem a certeza de que é o som de alguém a descer, solta um soluço mais profundo do que qualquer outro que já tenha conhecido. Os passos tornam-se mais silenciosos. E mais silenciosos. Depois desaparecem. — Foi embora — diz ela aos bebés. Agora ouve Gary a mover-se. — Não te aproximes de nós! — grita ela de olhos fechados. — Não nos toques! Ele não lhe toca. Passa por ela e as escadas rangem novamente. Ele desceu as escadas. Vai ver quem sobreviveu. Quem não sobreviveu. Está a arquejar, está dorida do cansaço. Da perda de sangue. O seu corpo diz-lhe para dormir, dormir. Estão sozinhos no sótão, Malorie e os bebés. Ela começa a deitar-se. Precisa de o fazer. Em vez disso, espera. Escuta. Descansa. Quanto tempo já terá passado? Há quanto tempo tenho estes bebés ao colo? Mas um novo som arruína a sua pausa. Está a vir do andar de baixo. É um barulho que se ouvia frequentemente no velho mundo. Olympia está pendurada (disse ele disse ele) da janela do sótão. O corpo dela bate contra a casa ao vento. E agora algo toca lá em baixo. É o telefone. O telefone está a tocar. Malorie �ca quase hipnotizada pelo som. Há quanto tempo não ouvia algo assim? Alguém está a ligar para eles. Alguém está a ligar de volta. Malorie vira-se, escorregando no sangue. Põe a rapariga no colo e cobre-a delicadamente com a camisa. Com a mão vazia, procura o cimo da escada. É íngreme. É velha. Nenhuma mulher que acabou de dar à luz devia ter de a descer. Mas o telefone está a tocar. Alguém está a devolver a chamada. E Malorie vai atender. Triiiiiiiim Apesar das vendas feitas com a toalha, ela diz aos bebés para manterem os olhos fechados. Aquela ordem será a coisa que lhes dirá mais vezes nos próximos quatro anos. E nada a impedirá de o dizer, independentemente de poderem ser demasiado pequenos para a entenderem. Triiiiiiiim Ela desliza o traseiro para a beira da entrada e baixa as pernas para pousar os pés no primeiro degrau. O corpo grita-lhe que pare. Mas ela continua a descer. Chegou ao fundo da escada. Deita o rapaz no braço direito, com a palma a tapar-lhe o rosto. A rapariga está dentro da camisa. Os olhos de Malorie estão fechados e o mundo é preto e ela precisa tanto de dormir que sente que pode cair das escadas e adormecer. Contudo, caminha, percorre os degraus, e usa o som do telefone como guia. Triiiiiiiim Os seus pés tocam o tapete azul-claro do corredor branco do segundo andar. De olhos fechados, não vê essas cores, tal como não vê Jules deitado de bruços ao longo da parede direita, com cinco �os de sangue a escorrerem-lhe do topo da cabeça para onde a mão está apoiada no chão. No cimo da escada, ela faz uma pausa. Respira fundo. Acredita que consegue fazê-lo. E assim continua. Passa por Cheryl, mas não sabe. Ainda não. A cabeça de Cheryl está virada para o primeiro andar, os pés para o segundo. O seu corpo está horrivelmente, anormalmente contorcido. Sem saber, Malorie passa a poucos centímetros dela. Quase toca em Felix ao fundo da escada. Mas não o faz. Mais tarde, vai abafar um grito quando sentir os buracos no seu rosto. Triiiiiiiim Não faz ideia de que passa por um dos huskies. Está caído contra a parede; a parede está manchada de um púrpura carregado. Ela quer dizer: Ainda está aqui alguém? Quer gritar. Mas o telefone toca e ela não acredita que vai parar enquanto não atender. Segue o som, encostada à parede. A chuva e o vento entram pelas janelas partidas. Tenho de atender o telefone. Se os seus olhos se abrissem, não seria capaz de processar a quantidade de sangue na casa. Triiiiiiiim Verá tudo isso mais tarde. Mas agora o telefone soa tão alto, está tão perto. Malorie vira-se, encosta-se à parede, depois desliza, com uma dor excruciante, para a alcatifa. O telefone está na pequena mesa de apoio. Sente dor e ardor no corpo todo. Pondo o rapaz ao lado da rapariga no seu colo, ela estende a mão e procura o telefone que toca incessantemente. — Estou? — Olá. É um homem. A sua voz soa tão calma. Tão horrivelmente deslocada. — Quem fala? — pergunta Malorie. Ela mal consegue entender que está a usar um telefone. — Chamo-me Rick. Recebemos a sua mensagem há alguns dias. Acho que podemos dizer que temos estado ocupados. Como é que se chama? — Quem fala? — Repito, o meu nome é Rick. Um homem chamado Tom deixou-nos uma mensagem. — Tom. — Sim. Ele vive aí, não vive? — Eu chamo-me Malorie. — Você está bem, Malorie? Parece transtornada. Malorie respira fundo. Acha que nunca mais vai estar bem. — Sim — responde ela. — Estou bem. — Neste momento não temos muito tempo. Está interessada em sair de onde está? Para um lugar mais seguro? Presumo que a resposta seja sim. — Sim — diz Malorie. — Então é isto que tem de fazer. Tome nota se puder. Tem uma caneta? Malorie diz que sim e pega na caneta que Tom mantinha ao lado da lista telefónica. Os bebés choram. — Parece que você tem um bebé consigo? — Sim. — Imagino que seja por esse motivo que quer encontrar um sítio melhor. Aqui vai a informação, Malorie. Siga o rio. — O quê? — Siga o rio. Sabe onde é? — Sim… sim. Sei onde �ca. Fica mesmo atrás da casa. A 800 metros do poço, segundo me disseram. — Muito bem. Siga o rio. É a coisa mais perigosa que pode fazer, mas imagino que se você e o Tom sobreviveram até aqui, vão conseguir. Encontrei a vossa morada no mapa e parece que vai ter de percorrer pelo menos 30 quilómetros. Ora bem, o rio vai- se dividir… — Vai o quê? — Desculpe. Provavelmente estou a falar demasiado depressa. Mas estou a guiá-la para um lugar melhor. — Como assim? — Bem, para começar não temos janelas. Temos água corrente. E cultivamos a nossa própria comida. Somos o mais autónomo que é possível hoje em dia. Temos muitos quartos. Agradáveis. A maioria de nós pensa que está melhor agora do que antes. — Quantos são vocês? — Cento e oito. Para Malorie, o número podia ser qualquer um. Ou podia ser in�nito. — Mas primeiro deixe-me dizer-lhe como chegar aqui. Seria uma tragédia se as linhas fossem desativadas antes de saber para onde ir. — Está bem. — O rio vai dividir-se em quatro canais. O que você quer é o segundo a contar da direita. Por isso não pode ir junto à margem direita e esperar acertar. É complicado. E vai ter de abrir os olhos. Malorie abana lentamente a cabeça. Não. Rick continua. — E é assim que vai saber quando chegar a altura — diz ele. — Vai ouvir uma gravação. Uma voz. Não podemos passar o dia sentados à beira do rio. É muito perigoso. Em vez disso, temos lá um altifalante. É ativado por movimento. Por causa de dispositivos como esse, conhecemos muito bem o bosque e a água em volta das nossas instalações. Quando o altifalante for ativado, a gravação será reproduzida durante 30 minutos, em loop. Vai ouvi-la. A mesma gravação de quarenta segundos sucessivamente repetida. É alta. E clara. E quando a ouvir, é quando vaiter de abrir os olhos. — Obrigada, Rick. Mas não posso fazer isso. A sua voz soa apática. Destruída. — Eu entendo que é assustador. Claro que sim. Mas suponho que é o senão. Não há outra forma. Malorie pensa em desligar. Mas Rick continua. — Temos tantas coisas boas a acontecer aqui. Fazemos progressos todos os dias. Claro que não estamos perto de onde queríamos chegar. Mas estamos a tentar. Malorie começa a chorar. As palavras, o que aquele homem lhe diz — é esperança que lhe dá? Ou será alguma variação mais profunda da incrível desesperança que já sente? — Se eu �zer o que está a pedir-me — diz Malorie —, como é que vos encontro a partir daí? — Da separação do rio? — Sim. — Temos um sistema de alarme. É a mesma tecnologia usada para acionar a gravação que vai ouvir. Quando seguir o canal certo, avançará mais cem metros. Então ativará o nosso alarme. Uma vedação será baixada. Ficará presa. E nós vamos sair para ver o que �cou preso na vedação. Malorie estremece. — Ah, sim? — pergunta. — Sim. Você parece cética. Visões do velho mundo cruzam-lhe a mente, mas com cada memória vem uma trela, uma corrente e um sentimento instintivo que lhe diz que este homem e este lugar podem ser bons, podem ser maus, talvez melhores do que o lugar onde está agora, podem ser piores, mas ela nunca mais voltará a ser livre. — Quantas pessoas estão aí? — pergunta Rick. Malorie escuta o silêncio da casa. As janelas estão partidas. A porta provavelmente está aberta. Ela tem de se levantar. De fechar a porta. Cobrir as janelas. Mas parece-lhe que tudo isto está a acontecer a outra pessoa. — Três — diz ela, apática. — Se o número mudar… — Não se preocupe com isso, Malorie. Não importa quantas pessoas traz. Temos espaço su�ciente para algumas centenas e estamos a construir mais. Venha assim que puder. — Rick, pode vir ajudar-me agora? Ela ouve Rick respirar fundo. — Sinto muito, Malorie. É um risco muito grande. Sou necessário aqui. Eu percebo que parece egoísmo. Mas infelizmente vai ter de vir ter connosco. Malorie assente silenciosamente. No meio do sangue, da perda, entende que aquele homem tem de preservar a sua segurança. Mas eu não posso abrir os olhos agora e tenho dois recém- nascidos no colo que ainda não viram o mundo e a sala cheira a urina, sangue e morte. O ar entra com força vindo da rua. Está frio e sei que isso signi�ca que a janela está partida ou que a porta da rua está aberta. Perigosamente aberta. Portanto, tudo isso me parece muito bem, Rick, a sério, mas ainda não sei como vou chegar à casa de banho, quanto mais descer sozinha um rio de 50 quilómetros ou o que quer que você tenha dito. — Malorie, vou voltar a procurá-la. Vou ligar novamente. Ou acha que vai vir já? — Não sei. Não sei quando poderei ir. — OK. — Mas obrigada. Parece o agradecimento mais sincero da vida de Malorie. — Volto a ligar daqui a uma semana, Malorie. — OK. — Malorie? — Sim? — Se eu não ligar, isso pode signi�car que as linhas �nalmente foram desativadas do nosso lado. Ou pode signi�car que foram desativadas do seu lado. Acredite em mim quando lhe digo que vamos estar aqui. Venha quando quiser. Estaremos aqui. — OK — diz Malorie. Rick dá-lhe o seu número de telefone. Malorie, usando a caneta, escreve os números às cegas numa página da lista telefónica aberta. — Adeus, Malorie. — Adeus. Apenas uma simples e banal conversa ao telefone. Malorie pousa o auscultador. Depois deixa tombar a cabeça e chora. Os bebés mexem-se, irrequietos, no seu colo. Ela chora durante mais 20 minutos, sem parar, até que grita quando ouve algo a arranhar a porta da cave. É Victor. Ele está a ladrar para o soltarem. De alguma forma, abençoadamente, ele foi trancado na cave. Talvez Jules o tenha feito, sabendo o que estava a acontecer. Depois de voltar a pendurar os cobertores e de fechar as portas, ela usa uma vassoura para vasculhar cada centímetro da casa à procura de criaturas. Passam seis horas até que se sente su�cientemente segura para abrir os olhos, altura em que vê o que aconteceu na casa enquanto estava a ter o bebé. Mas antes disso, com os olhos bem fechados, Malorie levanta- se e atravessa a sala até chegar ao cimo das escadas da cave. E aí encontra o corpo de Tom. Não sabe que é ele, pensando antes que é um saco de açúcar que toca com o pé, e ajoelha-se em frente ao balde de água do poço e começa o trabalho laborioso de limpar as crianças e de se limpar a si própria. Falará com Rick várias vezes nos próximos meses. Mas ao �m de pouco tempo as linhas acabarão por ser desligadas. Vai demorar seis meses a limpar a casa dos corpos e do sangue. Vai encontrar Don na cozinha, a tentar chegar à cave. Como se tivesse corrido para lá, enlouquecido, a pedir a Gary que lhe devolva a sanidade. Vai procurar Gary. Em toda a parte. Mas nunca vai encontrar sinal dele. Vai sempre lembrar-se dele. Lá fora. No mundo. A maioria dos habitantes da casa será enterrada num semicírculo em volta do poço. Sentirá para sempre os altos no chão, os túmulos que escavou e encheu de olhos vendados, sempre que vai buscar água para si ou para as crianças. Tom será enterrado mais perto da casa. O relvado onde leva as crianças, de olhos vendados, para apanharem ar fresco. Um lugar onde espera que os seus espíritos corram mais livres. Passarão quatro anos até ela decidir dirigir-se para o lugar que Rick descreveu ao telefone. Mas por agora limita-se a lavar. Agora limita-se a limpar os bebés. E os bebés choram. 43 A voz gravada de Tom ouve-se novamente. Ele está a deixar-lhe uma mensagem. — … dois setenta e três Shillingham… chamo-me Tom… De certeza que entende o alívio que sinto ao apanhar o seu voicemail… A venda ainda está a um centímetro dos seus olhos fechados. Ela levanta a mão e aproxima os dedos do pano preto. Por um momento, ela e a criatura agarram a mesma venda. Esta criatura, ou outras como ela, roubaram-lhe Shannon, a mãe, o pai e Tom. Esta coisa, e coisas como ela, roubaram a infância das crianças. De certa forma, Malorie não tem medo. Elas já lhe �zeram de tudo. — Não — diz ela, puxando o pano. — Isto é meu. Por um momento, nada acontece. Então, algo lhe toca no rosto. Malorie faz uma careta. Mas é apenas a venda, a regressar ao seu lugar sobre o nariz e as têmporas. Vais ter de abrir os olhos. É verdade. A voz gravada de Tom signi�ca que chegou onde Rick disse que os canais se separavam. Ele fala como falou em tempos, na sala de estar da casa, quando costumava dizer, talvez eles não nos queiram fazer mal. Talvez estejam surpreendidos com o que nos fazem. É uma sobreposição, Malorie. O mundo deles e o nosso. Apenas um acidente. Talvez eles nem gostem de nos fazer mal. Mas quaisquer que sejam as suas intenções, Malorie tem de abrir os olhos, e pelo menos um está próximo. Ela viu as crianças fazerem coisas incríveis. Uma vez, depois de folhear a lista telefónica, o Rapaz gritou que estava na página cento e seis. Estava perto. E Malorie sabe que vai precisar de uma façanha assim, da parte deles, agora mesmo. Há movimento na água à sua esquerda. A criatura já não está curiosa com a venda e está a afastar-se, ou está à espera para ver o que Malorie faz a seguir. — Rapaz? — diz ela, e não precisa de dizer mais. Ele entende a pergunta. A princípio �ca em silêncio. À escuta. Depois responde. — Está a ir embora, mamã. Apesar dos pássaros distantes, em guerra, e da voz bonita e calmante de Tom vinda do altifalante, parece que está a haver um momento de silêncio. O silêncio que emana daquela coisa. Onde é que ela está agora? O barco a remos, liberto, está a ser puxado pela corrente. Malorie sabe que o som da água à sua frente é o som da divisão. Não tem muito tempo. — Rapaz — diz, com a garganta seca. — Estás a ouvir mais alguma coisa? O Rapaz está calado. — Rapaz? — Não, mamã. Não ouço nada. — Tens a certeza? A certeza absoluta? Ela parece histérica. Independentemente de estar pronta ou não, chegou o momento. — Sim, mamã. Estamos sozinhos outra vez. — Para onde foi? — Foi embora. — Em que direção? Silêncio.Depois: — Está atrás de nós, mamã. — Rapariga? — Sim. Está atrás de nós, mamã. Malorie está em silêncio. As crianças disseram-lhe que a coisa está atrás deles. Se há uma coisa em que pode acreditar no novo mundo, é que os treinou bem. Ela con�a neles. Tem de con�ar. Agora estão no ponto exato de onde a voz de Tom vem. Parece que ele está no barco com eles. Ela engole em seco. Limpa as lágrimas dos lábios. Respira fundo. Então sente-o. Tal como quando deixaram Tom e Jules entrar novamente em casa. Tal como pensavam que estavam a deixar Gary do lado de fora. O Momento Intermédio. Entre a decisão de abrir os olhos e fazê-lo. Malorie vira-se para os canais e abre os olhos. A princípio, tem de os semicerrar. Não por causa da luz, mas das cores. Arqueja, levando uma mão à boca. A mente é esvaziada de pensamentos, preocupações, ansiedades e esperanças. Não conhece palavras para explicar o que vê. É caleidoscópico. In�nito. Magní�co. Olha, Shannon! Aquela nuvem parece a Angela Markle da nossa turma! No mundo antigo, ela poderia ter olhado para um mundo duas vezes mais brilhante sem ter de semicerrar os olhos. Mas agora, a beleza fere-a. Seria capaz de olhar para sempre. Certamente mais alguns segundos. Mas a voz de Tom impele-a a continuar. Como se estivesse em câmara lenta, ela inclina-se na direção da voz, saboreando todas as palavras. É como se ele estivesse ali. A dizer-lhe que ela está tão perto. Malorie entende que não pode guardar as cores que vê. Tem de fechar os olhos novamente. Tem de se separar de toda aquela maravilha, aquele mundo. Fecha os olhos. Regressa à escuridão que conhece tão bem agora. Começa a remar. À medida que se aproxima do segundo canal a contar da direita, parece que está a remar com os anos. As recordações. Rema com a pessoa que era quando descobriu que estava grávida, quando encontrou Shannon morta, quando respondeu ao anúncio no jornal. Rema com a pessoa que era quando chegou à casa, quando se encontrou com os colegas de casa pela primeira vez e quando concordou em deixar Olympia entrar. Rema com a pessoa que era quando Gary chegou. Rema consigo própria, numa toalha no sótão, enquanto Don arrancava os cobertores das janelas do andar de baixo. Agora é mais forte. É mais corajosa. Criou sozinha dois �lhos neste mundo. Malorie mudou. O barco balança subitamente ao tocar numa das margens do canal. Malorie percebe que entraram. A partir dali ela rema como a pessoa que era quando teve as crianças sozinha. Quatro anos. A treiná-las. A criá-las. A mantê- las protegidas de um mundo exterior que deve ter-se tornado mais perigoso a cada dia. Também rema com Tom e com as dezenas de coisas que ele disse, as inúmeras coisas que ele fez e a esperança que a inspirou, que a encorajou e fez com que acreditasse que era melhor enfrentar a loucura com um plano do que �car parada e deixá-la levar-nos em pedaços. O barco avança depressa agora. Rick disse que era apenas uma centena de metros. Ela rema com a pessoa que era quando acordou naquela manhã. A pessoa que pensava que o nevoeiro podia ocultá-los de alguém como Gary, que ainda podia estar lá, a vê-los descer o rio. Rema com a pessoa que era quando o lobo a atacou. Quando o homem do barco enlouqueceu. Quando os pássaros enlouqueceram. E quando a criatura, a coisa que mais teme, brincou com a sua única forma de proteção. A venda. Pensando no tecido e em tudo o que signi�cou para ela, Malorie ouve o que parece uma explosão metálica. O barco a remos bate em algo. Malorie veri�ca rapidamente como estão as crianças. É a vedação, percebe. Acionaram o alarme de Rick. Malorie, com o coração aos saltos, já sem precisar de remar, vira a cabeça para o céu e grita. É alívio. É raiva. É tudo. — Estamos aqui — chama em voz alta. — Estamos aqui! Das margens, ouvem movimento. Algo está a aproximar-se rapidamente deles. Malorie aperta os remos. Parece-lhe que as suas mãos vão �car para sempre naquela posição. Enquanto se encolhe, algo lhe toca no braço. — Está tudo bem! — diz uma voz. — Chamo-me Constance. Está tudo bem. Estou com o Rick. — Tem os olhos abertos? — Não. Tenho uma venda. A mente de Malorie é inundada com sons distantes e familiares. É esta a voz de uma mulher. Não ouviu outra voz feminina desde que Olympia enlouqueceu. — Eu tenho duas crianças comigo. Somos só nós os três. — Crianças? — pergunta Constance, subitamente entusiasmada. — Dê-me a mão, vamos tirar-vos do barco. Vou levar-vos a Tucker. — Tucker? — Malorie faz uma pausa. — Sim, eu mostro-lhe, é onde vivemos. As nossas instalações. Constance ajuda Malorie a agarrar as crianças primeiro. Têm as mãos dadas enquanto Malorie é puxada para fora do barco. — Vai ter de me desculpar por estar armada — diz Constance timidamente. — Armada? — Nem imagina o tipo de animais que já acionaram o nosso alarme. Está ferida? — pergunta Constance. — Estou. Sim. — Nós temos medicamentos. Temos médicos. Os lábios de Malorie estalam dolorosamente quando os estica para sorrir como não sorria há mais de quatro anos. — Medicamentos? — Sim. Medicamentos, ferramentas, papel. Tantas coisas. Eles começam a caminhar, lentamente. O braço de Malorie aperta os ombros de Constance. Não consegue andar sem apoio. As crianças agarram as calças de Malorie, seguindo-a de olhos vendados. — Dois �lhos — diz Constance, com voz calmante. — Nem imagino o que você passou hoje. Ela diz hoje, mas ambas sabem que quer dizer durante anos. Sobem uma colina e o corpo de Malorie pulsa de dor. Depois, o piso por baixo deles muda, subitamente. Betão. Um passeio. Malorie ouve um leve estalido. — O que é isto? — Este barulho? — pergunta Constance. — É uma bengala. Mas já não precisamos dela. Chegámos. Malorie ouve-a bater rapidamente a uma porta. Ouve-se o som de metal pesado a abrir e Constance leva-os para dentro. A porta fecha-se ruidosamente atrás deles. Malorie sente cheiros que não sentia há anos. Comida. Comida cozinhada. Serradura, como se alguém estivesse a construir algo. Também o ouve. O zumbido ligeiro de uma máquina. Várias máquinas a zumbir ao mesmo tempo. O ar parece-lhe limpo e fresco, e o som das conversas ecoa ao longe. — Já podem abrir os olhos — diz docemente Constance. — Não! — grita Malorie, agarrando o Rapaz e a Rapariga. — As crianças não! Eu abro-os primeiro. Mais alguém se aproxima. Um homem. — Meu Deus — diz ele. — É mesmo você? Malorie? Ela reconhece a voz monocórdica e rouca de um homem. Anos antes, ouviu aquela voz do outro lado de uma linha telefónica. Debateu consigo mesma, durante quatro longos anos, se ia ou não voltar a ouvir aquela voz. É Rick. Malorie puxa a venda e abre lentamente os olhos, semicerrando-os contra a luz áspera e branca das instalações. Estão num grande corredor inundado de luz. É tão brilhante que Malorie mal consegue manter os olhos abertos. É uma escola enorme. Os tetos são altos, com candeeiros em forma de cúpula que fazem com que Malorie se sinta como se estivesse ao ar livre. As paredes que se unem ao teto estão cobertas de quadros de anúncios. Mesas. Vitrinas. Não há janelas, mas o ar parece fresco, como o do exterior. O chão é limpo e frio, o corredor é de tijolo e muito longo. Voltando-se novamente para Rick, ela olha para o seu rosto mirrado e entende. Tem os olhos abertos, mas não se focam em nada. Estão parados, vidrados e cinzentos, e perderam o brilho há anos. A cabeleira castanha desgrenhada cobre-lhe as orelhas, mas não esconde uma cicatriz profunda e desbotada perto do olho esquerdo. Ele toca-a, apreensivo, como se estivesse a sentir o olhar de Malorie. Ela repara na bengala de madeira, desgastada e torta, feita de algum ramo de árvore partido. — Rick — diz ela, puxando as crianças para junto de si —, você é cego. Rick assente. — Sim, Malorie. Tal como muitos de nós aqui dentro. Mas a Constance vê tão bem como você. Já chegámos muito longe. Malorie olha lentamente para as paredes, absorvendo tudo. Faixas manuscritas marcam o progresso da sua recuperação, e os folhetos anunciam tarefas diárias de agricultura,puri�cação de água e uma lista de avaliações médicas, coberta de marcações. Os olhos dela �xam-se em algo a um nível superior, e em letras de latão embutidas num arco de tijolos, lê: ESCOLA DE JANE TUCKER PARA INVISUAIS — O homem… — Rick faz uma pausa. — O que está na gravação, não está convosco, pois não? — pergunta Rick. Malorie sente o coração acelerado e engole com di�culdade. — Malorie? — diz ele, preocupado. Constance toca no ombro de Rick e sussurra suavemente: — Não, Rick. Ele não está com eles. Malorie recua, ainda a agarrar as crianças, movendo-se em direção à porta. — Ele está morto — responde rigidamente, examinando o corredor à procura de outras pessoas. Sem con�ar. Ainda não. Rick começa a tatear com a bengala, aproximando-se de Malorie, estendendo a mão para lhe tocar. — Malorie, nós contactámos muitas pessoas ao longo dos anos, mas menos do que imagina. Quem sabe quantos de nós estão vivos lá fora? E quem sabe quantos estão sãos? Você é a única pessoa que esperávamos que descesse o rio. Isso não signi�ca que mais ninguém poderia fazê-lo, claro, mas depois de pensarmos muito, decidimos que a voz do Tom não só a avisaria de que tinha chegado, como também diria aos estranhos que estavam perto de alguma civilização, se fossem travados pela vedação primeiro. Se eu soubesse que ele já não estava consigo, teria insistido em usar outra coisa. Por favor, aceite as minhas desculpas. Ela observa-o atentamente. A sua voz parece esperançosa, otimista, até. Há muito tempo que não ouvia um tom de voz como aquele. Ainda assim, o seu rosto revela o stress e a idade de viver neste novo mundo, tal como o dela. Tal como os seus companheiros de casa, anos antes. Enquanto ele e Constance começam a explicar como funcionam as instalações, os campos de batatas e de abóboras, a colheita de bagas no verão, um meio de puri�car a água da chuva, Malorie deteta uma �gura obscura que se movimenta por trás da cabeça de Rick. Um pequeno grupo de jovens mulheres emerge de um quarto envergando simples roupas azuis claras. Orientam-se com bengalas, agitando as mãos à sua frente. As mulheres movem-se de forma silenciosa, fantasmagórica, passando por Malorie, e ela sente um aperto no estômago quando vê os seus olhos cavernosos e vazios. Sente-se zonza, nauseada, a ponto de vomitar. Onde os olhos das mulheres deviam estar, estão duas cicatrizes enormes e escuras. Malorie aperta as crianças com mais força. Elas enterram a cabeça contra as suas pernas. Constance estende a mão para ela, mas Malorie afasta-se, procurando freneticamente a venda no chão, arrastando consigo as crianças. — Ela viu-as — diz Constance a Rick. Ele assente. — Não se aproximem de nós! — diz Malorie. — Não nos toquem. Não se aproximem de nós! O que é que está a acontecer aqui?! Constance olha por cima do ombro e vê as mulheres a deixarem o corredor. O espaço �ca em silêncio, à exceção da respiração ofegante de Malorie e dos seus soluços abafados. — Malorie — começa Rick —, é como costumávamos fazer as coisas. Teve de ser. Não havia escolha. Quando chegámos aqui, estávamos famintos. Como colonos esquecidos numa terra estrangeira e hostil. Não tínhamos as comodidades que temos agora. Precisávamos de comida. Por isso caçámos. Infelizmente, ainda não tínhamos a segurança que temos agora. Certa noite, enquanto um grupo estava fora, à procura de comida, uma criatura entrou. Perdemos muitas pessoas naquela noite. Uma mãe, que num momento estava completamente racional, perdeu o juízo e matou quatro crianças num acesso de fúria. Demorámos meses a recuperar, a reconstruir. Prometemos nunca mais correr esse risco. Para o bem de toda a comunidade. Malorie olha para Constance, que não tem cicatrizes. — Não foi uma questão de escolha — continua Rick. — Tivemos de nos cegar com o que tínhamos, garfos, facas de cozinha, os nossos dedos. A cegueira, Malorie, era a proteção absoluta. Mas essa era a maneira antiga de fazer as coisas. Já não fazemos isso. Ao �m de um ano percebemos que tínhamos forti�cado este lugar o su�ciente para tirar esse horrível fardo nos nossos ombros. Até agora, não tivemos falhas de segurança. Malorie pensa em George e no seu vídeo, nas experiências falhadas. Lembra-se que quase cegou os �lhos num ato de desespero. A Constance vê. Ela não é cega. Se tivesses tido coragem há quatro anos, pensa Malorie, quem sabe o que te teria acontecido. Às crianças. Rick apoia-se em Constance. — Se tivesse estado cá, entenderia. Malorie está assustada. Mas entende. E, no seu desespero, quer con�ar naquelas pessoas. Quer acreditar que levou as crianças para um lugar melhor. Virando-se, ela vê o seu re�exo numa janela de um escritório. Quase não reconhece a mulher que foi, quando estudou a sua barriga ao espelho na casa de banho, enquanto Shannon gritava acerca das notícias na televisão na outra sala. O seu cabelo está fraco, emaranhado e coberto de sujidade e do sangue de tantos pássaros. O seu couro cabeludo, ferido e vermelho, está visível em algumas partes. O seu corpo está magro. Os ossos do seu rosto estão salientes — as suas feições delicadas foram substituídas por ângulos a�ados — com a pele esticada e amarelada. Ela abre ligeiramente a boca para revelar um dente partido. Tem a pele ensanguentada, ferida e pálida. O golpe profundo do lobo desfeia o seu braço inchado. Ainda assim, consegue perceber que algo poderoso arde dentro da mulher re�etida no vidro. Um fogo que a impulsionou durante quatro anos e meio, que a obrigou a sobreviver, que lhe ordenou que criasse uma vida melhor para os seus �lhos. Esgotada, livre da casa, livre do rio, Malorie cai de joelhos. Tira as vendas dos rostos das crianças. Os olhos delas estão abertos, a pestanejar e a semicerrarem-se contra as luzes brilhantes. O Rapaz e a Rapariga olham �xamente, impacientes e inseguros. Não compreendem onde estão e olham para Malorie à procura de orientação. Este é o primeiro lugar que viram para além da casa em toda a sua vida. Nenhum deles chora. Nenhum se queixa. Olham para Rick, à escuta. — Como eu disse — diz Rick cautelosamente —, podemos fazer muitas coisas aqui. As instalações são muito maiores do que este corredor leva a crer. Cultivamos a nossa própria comida e conseguimos capturar alguns animais. Há galinhas que nos dão ovos frescos, uma vaca que nos dá leite, e duas cabras que conseguimos criar. Em breve, esperamos ir à procura de mais animais, para construir uma pequena quinta. Ela respira fundo e olha para Rick, com esperança, pela primeira vez. Cabras, pensa. Para além dos peixes, as crianças nunca viram um animal vivo. — Em Tucker, somos completamente autossu�cientes. Temos uma equipa médica completamente dedicada a reabilitar os que estão cegos. Este lugar vai trazer-lhe um pouco de paz, Malorie. Traz-ma todos os dias. — E vocês os dois — diz Constance, ajoelhando-se ao lado das crianças. — Como é que se chamam? É como se fosse a primeira vez que a questão tinha importância para Malorie. De repente, há espaço na sua vida para luxos como nomes. — Esta — diz Malorie, pousando uma mão ensanguentada na cabeça da Rapariga — é a Olympia. A Rapariga olha rapidamente para Malorie. Cora. Sorri. Agrada- lhe. — E este — diz Malorie, apertando o Rapaz contra si — é o Tom. Ele sorri, tímido e feliz. De joelhos, Malorie abraça os �lhos e chora lágrimas quentes que são melhores do que qualquer gargalhada que já sentiu. Alívio. As lágrimas correm livremente, suavemente, enquanto pensa nos companheiros a trabalharem juntos para trazerem água do poço, a dormirem na sala de estar, a discutirem o novo mundo. Vê Shannon, a rir, a descortinar formas e �guras nas nuvens, curiosa com carinho e bondade, a cuidar de Malorie. Pensa em Tom. A sua mente sempre a trabalhar, a resolver problemas. Sempre a tentar. Pensa no amor dele pela vida. Ao longe, mais ao fundo do longo corredor da escola, outros emergem de diversas salas. Rick pousa uma mão no ombro de Constance quando começam a entrar nas instalações. É como se todo aquele lugar soubesseque deve dar a Malorie e aos �lhos um momento para si. Como se tudo e todos compreendessem que, por �m, estão seguros. Mais seguros. Agora, ali, abraçada às crianças, parece-lhe que a casa e o rio são apenas dois lugares míticos, perdidos algures em toda aquela in�nidade. Mas sabe que já não estão tão perdidos. Nem sozinhos. Agradecimentos Quando estava a escrever Às Cegas, ouvi mencionar uma criatura mítica conhecida como o Advogado. Por a notícia ter vindo de um bom amigo, aceitei conhecer um. A caminho, confessei a esse amigo que não fazia ideia do que uma pessoa como eu faria com um Advogado. «Não tenho nada legal para tratar!» Mas o meu amigo tranquilizou-me — e fez bem. Wayne Alexander fez mais do que «tratar de coisas legais», quando leu esta história e me contou uma abundância de histórias suas, cada uma mais cativante do que a outra. Pouco tempo depois, o Wayne falou-me de uma segunda criatura mítica: o Gestor. Senti-me inclinado a confessar: «Mas eu não tenho nada para gerir!» Sem se deixar deter, o Wayne apresentou-me a um duo, os Gestores — Candace Lake e Ryan Lewis que, tal como Wayne, �zeram muito mais do que o seu título pro�ssional implicava. Não só lemos Às Cegas juntos, como começámos a brincar com ele, e os nossos e-mails acabaram por ter um número de palavras superior ao do próprio livro. Pelo caminho tornámo-nos amigos (o telemóvel do Ryan, em particular, tornou-se uma espécie de caderno de anotações meu, inundado de ideias tão pequenas como «Olha! Os armários dos empregados de limpeza são um bocado assustadores!» e tão grandiosas como «O que é que achas de um guião de cinema de mil páginas?») Por �m, a Candance e o Ryan começaram a falar de uma terceira entidade impossível: o Agente. «Mas eu não tenho nada para ser agenciado!» Misericordiosamente, guiaram-me até uma. Kristin Nelson ensinou-me rapidamente que, embora fosse bom ter mil ideias, é igualmente bom tornar uma delas apresentável. Debruçámo-nos mais sobre Às Cegas. A Kristin e eu alimentámos o livro, �zemo-lo passar fome e depois alimentámo-lo outra vez. Vestimos-lhe roupas engraçadas, às vezes mantendo apenas uma luva ou o chapéu. Outras vezes ele cantava para nós, como os pássaros de Tom, dizendo-nos quando estava satisfeito. E quando Às Cegas �cou pronto, a Kristin mencionou uma quarta e sombria personagem: o Editor. Desta vez tive medo. «Mas eu tenho algo para editar! Oh não!» Na minha imaginação, o Editor meditava numa gruta nas montanhas, seguia as regras da gramática e franzia a sobrancelha à �cção especulativa. Mas claro que não foi o que aconteceu. Lee Boudreaux é uma artista como o são os escritores com quem trabalha. E as ideias que sugeriu foram excelentes, originais e até assustadoras. Lee e todos na Ecco, OBRIGADO. E Harper Voyager no Reino Unido, OBRIGADO. E Dave Simmer, meu amigo, obrigado também, por me apresentares ao Advogado e por abrires essa porta mítica. Edição original Título: Bird Box Texto: © 2014 Josh Malerman Publicado pela Ecco, uma chancela da HarperCollins, Nova Iorque. Todos os direitos reservados. Edição em português Título: Às Cegas Tradução: Rita Figueiredo Revisão: Manuela Duarte Capa: © 2019 Net�ix, Inc. NETFLIX é uma marca registada da Net�ix, Inc. e seus a�liados. Paginação eletrónica: Wonder Studio ISBN edição impressa: 978-989-8869-74-6 ISBN edição ePub: 978-989-564-831-3 1.ª edição: março de 2018 Versão 1.0: setembro 2021 © 2018 Topseller, uma chancela da 20|20 Editora. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização da editora. Rua Alfredo da Silva, 14 • 2610-016 Amadora • Portugal Tel. +351 218936000 • GPS 38.742, -9.2304 contacto@topseller.pt • www.topseller.pt • topseller.pt Garantia incondicional de satisfação e qualidade: se não �car satisfeito com a qualidade deste livro, poderá contactar diretamente a Topseller, juntando a fatura, e será reembolsado sem mais perguntas. Esta garantia é adicional aos seus direitos de consumidor e em nada os limita. Às Cegas é uma obra de �cção. Nomes, personagens e episódios resultam mailto:contacto%40topseller.pt?subject=Ebook%20%C3%80s%20Cegas http://www.topseller.pt/ https://www.facebook.com/topseller.pt da imaginação do autor ou são usados de forma �ctícia. Qualquer semelhança com pessoas, acontecimentos ou locais reais é pura coincidência. Também disponível em versão impressa. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 Agradecimentos