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Fundamentos Da Neuroeducação Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação Diretor Executivo DAVID LIRA STEPHEN BARROS Gerente Editorial CRISTIANE SILVEIRA CESAR DE OLIVEIRA Projeto Gráfico TIAGO DA ROCHA Autoria FRANCINE HEIDEN RIOS AUTORIA Franciane Heiden Rios Olá! Sou formada em Pedagogia, Mestre em Educação, Especialista em Educação Especial e Inclusiva e Tecnologias Educacionais. Estou nesta área desde o início da minha vida profissional, cursei Magistério, ingressei como estagiária e da escola nunca mais sai. Esse espaço rico de aprendizagens humanas me oportunizou pensar sobre diferentes questões e perceber as pessoas em suas diferentes necessidades. Durante dez anos fui servidora concursada, professora, do Município de São José dos Pinhais, também atuei como educadora pela Prefeitura Municipal de Curitiba e, atualmente, sou supervisora do curso de Pedagogia da UNIVESP – Universidade Virtual do Estado de São Paulo - e diretora pedagógica da CuriosaIdade, instituição que atua em parceria com redes de ensino para desenvolvimento de boas práticas educativas tendo como subsídio a perspectiva do Desenho Universal para a Aprendizagem. Acredito no princípio básico da inclusão e no respeito pela diversidade, portanto, escrever, palestrar, capacitar ou qualquer outra ação ou prática profissional relacionada ao tema são hoje meu foco de atuação. Desejo que tenhamos juntos um caminho rico de aprendizagens significativas, que o material aqui proposto em suas ideias, reflexões e discussões permitam a você construir-se enquanto um profissional interdisciplinar, que navega entre as mais diversas áreas do conhecimento em prol de uma melhor prática educativa, avançando para a qualidade na educação e consequente transformação social. ICONOGRÁFICOS Olá. Esses ícones irão aparecer em sua trilha de aprendizagem toda vez que: OBJETIVO: para o início do desenvolvimento de uma nova compe- tência; DEFINIÇÃO: houver necessidade de se apresentar um novo conceito; NOTA: quando forem necessários obser- vações ou comple- mentações para o seu conhecimento; IMPORTANTE: as observações escritas tiveram que ser priorizadas para você; EXPLICANDO MELHOR: algo precisa ser melhor explicado ou detalhado; VOCÊ SABIA? curiosidades e indagações lúdicas sobre o tema em estudo, se forem necessárias; SAIBA MAIS: textos, referências bibliográficas e links para aprofundamen- to do seu conheci- mento; REFLITA: se houver a neces- sidade de chamar a atenção sobre algo a ser refletido ou dis- cutido sobre; ACESSE: se for preciso aces- sar um ou mais sites para fazer download, assistir vídeos, ler textos, ouvir podcast; RESUMINDO: quando for preciso se fazer um resumo acumulativo das últi- mas abordagens; ATIVIDADES: quando alguma atividade de au- toaprendizagem for aplicada; TESTANDO: quando o desen- volvimento de uma competência for concluído e questões forem explicadas; SUMÁRIO Construção do Conhecimento na Neuroeducação ...................... 10 Neurociência e Educação: Desvelando Conceitos ................................................ 10 Neuroeducação: Um Novo Paradigma? ......................................................................... 13 Interdisciplinaridade, Multidisciplinaridade e Transdisciplinaridade e a Construção do Conhecimento na Neuroeducação ........................................................................................... 17 Primeiros Conceitos: Diferenciando as Perspectivas Teórico- metodológicas .............................................................................................................................................................17 Neuroeducação como Campo Interdisciplinar ......................................................... 19 Processos Interdisciplinares: Ciências, Neurociência e Neuroeducação ........................................................................................... 25 Fundamentos e Conceitos Iniciais sobre Educação, Cérebro e Aprendizagem ...................................................................................................................................25 A Evolução dos Conceitos sobre o Cérebro ............................................27 Breve História da Ciência na Perspectiva da Neuroeducação ...27 Processos Interdisciplinares: Cultura, Arte e Neuroeducação 33 Processos Iniciais: Complexidade e Aprendizagem ..............................................33 Sociedade, Cultura e Aprendizagem ................................................................................35 7 UNIDADE 01 Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 8 INTRODUÇÃO A tarefa de educar nos dias atuais exige cada vez mais dos professores e educadores. Atender às demandas exige novos conhecimentos e uma sólida formação teórica, com o desejo incessante na busca pela atualização profissional. Entender o processo de aprendizagem em seu dinamismo e complexidade é caráter fundamental na concepção do “bom professor” e, nesse sentido, a neurociência apresenta uma ampla perspectiva de qualificação. Entretanto, apenas conhecer como o cérebro funciona na ação de aprender não é o ideal. Compreender como o conjunto de saberes sobre o Sistema Nervoso Central opera e significa à Educação, se constituem como os principais objetivos do professor e, portanto, configura-se em uma nova perspectiva: a neuroeducação. Dos conhecimentos da neuroeducação, a educação busca ser mais efetiva e eficaz, não apenas ao que se restringe à escola, mas a tudo que se amplia enquanto melhorias para a qualidade de vida da sociedade atual. Entretanto, para que a prática seja efetiva, a formação teórica é fundamental e essa formação não é linear ou restrita: opera na perspectiva interdisciplinar exigindo do professor relacionar os mais variados saberes das mais diversas áreas para que, ao final, seja possível garantir a complexidade do ser humano e de suas relações. Para tanto, a compreensão da maneira como se desenvolvem e se “assentam” os conhecimentos na neuroeducação exige uma ampliação conceitual generosa e inclusive, requisita a articulação de saberes que a princípio, parecem não conversar entre si. Mas é a partir dessas relações que será possível a investigação da dinâmica de integração do sujeito ao ambiente externo, significando o que “acontece no cérebro”. Assim, nesta unidade propomos compreender os primeiros elementos e as relações no que se refere à neuroeducação, com objetivo de constatar como se estrutura a perspectiva do professor que utiliza os conhecimentos da neuroeducação. Objetivamos nesse percurso formativo identificar, compreender e refletir sobre a construção da neuroeducação enquanto ciência, para que, à frente, seja possível avançar para as contribuições dessa área nos processos de ensino-aprendizagem, entendeu? Ao longo desta unidade letiva você vai mergulhar neste universo! Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 9 OBJETIVOS Olá, seja muito bem-vindo à Unidade 1. Até o término desta etapa de estudos, nosso objetivo é auxiliar você no desenvolvimento das seguintes competências profissionais: 1. Interpretar os principais elementos e referências relacionados à produção de conhecimentos na neuroeducação. 2. Identificar as características que permitem considerar a neuroeducação enquanto uma área interdisciplinar. 3. Relacionar neurociência e educação compreendendo os aspectos interdisciplinares. 4. Explicar as relações entre arte, história e cultura na formação em neuroeducação. Então? Preparado para uma viagem sem volta rumo ao conhecimento? Ao trabalho! Lembre-se que para fazer a diferença é preciso transformar-se sempre em algo melhor! Assim, convido você para que juntos possamos aprender mais, melhor e de forma ativa com a intenção de que ao fim desse processo, esses conteúdos ganhem vida e resultem em boas práticas. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 10 Construçãodo Conhecimento na Neuroeducação OBJETIVO: Ao término deste capítulo você será capaz de entender os princípios de construção do termo “neuroeducação”, seus objetivos e o cenário no qual se desenvolve. Isto será fundamental para o exercício de sua profissão, afinal, na perspectiva educacional, os conhecimentos de outras áreas precisam ser apropriados de forma a convergir com os objetivos de atuação. As pessoas que não iniciarem a discussão e sua formação em neuroeducação compreendendo as relações complexas por trás dessa ciência, poderão ter dificuldade para avançar seja no campo da pesquisa, seja em intervenção, pois, sempre faltará algo para compreender o ser humano, complexo em sua essência. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! Neurociência e Educação: Desvelando Conceitos Como todo processo e produto da construção humana, a Educação também se transforma mediante os avanços, às necessidades e às relações sociais. Na escola, muitos desafios surgem e não é raro ouvirmos: “no meu tempo não era assim”. Essa frase é, no sentido de sua construção, verdadeira: a escola e as pessoas não são iguais ao que eram há dez, vinte, trinta anos ou no século passado. A sociedade se transformou e com ela, as pessoas. Entretanto, a escola por vezes parece insistir em “educar da mesma forma que no passado”, expurgando ou subutilizando novos conhecimentos, novas necessidades e novas possibilidades, o que resulta em seu espaço de atuação, problemas e dificuldades no processo ensino- aprendizagem e, até mesmo, nas relações humanas estabelecidas. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 11 ACESSE: Indicamos que assistam à animação da palestra de Sir Ken Robinson, especialista em educação e criativa, no qual ele discute sobre as “Mudanças de paradigmas na Educação”. Acesse clicando aqui. Nesse sentido, a afirmação “no meu tempo não era assim” não pode ser compreendida como lamentação ou de forma saudosista e sim, como uma evidência de que os tempos mudaram e, portanto, na escola e na ação do professor é inevitável e imprescindível que também ocorram transformações. SAIBA MAIS: Para saber mais, leia o artigo Educação e Aprendizagem no Brasil: “Ainda somos os mesmos”, afirma neuropsicóloga da FCM. Disponível aqui. Muitos elementos precisam ser revistos: estrutura – desde a física à tecnológica, recursos, acolhimento, entre todos os outros que impactam no processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, o destaque sempre será para a formação docente: professores com formação consistente, atualizada e constante são o diferencial em qualquer espaço educacional. Nesse sentido, em um cenário no qual os números de alunos com déficits, transtornos, dificuldades ou “desajustes” aumentam ou se evidenciam de maneira exponencial, a formação docente passa a necessitar de outros saberes e conhecimentos em sua prática, dentre eles, aqueles oriundos da neurociência. As pesquisas no campo das neurociências buscam, cada vez mais, articulação com o campo da Educação, afinal, seus conhecimentos permitem aos professores conhecer cada vez mais a estrutura e funcionamento do cérebro e, com isso, embasar suas práticas pedagógicas de forma mais assertiva. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação http://https://www.youtube.com/watch?v=rvK2nGkA4vE https://www.fcm.unicamp.br/fcm/relacoes-publicas/saladeimprensa/educacao-e-aprendizagem-no-brasil-ainda-somos-os-mesmos-afirma-neuropsicologa-da-fcm 12 Figura 1 - Cérebro Fonte: Pixabay O conhecimento do cérebro humano, em sua complexidade, não é objeto de estudo de apenas um campo da ciência. A neurociência se integra a outras em uma rede que se amplia de informações, saberes e conhecimentos e difunde-se como um conceito múltiplo de diversas áreas. Operam na apropriação, articulação, construção e reconstrução de novos saberes e práticas. Há sempre o limite ético de cada campo, a apropriação dos conhecimentos da neurociência se projetam de forma diferente na psicologia, medicina, terapia ocupacional, em outras diversas áreas e inclusive na Educação. Afinal, a didática tem como objetivo compreender o processo de ensino e de aprendizagem, assim, aproxima-se dos conhecimentos da neurociência para, a fundo, compreender como o cérebro opera nessa ação. Essa aproximação não é nova, há tempos a Educação “flerta” com as demais ciências humanas e da saúde, articulando conceitos filosóficos, históricos e sociais às questões psicológicas e biológicas, essa base teórica variada e diversa é o que fornece recursos para compreender a complexidade humana. Vale destacar essa condição ao propor a união da Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 13 biologia, neurociência, desenvolvimento e educação como base para a pesquisa e consequente prática educacional. Assim, na ação educacional a base na neurociência dispõe de ferramentas que auxiliam compreender e analisar o processo da aprendizagem, qualificando a ação docente, afinal aprender não é “absorver informações”, mas sim um processo complexo de transformação do indivíduo que opera na perspectiva neurofisiológica e neuropsicológica. É nesse espaço que a relação da neurociência com a educação se efetiva, permitindo compreender a importância do cérebro no processo de aprendizagem. EXEMPLO: A articulação entre neurociência e Educação permite uma mudança de perspectiva fundamental para a aprendizagem: em sua ação o professor além de se centrar em métodos e teorias para ensinar, avançaria no sentido de compreender como o aluno aprende e como essa aprendizagem se desenvolve em nível cerebral. Neuroeducação: Um Novo Paradigma? É no trabalho conjunto de pesquisadores e profissionais que objetivam qualificar processos, produzir novas hipóteses e métodos que a neuroeducação se constitui. Seu interesse em demonstrar princípios práticos para a melhoria do processo de ensino e aprendizagem a partir da relação mente–cérebro–educação pode ser compreendido como um novo paradigma na pesquisa educacional e, portanto, um campo de produção de novos conhecimentos. DEFINIÇÃO: A neuroeducação prevê a integração dos resultados de pesquisas em neurociências na busca por novas e diversificadas formas de ensinar, potencializando os resultados de aprendizagem. Tem como finalidade proporcionar ferramentas psicológicas que qualifiquem a capacidade dos aprendizes de aprender a aprender, aprender a pensar e refletir, aprender a transferir e generalizar saberes, aprender a estudar e aprender a se comunicar (FONSECA, 2008). Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 14 Com base nos conhecimentos da neurociência, a neuroeducação avança para a análise de conhecimentos sobre o processo de ensino- aprendizagem a partir dos processos cerebrais. Entretanto, é fundamental saber que a neurociência não introduz novas estratégias educacionais, por isso do avanço da neuroeducação. Enquanto a neurociências fornece razões importantes e concretas sobre como acontece o processo de aprendizagem humana na perspectiva biopsicossocial, a neuroeducação explora essas considerações na aprendizagem buscando novas estratégias de ensino. SAIBA MAIS: Na construção do conhecimento é importante, como diz o ditado popular: “provar o vinagre e o vinho”, portanto, indicamos a leitura do artigo “Neuroeducação para educadores: o que tem de errado”. O texto traz várias provocações sobre a neuroeducação, muitas delas polêmicas, por exemplo: “Ora, o cérebro está envolvido em todas as atividades humanas, não só na escola. Não faz sentido acrescentarmos o radical “neuro” para cada uma delas. Já imaginou: neuroculinária, neurofutebol, neurobanho, neurojardinagem, neuro-passeio-na-praia [...]?”. Disponível aqui. Criticidade é fundamental na construção do conhecimento e as “contradições” apresentadas no artigo anterior nos permite seguir nosso percurso de aprendizagem com “olhos mais atentos”. Na perspectivade sua constituição, podemos conceber a neuroeducação conforme imagem a seguir: Figura 2 - Constituição da neuroeducação Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação https://www.psicoedu.com.br/2016/11/neuroeducacao-aprendizagem.html 15 Fonte: Tracey Tokuhama-Espinosa (2008). Essa construção da neuroeducação apresenta ferramentas úteis para melhorar o aprendizado desde que tenha o embasamento teórico-científico adequado, portanto, mais que compreender o que é neuroeducação, é fundamental discutir como esse campo se solidifica na perspectiva científica e o que, de fato, a partir das relações com a neurociência a Educação avança. E, para tanto, é fundamental compreender como se dá o processo de construção de conhecimento nessa área, a princípio, esclarecendo como ela se estabelece enquanto campo interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar na busca de um método comum para traduzir resultados de pesquisas científicas de diversas áreas em estratégias pedagógicas aplicáveis. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 16 RESUMINDO: E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que na neuroeducação é preciso conhecer o cérebro humano em sua complexidade e para isso é preciso “navegar” em vários campos da ciência. Por esse motivo, vimos que podemos compreender a neurociência enquanto a integração em uma rede que se amplia de informações, saberes e conhecimentos e difunde-se como um conceito múltiplo de diversas áreas, o que permite operar na apropriação, articulação, construção e reconstrução de novos saberes e práticas. Mas, que nessa integração, há sempre o limite ético de cada campo e de cada profissional diante seu campo de atuação. Avançamos para compreender a relação entre neurociência e educação, identificando que os conhecimentos da neurociência permitem aos professores conhecer cada vez mais a estrutura e funcionamento do cérebro e, com isso, embasar suas práticas pedagógicas de forma mais assertiva. Assim, a ação educacional tendo como base a neurociência dispõe de ferramentas que auxiliam compreender e analisar o processo da aprendizagem, qualificando a ação docente, afinal aprender não é “absorver informações”, mas sim, um processo complexo de transformação do indivíduo que opera na perspectiva neurofisiológica e neuropsicológica. É nesse espaço que a relação da neurociência com a educação se efetiva, permitindo compreender a importância do cérebro no processo de aprendizagem. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 17 Interdisciplinaridade, Multidisciplinaridade e Transdisciplinaridade e a Construção do Conhecimento na Neuroeducação OBJETIVO: Ao término deste item você será capaz de entender o porquê é possível afirmar que a neuroeducação é um campo interdisciplinar. Isto será fundamental para o exercício de sua profissão, afinal, dessa perspectiva é que visualizamos no que podemos avançar em outras áreas e no que devemos resguardar os limites éticos de atuação. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante!. Primeiros Conceitos: Diferenciando as Perspectivas Teórico-metodológicas Como vimos, a neuroeducação é apontada como um novo paradigma na Educação. Dessa perspectiva emergem conceitos e práticas que buscam articular diversas áreas de conhecimento em um campo com um objetivo em comum: qualificar o processo ensino-aprendizagem. Muitos desses conhecimentos já operam como bases teóricas efetivas em sua área específica, entretanto, na neuroeducação, os pesquisadores ainda buscam a relação e modulagem necessárias a eles, afinal, é fato que o cérebro é indispensável para a aprendizagem, assim como o comportamento, a metodologia, a didática e outros saberes, e que todos eles já são discutidos e, de certa forma, incorporados no processo ensino- aprendizagem. Sendo assim, por que se faz necessário um novo campo de conhecimentos? Essa resposta não é simples de se responder e, mesmo que se esboce uma discussão, essa também não será definitiva, afinal, as demandas sociais mudam a cada dia e os conhecimentos da humanidade, Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 18 com seus avanços, também, o que nos permite afirmar que, mais que compreender a neuroeducação como um manual orientador para a prática docente, é preciso identifica-la como um território de pesquisas e transformações. Nesse sentido, é fundamental que sejam esclarecidos os conceitos de multidisciplinar, transdisciplinar e interdisciplinar. A primeira questão é perceber que esses três conceitos são diferentes entre si. Apesar de contemplarem a ideia de “integração” e “totalidade” disciplinar, cada um deles é perpassado por perspectivas teórico-filosóficas diferentes e inconciliáveis e, portanto, uma organização interdisciplinar é diferente da multidicisciplinar ou transdisciplinar. A perspectiva multidisciplinar ou multidisciplinaridade é a tentativa de trabalho conjunto, de diferentes profissionais, em que cada um desses interage com o objeto de investigação sob a ótica de sua área. Conforme indica Almeida Filho (1997), a ideia recorrente é de justaposição de disciplinas. Na transdisciplinaridade se busca um novo paradigma de trabalho nas ciências da educação. As palavras-chave são complexidade e holístico, indicando a busca pela síntese histórica das diferentes contribuições por área. É a ideia de rede em busca da unidade de conhecimento. Por fim, a interdisciplinaridade busca a superação da superespecialização e da desarticulação teórico-prática. Tem como objetivo a formação integral, intencionalmente contribuindo para, conforme indica Saviani (1991), ações transformadoras no interior da sociedade, necessitando que a prática seja analisada, pensada, permeada e articulada com a teoria, resultando na superação da ação não pensada pela prática concreta, reflexiva e planejada. Na figura a seguir é possível perceber as diferenças entre as perspectivas multi, trans e interdisciplinar: Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 19 Figura 3 - Perspectivas multi, trans e interdisciplinar (Modelo de Jantsch) Fonte: Elaborada pela autora (2019). Trazendo essas reflexões para a neuroeducação, qual seria a perspectiva metodológica pela qual ela produz seus conhecimentos? Veremos que a perspectiva interdisciplinar é a que, na atualidade, faz-se constante. Neuroeducação como Campo Interdisciplinar Por sua estrutura e como se desenvolve, é possível afirmar que a neuroeducação segue uma perspectiva interdisciplinar, afinal, busca a superação da fragmentação e do caráter “especialista” do conhecimento que, quando em prática, resultaria em uma visão parcial da complexidade humana e de suas relações e instituições. Nesse sentido, a perspectiva interdisciplinar evidencia na neuroeducação um movimento contemporâneo que [...] emerge na perspectiva da dialogicidade e da integração das ciências e do conhecimento e vem buscando romper com o caráter de hiperespecialização e com a fragmentação dos saberes. (THIESE, 2008, p. 547) Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 20 IMPORTANTE: A neuroeducação indica a possibilidade de se superar os “compartimentos” dos saberes, em busca de uma integração que vá muito além da troca de informações, deseja integrar caminhos epistemológicos, métodos e organização da produção de conhecimentos. Afinal, conforme aponta Goldman (1979): [...] Um olhar interdisciplinar sobre a realidade permite que entendamos melhor a relação entre seu todo e as partes que a constituem. Para ele, apenas o modo dialético de pensar, fundado na historicidade, poderia favorecer maior integração entre as ciências. (GOLDMAN, 1979, p. 3-25 Portanto, é possível pensar a interdisciplinaridade da neuroeducação a partir do que Japiassu(1976) considera: a intensidade das trocas entre os especialistas e o grau dessa interação entre os conhecimentos em prol de um mesmo projeto. Entendendo que a aprendizagem demanda a integralidade do indivíduo, a perspectiva interdisciplinar permitiria recuperar em termos de pesquisa e práticas essa unidade, primando pela passagem do que é subjetivo para intersubjetividade, alterando as ideias de cultura, da escola e do homem. Figura 4 - Interdisciplinaridade Fonte: Elaborada pela autora (2019). Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 21 A questão pertinente é compreender que a perspectiva interdisciplinar avança da conceituação para proposições pedagógicas, resultando em um novo enfoque epistemológico na neuroeducação, sendo que o próprio conceito de interdisciplinaridade é dinâmico e em construção, afinal, como aponta Leis (2005, p. 5) “[...] a tarefa de procurar definições finais para a interdisciplinaridade não seria algo propriamente interdisciplinar, senão disciplinar”. IMPORTANTE: Ou seja, não existe uma definição única possível para o conceito de interdisciplinaridade, afinal, a construção do conhecimento permite as mais variadas experiências interdisciplinares, confundindo-se com a dinâmica vida da produção do próprio conhecimento. Podemos afirmar que mesmo diante desse dinamismo reconstrutor, é que no campo conceitual a interdisciplinaridade opera como uma reação à abordagem normalizadora da perspectiva disciplinar. Um exemplo possível para essa afirmação é que na perspectiva interdisciplinar não faria sentido se a neuroeducação organizasse em seu escopo de atuação pesquisas sobre a anatomia cerebral, mas faz mais sentido e se torna mais produtivo que ela se aproprie e estabeleça relações e interações com as outras áreas e outros profissionais para qualificar sua atuação. Ao invés de perguntar como o cérebro funcional, a pergunta na neuroeducação seria: sabendo que de acordo com a medicina, psicologia e neurociências o cérebro funciona de determinada forma, como esses estudos podem ser apropriados pela neuroeducação para qualificar os processos de aprendizagem? Assim, independente de um conceito final sobre interdisciplinaridade, a definição central permite situar essa abordagem enquanto “local de construção de conhecimento” que busca superar a fragmentação das ciências e dos conhecimentos produzidos. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 22 ACESSE: Para se aprofundar ainda mais neste tema, assista ao vídeo de Marcos Meier e Neuroeducação clicando aqui. Devemos, portanto, encontrar o sentido epistemológico e suas implicações sobre os processos da neuroeducação, seja enquanto produtora de novos saberes, seja em seus processos de intervenção, o que para Japiassu (1976), significa intensificar as trocas e o grau de interação entre as diversas áreas em um mesmo projeto de pesquisa, sendo necessário a complementaridade de métodos, conceitos e conhecimentos. ACESSE: Educação Inovadora - Neuroeducação e a forma como o cérebro aprende. O texto busca esclarecer o que é neurociência e neuroeducação, destacando as questões de interdisciplinaridade da produção do conhecimento. Disponível aqui. Para Japiassu (1976, p. 65-66): [...] do ponto de vista integrador, a interdisciplinaridade requer equilíbrio entre amplitude, profundidade e síntese. A amplitude assegura uma larga base de conhecimento e informação. A profundidade assegura o requisito disciplinar e/ou conhecimento e informação interdisciplinar para a tarefa a ser executada. A síntese assegura o processo integrador. E nessa afirmação, talvez, esteja no limite ético da atuação da neuroeducação: o pensamento e as práticas interdisciplinares não descaracterizam a dimensão disciplinar do conhecimento em suas etapas de investigação, produção e socialização, afinal, enquanto educadores é inconcebível que possamos desenvolver uma autópsia para analisar a Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação https://www.youtube.com/watch?v=ozAD_RCr8Ig https://www.youtube.com/watch?v=rtZoANRMZrc 23 estrutura do cérebro, não é mesmo? Propõe-se, portanto, uma revisão profunda do pensamento de articulação e interação entre as áreas, que deve ser encaminhado no sentido de intensificar diálogos, trocas e integração conceitual e metodológica nas diferentes áreas do saber. Para Japiassu isso significa que: Podemos dizer que nós reconhecemos diante de um empreendimento interdisciplinar todas as vezes em que ele conseguir incorporar os resultados de várias especialidades, que tomar de empréstimo a outras disciplinas certos instrumentos e técnicas metodológicos, fazendo uso dos esquemas conceituais e das análises que se encontram nos diversos ramos do saber, a fim de fazê-los integrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados. Donde podermos dizer que o papel específico da atividade interdisciplinar consiste, primordialmente, em lançar uma ponte para ligar as fronteiras que haviam sido estabelecidas anteriormente entre as disciplinas com o objetivo preciso de assegurar a cada uma, seu caráter propriamente positivo, segundo modos particulares e com resultados específicos. (JAPIASSU, 1976, p. 75) Assim, pensando na construção identitária da neuroeducação é preciso que avancemos nas discussões acerca da produção do conhecimento de forma geral para que, ao final desse processo de construção de saberes, possamos identificar o local da neuroeducação na perspectiva interdisciplinar. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 24 RESUMINDO: E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que as demandas sociais mudam a cada dia e os conhecimentos da humanidade, com seus avanços, também, o que nos permite afirmar que, mais que compreender a neuroeducação como um manual orientador para a prática docente, é preciso identifica-la como um território de pesquisas e transformações. Diante dessa afirmação, avançamos para compreender os conceitos de multidisciplinar, transdisciplinar e interdisciplinar, perspectivas diferentes entre si apesar de contemplarem a ideia de “integração” e “totalidade” disciplinar. teoria e prática, evidenciando uma formação integral. Dessas discussões foi possível identificar a neuroeducação enquanto campo interdisciplinar, que busca superar os “compartimentos” dos saberes, integrando caminhos epistemológicos, métodos e organização da produção de conhecimentos. E que na perspectiva da atuação, devemos encontrar o sentido epistemológico e suas implicações sobre os processos da neuroeducação, intensificando as trocas e o grau de interação entre as diversas áreas em um mesmo projeto de pesquisa, atuando na complementaridade de métodos, conceitos e conhecimentos. Vimos que na multidisciplinaridade há a tentativa de trabalho conjunto a partir da justaposição de disciplinas; já na transdisciplinaridade termos como “complexidade” e “holístico” são palavras-chave e que se busca um trabalho em rede. Sobre interdisciplinaridade, vimos que o objetivo está na superação da “superespecialização” e da desarticulação entre Destacamos que a interdisciplinaridade permite respeitar o limite ético da atuação da neuroeducação ao não descaracterizar a dimensão disciplinar do conhecimento em suas etapas de investigação, produção e socialização, propondo uma revisão profunda do pensamento de articulação e interação entre as áreas, que deve ser encaminhado no sentido de intensificar diálogos, trocas e integração conceitual e metodológica nas diferentes áreas do saber. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 25 Processos Interdisciplinares: Ciências, Neurociência e Neuroeducação OBJETIVO: Ao término deste item você será capaz de entender como se estruturam os primeiros elementosrelacionados à interdisciplinaridade da neuroeducação. Para tanto, propomos um percurso pelos fundamentos e conceitos da educação, cérebro, aprendizagem e da ciência na perspectiva da neuroeducação. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante! Fundamentos e Conceitos Iniciais sobre Educação, Cérebro e Aprendizagem A construção dos saberes na neuroeducação são perpassados, como vimos, pela composição de entendimentos de outras áreas do conhecimento. Assim, falar em neuroeducação é, primeiramente, compreender como a sua construção enquanto área de estudo se relaciona com os avanços e descobertas, principalmente, da neurociência e da educação, sendo fundamental perceber a construção histórica dessas duas áreas centrais. IMPORTANTE: De modo geral, seja na neurociência, seja na educação, todo o conhecimento teórico-prático será apresentado e apropriado por diferenciadas óticas: a do neurocientista, a do psicólogo e a do pedagogo. Essa diversidade é fundamental pois, indica a mudança de paradigma, no qual não se pretende uma nova teoria para a educação com base em outros conhecimentos, mas sim, busca- se a compreensão científica do processo de ensino- aprendizagem. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 26 Na perspectiva do pedagogo, o eixo central da interdisciplinaridade é a educação, afinal, essa é nossa área de atuação e no movimento de correlações possíveis, pretende abordar os saberes sobre o ser humano em sua diversidade, considerando a filosofia, a antropologia, a sociologia, a psicologia, a biologia e a neurociência. Se retornarmos a figura que utilizamos no capítulo anterior para estruturar a perspectiva interdisciplinar, teríamos a seguinte composição: Figura 5 - Interdisciplinaridade e educação Educação Psicologia Biologia Sociologia Filosofia Antropologia Neurociência Fonte: Elaborada pela autora (2019). Ou seja, a construção de conhecimentos não é relacionada apenas com a neurociência, mas na neuroeducação, essa relação se destaca, cabendo à neurociência prover as bases relacionadas ao sistema nervoso, em especial, o cérebro humano afinal: Educadores, professores e pais, assim como psicólogos, neurologistas ou psiquiatras são, de certa maneira, aqueles que mais trabalham com o cérebro. Mais do que intervir quando ele não funciona bem, os educadores contribuem para a organização do sistema nervoso do aprendiz e, portanto, dos comportamentos que ele apresentará durante a vida. E essa é uma tarefa de grande responsabilidade! Portanto, é curioso não conhecerem o funcionamento cerebral. (COSENZA, 2011, p. 7) Afinal, a compreensão de como se dá o processo de construção do conhecimento oferece a possibilidade de ações que promovam a aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes. Entretanto, compreender, articular e reconstruir as perspectivas sobre esses mecanismos envolvidos nesse processo não é tarefa simples, mas essa articulação permitiria avançar significativamente em estratégias educacionais. Para avançarmos é preciso compreender como o avanço na neurociência e sua construção histórica se relaciona com a Educação. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 27 A Evolução dos Conceitos sobre o Cérebro Com o avanço tecnológico, principalmente com a tecnologia de neuroimagem, é possível interpretar não apenas a anatomia, mas o funcionamento do cérebro em tempo real. Essas pesquisas e avanços repercutem na educação sistematizando como o processo de ensino- aprendizagem, a priori abstrato, se projeta de forma concreta nas estruturas neurológicas, permitindo compreender como o cérebro aprende. Portanto, esses autores ainda destacam que nesse cenário haveriam duas vertentes para as pesquisas em neuroeducação: a primeira centrada nas condições específicas do desenvolvimento e aprendizagem, principalmente ao que se relaciona os transtornos e distúrbios de aprendizagem como o autismo ou a dislexia e, a segunda, voltada para a compreensão de como o cérebro funciona e se desenvolve. Essas duas “frentes” são inter-relacionadas e têm como objetivo contribuir na produção de conhecimentos que ajudem o professor ensinar melhor e o aluno aprender com mais efetividade, avançando para o esclarecimento de situações específicas. Enquanto ciência da educação, a neuroeducação teve nos últimos anos uma maior amplitude e consolidação de suas perspectivas teórico- práticas, principalmente nos Estados Unidos, inicialmente enquanto campo multidisciplinar de conhecimento e de atuação profissional, nas áreas de docência e da pesquisa educacional e, como vimos, avançando para a perspectiva interdisciplinar, como afirmam Hardiman e Denckla (2009). Assim, conhecer o processo de construção histórica da neurociência é fundamental para perceber como ela colabora e se sedimenta na neuroeducação. Breve História da Ciência na Perspectiva da Neuroeducação A neurociência está vinculada com a medicina científica e com a origem das demais ciências, portanto, suas histórias se entrelaçam e seu desenvolvimento é consequência da sociedade moderna. Assim, para compreendermos o cenário atual é necessário um breve histórico dos Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 28 elementos fundamentais em relação às origens e eventos que marcaram essa trajetória. A a Filosofia e as ciências tiveram seu início na Grécia Antiga, com destaque para Platão, Sócrates e Aristóteles e suas contribuições. SAIBA MAIS: A filosofia médica hipocrática se firmou e viveu por meio da grande influência do macedônio Aristóteles, pai da Biologia. Saiba mais sobre esse assunto na reportagem “A contribuição de Aristóteles para a Ciência”, disponível aqui. Das mais importantes concepções filosóficas das ciências, duas são baseadas nos filósofos gregos: a de base racional, desenvolvida a partir da perspectiva platônica, e a de base empírica, de perspectiva aristotélica. Sobre a medicina que virá a possibilitar a neociência e, posteriormente, a neuroeducação, é fundamental evidenciar que a perspectiva moderna dessa ciência é jônica e decorrente das culturas eurásicas e eurafricanas, com destaque para os seguintes pensadores: Zoroastro (625- 551 a.C.), Confúcio (551-479 a.C.) Buda (563-483 a.C.), Tales de Mileto (625-547 a.C.), Pitágoras (582-500 a.C.). Na Idade Média, houve certa inércia na produção de conhecimento, até mesmo porque o pensamento cristão católico passa a vigorar e os monastérios centralizam a maior parte das produções e processos. Inclusive, houve destruição de muitos registros, sendo que, por exemplo, os conceitos de Aristóteles e Galeno sobreviveram na Pérsia, retornando à Itália em 980-1037, a partir de traduções árabes. Em relação aos estudos anatômicos, apenas em 1478 com a permissão papal para a dissecção de cadáveres humanos que as ciências médicas passam a serem ampliadas. É nesse período que se passou a buscar explicações e justificativas aos fenômenos por meio da Química, da Física e da Matemática. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação https://educacao.uol.com.br/disciplinas/ciencias/historia-da-ciencia-1-a-contribuicao-de-aristoteles-a-ciencia.htm 29 Com o Renascimento, no século XVII, instaura-se a Revolução Científica, representada principalmente por René Descartes (1596-1650) e é aqui que podemos identificar os primórdios na neurociência. É com Leonardo da Vinci (1452-1519) e seu entusiasmo pela anatomia humana que temos as primeiras pinturas e registros das cavidades cerebrais e a identificação dessas como “ventrículos cerebrais”. Figura 6 – Esboço da fisiologia do cérebro Fonte: Wikimedia Commons No início do século XVII, com Francis Bacon (1561-1626) e John Locke (1632-1704), o empirismo científico passa a emergir em concorrência com as ideias racionalistas clássicas de Descartes. Avançando no tempo, é no século XVIII com as observações anatomoclínica e anatomapatológica que a neurofisiologia, principalmentecom Magendie (1781-1826) passa a Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 30 criar corpo teórico. Ainda é nesse período que a teoria celular é proposta por Robert Hooke (1635-1703) e sedimentada por Schwann (1810-1882), que reconheceu que todo organismo é formado por células, unidade essa que por Claude Bernard (1813-1878) foi definida como “unidade funcional”. Figura 7 - Estrutura do súber Fonte: Wikimedia Commons Desenho da estrutura do súber, conforme visto pelo microscópio de Robert Hooke e descrito em seu livro Micrographia, a qual dá origem à palavra “célula”, usada para descrever a menor unidade de um organismo vivo. No século XIX houve as descobertas das drogas que agiam no sistema nervoso central, como a anestesia geral. No século XX, com o rápido desenvolvimento tecnológico, houve o avanço da ciência na mesma proporção. Assim, é possível afirmarmos que da Idade Antiga à contemporaneidade houve a preocupação em pensar sobre o cérebro, sendo que os primeiros registros médicos podem ser encontrados Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 31 em papiros datados de 2500 a.C., no Egito Antigo. E, não obstante, nos séculos XVII, XVIII e XIX, avançou-se na anatomia do sistema nervoso via dissecação, originando a neurofisiologia. IMPORTANTE: Da rudimentar concepção grega, os conhecimentos sobre o cérebro e o sistema nervoso foram se completando e se redesenhando para a perspectiva científica e, com esse avanço, foi possível compreender a neurotransmissão, eixo central do processo de aprendizagem. É no século XIX que a atividade elétrica do sistema nervoso, em específico, do cérebro, teve destaque com os estudos de Ivan Petrovic Pavlov (1849-1936) e a concepção de “condicionamento cortical cerebral” e dos “reflexos condicionados”. Em paralelo, nesse mesmo período, Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) desenvolvem a teoria neuronal, fundamental na neurociência. Com o positivismo ditando a estrutura, é também nesse século que a neurologia científica passa a se estruturar como a conhecemos hoje, com a racionalização da estrutura neural e das funções nervosas. Foi no final do século XIX que Pierre Paul Broca identifica a área relacionada com a expressão da linguagem e Carl Wernicke identificou a área de compreensão da linguagem. Muitos foram as descobertas na área da neurociência a partir do século XIX que se ampliaram no século XX, sendo a década de 90 conhecida como a “década do cérebro”, e se mantem em expansão até hoje. Com a imensa produção científica sobre os processos neuronais, se faz possível substanciar os estudos na neuroeducação, porém, para compreensão da interdisciplinaridade nessa ciência é necessário avançarmos na multiplicidade dos saberes e, com isso, nas relações com a cultura e a arte. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 32 RESUMINDO: E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de que você realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Você deve ter aprendido que a construção dos saberes na neuroeducação são perpassados, como vimos, pela construção de saberes de outras áreas do conhecimento. Assim, falar em neuroeducação é, primeiramente, compreender como a sua construção enquanto área de estudo se relaciona com os avanços e descobertas, principalmente, da neurociência e da educação, sendo fundamental perceber a construção histórica dessas duas áreas centrais. Vimos que seja na neurociência, seja na educação, todo o conhecimento teórico-prático é apresentado e apropriado por diferenciadas óticas: a do neurocientista, a do psicólogo e a do pedagogo, sendo fundamental essa diversidade para a mudança de paradigma, no qual não se pretende uma nova teoria para a educação com base em outros conhecimentos, mas sim, busca-se a compreensão científica do processo de ensino-aprendizagem. Para o pedagogo ou educador, vimos que a educação é o “norte” para a apropriação desses conceitos de outras áreas, pretendendo abordar os saberes sobre o ser humano em sua diversidade, considerando a filosofia, a antropologia, a sociologia, a psicologia, a biologia e a neurociência, com vistas à qualificação da aprendizagem e do ensino. Ainda, indicamos que a construção de conhecimentos não é relacionada apenas com a neurociência, mas, na neuroeducação, essa relação se destaca, cabendo à neurociência prover as bases relacionadas ao sistema nervoso enquanto outras áreas “humanizam” essa perspectiva biológica. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 33 Processos Interdisciplinares: Cultura, Arte e Neuroeducação OBJETIVO: Ao término deste item você será capaz de entender como se estabelecem as relações entre neuroeducação, arte, cultura e sociedade. Isto será fundamental para o exercício de sua profissão, afinal, para ser possível compreender a complexidade humana, é fundamental que nossa formação também seja interdisciplinar e privilegie a complexidade. E então? Motivado para desenvolver esta competência? Então vamos lá. Avante!. Processos Iniciais: Complexidade e Aprendizagem No capítulo anterior vimos que como base da neurociência está o desenvolvimento cerebral, complexo e diverso, nas relações cérebro e mente. E é no aspecto da “mente” que a neuroeducação busca em outras ciências o sentido de sua ação. Afinal, não é apenas a questão biológica que impera no processo de aprendizagem e desenvolvimento, tão importante quanto, estão as questões culturais e sociais. Compreender como as pessoas aprendem não é novidade no campo da Educação e em outras áreas correlatas, tais como a Psicologia e a Psicopedagogia. Entretanto, a aliança da neurociência com a educação permite discutir a ciência da aprendizagem com objetivo de construir novas propostas para o conhecimento ativo, ainda, que permita repensar como e o que é ensinado e como se avalia esse estudo. IMPORTANTE: É possível, portanto, perceber a neuroeducação enquanto campo da pesquisa educacional, interdisciplinar, como metodologia própria, que se fortalece com as contribuições da neurociência, da psicologia e da pedagogia. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 34 Em aspectos de pesquisa, a neurociência é provida de meios para comprovar os diversos princípios da aprendizagem em laboratório, permitindo afirmar que ao aprender se muda a estrutura cerebral e seu funcionamento. Portanto, da ciência se qualifica a prática. Porém, essas transformações no campo social têm outras nuances. Primeiro pela característica complexa do ato de aprender: O ser humano, como ser aprendente, acaba por se transformar no produto das interações interiores e exteriores que realiza com os outros seres humanos, ou seja, com a sociedade no seu todo. (FONSECA, 2009, p. 65) Por segundo, a mudança de perspectiva do que é saber no contexto da sociedade atual. Figura 8 – Saber na sociedade atual Fonte: Pixabay Saber não está mais centrado na capacidade de lembrar ou de repetir informações, mas sim com a competência de poder buscar e encontrar as informações que se necessita nos mais variados contextos. Assim, por mais que a área da ciência médica, em específico a neurociência, provenha com saberes relacionados à estrutura neurofisiológica, é a condição subjetiva do homem e de suas relações e interações sociais que permitem essa mudança de perspectiva. Não cabe mais à educação suprir os estudantes de todo o conhecimento disponível, mas sim possibilitar a formação dos alunos para o desenvolvimento de recursos intelectuais e de estratégias de Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 35 aprendizagem, provendo-lhes de autonomia para pensar e agir sobre as ciências. E é por essa necessidade social e cultural que as premissas da neurociência precisam ser reguladas na neuroeducação. Afinal, qualificar a aprendizagem por meio de novas propostas pode significar muito em termos de qualidadede vida para as pessoas. Sociedade, Cultura e Aprendizagem Em nossa sociedade atual, o conhecimento e as informações são produzidos em ritmo frenético o que permite considerar a conclusão de Teixeira (2000): [...] aprender assume o significado de “ganhar um modo de agir”, isto é, a aprendizagem só ocorre quando, após assimilarmos algo, conseguimos agir de acordo com o que aprendemos. Aprender, nessa concepção, é um processo ativo que se desenvolve a partir da seleção de reações apropriadas, que depois são fixadas. (TEIXEIRA, 2000, p. 875) E para que essa aprendizagem seja possível, é necessário considerar a complexidade humana e, com isso, congregar diversas áreas: Filosofia, Psicologia, Antropologia, Tecnologia, entre outras, para que seja possível uma ciência da “aprendizagem”, a qual se preocupe não apenas com que o aluno aprende, mas na mesma proporção, com como ele compreende o que foi aprendido. Essa ênfase no entendimento privilegia, portanto, o conhecimento e os processos pelos quais foi possível aprender, considera o ser humano e sua motivação, atividade e responsabilidade diante desse processo. Nessa perspectiva ainda é fundamental destacar que a “[...] aprendizagem é influenciada de maneira fundamental pelo contexto em que acontece” (TEIXEIRA, 2000, p. 879), assim, o conceito de cultura, sociedade e pela questão afetiva, de arte, são fundamentais nos escopos teóricos da neuroeducação, pois essas três frentes permeiam as relações e conexões com o mundo e agregam valores essenciais para a aprendizagem. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 36 Figura 9 - Diversidade humana Fonte: Pixabay Fala-se, portanto, do “cérebro social” que, para Ehrenberg (2008), é a condição do biológico dotada pelas relações sociais, comporta a ideia de que: [...] os “comportamentos” sociais se explicam essencialmente pelo funcionamento cerebral. O cérebro aparece então como o substrato biológico que condiciona a sociabilidade e a psicologia humanas. Entre o homem biológico e o homem social, não mais saberíamos bem onde estamos atualmente. (EHRENBERG, 2008, p. 01) Sendo assim, a neuroeducação convive com as diversas áreas de saber agregando conhecimento delas advindos. Os saberes e conceitos se influenciam mutuamente na medida em que são incorporados e manuseados atendendo à demanda da educação, em busca de respostas para indagações inerentes à ciência do ensino. Tem-se como prioridade construir a conexão entre essas áreas específicas para que os desafios sejam transpostos e, como isso, priorize-se o desenvolvimento de metodologias compatíveis com as premissas da neuroeducação. E, para tanto, é importante a compreensão de que de “o que está tecido em conjunto se torna complexo”, sendo indiscutível a importância do pensamento complexo na tríade história, arte e cultura para as investigações neuroeducacionais. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 37 Da arte e sua relação com a neuroeducação, podemos destacar que a expressão artística permite “uma maior vivência dos sentimentos e, desta forma, abranger o processo da aprendizagem como um todo, e não apenas em sua dimensão simbólica, verbosa, palavresca, como insiste em fazer a escola tradicional” (DUARTE JR., 1988, p. 70). VOCÊ SABIA? Arte e Psiquiatria – Nise da Silveira. Nise da Silveira é expoente na relação arte e psiquiatria. Sua atuação foi fundamental para a reforma psiquiátrica e adentrar em sua perspectiva é necessária e esclarecedora para compreender como o biológico, o social e o afetivo devem ser sempre privilegiados na mesma proporção. Para saber mais, visite a ocupação virtual “Arte e Psiquiatria – Nise da Silveira” promovida pelo Itaú Cultural, acessível aqui. Figura 10 - Emygdio de Barros pintando no jardim do hospital Fonte: Itaú Cultural. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/nise-da-silveira/arte-e-psiquiatria/ 38 A arte permite a humanização e uma atenção diferenciada aos problemas da contemporaneidade, pois: “[...] a arte, em todas as suas manifestações, é, por conseguinte, uma tentativa de nos colocar diante de formas que concretizem aspectos do sentir humano” (RABELO, 2018, p. 23). Essa perspectiva que humaniza e se apropria do contexto histórico- cultural para compreender a complexidade humana, surge como uma resposta à cultura ocidental que prioriza a ciência da razão e pouco considera as emoções. Com a arte e suas possibilidades de expressão, é possível rever essa visão positivista e, como isso, garantir a complexa e interdisciplinar existência humana, visão de integração que permite uma perspectiva não dicotomizada do conhecimento, afinal, o ser humano e a vida não são nem um pouco simples ou exatas. Compreender o caráter histórico-social é um dos fatores que caracterizam a perspectiva interdisciplinar, pois assim é possível vincular a teoria à prática e garantir a dialogicidade entre as perspectivas. Portanto, a cultura é também elemento fundamental nessa relação. DEFINIÇÃO: A cultura pode ser compreendida como tudo que se relaciona a existência do homem e sua ação e transformação na e da natureza. É o conjunto das suas práticas sociais repletas de símbolos e ritos. É a expressão identitária de um povo por meio de suas tradições, danças, rezas, cantos, arte, gastronomia, lendas, vestuário, entre outros; é aquela que significa e atribui sentido à sua existência. Para Brandão (1985): De modo concreto, a cultura inclui objetos, instrumentos, técnicas e atividades humanas socializadas e padronizadas de produção de bens, da ordem social, de normas, palavras, ideias, valores, símbolos, preceitos, crenças e sentimentos. Destarte, ela abrange o universo do mundo criado pelo trabalho do homem sobre o mundo da natureza de que o homem é parte. (BRANDÃO, 1985, p. 20) Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 39 Mas, a questão que se faz é: qual a relação de arte, cultura e história com a neuroeducação? A relação está na formação interdisciplinar necessária para que você, neuroeducador, possa privilegiar essa visão integral e complexa dos sujeitos com os quais irá estabelecer e promover interações. Essa construção profissional lhe permitirá o respeito à diversidade e o olhar crítico às demandas e respostas para sua prática, permitindo ações recíprocas, humildes, afetivas e, quando necessário, ousadas, conforme aponta Fazenda (2008), resultando não na substituição do conhecimento já instituído, mas sim, sua integração e seleção com vistas à uma ação humana e dialógica. Na articulação das áreas é possível identificar quatro competências necessárias à ação transformadora no que se relaciona à neuroeducação: Figura 11 - Quatro competências fundamentais à neuroeducação Fonte: Elaborada pela autora com base em Fazenda (2008). Assim, na neuroeducação espera-se que o educador tenha clareza da necessidade de ser e se constituir também enquanto profissional interdisciplinar, comprometendo-se com o diálogo e complexidade humana, não privilegiando ou negligenciando nenhum dos aspectos humanos na pesquisa ou na intervenção. Atuação Interdisciplinar e Neuroeducação 40 REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, N. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva. II (1-2), 1997. BRANDÃO, C. R. Educação como cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. COSENZA, R. M. e GUERRA, L. Neurociência e educação: como o cérebro aprende. Porto Alegre: Artmed, 2011. DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. Por que arte-educação? Campinas, SP: Papirus. (Coleção Ágere), 1988. EHRENBERG, A. 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