Prévia do material em texto
Sociedade e ambiente no Brasil Cynthia Roncaglio A força do ambientalismo na sociedade contemporânea O s movimentos ambientalistas que surgiram no último quartel do século XX talvez sejam a maior expressão da revitalização cultural que invade os quatro cantos do planeta e a indicação de novos valores políticos, sociais, éticos e estéticos que orientam a sociedade contemporânea e convidam para a criação de novas formas de interação entre sociedade, indivíduo e natureza. Mas não é exclusividade do século XX a preocupação com a preservação da natureza, o sentimento de responsa- bilidade em relação às outras espécies e o anseio por uma qualidade de vida mais saudável. Já no século XIX, embora restritos às elites econômicas e culturais dos países dominantes, surgiram movimentos preservacionistas que partiam tanto de elementos de uma aristocracia que se via dilapidada pela processo de industrialização como de grupos políticos socialistas e anarquistas que acreditavam na utopia de uma vida comunal em harmonia com a natureza e, ainda – de grande importância para a disseminação dos ide- ais preservacionistas –, os escritores românticos que enalteciam o valor estético da “natureza selvagem”, lugar da descoberta da alma humana, paraíso perdido, refúgio da intimidade, da beleza e do sublime (CASTELLS, 1999, p. 148-153; DIEGUES, 1996, p. 23-25). Foi sobretudo nos Estados Unidos da América do século XIX que surgiram correntes teóricas defendendo duas posições distintas de proteção ao mundo natural, as quais influenciaram outros países e futuras gerações acerca do tema. Uma é a corrente conservacionista, que pode ser sinte- tizada na proposta de Gifford Pinchot, engenheiro florestal que criou o movimento de conservação dos recursos baseado no seu uso racional. Fundamentalmente, Pinchot criticava o desenvolvimento a qualquer custo e defendia o que hoje é conhecido como desenvolvimento sustentável: o uso racio- nal pela geração presente, a prevenção do desperdício e o uso adequado dos recursos naturais para benefício da maioria dos cidadãos. A corrente oposta, preservacionista, sintetizada na proposta de John Muir, que criou a organização Sierra Club, em 1891, baseava-se na reverência à natureza tanto no sentido espiritual como estético. A proteção da natureza se colocava contra a modernidade, a in- dustrialização e a urbanização. Na história ambiental norte-americana, a diferença entre essas duas correntes é geralmente sintetizada como a diferença entre conservação dos recursos e preservação pura da natureza (DIEGUES, 1996, p. 30). A partir daí, foram criadas diversas organizações que, independentemente de suas aborda- gens e propostas de solução para os impasses ambientais, formaram alianças ao longo do século XX em defesa da preservação da natureza mediante os rumos incertos e descontrolados da eco- nomia, da política e das instituições contemporâneas. 91 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Entretanto, foi somente no final dos anos 1960 que os movimentos ambientalis- tas ampliaram as suas fronteiras – antes restritas a alguns membros das elites econô- micas, das universidades e de alguns entusiastas anônimos – para tornarem-se inte- resse também das classes médias e populares, principalmente nos Estados Unidos, na Alemanha e na Europa Ocidental. Nesse período, há uma grande efervescência de ideias e acontecimentos que alimentam diversos tipos de movimentos sociais como o pacifismo, o feminismo e o próprio ecologismo. A força do ambientalismo nas décadas seguintes, em detrimento dos movimentos sindicais e de trabalha- dores, movimentos de contracultura1 como o dos hippies, relacionados à questão de gênero, à defesa de minorias étnicas ou movimentos pela paz não significa, como sugerem alguns analistas, o esvaziamento ou a derrota desses movimentos políticos e sociais. Esse argumento revela-se apenas parcialmente verdadeiro. O que se percebe com mais frequência não é um desmantelamento de outros movi- mentos sociais, mas um entrelaçamento dos interesses desses movimentos (eco- feminismo, indígenas, povos da floresta etc.) e a percepção mais abrangente dos valores éticos que norteiam a relação entre sociedade e natureza, tornando seu enfoque mais complexo e mais amplo do que os movimentos desencadeados pela sociedade moderna. Portanto, faz-se necessário considerar que não há um movi- mento ambientalista, mas diversos e multifacetados movimentos ambientalistas se manifestam de diferentes formas e apresentam especificidades decorrentes do contexto social e cultural em que surgem. Alguns autores fazem inclusive uma distinção entre os movimentos ecologistas e ambientalistas que surgiram a partir da década de 1960, na tentativa de agrupar e distinguir algumas dessas especificidades. Manuel Castells (1999, p. 143-144), por exemplo, compreende que o ambientalismo inclui “todas as formas de comporta- mento coletivo que, tanto em seus discursos como em sua prática, visam a corrigir formas destrutivas de relacionamento entre o homem e seu ambiente natural, con- trariando a lógica estrutural e institucional dominante”. Quanto à ecologia, sob a perspectiva sociológica, o autor entende que é “o conjunto de crenças, teorias e projetos que contempla o gênero humano como parte de um ecossistema mais amplo, e visa a manter o equilíbrio desse sistema em uma perspectiva dinâmica e evolucionária”. Já Enrique Leff (2001, p. 114) faz uma distinção em termos geográficos desses movimentos, comparando os “ecologistas do Norte” aos “ambientalistas do Sul”. O ecologismo dos países industrializados surgiu [...] como uma ética e uma estética da natureza, como uma busca de novos valores que sur- giriam das condições da “pós-materialidade” que produziria uma sociedade da abundân- cia, livre das necessidades básicas e da sobrevivência. São “movimentos de consciência” que desejariam salvar o planeta do desastre ecológico, recuperar o contato com a natureza, mas que não questionam a ordem econômica dominante. Por sua vez, os movimentos ambientalistas dos países do Sul surgem da destruição da natureza em decorrência da usurpação das suas formas de vida e de seus meios de produção. E, ainda, Não há um movimento ambientalista, mas diversos e multifacetados movimentos ambientalistas. 1 Segundo Castells (1999, p. 147), contracultura é toda tentativa deliberada de viver segundo normas diver- sas e, até certo ponto, contra- ditórias em relação às normas institucionalmente reconhe- cidas pela sociedade, e de se opor a essas instituições com bases em princípios e crenças alternativas. Sociedade e ambiente no Brasil 92 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br [...] são movimentos desencadeados por conflitos sobre o acesso e o controle dos recursos; são movimentos pela reapropriação social da natureza vinculados a processos de demo- cratização, à defesa dos seus territórios, de suas identidades étnicas, de sua autonomia po- lítica e sua capacidade de autogerir suas formas de vida e seus estilos de desenvolvimento. São movimentos que definem condições materiais de produção e os valores culturais das comunidades locais. Todos esses movimentos originaram-se e deram origem a teorias e práticas que têm se consolidado no que se pode chamar de escolas atuais do pensamento ecológico. Segundo Diegues (1996, p. 39-51), o novo ecologismo baseia-se na crí- tica da sociedade tecnoindustrial, cerceadora das liberdades individuais, homoge- neizadora das culturas e, sobretudo, destruidora da natureza. Nos Estados Unidos, ele foi inspirado por escritores como Henry Thoreau e Gary Snyder, como tam- bém por Barry Commoner, Ehrlich e Rachel Carson. Na França, por Ivan Illich, Serge Moscovici e René Dumont. Alguns temas, como a luta contra as centrais nucleares, uniu as diferentes concepções de ecologismo. Porém, outros, como a proteção do mundo selvageme o crescimento populacional, provocam divergên- cias inconciliáveis. Há atualmente dois principais enfoques sobre a relação entre homem e natureza. O primeiro, biocêntrico ou ecocêntrico, considera a natureza como um valor em si mesma, independente do interesse humano. O ser humano é considerado como qualquer outro ser vivo. Os ecologistas biocêntricos advogam também uma diminuição do crescimento populacional e a redução da população em termos absolutos. Já o enfoque antropocêntrico não considera a natureza como um valor em si, mas como “recursos naturais” a serem explorados pelos homens. Baseia-se numa visão dicotômica de homem e natureza, na qual o primeiro tem domínio, por meio da ciência e da técnica, sobre a última. Com base nesses enfoques, ainda segundo Diegues (1996), pode-se con- siderar três principais correntes do ecologismo, surgidas a partir dos anos 1960, em contraposição à “proteção da natureza” nos moldes das instituições e pensa- mento do século XIX (sociedades de proteção da natureza, da vida selvagem, dos animais etc.). Sucintamente, essas correntes podem ser caracterizadas conforme abaixo. Ecologia profunda – A expressão foi cunhada pelo filósofo Arne Naess, em 1972, com o sentido de ampliar a noção de ecologia somente como ciência e destacar um nível mais profundo da consciência ecológica. É um enfoque preponderantemente biocêntrico, mas influenciado por re- ligiões orientais e ocidentais, aproximando-se frequentemente de uma quase adoração da natureza. Adere aos princípios dos direitos intrínsecos da natureza, dando grande importância aos princípios éticos que devem reger as relações entre homem e natureza. Alguns princípios da ecolo- gia profunda são criticados pelos ecologistas sociais, por serem consi- deradas posições neomalthusianas (defesa do decréscimo da população, por exemplo) e o perigo do ecofascismo embutido na ideia de um certo biologicismo das relações sociais que deveriam se inspirar na natureza como modelos para a sociedade humana. Sociedade e ambiente no Brasil 93 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Ecologia social – O principal mentor desta corrente é Murray Bookchin, professor norte-americano de ecologia social e conhecido ativista am- biental. Ele criou a expressão em 1964. Para esta corrente, a degradação ambiental é vista como diretamente ligada ao capitalismo. Como os mar- xistas, os defensores da ecologia social veem na acumulação capitalista a força motriz da devastação do planeta, mas se afastam dos marxistas clássicos ao criticarem a noção de Estado e ao proporem uma sociedade democrática, descentralizada e baseada na propriedade comunal da pro- dução. São considerados, por isso, anarquistas e utópicos. Consideram os seres humanos primeiramente como seres sociais e não uma espécie diferenciada, como o fazem os ecologistas profundos. Sob um enfoque ecocêntrico, considera o equilíbrio e a integridade da biosfera como um fim em si mesmo e que o homem deve mostrar respeito à natureza. Ecossocialismo/ecomarxismo – Decorre da crítica interna dos marxistas ao marxismo clássico, a partir da década de 1960, referente à concepção do mundo natural. Para os ecomarxistas, a visão de Marx sobre a natureza é estática, pois a considera apenas em virtude da ação transformadora do homem, por meio do processo do trabalho. Segundo Hobsbawm, um dos que defendem tal ponto de vista, Marx se preocupou fundamentalmente com a explicação do sistema capitalista, no qual a natureza já era merca- doria, objeto de consumo ou meio de produção, e marginalmente com as sociedades primitivas, nas quais o mundo natural foi pouco modificado por causa do pouco desenvolvimento das forças produtivas. Outros au- tores definem o conceito de forças produtivas da natureza (fotossíntese, cadeias tróficas, depuração de ecossistemas) para entender as sociedades capitalistas. Um conclamado autor dessa corrente é o neomarxista Mos- covici, que em 1969 escreveu La societé contre nature, influenciando grande parte do movimento estudantil. Moscovici, na década de 1970, reaproveitou os trabalhos de juventude de Marx para entender a rela- ção entre homem e natureza. Ele critica a oposição entre culturalismo e naturalismo. Situa o primeiro como uma visão ortodoxa na história das ideias ocidentais e o segundo como heterodoxa e minoritária no conjunto dessas ideias. Afirma, porém, que o naturalismo está em plena mutação, deixando de ser uma negação do culturalismo, passando de uma proteção ingênua do mundo para a afirmação de uma nova relação entre homem e natureza. Esse novo naturalismo, segundo Moscovici, baseia-se em três ideias principais: 1) o homem produz o meio que o cerca e é ao mesmo tempo seu produto; 2) a natureza é histórica (o problema que se coloca hoje é encontrar o estado da natureza conforme nossa situação histórica); 3) a coletividade e não o indivíduo se relaciona com a natureza. O que Moscovici propõe é uma nova utopia, segundo Diegues, na qual é neces- sário não um retorno à natureza, mas uma nova relação entre homem e natureza, baseada numa nova aliança, na qual a separação seja substituí- da pela unidade. Sociedade e ambiente no Brasil 94 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A criação de organizações não governamentais ambientalistas O crescente impacto que as atividades humanas geram na natureza e a per- cepção da degradação ambiental em escala local e mundial deu origem não só a movimentos de conscientização ecológica, com diferentes paradigmas de ra- cionalidade ambiental, mas também a ações diversas com o objetivo de influir na legislação, nas atitudes tomadas pelo Estado, pelos governos e pelo mercado. Tais ações surgem de grupos ambientalistas organizados, na sociedade civil, que passaram a usar a expressão organizações não governamentais (ONGs) nos anos 1960 e 1970. Em âmbito mundial, a expressão foi usada pela primeira vez pela Organização das Nações Unidas (ONU) após a Segunda Guerra Mundial, para designar organizações supranacionais e internacionais que não foram estabeleci- das por acordos governamentais. A primeira ONG ambientalista internacional, a World Wildlife Fund (WWF), foi criada em 1961, para dar apoio a uma outra instituição ambien- tal científica, chamada International Union for Conservation of Nature and Na- tural Resources (IUCN), que encontrava-se em dificuldades financeiras. Mas a WWF acabou por enveredar por caminhos mais autônomos, menos subordinados à IUCN. Em poucos anos, já havia formado bases na Inglaterra, Áustria, Estados Unidos da América, Suíça, Holanda e Alemanha. Em dez anos, possuía base em 20 países (LEIS, 1999, p. 102). A WWF é uma organização de caráter eminen- temente conservacionista, com projetos voltados para espécies individuais, áreas virgens, educação ambiental etc. Outra organização mundial importante é o Greenpeace. Fundado em Van- couver, no Canadá, em 1971, e tendo sua sede transferida posteriormente para Amsterdã, na Holanda, é provavelmente a organização mundial mais conhecida pelas ações espetaculares e não violentas, orientadas propositadamente para cau- sar impacto na mídia mundial sobre os problemas ambientais globais e pressionar governos e empresas a tomarem iniciativas cabíveis diante das denúncias ou en- frentarem a publicidade negativa em decorrência de suas ações prejudiciais ao am- biente (CASTELLS, 1999, p. 150). O Greenpeace, segundo Castells, diferencia-se da maior parte dos movimentos ambientalistas por três razões. 1.a Noção de urgência em relação ao iminente desaparecimento da vida no planeta, inspirada na lenda de índios norte-americanos que diziam que [...] quando a terra cair doente e os animais tiverem desaparecido, surgirá uma tribo de pessoas de todos os credos, raças e culturas que acreditará em ações e não em palavras e devolverá à Terra sua beleza perdida. A tribo se chamaráGuerreiros do Arco-íris. (EYRMAN; JANISON apud CASTELLS, 1999, p. 150) 2.a Coloca-se como testemunha dos fatos, tanto como princípio para a ação como estratégia de comunicação. 3.a Adota uma atitude pragmática, do tipo empresarial. Agir é fundamental: não há tempo para discussões filosóficas. Sociedade e ambiente no Brasil 95 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Os “guerreiros do arco-íris”, inimigos do modelo de desenvolvimento que ignora os seus efeitos sobre a vida no planeta, desenvolvem suas ações em torno do princípio da sustentabilidade ambiental e possuem uma rede de escritórios na América do Norte, na América Latina, na Europa e na região do Pacífico. Levantamentos realizados no início dos anos 1980 indi- cavam que as ONGs haviam se espalhado pelo mundo inteiro, sendo que cerca de 80% dessas ONGs eram atuantes nos países do Norte e 20% nos países do Sul. Tais estimativas evidente- mente não incluem os inúmeros movimentos ambientalistas que atuam de maneira informal, sem registro jurídico nos países do Sul. De qualquer modo, além da diferença dos números das organizações, as estratégias e ideologias dessas ONGs também diferem entre si. Conforme Leis (1999, p. 109), nos países do Norte, inicialmente predominava uma certa visão etnocêntrica, o que levava algumas organizações ambientalistas a considerarem mais graves os problemas ambientais do Sul – crescimento da população ou desaparecimento das florestas tropicais – do que os modelos de consumo ou de uso intensivo de combustíveis fósseis exportados mundialmente pelos países do Norte. Nos países do Sul, ao contrário, a percepção da crise ecológica era rela- tivizada diante dos problemas da pobreza e da falta de infraestrutura e serviços básicos. No Norte, também há uma tendência a enfocar os problemas globais, enquanto o Sul volta-se para os problemas domésticos. Na década de 1980, quando o processo de globalização e do ambientalismo ainda não era tão visível e/ou definitivo, podia-se pensar em alternativas para es- ses impasses entre Norte e Sul. Hoje, no entanto, [...] a partir da progressiva constituição de numerosas redes ambientalistas globais e da ar- ticulação mundial de diversos setores da sociedade em defesa do meio ambiente, não resta dúvida de que o ambientalismo é cada vez mais uma realidade global na qual seus diversos aspectos e setores se interpenetram profundamente, alterando assim suas identidades e visões orginais. (LEIS, 1999, p. 109) No Brasil, entre as primeiras organizações de caráter mais conservacionista, constam a Associação de Defesa do Meio Ambiente de São Paulo (Ademasp), criada em 1954 por três jo- vens estudantes, e a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), criada em 1958, no Rio de Janeiro, por um grupo variado de pessoas entre os quais botânicos, zoólogos, jornalistas e “amantes da natureza”. Em 1986, foi criada a SOS Mata Atlântica. A maioria das ONGs brasileiras surgiu, em grande parte, nas décadas de 1970 e 1980, em geral vinculadas a outras organizações de apoio a movimentos sociais e organizações populares e de base comunitária, com o objetivo de promover a cida- dania e lutar pela democracia política e social. Os números acerca da quantidade de ONGs ambientalistas e ativistas são vagos e imprecisos. Dean (1996, p. 345) registra que em 1984 havia notícia de 55 organizações não governamentias preo- cupadas com meio ambiente. Em 1992, durante a Eco-92, contabilizava-se cerca de duas mil organizações não governamentais, das quais a SOS Mata Atlântica era a maior, com cerca de cinco mil membros. A média, no entanto, seria muito menor, em torno de cem membros. Levantamentos realizados no início dos anos 1980 indicavam que as ONGs haviam se espalhado pelo mundo inteiro. A maioria das ONGs brasileiras surgiu, em grande parte, nas décadas de 1970 e 1980. Sociedade e ambiente no Brasil 96 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As primeiras ONGs ambientalistas brasileiras, portanto, são de caráter mais preservacionista e, posteriormente, emergiram outras associadas a movimentos sociais diversos, buscando desenvolver ações ambientais, atuação política no cam- po da construção e consolidação de direitos sociais e do fortalecimento da socie- dade civil. Ao longo da década de 1990, surgiram novas organizações privadas sem fins lucrativos com perfis e perspectivas de atuação e transformação social muito diversas. A expressão ONG passou a encampar um grande conjunto de or- ganizações que muitas vezes não guardam semelhanças entre si. Ainda que as ONGs tenham perdido suas características originais de uma espécie de contraponto às políticas públicas governamentais ou de coadjuvante na elaboração e monitoramento de projetos e programas de empresas e governos, não resta dúvida de que elas trouxeram uma contribuição original para a política mundial contemporânea, ampliando e dando um novo significado ao papel dos indivíduos e dos grupos sociais na esfera pública. Mas, conforme Leis (1999, p. 110-111), o papel das ONGs no plano local, embora importante, não chega a ser tão significativo quanto no plano mundial, porque O Estado ainda possui (e seguirá possuindo) legitimidade e uma capacidade relativa (maior ou menor, dependendo dos casos) para enfrentar os problemas locais. Porém, frente aos problemas globais socioambientais e a globalização econômica, o sistema político inter- nacional baseado em Estados soberanos não possui (nem possuirá) nenhuma capacidade efetiva para abordá-los no futuro fora do plano retórico. Por essa razão, a governabilidade dos problemas globais depende hoje mais da sociedade civil mundial do que dos Estados. Movimentos sociais e ambientalismo no Brasil No Brasil, as entidades de conservação mais antigas como a FBCN, e outras mais recentes, como Fundação Biodiversitas, Pronatura etc., são mais ligadas a enti- dades internacionais de preservação e sofreram bastante influência da corrente preser- vacionista norte-americana. Em geral, seus membros são constituídos por profissio- nais provenientes da área de ciências naturais, para os quais qualquer interferência humana no curso da natureza é negativa e permanece o mito da natureza intocada e intocável, que deve ser preservada a qualquer custo. Assim, as unidades de conser- vação, para esses preservacionistas, não podem proteger a diversidade biológica e a diversidade cultural ao mesmo tempo. Tal posição tem gerado polêmicas e ques- tionamentos num país como o Brasil, em que populações indígenas, ribeirinhos, seringueiros e pescadores dependem dos recursos naturais para sobreviver e, simul- taneamente, mantêm fortes vínculos culturais com o mundo natural. Por outro lado, no início da década de 1970, sob a ditadura militar que repri- mia os movimentos sociais e todas as formas de protesto, surgiu uma brecha para um ecologismo de denúncia no Brasil, desvinculado dos partidos e movimentos políticos de esquerda, então severamente combatidos pelo governo. Tais entidades e movimentos criticavam o modelo econômico brasileiro, baseado na implantação de projetos governamentais e de empresas privadas que causavam grandes impactos sobre a natureza, como a instalação de centros químicos e petroquímicos, implanta- dos ou ampliados nas zonas litorâneas do país (Cubatão, Rio de Janeiro, e Aratu, na Bahia). Outro alvo dos ambientalistas era o avanço da agroindústria, que aumentou Sociedade e ambiente no Brasil 97 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br tanto o uso de biocidas e pesticidas como a concentração de terra e renda nas zonas rurais, com a consequente expulsão de milhares de trabalhadores do campo para as cidades, gerando aumento de favelas e miséria nos grandes centros urbanos. Em 1976, José Lutzemberger (que mais tarde seria ministro do Meio Am-biente, no governo Collor) lançou o Manifesto ecológico brasileiro: o fim do futuro (1976), representando dez organizações ecologistas. Semelhante ao discurso das en- tidades preservacionistas norte-americanas e europeias, e influenciado pelo relató- rio do Clube de Roma, esse manifesto atacava a tecnocracia2 brasileira, responsável pelos grandes projetos, sobretudo os que começavam a ser implantados na Amazô- nia, o militarismo, a sociedade do desperdício, o consumismo. Destacava, em con- traposição ao modelo de colonização predatória, a relação entre homem e natureza estabelecida pelas sociedades tradicionais, como as dos índios e dos camponeses. Defendia ainda a criação de áreas naturais protegidas e criticava o abandono em que estavam os poucos parques nacionais brasileiros. O manifesto propunha como solução para os males da ideologia do progresso, seja de esquerda ou de direita, uma sociedade que se assemelhasse ao funcionamento da natureza, homeostática, equi- librada, de acordo com as leis naturais. Em meados da década de 1980, com o fim da ditadura mili- tar e com o processo de redemocratização do país, desponta o eco- logismo social (também denominado no Brasil como ambientalis- mo camponês) com uma crítica ao modelo de desenvolvimento altamente concentrador de renda e destruidor da natureza, que teve o seu apogeu durante os anos 1970 e foi conhecido como “milagre econômico”. A grande destruição da Floresta Ama- zônica por meio da construção de barragens, da destruição dos seringais etc. propiciou a emergência de um ecologismo entre aqueles que lutam por manter o acesso aos recursos naturais dos seus territórios, valorizam o extrati- vismo e o sistema de produção baseado em tecnologias alternativas. O ecologismo social é representado pelo Conselho Nacional de Seringueiros, Movimentos dos Atingidos pelas Barragens, Movimento dos Pescadores Artesanais, movimentos indígenas etc. Para esses movimentos de cunho social e ambientalista, é preciso repensar a função dos parques nacionais e reservas ecológicas, incluindo os seus moradores tradicionais (DIEGUES, 1999, p. 130). Como se pode observar, o ambientalismo que emerge no Brasil é de cunho conservacionista, voltado para proteção da natureza, não da sociedade. Em parte, isso se deve aos vínculos e à influência, nos ambientalistas locais, dos movimentos ambientalistas norte-americanos, mas deve-se também à própria compartimenta- ção da ciência. Como a maioria dessas organizações são criadas por estudantes ou cientistas, cabe (ou cabia) aos biólogos a defesa das plantas e dos animais; aos antropólogos, a defesa dos índios; aos engenheiros, das bacias hidrográficas; aos urbanistas, a defesa dos ambientes criados e assim por diante. A complexidade da questão ambiental no Brasil começou a ser internalizada pelos diversos atores sociais somente no final da década de 1990. E o diálogo é quase sempre tenso, não só pelas diferentes abordagens ideológicas existentes so- bre o tema mas sobretudo porque do ponto de vista econômico e político, e apesar de todos os discursos oficiais e oficiosos sobre sustentabilidade ambiental, o meio ambiente ainda é visto como uma pedra no caminho do desenvolvimento. Somente Em meados da década de 1980, com o fim da ditadura militar e com o processo de redemocra- tização do país, desponta o ecologismo social. 2Tecnocracia: sistema de organização política e social fundado na suprema- cia de técnicos que buscam apenas soluções técnicas ou racionais para os problemas, sem levar em conta aspectos humanos ou sociais. Sociedade e ambiente no Brasil 98 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br com a pressão de diversos segmentos sociais, nacionais e interna- cionais, as empresas públicas e privadas passaram a formalizar, no discurso e na lei, a necessidade de pensar o desenvolvimento sustentado. No âmbito do planejamento e do gerenciamento do Estado e das empresas, incluindo aí a necessidade de recursos materiais e humanos, há um longo e difícil caminho a percorrer. A complexidade da questão ambiental no Brasil começou a ser internalizada pelos diversos atores sociais. O joio e o trigo entre as ONGs Vilmar Berna1 A sociedade civil, ao se organizar em defesa de seus direitos, cria as chama- das ONGs, organizações não governamentais, que reúnem cidadãos quase sempre voluntários em torno de um conjunto de objetivos e princípios consolidados em estatutos, assembleias, reuniões, diretorias. Entretanto, o compromisso e a luta pelo bem comum não tornam os indivíduos necessariamente melhores. As ONGs são conduzidas por seres humanos e seres humanos erram. Um desses erros é a existên- cia de “ONGs de cartório”, ou seja, instituições que existem apenas em caixa postal, cujos diretores assinam atas de reuniões que não existiram etc. Essas falsas ONGs disputam poder de voto em igualdade de condições com outras ONGs realmente constituídas, gerando distorções no processo democrático e dificuldades na cons- trução e fortalecimento desse segmento na sociedade, além de servirem de verda- deiros “laranjas” para desvio de dinheiro público. Existem ainda empresas privadas que criam ONGs de cartório para beneficiarem-se de isenções fiscais e agregarem valor às suas marcas institucionais, desvirtuando e confundindo a noção de ONGs como organizações que representam os interesses da sociedade civil. Existem ainda as ONGs “de combate”, cujo objetivo principal é reivindicar melhor qualidade de vida e ambiental, e “ONGs profissionais”, que se propõem a irem além da simples reivindicação e buscam se capacitar para a elaboração e a execução de projetos em parceria com governos e empresas ou usando re- cursos públicos ou privados destinados a projetos. Nem sempre a compreensão entre o trabalho de uma e de outra é bem entendido e não é raro verem-se como adversárias. As ONGs que optaram pela profissionalização argumentam que se elas têm a vontade de defender o meio ambiente, comprometimento cida- dão com a causa ambiental, a compreensão sobre o que é preciso para o meio ambiente, e detêm ainda a capacitação técnica e a experiência em execução de projetos, então por que têm de se limitar apenas a cobrar responsabilidade de governos e empresas. Por que as próprias ONGs não podem também capacitar- -se para executar projetos e serviços ambientais? Por que as ONGs têm de se li- mitar apenas a dizer o que está errado? Por que não podem também se oferecer para dar solução concreta aos problemas que as próprias ONGs apontam? O problema é quando, para forçar os governos ou empresas a contratarem seus serviços, as ONGs profissionais se comportam num primeiro momento como 1Fundador e editor do Jornal do Meio Am- biente e do site <www. jornaldomeioambiente. com.br>, considerados importantes referências na democratização da informação ambiental no Brasil. É autor de mais de 13 livros publicados. Como ambientalista, fundou diversas associa- ções ambientalistas sem fins lucrativos, como os Defensores da Terra, Uni- verde e o IBVA – Instituto Brasileiro de Volun tários Ambientais, do qual é o atual presidente. Em 1999, no Japão, recebeu pela Organização das Nações Unidas o Prêmio Global 500 para o Meio Ambien- te, concedido antes a per- sonalidades como Chico Mendes e Betinho. Em setembro de 2003, Vilmar recebeu também o Prê- mio Verde das Américas. Contatos: vilmarberna @jornaldomeioambien- te.com.br. Site: <www. jornaldo meioambiente. com.br>. Sociedade e ambiente no Brasil 99 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Com base no texto principal e no texto complementar, relacione os aspectos negativos e positi- vos da constituição de ONGs para a preservação ambiental. CAPOBIANCO, João Paulo R. (Coord.). Ambientalismo no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: IEA/Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, 1997. VIOLA, Eduardo.O movimento ecológico no Brasil (1974-1986): do ambientalismo à ecopolítica. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.1, n.3. VIOLA, Eduardo; LEIS, Héctor Ricardo. O ambientalismo multissetorial no Brasil para além da Rio- 92: o desafio de uma estratégia globalista viável. In: VIOLA, Eduardo et al. Meio Ambiente, Desen- volvimento e Cidadania: desafios para as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1995. CAPOBIANCO, João Paulo R. (Coord.). Ambientalismo no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: IEA/Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, 1997. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade: a era da informação – economia, sociedade e cultura. Vol. 2. São Paulo: Paz e Terra, 1999. DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1996. LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis: Vozes, 2001. LEIS, Héctor Ricardo. A Modernidade Insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade con- temporânea. Petrópolis/Florianópolis: Vozes/UFSC, 1999. VIOLA, Eduardo. O movimento ecológico no Brasil (1974-1986): do ambientalismo à ecopolítica. Re- vista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 1, n.1. VIOLA, Eduardo; LEIS, Héctor Ricardo. O ambientalismo multissetorial no Brasil para além da Rio- 92: o desafio de uma estratégia globalista viável. In: VIOLA, Eduardo et al. Meio Ambiente, Desen- volvimento e Cidadania: desafios para as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1995. “de combate”, pressionando e criando dificuldades, e aliando-se a outras organizações de combate na sociedade, para num segundo momento abandonarem essas alianças e negociarem suas posições em troca de um contrato para prestação de serviços ou projetos, oferecendo aos empreendedores a falsa ilusão de que estarão limpando sua imagem ambiental ou pacificando suas relações com as ONGs. Saber a diferença, separar o joio do trigo, ainda será um longo caminho. Sociedade e ambiente no Brasil 100 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br