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Índice
Prazeres
Introdução
I - O CONCEITO E O SENTIDO DO PRAZER
1. Concepções científicas do prazer
Bases científicas do prazer
Definição de prazer
O prazer como meta da vida humana
Teologia do prazer
2. Dimensões do prazer
Dimensão intrapsíquica
Dimensão relacional ou interpessoal
Dimensão afetiva
Dimensão amorosa
Dimensão corporal
Dimensão sexual
Dimensão espiritual
Dimensão cultural
II. O ENSINAMENTO BÍBLICO SOBRE O PRAZER
1. O conceito bíblico de prazer
A concepção positiva do prazer
A concepção negativa do prazer
O prazer no Segundo Testamento
2. Os prazeres divinos
O prazer de criar e de se divertir
O prazer de agraciar e de perdoar
O prazer de dar a vida
Jesus: o prazer do povo
3. Os prazeres humanos
Vida prazerosa
O cultivo do prazer como vocação
O prazer sexual
Prazer sexual libertador
A abstenção do prazer sexual não é virtude
O prazer sexual como experiência espiritual
4. Os prazeres desumanos
A mercantilização do prazer
3
Os prazeres que desumanizam
Por que esses prazeres desumanizam?
III. O TEMA DO PRAXER NA HISTÓRIA DA IGREJA
1. Do seguimento prazeroso de Jesus à abolição do prazer
A incursão do dualismo grego
A maleficência do maniqueísmo
2. A relação entre prazer, sexo e pecado
Pedagogia do “quebra-molas”
Resgate do valor do prazer sexual
A mulher como símbolo do prazer degenerado
3. Um cristianismo triste e assustador
O resgate da beleza do prazer
O atual retorno ao dualismo e maniqueísmo
IV. AFIRMAÇÕES TEOLÓGICAS PARA UMA VIDA PRAZEROSA
1. Prazer: plenamente divino e plenamente humano
O valor da experiência de vida
Cristianismo: mística prazerosa
Cristianismo, prazer e ascese
2. Seguir Jesus com prazer
Prazer, discernimento e responsabilidade
Prazer ecologicamente correto
Conclusão
Bibliografia consultada
4
A Dom Angélico Sândalo Bernardino, nosso irmão bispo,
pastor amoroso, profeta da justiça e defensor dos pobres,
com quem temos o prazer de saborear uma gostosa amizade.
Às amigas e aos amigos de Araci (BA), Borda da Mata
(MG), Distrito Federal, Itaparica (BA), Frei Paulo (SE),
Nápoles (Itália), Pouso Alegre (MG), Riachão do Jacuípe
(BA), Rio de Janeiro (RJ), Roma (Itália), Salvador (BA),
“Bairro” Paredes em Tocos do Mogi (MG), Vitória da
Conquista (BA), com os quais temos o prazer de conviver
numa sincera e profunda amizade.
5
Prazeres
O primeiro olhar da janela de manhã.
O velho livro de novo encontrado.
Rostos animados.
Neve, o mudar das estações.
O jornal.
O cão.
A dialética.
Tomar banho, nadar.
Velha música.
Sapatos cômodos.
Compreender.
Música nova.
Escrever, plantar.
Viajar, cantar.
Ser amável.
Bertold Brecht, poeta e dramaturgo alemão
(1898 – 1956)
6
INTRODUÇÃO
Goza a vida... (Ecl 9,9)1*
O tema do prazer ainda é considerado um grande tabu pela maioria dos cristãos.
Embora a Bíblia judaico-cristã veja essa questão com otimismo, a influência
maniqueísta, infiltrada nas comunidades cristãs primitivas, terminou por se impor,
levando o cristianismo a ver o prazer com bastante pessimismo. Atualmente, mesmo
com os grandes avanços provocados por fatos como o Concílio Vaticano II e as
descobertas científicas, a perspectiva ainda é bastante negativa. Nas Igrejas cristãs, o
tema não é tratado explicitamente, a não ser em certas ocasiões e quase sempre para
combatê-lo. Até mesmo textos da ala mais avançada da Igreja Católica tratam o
assunto com muita desconfiança. O documento conclusivo da Conferência de Puebla
(1979), considerado um dos mais ousados da Igreja Católica Romana no pós-concílio
Vaticano II, ainda via o prazer como um ídolo erigido no mundo de hoje (n. 749).
Não faltam esforços, por parte de algumas pessoas e por parte de alguns teólogos,
no sentido de aprofundar a questão numa perspectiva mais positiva. Mas, apesar
desses esforços, o prazer ainda é visto de forma muito negativa e nunca mereceu um
tratado específico de teologia. Isso levou um franciscano, teólogo, bispo e psicólogo a
pedir, no finalzinho do século passado, que os teólogos pensassem numa “teologia do
prazer”.2
Dom Valfredo Tepe, que foi bispo de Ilhéus (BA), Brasil, e um pastor
profundamente identificado com a vida do povo, lamentava um tipo de cristianismo
amarrado a “antigas determinações morais repressivas”, incapazes de apresentar o
lado positivo da fé cristã em questões importantes como “a corporalidade, a
experiência da satisfação, do prazer”, as quais não são por si mesmas pecaminosas.
Em seu livro, que acabamos de citar, Tepe discorre com muita propriedade sobre o
tema do sofrimento humano e insiste muitas vezes na necessidade de se rever certo
ascetismo que tomou conta das Igrejas, especialmente da Igreja Católica Romana.
Denuncia a falácia desse ascetismo que acaba com a alegria de viver e que nos
ensinou a projetar todas as satisfações, gozos, prazeres e gratificações para a outra
vida. Isso fez com que o cristianismo se apresentasse sempre como “estresse
ascético”. Por causa da anatematização do prazer, o cristianismo se tornou a religião
dos “rostos tristonhos, sorumbáticos e macambúzios”.3 Uma religião que não
consegue mais fascinar as pessoas do mundo de hoje, as quais estão cada vez mais
conscientes do valor do prazer e de uma vida prazerosa e gozosa.
Nós resolvemos acolher o convite de Dom Valfredo Tepe e nos atrevemos a
refletir sobre o assunto. Depois de quase dois anos de pesquisas, leituras e estudos,
produzimos o presente texto que agora chega às suas mãos. Temos consciência de
que não esgotamos o assunto, mas esperamos que a nossa iniciativa estimule outros
estudiosos cristãos a aprofundarem ainda mais a questão, ajudando suas Igrejas a
reverem suas posições e a se abrirem mais à positividade da experiência do prazer.
7
O presente estudo começará com uma análise do conceito e do sentido do prazer.
Consideramos fundamental iniciar nossa reflexão apresentando as bases científicas
do prazer. Uma teologia do prazer precisa começar com a constatação de que tal
sensação ou experiência foi colocada no ser humano pelo Criador. As ciências, de
modo particular a Psicologia e a Neurociência, ao desvendarem o mistério do prazer,
nos revelaram a criatividade divina que, ao “modelar” (cf. Sl 139,13-15) a pessoa
humana, dotou-a de tão complexo dinamismo. As ciências nos ajudam a perceber que
o prazer faz parte da natureza humana, assim como foi pensada, sonhada e criada por
Deus. A partir dessa perspectiva, fazemos um estudo de algumas dimensões do
prazer, com a finalidade de ajudar os leitores e as leitoras a perceberem ainda mais a
bonita complexidade desse fantástico estado emocional humano.
Na segunda parte do nosso texto apresentaremos o ensinamento bíblico sobre o
prazer. Não foi fácil abordar esta questão, dada a escassez de pesquisas e publicações
específicas sobre o assunto, especialmente aqui no Brasil. As pesquisas que fizemos
apontam inicialmente que há na Bíblia uma concepção positiva do prazer, embora
não faltem textos que alertam sobre o risco de uma busca de prazer que desumaniza.
Porém, como veremos mais adiante, a Palavra de Deus não demoniza a experiência
prazerosa. Pelo contrário, convida o ser humano a viver prazerosamente sob a guia e
proteção divinas. Para evidenciar esse aspecto positivo, antes de mencionar os
prazeres humanos recomendados pela Bíblia, falamos dos “prazeres divinos”. Algo
muitas vezes inédito, já que o cristianismo do “ascetismo mórbido” (TEPE) nos
acostumou com a imagem de um Deus sempre irado e irritado com a possibilidade de
um ser humano alegre e feliz. Somente ao final desse capítulo apresentamos algumas
indicações bíblicas acerca de um tipo de prazer que pode alienar e desumanizar.
Após apresentar as bases científicas do prazer e a visão bíblica sobre o tema,
faremos uma reflexão sobre a forma como o prazer foi visto ao longo da história da
Igreja. Nesse capítulo, mostraremos como o cristianismo, de seguimento prazeroso
de Jesus, se transformou na religião da abolição do prazer. Veremos que isso se deu
pela incursão do dualismo grego e do maniqueísmo maledicente nas comunidades
cristãs. Alémdisso, refletiremos sobre a relação que se criou entre prazer, sexo e
pecado, fazendo com que as Igrejas introduzissem regras bem rígidas a esse respeito,
as quais passaram a funcionar como verdadeiros “quebra-molas” que visam frear o
gozo e o prazer. Depois dessas observações mostraremos que, em toda essa história, a
mulher pagou um preço amargo, uma vez que ela foi considerada o símbolo do prazer
degenerado. Concluiremos o capítulo afirmando que todas essas coisas
transformaram o cristianismo em uma experiência triste e assustadora e que
precisamos continuar vigilantes, uma vez que no atual contexto estão retornando
formas cristãs dualistas e maniqueístas.
No último capítulo, apresentaremos algumas afirmações teológicas acerca de uma
vida cristã prazerosa. Insistiremos na necessidade de ver o prazer como uma realidade
plenamente divina e plenamente humana e, em consequência, olhar para o
cristianismo como mística prazerosa. Mas, para que isso aconteça, será indispensável
repensar a relação entre seguimento de Jesus, prazer e ascese. Embora parte essencial
do discipulado, esta precisa ser revista, de tal modo que não tire do cristianismo a sua
dimensão gozosa. Isso significa que a vivência cristã do prazer inclui um processo de
8
discernimento e uma educação para a responsabilidade, de modo que se possa falar de
uma vida prazerosa ecologicamente correta, entendo por ecológico um estilo de
existência que humanize sempre e cada vez mais.
Nosso estudo se concluirá com uma reflexão acerca da necessidade de que as
Igrejas renunciem à pretensão de querer controlar, a todo custo, a vida das pessoas.
Elas precisam mudar de pedagogia, uma vez que a atual pedagogia do controle e da
imposição não funcionou e terminou por lançar os fiéis nas mãos da indústria do
prazer. Propomos que as Igrejas sejam mais propositivas e educadoras, em vez de
funcionarem como agências de controle dos crentes. Eduquem seus fiéis para a
autonomia, para a condição de pessoas adultas, para a responsabilidade e, sobretudo,
para a sensibilidade à voz da consciência, tida como a voz de Deus dentro do ser
humano.
Este texto destina-se a todos os cristãos e a todas as cristãs de todas as Igrejas, sem
exceção, e que queiram aprofundar essa temática tão vital e tão marcante para a vida
humana. Destina-se também a todos os homens e a todas as mulheres de boa vontade
que, embora não professem a fé cristã, desejam ter uma compreensão mais positiva
do tema do prazer na perspectiva do cristianismo. Mesmo conscientes de que não
exaurimos a temática proposta, optamos por manter o simples título Teologia do
prazer, sem mais substantivos ou adjetivos qualificativos. Com isso queremos
ressaltar o caráter teológico do tema, diante de todo o desgaste a que foi submetida a
questão do prazer dentro do cristianismo e ao longo dos séculos.
Afirmamos, pois, que o conteúdo deste texto que você está para estudar é de
ordem teológica, ou seja, uma reflexão lógica e metódica sobre um tema que está
relacionado com a fé cristã e que associa o crer e o pensar. Está fundamentado na
Palavra de Deus, centrado na pessoa de Jesus Cristo, o Filho revelador do Pai, e busca
ser fiel a uma inspiração do Espírito Santo. Embora o próprio tema, o seu conteúdo e
as suas propostas pareçam dizer o contrário, nosso objetivo é submeter a questão do
prazer à razão dialética,4 argumentando segundo os princípios racionais, mas sempre
à luz da fé que aceita Jesus Cristo como o Salvador do mundo (cf. Jo 4,42). Desde os
tempos das primeiras comunidades cristãs foi ficando sempre mais evidente que os
discípulos e as discípulas de Jesus não só devem crer, mas precisam crer de maneira
inteligente. O ato de crer não é, como costumam afirmar alguns, um simples “salto no
escuro”, como se Deus quisesse a nossa adesão à sua vontade sem nenhum
questionamento e sem nenhum pedido de compreensão. Ao criar o ser humano à sua
imagem e semelhança, o Criador o dotou de razão e de inteligência. Por isso é mais
do que normal querer compreender enquanto se busca crer. A pregação sobre a
renúncia a tentar compreender os mistérios da fé cristã é mais uma dessas terríveis
falácias inventadas pelo sistema eclesiástico com a simples finalidade de manter o
povo cristão subjugado e resignado aos seus caprichos.5
Como pensamos este texto para todos os cristãos e para todas as cristãs e para as
pessoas de boa vontade, decidimos por incluir várias notas de rodapé, visando ajudar
aqueles e aquelas que não estão familiarizados com certos termos teológicos e
científicos a compreender melhor o seu conteúdo. Pedimos desculpas aos irmãos e às
irmãs iniciados ou especialistas no assunto por esse detalhe, mas estamos
convencidos de que vocês saberão compreender essa necessidade, solidarizando-se
9
com as pessoas que não estão acostumadas com o linguajar teológico e técnico.
Fazemos votos de que este livro toque o coração de muitas pessoas, desperte-nos
para a beleza do prazer, estimule em todos nós uma vida prazerosa, responsável e
solidária e suscite em muitas outras pessoas o desejo e a vontade de aprofundar ainda
mais essa temática tão bonita e profundamente cristã.
1 *As citações bíblicas são retiradas da Bíblia Tradução Ecumênica (TEB), São Paulo, Loyola, 1994,
exceto quando optamos por uma tradução mais livre, feita a partir dos originais ou da indicação de
determinados autores.
2 Cf. Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 24-25.
3 Cf. ibid., p. 25-27.
4 Por razão dialética entendemos aqui uma reflexão conduzida de forma racional e processual e que leva em
conta a possibilidade de argumentações e reflexões diferentes que precisam ser ouvidas, acolhidas e
profundamente consideradas. Na reflexão racional dialética, as pessoas se posicionam de uma forma clara e
evidente, mas permanecem abertas para escutar o que outras têm a dizer sobre o assunto. Elas não acreditam
que suas palavras são as únicas verdadeiras, mas querem dialogar com posições diferentes. E essa é a nossa
intenção neste texto. Acerca do conceito de dialética, veja-se Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia,
São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 315-322.
5 Acerca da necessária relação entre crer e compreender o que se crê, veja-se Félix Alejandro PASTOR,
“Teologia e Modernidade: alguns elementos de epistemologia teológica”, em José TRASFERETTI e Paulo
Sérgio Lopes GONÇALVES (orgs.), Teologia na Pós-Modernidade. Abordagens epistemológica, sistemática
e teórico-prática, São Paulo, Paulinas, 2003, p. 71-101.
10
I
O CONCEITO E O SENTIDO DO PRAZER
A vocação natural do homem é o prazer, a satisfação e o divertimento, em todos os níveis de seu ser.
(Giacomo Dacquino)
Antes de nos adentrar na reflexão teológica propriamente dita sobre a temática do
prazer é indispensável compreendermos, da melhor maneira possível, o significado e
o sentido do prazer. Isso é necessário para não corrermos o risco de fazer uma
reflexão ambígua e superficial. Para realizar essa tarefa, vamos pedir o auxílio de
algumas ciências, de modo particular à Psicologia1 e à Neurociência.2 Ao tentar
descrever o conceito de prazer, temos presente que a pessoa humana foi criada à
imagem e semelhança de Deus também na sua constituição física e biológica (cf. Gn
1,26-27.31; Sl 139,13).3 Assim sendo, toda a complexa dinâmica do prazer,
constitutiva do ser humano, enquanto participante da condição biológica, faz parte do
projeto criador de Deus. Ele quis o homem e a mulher assim como são, também em
sua corporalidade. Por isso não se pode afirmar que o que vamos ver a seguir nada
tem a ver com o projeto de Deus. Isso é sumamente importante para superarmos
concepções arcaicas, ultrapassadas, fundamentalistas e maniqueístas que,
infelizmente, ainda povoam o nosso imaginário, especialmente o imaginário
religioso, quando falamos do tema do prazer.
1. Concepções científicas do prazer
Quando falamos de prazer normalmente temos em mente uma série de definições
e de concepções. Tais definições e concepções dependem muito das nossas
experiênciasde vida e da ideologia que norteia o nosso dia a dia. Mas, ao
perguntarmos às ciências, geralmente encontramos definições simples e claras. O
prazer seria a “sensação derivante da percepção sensitiva que se pode instaurar
quando se satisfaz uma necessidade ou se espera por sua satisfação”.4 Continuando a
sua reflexão, o autor citado afirma que o prazer está relacionado também com a
sensação de emoções, de estados de humor, percebidos como “aprazíveis e podem,
portanto, ser saboreados, gozados, ao contrário de seus opostos”.5
Bases científicas do prazer
O prazer se verifica segundo certo procedimento. Partindo dos órgãos do sentido,
os estímulos sensoriais chegam ao córtex (cérebro), que os coordena e os decodifica
como situação de prazer (ou o contrário) e ativa, via descendente, sistemas
autônomos de resposta.6 O toque e o tato possuem um papel significativo nesse
processo:
Entre os movimentos do corpo, o tocar-se e o contato corpóreo é um dos sinais mais significativos para
11
comunicar emoções: a criança assustada corre para os braços dos pais, e, também, entre adultos que se
amam, procura-se esse contato.7
A neurociência já conseguiu provar que o funcionamento do prazer se dá a partir
de diversas áreas cerebrais, da secreção de diversos hormônios e da ativação de
infinitos neurotransmissores. E o mais bonito de tudo isso é que tal processo já se
encontra na pessoa desde o seu nascimento. Em alguns casos, como o do prazer
sexual, o organismo humano espera pelo amadurecimento de outras áreas que irão
produzir determinados hormônios e preparar o ser humano para o prazer. Porém, com
relação à sexualidade, já seria possível inclusive falar de prazer sexual antes da
puberdade, mesmo que o organismo não esteja pronto para a reprodução.
Isso, de alguma forma, leva a supor que a sexualidade não estaria restrita ao aspecto reprodutivo nem ao
ato sexual propriamente dito, ainda que esses comportamentos possam corresponder à finalização do
processo maturacional seja ele ontogenético ou filogenético.8
Nesse processo, papel significativo cabe à ocitocina (ou oxitocina), um
componente da rede neurofisiológica que acompanha a resposta aos estímulos de
prazer e atua na produção de emoções e de sensações.9 A ocitocina é uma substância,
um hormônio nonapepídeo secretado no núcleo paraventricular do hipotálamo e
depois armazenado na neuro-hipófise e que atua principalmente no sistema límbico,
que é o sistema responsável pelas emoções. É, pois, uma substância química que está
por trás de sentimentos e de emoções que, na maioria das vezes, são vistos apenas de
maneira abstrata e meramente poéticas. Estudos de monitoramento de microdiálise
intracerebral no núcleo supraóptico e no núcleo paraventricular do hipotálamo
revelaram que as liberações de ocitocina ocorrem no interior da amígdala e do septo,
regiões do sistema límbico. Ficou provado o papel central da ocitocina sobre as
emoções e, consequentemente, sobre o prazer, não se tratando, portanto, de meros
sentimentos abstratos, como se chegou a pensar no passado.10
Podemos, então, afirmar que existe uma anatomia do prazer que, por sua vez, está
ligada à anatomia das emoções. Trata-se, na verdade, de respostas psicológicas a
determinados estímulos. No caso do prazer, temos uma resposta psicológica, nem
sempre consciente, que nos faz buscar aquilo que nos pode causar bem-estar,
harmonia e felicidade.
Emoções são geradas no sistema límbico: um conglomerado de estruturas situado abaixo do córtex. Esse
processo se deu muito cedo na história dos mamíferos. Nos humanos está conectado às áreas corticais,
desenvolvidas recentemente. O tráfego de duas vias entre o sistema límbico e o córtex permite que as
emoções sejam vivenciadas de forma consciente e que os pensamentos as afetem. Cada emoção é
produzida por uma rede diferente de módulos cerebrais, incluindo o hipotálamo e a hipófise; estes
controlam os hormônios que provocam reações físicas como aumento da frequência cardíaca e contração
muscular.11
O prazer tem origem num processo fantástico do corpo humano. A natureza – ou,
se quisermos, o Criador – dotou o ser humano com essa capacidade maravilhosa.
Substâncias aditivas ativam o sistema de recompensa e proporcionam a sensação de
bem-estar. O caminho do prazer “começa na área tegmentar ventral, e a liberação de
dopamina é desencadeada no núcleo accumbens. A partir daí, estende-se ao córtex
12
pré-frontal”.12 O accumbens é uma estrutura de cerca de um centímetro de diâmetro
que nos permite sentir prazer:
Quanto mais intensa for sua ativação, maior é a sensação alcançada, que vai da leve satisfação à franca
euforia. Ativar esse processo é algo simples e ao nosso alcance, que podemos fazer várias vezes por dia.
Basta fazer algo que o cérebro considere que deu certo: resolver mentalmente um problema, concluir um
trabalho, passar de fase no video game, beijar pessoas amadas, comer algo de que gostamos ou ouvir uma
boa música. Ao reconhecer que fomos bem-sucedidos em algo, que atendemos às expectativas ou
admitimos que somos interessantes por alguma razão, o córtex cerebral providencia uma dose de
dopamina para o núcleo accumbens. Quanto mais o núcleo recebe esse neurotransmissor, mais ativo ele
fica e mais prazer nos proporciona. Esse prazer com o que fazemos corretamente – proporcionado pelo
accumbens e estruturas associadas a ele, que formam o sistema de recompensa do cérebro – é a base
neurológica da satisfação e da autoestima.13
Mas nada disso seria possível se não fossem as sinapses elétricas que são “curtos-
circuitos controlados” provocados pelo contato das proteínas das membranas das
células, as quais, através das sinapses, formam uma espécie de canal que as liga umas
às outras. Isso faz com que o corpo humano disponha de contatos, chamados de
“junções comunicantes”, que levam uma determinada mensagem, a uma velocidade
de 300 km/h, dos órgãos dos sentidos ao cérebro e vice-versa. E como nas sinapses os
neurônios (células responsáveis pela condução do impulso nervoso) são separados
por uma pequena fenda, impedindo os impulsos elétricos de passarem diretamente
para o outro lado, estes são transportados por substâncias químicas chamadas de
neurotransmissores.14
Das definições apresentadas pode-se deduzir que o prazer é a experiência de bem-
estar vivida pela pessoa. Tal sensação de bem-estar pode ser permanente ou
transitória. Ela se origina da supressão da dor e da experiência de desprazer. O prazer
e o desprazer são considerados os princípios básicos da vida psíquica.15
Do ponto de vista da Psicanálise, o prazer é “a descarga automática das excitações
quando sua acumulação ultrapassa certo limiar, experimentado como desprazer”.16
Para a Psicanálise, as excitações de prazer e de desprazer revelam-se assim quase os
únicos elementos que permitem caracterizar uma transformação de energia no interior
do aparelho psíquico.17
É claro que não se deve esquecer que a sensação de prazer ou desprazer está
também relacionada com o ambiente, com os relacionamentos e com os
comportamentos humanos. Seria muito difícil uma vida prazerosa em ambientes
marcados pela ansiedade, pelo medo, pelo estresse, pela fuga e assim por diante.
Entre os fatores que influenciam a geração do prazer está o sentimento de confiança.
“O sentimento de confiança baseado na relação com o outro é condição essencial para
a sustentabilidade da vida, pelo menos na maioria dos mamíferos.”18
Estudiosos têm mostrado como traumas produzidos nos corpos pela violência
sistemática institucional afetam a saúde psicológica das pessoas e, em consequência,
também o sentimento de prazer. Isso porque há uma relação direta entre as sensações
do corpo e os lugares por onde caminhamos. Numa sociedade profundamente
marcada pelas agressões do capitalismo e do neoliberalismo, os corpos são
profundamente mutilados de forma desumana, retirando-se deles sensações essenciais
13
como o prazer. Isso porque o prazer é um sentimento natural e espontâneo que é
arrancado ou suprimido toda vez que os corpos sãosubmetidos a situações de
verdadeiras torturas ou padecimentos.19
Porém, não podemos esquecer que por trás de tudo isso estão sempre bases
neurofisiológicas, complexos neurobiológicos que envolvem necessariamente o
sistema límbico. Além da ocitocina, há também a atuação de “sinalizadores
serotonérgicos”, como a vasopressina e a dopamina. De modo que se pode concluir
que o prazer é desencadeado por uma reação química fenomenal do corpo humano. E
até mesmo certas crenças e certos comportamentos, como a confiança, que
influenciam na geração de uma vida prazerosa, não deixam de ter também suas bases
neurofisiológicas e biológicas.20
Definição de prazer
As considerações feitas anteriormente nos permitem afirmar que o prazer não é
apenas a satisfação de necessidades, como diria a concepção freudiana, mas vai além
disso. O prazer é a sensação de bem-estar, de integridade assegurada. Do ponto de
vista biológico, o prazer está relacionado ao fenômeno do crescimento. Há, sim, uma
relação com a excitação, mas tal excitação não se reduz aos órgãos sexuais. Esta diz
respeito a todo o organismo da pessoa, que responde aos estímulos provenientes do
meio ambiente. Quando há aumento da excitação tem-se o prazer; quando a excitação
diminui costuma aparecer o tédio e a depressão. O corpo humano, de modo especial
através da sua pele, responde aos estímulos externos sentindo prazer ou desprazer. Os
estudiosos costumam afirmar que não existe um estado “neutro” na natureza humana.
Por isso não é normal a ausência de prazer ou de desprazer. Se isso viesse a acontecer
seria sinal de um estado patológico.21
O prazer é, pois, uma experiência profunda de alegria, de felicidade que se
manifesta também através de uma sensação corporal gostosa. E por se encontrar
mergulhado no prazer, o corpo da pessoa se movimenta livremente e permite que tais
movimentos possam fluir tranquilamente dentro de um ritmo harmonioso de relação
com o ambiente. É preciso, portanto, cuidar bem para não reduzir o prazer a
determinadas coisas como o entretenimento, o ato de ingerir uma comida gostosa ou
até mesmo ao puro e simples ato sexual. Tudo isso pode fazer parte do prazer, mas
este não se reduz a isso. Quando reduzimos o prazer à realização de determinados
atos ou gestos, corremos o risco de ter dele uma visão irreal e ilusória. Embora se
possa dizer que uma vida sem prazer não é uma vida verdadeira, não é uma vida de
felicidade, se pode dizer também que a redução do prazer a certas coisas é pura
ilusão. Quando isso acontece, a pessoa tenta buscar o prazer a qualquer custo. E
quanto mais ela o busca de qualquer jeito, mais ele foge dela.22
O prazer é algo natural e as suas raízes estão na natureza do ser humano e na sua
relação com o ambiente onde ele vive. Por sermos organismos vivos, profundamente
conectados com a Terra, que também é um organismo vivo, vivenciamos a
experiência do prazer – e de outras sensações, como a alegria, a dor, a tristeza – de
maneira muito natural. A matéria humana está em constante movimento, disparando,
a partir do cérebro, rajadas de impulsos que geram os sentimentos, dentre eles o do
14
prazer. Por essa razão a sensação de prazer, tendo origem natural, abrange todas as
nossas atividades e todos os nossos relacionamentos.23 Por esse motivo se pode
afirmar que há uma relação direta entre prazer, inspiração e criatividade.
Todo prazer, em certo sentido, é um novo prazer. Segue-se, portanto, que qualquer ação ou qualquer
processo que aumente o prazer ou que aumente o aproveitamento da vida é parte de um processo criativo
[...]. O prazer e a criatividade estão relacionados dialeticamente. Sem prazer, não haverá criatividade. Sem
atitude criativa diante da vida não haverá prazer [...]. O prazer na vida encoraja a criatividade e a
comunicação, e a criatividade aumenta o prazer e a alegria de viver.24
Convém, porém, notar que existem diferentes formas de sentir prazer. O que para
algumas pessoas causa prazer, para outras pode significar dor e sofrimento. Existem,
pois, ritmos diferentes de prazer e, na maioria dos casos, tais diferenças estão
relacionadas também com as diferentes funções do corpo humano: respiração,
alimentação, sono etc. Por essa razão é preciso estar muito atentos na hora de
fazermos certas afirmações sobre o assunto, uma vez que muita coisa depende dos
estímulos e dos ritmos dos nossos corpos. Por ser algo natural, o prazer não depende
apenas da vontade da pessoa, mas do funcionamento do seu organismo. Tal cuidado
evitaria muitos problemas entre as pessoas, especialmente problemas de
relacionamento.25
Há, no entanto, uma coisa sobre a qual há cada vez mais consenso dos cientistas: o
prazer, embora seja um processo natural, no ser humano tem origem no amor. É o ato
de amar e de ser amado que desencadeia a sensação de prazer. “Se procurarmos as
raízes do prazer dentro de nós mesmos, iremos encontrá-las no fenômeno do
amor.”26 Pesquisas recentes na área da Biologia estão dando conta de que o amor é
também um fenômeno biológico e, enquanto fenômeno biológico, está na raiz do
sentimento de prazer. Tais pesquisas vêm demonstrando que não foi a luta pela
sobrevivência que garantiu a continuidade das espécies, mas o amor entre elas.
O amor é um fenômeno cósmico e biológico. Ao chegar ao nível humano, ele se revela como a grande
força de agregação, de simpatia, de solidariedade. As pessoas se unem e recriam pela linguagem amorosa
o sentimento de benquerença e de pertença a um mesmo destino e a uma mesma caminhada histórica.27
Eis porque o medo do prazer (masoquismo) causa estupor. Embora seja uma
experiência gostosa e de bem-estar, o prazer ainda causa medo.28 Por trás desse
medo estão vários fatores. Mais adiante veremos que o principal deles foi o fato de
nossa cultura ter criado uma relação estreita entre desejo, culpa, prazer e pecado. A
educação que recebemos na família, na escola, na sociedade e na Igreja associou o
prazer a algo ruim e temeroso.
O prazer causa medo porque representa alguma coisa que não se conhece com clareza, também sob o
plano cultural. Embora seja uma prática fundamental da experiência humana, o pensamento que até agora
dominou, no Ocidente, sempre negligenciou o problema do prazer. Por conseguinte, o homem moderno
ocidental teme o amor, o sacrifício e também o prazer.29
Como sabemos, o masoquismo é motivado pelo desejo de aprovação e não pelo
desejo do prazer. O medo do prazer é medo da dor que a expansão e a alegria podem
15
provocar. Por isso há o fechamento ao prazer. O masoquista tem medo de que o
prazer leve ao “descontrole” e que ele não tenha mais o domínio de si mesmo e haja o
“rompimento da diga” da sua severidade e seriedade. Mas, ao fazer isso, ele rompe
com um dos aspectos mais elementares da natureza humana e é então que há o
verdadeiro “descontrole”, uma vez que ele termina por negar a sua própria natureza e
essência.30
O prazer como meta da vida humana
Podemos, então, concluir que o prazer é a meta da vida humana. É claro que,
como vimos pouco antes, existem pessoas que desenvolvem defesas em relação à
busca do prazer. Há aquelas que negam a sua existência ou chegam a vê-lo como algo
negativo e pecaminoso. Mas nada disso consegue bloquear totalmente os impulsos e a
busca do prazer. Se houvesse o bloqueio total do prazer isso significaria que a pessoa
já estaria morta, uma vez que a ausência de prazer é, de certa maneira, uma
modalidade de morte.31
O prazer, como vimos, tem raízes biológicas e corporais e é o responsável pelo
bem-estar da pessoa, elemento fundamental para uma existência tranquila e feliz.
Como tal, o prazer, dizíamos antes, é também algo que envolve o amor e o coração,
estando, assim, em comunicação direta com a realidade e com o mundo. Uma pessoa
sem prazer é alguém que não se conecta com a realidade. De fato, o prazer envolve os
sentidos e coloca a pessoa em contato com a humanidade e com o universo.32
Embora haja formas diferentes e áreas diferentes do prazer nos homens e nas
mulheres, ele é sempre comunicação e gerador de comunicabilidade.A falta desse
aspecto é sinal evidente de que o indivíduo não possui uma personalidade saudável.
Isso cria bloqueios à livre manifestação de sentimentos e à satisfação de seus desejos
e, consequentemente, a sua capacidade de sentir prazer fica profundamente
reduzida.33
Sendo um movimento de expansão corporal, o prazer gera abertura, busca,
vontade de relação e de comunicação. O fechamento, a retração, a indiferença não são
experiências relacionadas com o prazer. A ausência do prazer contribui para que a
pessoa se torne ineficiente, uma vez que ela permanece bloqueada e reprimida. O ser
humano que não tem prazer é alguém sem contato e sem interação com a humanidade
e com a realidade. Sua pertinência, seu senso de pertença e sua participação são
atingidos e profundamente limitados. Isso afeta inclusive o âmbito da espiritualidade,
pois não é possível tal experiência sem vida prazerosa. A pessoa que tem reduzida a
sua experiência de prazer é um esquizoide, ou seja, alguém que tem diminuído o
senso de si mesmo, reduzido o contato com o seu corpo e os seus sentimentos. É
alguém incapaz de interagir com a realidade.34
Teologia do prazer
A teologia, tendo como pressuposto o fato de que a pessoa humana, na sua
totalidade (corpo, alma e espírito),35 é criatura de Deus, acolhe como divina toda
essa dinâmica do prazer, constitutiva de todo ser humano vivo, revelada pelos estudos
16
científicos. De modo que se pode afirmar, sem medo de errar, que o prazer, enquanto
humano, é também divino.
O atual estágio da biologia nos ensina que a vida é continuamente auto-organização com troca de
informações, portanto, em comunhão. Mesmo a vida individual depende de teias cada vez mais complexas
de informações e alimentação.36
O que acabou de ser dito mostra que o prazer está relacionado com a genética do
ser humano. O próprio prazer sexual, diferentemente do que se pensou no passado,
está relacionado com o sexo cromossômico, gonádico, endócrino, enzimático,
psicológico, afetivo, intelectual, social e gramatical. Substâncias complexas acionam
o sexo gonádico para que produza secreções hormonais que, lançadas no sangue,
impregnam o organismo e mobilizam o sexo psicológico, afetivo e intelectual,
levando ao sexo funcional, ou seja, à vontade e a capacidade de ter uma relação
sexual. Porém, tal desejo e capacidade vão se concretizar ou não de acordo com a
configuração social que o sexo adquire na sociedade onde vive a pessoa e de acordo
com o que se aprende sobre o sexo. Portanto, a busca do prazer independe
inicialmente de uma vontade e de uma decisão racional do sujeito. Pode, sim, ser
racionalizada e controlada de acordo com as “censuras” impostas pela cultura à qual
pertence o ser humano. O controle social pode ser positivo quando ajuda as pessoas a
cultivarem o prazer de maneira responsável, mas pode também funcionar como
mecanismo de desequilíbrio e de patologias psicológicas que terminam por afetar a
vida saudável dos indivíduos.37
Ora, o Concílio Vaticano II nos ajudou a ver as questões humanas a partir de
novas perspectivas.38 Para tanto, o concílio nos estimulou a considerar os dados mais
recentes das diversas ciências. Assim sendo, o prazer não deve ser visto apenas pela
perspectiva teológico-filosófica, mas também na dinâmica das ciências que estudam a
constituição físico-biológica do ser humano, criado à imagem e semelhança divina.
Dessa forma, o prazer se reveste de profundo significado, valor e dignidade, uma vez
que essas ciências nos revelam os segredos e a beleza da complexidade corpórea do
ser humano, querida e criada por Deus. O prazer e o gozo, inclusive quando brotam
da relação sexual, não podem ser vistos como consequências do pecado original, mas
como ato profundamente humano, querido por Deus, e que contribui para a plena
realização humana.39
2. Dimensões do prazer
Sendo uma experiência tão rica e tão profunda, o prazer se expressa de vários
modos e de várias maneiras e pode ser vivido e percebido de várias formas. Isso quer
dizer que tal experiência humana possui várias dimensões. Por dimensão entendemos
aqui não só os espaços e a intensidade com as quais e nas quais ocorre o prazer, mas
também os parâmetros avaliativos para verificação da ocorrência dessa sensação. Isso
significa, como de certa forma já foi mencionado, que o prazer tem implicações não
somente físicas ou biológicas, mas também psíquicas e profundamente humanas.
Atinge não só a corporalidade, mas também a individualidade e as relações das
17
pessoas com as outras e com o mundo. Como tal “é indispensável à saúde e ao
equilíbrio psicofísico, sendo um componente indispensável para a economia
psíquica”.40
Dimensão intrapsíquica
Uma primeira dimensão do prazer é a intrapsíquica. Vivido intensamente e de
maneira equilibrada, permite que a pessoa se firme como indivíduo e tenha uma
identidade bem definida. Uma vida prazerosa é fundamental e decisiva para a
autoafirmação da pessoa e para a sua saúde psicofísica.
A dimensão intrapsíquica do prazer parte do pressuposto de que o ser humano é
alma. Ele é singularidade, individualidade, interioridade e transcendência, mas tudo
isso na temporalidade.41 Por esse motivo, o sentimento de prazer afeta a pessoa
naquilo que nela há de mais singular e único. Essa constatação é fundamental para
entendermos que cada ser humano possui um modo todo particular de viver o prazer.
Querer forçar alguém a ter prazer segundo os nossos critérios e, pior ainda, segundo
os nossos caprichos é violentá-la naquilo que nela há de mais sagrado: a sua
individualidade inviolável.42
Para entender esse aspecto do prazer é indispensável superar a noção biologista de
pessoa, ou seja, a pura e simples aproximação do ser humano ao animal, feita pelas
doutrinas evolucionistas populares. Se, por um lado, há certa aproximação genética
(primatas), por outro lado, é preciso evidenciar as peculiaridades do ser humano.
Uma simples aproximação zoológica entre seres humanos e demais animais tiraria
deles a condição de seres inacabados e negaria determinados limites típicos dos
animais irracionais. Tal “mistificação” da biologia despreza uma série de elementos
que diferenciam os humanos dos demais animais. É um argumento facilmente
manipulável, usado para justificar a exploração do mais fraco, para justificar a
competição e as mais cruéis injustiças.43 Muitas vezes a manipulação e a exploração
das pessoas mais fracas se dão pela via do “desejo de sentir prazer” e tendo como
base essa concepção biologista do ser humano.
Além disso, a dimensão intrapsíquica revela que a vivência humana do prazer se
dá ao longo da caminhada da pessoa; não é algo momentâneo e imediato. Supõe
maturidade afetiva, entendida como superação da dependência infantil, e que leva a
pessoa a investir suas energias afetivas numa vida real, que inclui elementos como
solidão e sofrimento.44 Aprender a sentir prazer e a sentir de maneira plena exige
tempo e paciência. Por isso a própria pessoa e aqueles que com ela se relacionam
precisam saber esperar. Há uma progressiva aprendizagem também nesse campo.
Isso também revela que o prazer significativo está relacionado com o papel
exercido pelas emoções. A emoção é a atração ou a aversão por alguma coisa
considerada boa ou ruim. Na emoção a pessoa sente um impulso a agir, aproximando-
se ou afastando-se de algo, independentemente da razão. Nesse processo, a memória
afetiva exerce uma função significativa fazendo uma avaliação intuitiva, a partir dos
dados sensoriais captados e decodificados pelo cérebro. Se faltar a maturidade
afetiva, a pessoa ficará nesse âmbito do intuitivo. Porém, se o sujeito desenvolveu a
maturidade afetiva, ele será capaz de fazer também uma avaliação reflexiva. Nessa
18
avaliação reflexiva, que geralmente acontece após a intuitiva, a pessoa faz abstração
da emoção por meio de um juízo de valor, acrescentando o querer racional e o desejo
racional. Dá-se, então, a integração entre avaliação intuitiva e a racional, e a emoção
passa a ser realmente e plenamente humana.45
A formacomo sentimos ou não sentimos prazer e o modo como o encaramos e
avaliamos estão ligados a diversas situações da nossa vida. São essas situações que
acionam o cérebro e fazem o sistema nervoso central “plastificar” o sentimento ou a
ausência de prazer.46 Entre os diversos elementos extrafisiológicos estão, por
exemplo, as experiências da idade infantil com a atuação do id, do ego e do
superego.47 Cabe verificar de que maneira a criança lidou com os “instintos
egoístas” nos seus primeiros anos de vida. Além disso, é preciso conhecer de que
maneira a criança foi tomando consciência da realidade exterior e foi realizando o
equilíbrio entre as exigências dos instintos e necessidades e aquelas da realidade. Por
fim, é preciso verificar também como se deu o processo de “idealização” do prazer.
Tal idealização pode ter acontecido por um caminho narcisista, com a satisfação
plena dos instintos, ou por via de identificação, a chamada via parental, através da
qual a criança introjeta ou interioriza determinadas normas de educação por meio do
círculo familiar onde vive. Trata-se, pois, de ter presente o processo evolutivo da
afetividade, das emoções, vivido pela criança nos seus primeiros anos de vida.48
Esses dados científicos nos permitem afirmar que o sentimento de prazer é muito
mais complexo do que se imagina. Tais conhecimentos devem nos ajudar a evitar
julgamentos precipitados e a emissão de sentenças radicais de juízos de valor. Aliás,
os atuais conhecimentos científicos nos permitem ir mais longe, afirmando que a
forma de sentir prazer tem a ver com a concepção e a vida intrauterina da pessoa. O
modo como a mãe e o pai acolheram e esperaram a chegada do bebê pode ter
influências significativas no modo de viver o prazer.49
Particular significância têm as diversas fases infantis (oral, anal, genital, edípica,
de latência). O prazer e a forma de senti-lo dependem muito da maneira como a
criança viveu essas fases da vida. Dependendo da situação, um simples ato como, por
exemplo, o desmame pode acarretar sofrimentos, traumas e frustrações para a vida
afetiva da criança e interferir na sua maneira de encarar o prazer.50 Convém voltar a
salientar que há uma diferença significativa entre a forma do homem e da mulher
sentirem prazer. A sensibilidade emocional da mulher é diferente do homem. Os
estímulos e as reações são diferentes. A própria anatomia é caracterizada por
diferenças significativas. Essa diferença de anatomia, por exemplo, faz com que o
prazer na mulher esteja ligado à totalidade de sua corporalidade, enquanto no homem
o prazer é mais localizado a certas regiões do corpo. A mulher tende mais a relacionar
o prazer com o ato de ser amada e com a sua capacidade receptiva. O homem, por sua
vez, relaciona o prazer com sua capacidade de ser ativo.51
Portanto, falar do prazer, avaliar o prazer e, acima de tudo, emitir um juízo ético
sobre o prazer exige considerar tais diferenças, ou seja, a masculinidade e a
feminilidade como dois modos distintos de ser e de realizar a nossa humanidade.52
Nesse sentido, é preciso ter presente o significado, a importância, o lugar e o valor do
19
corpo no prazer. Do ponto de vista da antropologia, o corpo é o modo de perceber,
aproximar-se, comunicar-se e relacionar-se com o outro. Assim sendo, pode-se
afirmar que o prazer é o que dá possibilidade e realiza a intersubjetividade humana.53
É verdade que, por diversas razões altruístas, alguém pode entrar em comunicação
com outras pessoas. Mas, mesmo nesses casos, o encontro se dá porque houve uma
dose de prazer que mobilizou a pessoa na direção da outra, ou das outras. O desejo de
encontrar a outra pessoa é motivado pelo prazer que esse movimento na direção de
outra pessoa produz dentro de nós.54
Dimensão relacional ou interpessoal
A referência a um modo próprio de sentir prazer do masculino e do feminino, ao
desejo de encontro com o outro ou com os outros mostra que o prazer possui uma
dimensão relacional ou interpessoal. O feminino e o masculino revelam que o ser
humano é mutuamente incompleto, ou, se quisermos, relativamente completo. Isso
quer dizer que o prazer por si é incompleto se não tem presente a relação com a outra
pessoa. Para que o prazer seja completo é indispensável a completude, a presença e a
abertura para com a outra pessoa. O prazer está intimamente relacionado com a
estrutura fundamental do ser humano, o qual só se encontra consigo mesmo quando
se encontra com o outro, com alguém diferente dele.55
O prazer requer intimidade, ou seja, um espaço e um momento em que a pessoa
possa “sentir-se em casa com alguém”. A intimidade é a condição na qual alguém é
totalmente reconhecido, sem a preocupação de ser rejeitado. Intimidade é a
capacidade de aceitação da outra pessoa assim como ela é. É uma aceitação mútua.
Essa intimidade permite tratar o outro com carinho, gerando o prazer de estar juntos,
não sufocando os desejos, mas também não bajulando, não impondo, não se exibindo,
não abusando.56
Intimidade significa afundar profundamente uma relação dentro de si, submergir e, ao mesmo tempo,
também flutuar, fazer uma imersão e depois vir acima. Intimidade significa ter a coragem de ser
plenamente envolvidos, mas, ao mesmo tempo, manter a própria autonomia.57
Trata-se, pois, de “encontrar prazer em dar prazer aos outros”.58 O prazer que
nasce da relação com outra pessoa, da amizade, não deve ser visto de forma angelical
ou maniqueísta. Mesmo quando não se trata do prazer sexual genital, não se deve
nem se pode excluir a sexualidade, parte integrante normal da natureza humana. A
amizade prazerosa não pode ser condicionada ou dominada pelo medo. Isso porque o
medo impede a pessoa de assumir os riscos de amar e de amar prazerosamente.
Assim sendo, é indispensável que numa amizade entre duas pessoas ambas estejam
dispostas a aceitar a real possibilidade de envolvimento emocional. É claro que, nesse
dinamismo, é preciso aceitar e respeitar o processo, uma vez que, como já dissemos,
as pessoas são diferentes e não chegam juntas ao mesmo tempo.59 Porém, “uma
pessoa só é plenamente ela mesma quando se relaciona amorosamente com
outras”.60
20
O que acabou de ser dito mostra que existe um “prazer de estar junto”.61 O
cultivo da relação de forma prazerosa é fundamental para a saúde mental das pessoas.
Como a própria etimologia da palavra já nos revela, a relação quer dizer ter alguém
como referência. Se nos falta essa pessoa, nós começamos a ficar perdidos,
desestimulados e sozinhos. E tal sensação nos faz adoecer e perder o equilíbrio. Por
esse motivo, todas as vezes que deixamos de cultivar uma relação ou a perdemos por
qualquer motivo é indispensável reatá-la o quanto antes ou buscar construir uma nova
relação. Mesmo porque a relação nos permite devolver o prazer de ser amado, de
receber amor. E também isso é muito importante para a saúde psicoafetiva das
pessoas.
É claro que é necessário cuidar para que a relação seja marcada pela
reciprocidade, ou seja, pela capacidade de devolver à outra pessoa, e com a mesma
intensidade, o prazer de ser amado. O prazer da relação é algo de “mão dupla”,
permitindo uma profunda interação entre as duas partes. Se isso não acontece corre o
risco de se tornar uma relação possessiva, tirânica e dependente. Por esse motivo, a
relação, para ser realmente prazerosa, terá que ser também profundamente confidente
ou confiável. Isso significa que entre as duas pessoas que cultivam a relação deve
existir um clima de confiança muito grande que permita total abertura e condições
para que as duas pessoas amigas partilhem, sem grandes segredos, aquelas coisas que
estão bem guardadas no fundo do coração de cada uma delas.
Essa necessidade do cultivo de relações profundas, sinceras e autênticas tem se
tornado uma urgência em nossos dias, uma vez que a nossa cultura, como veremos
mais adiante, é marcada pelo individualismo e pela solidão. Muitas vezes chegamos
até a estar juntos, a ficar juntos, mas não conseguimos nos comunicar. Cada vez mais
nos isolamos dos outros e não vivemoso prazer do encontro e da comunicação.
Apesar do uso cada vez maior de tecnologias da informação e da comunicação,
somos sempre mais uma geração de pessoas isoladas e solitárias. Cada um de nós,
plugado em seu aparelho moderníssimo de comunicação, se isola cada vez mais dos
outros e sofre porque não tem o prazer de se comunicar com alguém. De fato, o “estar
junto não significa necessariamente comunicar-se e o adjetivo ‘solitária’ qualifica de
modo bem expressivo o que é esse tipo de agregação”.62
A ausência do prazer da comunicação cria uma sociedade de pessoas
desenraizadas e sem referenciais. Pessoas inquietas e profundamente inseguras, cada
vez mais mergulhadas num tipo de privacidade que leva ao desespero do mimetismo.
Quanto mais isoladas e sem real comunicação mais as pessoas tendem a imitar as
“estrelas” e a expor nas redes sociais as suas intimidades. E quanto mais expõem suas
intimidades mais isoladas ficam, uma vez que apenas um pequeno grupo tem acesso a
essas informações intimistas que, dada a sua baixa qualidade, logo são descartadas
pelos que as acessam. O isolamento se dá porque, normalmente, as informações
partilhadas nas redes são de cunho individualista e não possuem impacto social
significativo.
A dimensão relacional ou interpessoal do prazer é significativa porque educa a
pessoa para o ato de transcender-se, isto é, para a saída da privacidade, do intimismo,
indo ao encontro de outro que é real e não virtual. E à medida que vamos ao encontro
de pessoas reais, nós nos projetamos, ou seja, nos lançamos na ousadia corajosa de
21
recriar a nossa existência. Isso faz com que nos encontremos com nós mesmos, com
nossas raízes. A amizade prazerosa nos faz voltar às nossas origens profundamente
humanas e nos permite encontrarmos o caminho pelo qual devemos andar na busca
daquilo que realmente queremos ser no amanhã. O prazer da relação interpessoal é,
ao mesmo tempo, o prazer de escutar e de ser escutado, de comunicar-se e de receber
uma boa comunicação.
Significa concretamente buscar a memória histórica do nosso agir, da nossa vida, saber recuperar e aceitar
o nosso passado para poder aprender com ele. Significa reencontrar um núcleo de referência interno ou
externo próprio no estar juntos. Significa viver uma radicalidade de vida que deseja também orientar-se
por modelos, não para copiá-los, mas para inspirar escolhas livres e autônomas.63
Urge, pois, superarmos essa cultura do “ficar juntos” e caminharmos na direção de
uma relação verdadeiramente prazerosa que transmita afeto, carinho e amor.
Precisamos superar a “cultura do rebanho”, que junta pessoas em determinados
lugares (shoppings, igrejas, estádios, escolas etc.), mas não lhes dá a real
possibilidade do prazer da comunicação. Precisamos redescobrir o prazer de estar
juntos, porém numa comunicação profunda que nos faça pessoas verdadeiramente
amadas e amantes. Mas para que isso aconteça é necessário cultivar o “prazer da
solidão”, que consiste em entrar em si mesmo para se redescobrir e para dialogar
consigo mesmo. Somente quem toca a própria interioridade em profundidade
consegue “apertar a mão de alguém”.64
Lamentavelmente a solidão aumenta porque as pessoas têm medo de entrar dentro
delas mesmas e de olhar para a própria interioridade. A solidão neurótica, de que
sofrem hoje as pessoas, decorre da falta de coragem de dialogar com o próprio eu. A
maioria de nós prefere desviar sempre de si mesmo e culpar os outros pelo que
acontece. Não resta dúvida de que a solidão do ser humano moderno decorre também
de injustiças e da exclusão social a que é submetida a maioria absoluta das pessoas.
Porém, é também correto afirmar que muitos não querem olhar para a própria
interioridade e escutar o próprio mundo interior.
Dimensão afetiva
Ficou claro no parágrafo anterior que uma relação verdadeiramente prazerosa
transmite afeto, carinho e amor. Por esse motivo se pode falar de uma dimensão
afetiva do prazer.
Vimos anteriormente como o prazer, junto com a dor, são os afetos que mais
assinalam a convivência humana, diferenciando-a daquela dos animais. Vimos ainda
que o prazer tem o seu princípio genético, mesmo não esquecendo os componentes
culturais que o caracterizam. O modo como lidamos com o prazer está relacionado
com a maneira como lidamos com a nossa afetividade desde o nosso tempo de
criança. A questão do prazer tem a ver também com a forma como fazemos a
integração de nossos sentimentos com a razão. Porém, não devemos esquecer que a
razão não age se o dinamismo da afetividade estiver bloqueado.65
Cabe salientar, porém, que a afetividade, estimulante do prazer, é alimentada
continuamente por representações conservadas pelo sujeito de forma consciente ou
inconsciente. Além disso, o tempo no qual se vive também influencia a vida
22
intrapsíquica, especialmente naquilo que diz respeito às relações cultivadas no espaço
e no tempo.66 O modo de entender e viver o prazer tem muito a ver com a forma
através da qual se deu ou não a autonomia da criança. Quando a criança não encontra
um clima progressivo de liberdade, sua autonomia pode ser afetada. Nesse caso
haverá fixações e a forma de ver e de entender o prazer pode sofrer deformações. As
pessoas são empurradas para situações-limite que dificultam uma justa e correta
compreensão do prazer. Entre as dificuldades está aquela de perceber a real diferença
entre prazer, prazer sexual e atividade sexual. A consequência é uma tendência ao
controle (repressão) das manifestações fisiológicas da sexualidade e a falta de
percepção de que há um elemento psíquico que ultrapassa a atividade orgânica. Por
causa disso, a pessoa tem sérias dificuldades de integrar o prazer e o prazer sexual no
projeto pessoal de vida.67
Por essa razão, toda pedagogia educativa com relação ao prazer deve ter presente
esse aspecto. Deve ter presente que o prazer não se reduz ao puramente biológico.
Além disso, precisa considerar a relação e a diferença entre homem e mulher. Muitas
vezes, como vimos anteriormente, ao refletirmos sobre o tema do prazer não levamos
em conta esses elementos que inclusive fazem parte da revelação divina. Há uma
igualdade fundamental, mas também uma diferença significativa entre homem e
mulher e que não pode ser desconsiderada no momento de se refletir sobre questões
como o prazer.68
Nesse sentido cabe também lembrar a teoria de Jung segundo a qual todo homem
e toda mulher carregam na sua psique o animus e a anima. O “animus” é a disposição
para a ação proveniente da convicção. É a capacidade de lutar, de insistir e de
persistir. A “anima” é a irrupção na pessoa dos sentimentos, do humor, da capacidade
amorosa, da ternura, da compaixão e assim por diante.69
Retomando o que já foi dito antes, é preciso relembrar que o sentimento de prazer
está intimamente relacionado com a corporalidade. Na cultura hebraica, na qual
nasce o cristianismo, a corporalidade tem um significado profundo.70 O prazer que
inebria o corpo é a condição para que a pessoa viva a sua relação com os outros.
Relação essa que caracteriza a pessoa humana criada à imagem e semelhança divina.
Jamais alguém entraria em comunhão com outra pessoa se não fosse animado pelo
sentimento de prazer e de felicidade. Por isso é fundamental a consciência de que
somos seres de relação e que a relação se dá no encontro de seres sexuados que se
atraem, mesmo quando a atração não inclui a atividade sexual genital. Como seres
corporais, seres nos quais a identidade pessoal e o corpo formam uma só coisa,
necessitamos do prazer para passarmos da intenção para a ação. Não nos
comunicamos se não somos motivados pelo prazer do encontro com a outra pessoa. É
verdade que a ética e a moral podem chegar a pedir, em determinados momentos, a
distância dos corpos, entendida como respeito e cuidado para não violar a intimidade
da pessoa. Porém, isso não significa que as relações humanas precisam ser frias e sem
sentimentos.71
A fé não exclui a afetividade e o prazer, mesmo porque não é apenas um ato
puramente racional, mas também uma pulsãoafetiva e prazerosa. Aliás, as
23
verdadeiras experiências místicas, consideradas máximas expressões de fé, são
experiências de pessoas apaixonadas, nas quais o prazer ocupa um lugar prioritário.72
É bastante conhecida a experiência de muitos místicos e de muitas místicas na qual o
êxtase inclui momentos profundamente prazerosos com olhares, abraços, beijos e
uma situação na qual todo o corpo está envolvido na relação com quem chamam de
“meu Dileto”.73 A pessoa mística costuma vivenciar uma experiência de céu, de
eternidade. E em tal experiência o prazer e o gozo são sentimentos que predominam o
tempo todo.74
É preciso cuidar bem e prestar atenção ao risco de repressão do prazer, mesmo
quando isso é feito de forma voluntária, livre e consciente. De fato, quando acontece
a desvalorização do prazer e a sua consequente repressão, a pessoa tende a substituir
o prazer do prazer por elementos compensativos nem sempre libertadores. A lei, a
norma, a proibição tendem a prevalecer sobre a liberdade e a autonomia e a se tornar
absolutos que escravizam. Em função disso, o espírito de amor e a generosidade
terminam por desaparecer. A pessoa passa a fazer as coisas por dever e não por amor.
É preciso não se esquecer, antes de tudo, do valor positivo da vida, de que dentro da vida também se
inclui a experiência do prazer como elemento importante, ainda que não primordial. A incapacidade de
usufruir experiências agradáveis nunca é sinal de maturidade, e sim indício de rigidez e mal-estar. Essa
dificuldade é encontrada geralmente em uma consciência imatura, inflexível, severa e intolerante [...]. Não
se pode esquecer de que o prazer é fugaz, sempre se refere a uma experiência passada ou breve, que,
consequentemente, deve ser continuamente repetida.75
A ausência de prazer passa a determinar a conduta do ser humano. E disso podem
resultar três atitudes perversas.76 A primeira é a falta de sensibilidade e de
humanidade. A pessoa se torna um monstro guiado pela lei do dever, não tendo
misericórdia e compaixão diante da fragilidade alheia. A segunda é o despertar dos
instintos mais baixos que o sujeito acreditava controlar. Sufocado e reprimido pela lei
e pelo dever, o prazer se transforma em bestialidade ou em conflitos interiores contra
os quais a pessoa não tem solução a não ser deixar que extravasem. Disso resulta uma
terceira atitude, que é a hipocrisia. Vivendo de forma animalesca, o sujeito tende a
ser moralista e cruel para esconder, sob tal aparência, a sua ambiguidade. Vivendo no
inferno, a pessoa, mesmo inconscientemente, tende a transformar a vida dos outros
num inferno. Vivendo sem prazer de viver, odeia quem vive prazerosamente e tudo
fará para desmanchar o prazer de viver dos outros.77
A ausência, ou melhor, a repressão do prazer, leva o sujeito a fechar-se na
autossuficiência. E quando isso acontece, temos, com certeza, um coração e uma
consciência infelizes, nos quais Deus não pode habitar. E onde Deus não pode habitar
há destruição e desintegração. Do ponto de vista psicológico, cria-se espaço para o
dinamismo das representações. Nascem as fobias e a sensação de impotência, que são
expressas em atitudes de violência, autoritarismo e dominação. Surge, então, o desejo
de sucesso social, de fama e de controle sobre as pessoas. E quando se chega a esse
nível de vida não há mais lugar para a ação divina, pois a pessoa não tem mais
condições de ouvir os apelos de Deus. Nesse caso, o “santo” se torna um ambicioso
que não procura a glória de Deus, mas a sua, embora ele mesmo acredite piamente
24
que a sua vida seja uma manifestação do amor divino.78
Desde os tempos de Aristóteles, sabe-se que o prazer e a vida formam uma
unidade: sentir prazer é viver e viver é sentir prazer.79 Por isso, “o prazer não pode
ser contrário à vida moral e espiritual, uma vez que é o sinal da vida que se
expande”.80 Porém, para que o prazer seja vida e a vida seja prazerosa, é
indispensável que não seja considerado fim em si mesmo. Se o prazer é visto como
fim em si mesmo, corre-se o risco de vivermos da busca de prazeres imediatos e
momentâneos. E quando se vive em função disso podemos nos tornar vítimas de
pulsões cegas e descontroladas, as quais terminam por destruir e fragmentar a pessoa,
reduzindo-a a pedaços. O sujeito cai no narcisismo e frustra-se, uma vez que a
realização plena só acontece no encontro com o outro. Fica, então, evidente que
embora o prazer seja um princípio vital, ele só aparece na vida quando não é
procurado diretamente. Aquele ou aquela que vive à procura do prazer termina por
não encontrá-lo, como já havíamos dito anteriormente.81
Dimensão amorosa
Eis porque o prazer precisa ser visto e vivido na perspectiva do amor.82 O prazer
supõe um amor maduro capaz de gerar amizade e doação aos outros. Quando alguém
vive superficialmente, a relação com os outros é frustrante e o prazer é apenas
aparente. A pessoa vive de busca de compensações e de satisfações imediatas. Sem
amor o prazer reverte-se em procura de poder, vícios e desejo de relações ocasionais,
inclusive de relações sexuais sem compromisso e sem respeito pela outra pessoa.
Quando não há um amor maduro, o prazer é confundido com narcisismo e egoísmo:
busca-se a outra pessoa para satisfazer a si mesmo.83 Geralmente, nesses casos há
sérios problemas patológicos. Inclusive se pode afirmar que não há amor a si mesmo,
mas ódio de si que se transforma em ódio dos outros.84
Quando há um quadro patológico, não há verdadeira experiência de prazer. O
sujeito chama de prazer o que é, antes de tudo, exibicionismo, fixação, fantasia,
agressividade ou indiferença. Na comunicação com os outros – espaço prazeroso por
natureza – falta empatia. Em seu lugar temos a pretensão, a busca de favores, a
exploração da outra pessoa, a autoafirmação e o comportamento oscilante entre
euforia e depressão.85
Nos casos de narcisismo patológico o prazer se degenera em incapacidade de
amar. E isso acontece porque não há o prazer absoluto, uma vez que todo desejo
humano não pode ser satisfeito plenamente. Diante disso, o narcisista patológico se
concentra na insatisfação do prazer e faz a sua infelicidade depender disso.
Consequentemente, não sendo atendido em sua necessidade de prazer absoluto, passa
a viver de forma desinteressada, não se importando com o bem comum e com a
situação dos outros. Ocupado com sua ânsia de prazer absoluto, o narcisista
patológico corre atrás de uma liberdade que não existe, vivendo sem limites,
buscando o sucesso imediato.86
Como o prazer não chega a um nível absoluto, o narcisista patológico passa a
25
descuidar da vida, dos valores e não consegue criar laços verdadeiros de amizade e de
amor. Nisso está inclusive a razão do falimento de vários casamentos. Não atingindo
o absoluto do prazer desesperadamente procurado, o narcisista vive enjoado, sempre
querendo mais prazer, mais sensações emotivas, porém sem nenhum compromisso.
Vive um vazio interior e uma busca ávida de admiração. Mas quanto mais busca o
prazer, mais se sente insatisfeito. E, em razão de sua insatisfação, tende a manipular e
instrumentalizar os outros na tentativa desesperada de obter o que procura. Sua
incapacidade de amar e sua insaciável sede de obter o prazer de forma absoluta são
mascaradas por atitudes falsas de altruísmo e amor ao próximo. Para tais pessoas e
para quem vive próximo delas a vida se torna um inferno. Um inferno de pervertidos,
de loucos, de conflitos e fugas, de mentiras e de falsidades.87
O que foi dito acima deixa muito claro que há um limite para toda forma de
prazer. O prazer, quando verdadeiro, é limitado, mas apesar disso traz alegria e
felicidade. A pessoa sabe gozar e viver intensamente cada momento de prazer que a
vida lhe oferece. Não vive desesperadamente em busca de um tipo de prazer que não
existe. O prazer, quando compreendido e vivido plenamente, traz plena alegria e
felicidade verdadeira. A pessoa permanece aberta e disposta a acolher novos
momentos prazerosos da vida, os quais normalmente são surpresas, mas sem aquela
ânsiade chegar e de permanecer no absoluto ou no máximo grau de prazer. Esse
estilo de vida só é possível quando se vive com sentido a própria existência. Vida sem
sentido é vida sem prazer e sem alegria. E o sentido vem da vivência intensa do
amor.88
Por isso a dimensão amorosa do prazer consiste em “restituir à pessoa humana a
integração harmônica que se assemelha a uma grande polifonia em que nada é
desafinado”.89 Para viver prazerosamente a pessoa precisa, antes de tudo, viver
integrada, ou seja, centrada não só nela mesma, mas na comunhão com as demais e
com todos os elementos da natureza que a circunda. E a integração só acontece
quando decidimos livremente e autonomamente gastar a nossa vida com algo que
vale a pena. Além disso, nessa integração, o ser humano precisa deixar espaço para
que as demais pessoas e as demais realidades existam com independência e com
liberdade. Quem pretende segurar e aprisionar para si os outros e a realidade termina
sufocado e não tendo a alegria do prazer.
De fato, o amor maduro preserva a integridade e a individualidade dos parceiros; permite à pessoa
permanecer ela mesma e até crescer na sua própria identidade.
E eis o paradoxo: no amor maduro, os dois se tornam um só e, todavia, permanecem dois... Uma operação
estranha se concebida em termos matemáticos, mas extremamente verdadeira se concebida em termos
psicológicos e espirituais [...].
O amor é a força que produz outro amor; não tê-lo vivido torna pobre e dolente o coração; será muito
duro recuperar aquele que não se teve, se bem que não é impossível.90
Nesse sentido, a dimensão amorosa do prazer quer dizer amor zeloso, ou seja,
amor que se interessa pela vida e pelo crescimento daqueles, daquelas e daquilo que
amamos. Isso significa tornar-se responsável pelo outros e pelo que acontece com os
outros. Ser responsável não é dominar e controlar, mas ser sensível aos gritos e aos
26
apelos dos demais.91 Responsabilidade é estar pronto para dar sempre uma resposta
positiva ao chamado da outra pessoa e a acolhê-la na sua singularidade e diversidade,
ou seja, “capacidade de ver uma pessoa como ela é, aceitá-la em seu crescimento, em
sua individualidade, sem reduzi-la à própria imagem e semelhança”.92
Hoje, como lembramos pouco antes, há cada vez mais pessoas à cata desesperada
de prazer ou, quem sabe, de prazeres. Mas quanto mais buscam menos encontram o
que procuram. E isso se dá exatamente porque falta essa dimensão amorosa na busca
do prazer. O que se tem, na verdade, na maioria das vezes, é uma coisificação do
outro, das relações. E quando há coisificação o prazer também se coisifica e se
desmancha como fumaça no ar. Para que o prazer seja ao mesmo tempo intenso e
permanente é preciso amar as pessoas, amar o que fazemos e amar a vida. Mas amar é
conhecer, ou seja, “entrar na vida de uma pessoa respeitando-lhe os âmbitos de
privacidade e de reserva”,93 ou seja, aquela zona profundamente única e singular que
somente a própria pessoa conhece. Às vezes, o prazer não chega ou se acaba porque a
pessoa pretende arrancar tudo da outra. Para que o prazer na relação seja intenso e
duradouro, é preciso permitir ao outro que ele seja um “tu”, mesmo porque esse “tu”
é indispensável para que alguém seja um “eu”. Alguém só é alguém quando permite
que outro alguém seja um “tu”.94
O prazer está relacionado com o ato de amar, ato esse que constitui a essência do
ser humano. Por isso a pessoa precisa aprender a amar, e tal aprendizagem passa pela
capacidade de ter prazer. É verdade, como já foi dito outras vezes, que o amor ao
próximo pode exigir, em certas situações, a superação do simples prazer, mas dentro
da normalidade é impossível amar sem sentir prazer. A superação simples do prazer,
indispensável em certas ocasiões, é a superação da dependência afetiva, muitas vezes
erroneamente chamada de “amor”. Por isso, para que o prazer esteja integrado com o
autêntico amor, é fundamental que a pessoa tenha a capacidade de controlar os
instintos e os impulsos, não agindo por automatismo. Trata-se de ser dono de si
mesmo e não vítima dos próprios instintos.
Porém, esse processo não pode ser mero mimetismo ou imitação de modelos, uma
vez que cada pessoa é única. É bom ter referenciais, mas sempre com a liberdade de
agir diferentemente, sempre que a realidade pessoal e ambiental exigir. Nesse sentido
deve-se dizer que, junto com a capacidade de sentir prazer, é necessário que a pessoa
seja também capaz de suportar situações desagradáveis e de sofrimento, sem fazer
disso um drama, especialmente quando o ato do prazer contrastar claramente com a
ética, com o Evangelho e com os valores que a pessoa escolheu para nortear a sua
vida. É preciso, pois, uma maturidade capaz de levar a pessoa a renunciar formas de
prazer que são opostas aos valores escolhidos. É bom, portanto, não exagerar nem na
inflexibilidade nem na permissividade. Não ver pecado em tudo, mas também não
permitir-se tudo.95
Dimensão corporal
O amor humano não é abstrato. É feito ao mesmo tempo de corpo e de alma. Por
esse motivo, o prazer possui uma dimensão corporal.96 Sendo o prazer algo
27
constitutivo do amor humano e vice-versa, ambos se expressam através de gestos
sensíveis e psíquicos. O amor humano se exprime também através da relação sexual,
como veremos logo em seguida. Por enquanto, basta afirmar que o prazer não é
evasão do corpo, mas ato de afeto e de união gozosa corporal. Precisamos, pois,
libertar o prazer do “complexo de inferioridade” a que foi submetido durante tanto
tempo e reconhecer o seu valor.97
É claro que não podemos esquecer que na sociedade capitalista, agora neoliberal,
há uma desintegração do amor por conta da concepção de que se pode comprar tudo
com o dinheiro, inclusive a satisfação e o prazer. Tal concepção, talvez influenciada
por Freud, reduz o amor e o prazer ao ato sexual. Prazer, nesse contexto, seria a
satisfação plena dos instintos e dos desejos. Pensa-se que tal satisfação gera saúde
mental, felicidade e prazer. Mas o que temos visto nos últimos anos é a afirmação de
atitudes e comportamentos desumanizantes como o machismo. Além disso, a falsa
ideia de que é possível comprar tudo o que se quer com o dinheiro fez com que o
prazer só fosse experimentado como fantasia e nunca como experiência concreta. Daí
a ânsia e a frustração constante, experimentadas pela maioria absoluta das pessoas.98
Essa compreensão ideologizada do corpo é responsável também pela
instrumentalização do ser humano. Serviu para justificar a escravidão, o controle e a
submissão sociocultural por parte dos grupos dominantes.99
Por esse motivo, é fundamental ter presente que o corpo é mistério e, como tal, ele
precisa ser, antes de tudo, venerado. Venerado aqui não significa nem idolatrado nem
rejeitado. Significa acolhê-lo na sua realidade, na sua intensidade, nas suas
manifestações, nos seus ritmos, naquilo que ele é, sem idealizações e sem negações.
Dizer isso é fundamental, uma vez que o corpo transformado em mercadoria na atual
sociedade vem passando por uma série de massacres e de violências. Assim sendo,
precisamos tomar alguns cuidados com o nosso corpo ou com partes dele, a fim de
que a nossa experiência de prazer seja intensa e perpasse toda a nossa corporalidade.
Estamos convencidos de que algumas civilizações mais antigas e mais experientes
podem nos ajudar na reconciliação com o nosso corpo. Essas culturas nos ajudam a
entender a relação do nosso corpo com a terra, com a fecundidade e com a
sexualidade. O hábito de alguns povos, por exemplo, de andarem descalços, mesmo
no frio intenso, revela o cuidado com essa relação. Para tais culturas o corpo é
símbolo da totalidade e da vitalidade. Cada parte do corpo (cabelos, cabeça, anus,
boca, vagina, pênis etc.) expressa uma dimensão dessa grandeza. Até os excrementos,
a cera do ouvido, o suor, os pelos humanos, a saliva são carregados de valor e de
significado. O corpo nunca é visto como objeto e muito menos como objeto de
prazer. O corpo é a pessoa e a energia que nela circula. Nessa perspectiva,não se tem
um corpo para ter prazer, mas vive-se prazerosamente no corpo e enquanto corpo. Por
essa razão, alguns atos, como vestir-se, dançar, comer são vistos como
prolongamento do corpo, carregados de simbologia e vividos intensamente com
muito prazer.100
Nessas culturas, a maternidade não era vista apenas como fator biológico, como é
comum acontecer na cultura ocidental capitalista e neoliberal. Para esses povos, a
maternidade era expressão do desencadeamento da vida, simbolizada pela placenta e
28
pelo cordão umbilical, e convite à comunhão e à reciprocidade. A maternidade liberta
a vida. Na mesma linha era vista a feminilidade. Entender a percepção cultural da
maternidade e da feminilidade própria dessas culturas nos ajuda a superar o marco
“feminista” radical e se torna um convite à valorização da vida humana integral.
Porém, é fundamental, hoje, não apenas recordar saudosamente essas culturas, mas
construir, a partir dessas experiências do passado, uma nova identidade humana em
que haja uma relação equilibrada entre mulheres e homens.101
Nas culturas afro-americanas, o corpo e a sexualidade são uma melodia
harmoniosa que expande a alegria de viver e de existir. O corpo expressa harmonia e
ritmo capazes de manifestar a sua beleza. Mesmo quando maltratados pela
escravidão, os corpos negros não perderam o gingado e a plenitude da alegria. Os
corpos afro-americanos são verdadeiras esculturas que contém poesia e vida. Por isso
são corpos que geram comunhão, estimulando a vida e o existir. Isso não significa
que devamos esquecer a forma violenta de controle, de submissão e de dependência
praticada contra esses povos, de modo particular contra suas mulheres. Não significa
esquecer a maneira brutal com a qual essas pessoas foram tratadas, gerando frustração
por causa da negação da humanidade dessas pessoas. O que estamos querendo
afirmar é que a potência dessas culturas foi superior ao massacre e elas souberam
superar a dor com muita resistência e persistência.102
Mais adiante, quando abordarmos o aspecto bíblico do prazer, veremos que,
segundo a Bíblia, o ser humano não tem corpo, mas é corpo, uma vez que ele é um
ser no mundo, no tempo e no espaço. Esse dado, biblicamente falando, não é um
complemento, mas elemento decisivo da essência da pessoa. Por ser corpo, o ser
humano é também ser sexuado, e no corpo manifesta a si mesmo.103 Assim sendo,
também do ponto de vista teológico, o prazer se expressa através da corporalidade da
pessoa. Prazer e corporalidade estão profundamente relacionados, mesmo porque,
como vimos anteriormente ao falarmos das bases científicas do prazer, há em nosso
corpo um magnífico conjunto de sinapses elétricas, de “curtos-circuitos controlados”
provocados pelo contato das proteínas das membranas das células, que fazem com
que o corpo humano disponha de contatos, de “junções comunicantes” do prazer.
Como veremos também mais adiante, isso significa que precisamos superar de
forma definitiva a relação que o dualismo e o maniqueísmo criaram entre prazer,
corpo e pecado. Precisamos entender que, segundo a Bíblia, a corporeidade e, em
consequência, também o prazer não são por si mesmos negativos. Do ponto de vista
bíblico, o corpo (e o prazer que o envolve) é a pessoa e enquanto tal é extremamente
positivo. A pecaminosidade pode, sim, atingir o corpo humano, mas isso não significa
que, por causa disso, a corporalidade e o prazer sejam negativos.
A negatividade não está ligada à corporeidade como tal, enquanto história de pecado que, a partir de
Adão, dominou sobre todos. O reflexo da situação de morte no corpóreo demonstra exatamente que este é
o lugar no qual todo o ser da pessoa se manifesta e no qual se decide a sorte: o corpo é o sinal que revela a
dignidade da pessoa por causa da sua origem divina e, ao mesmo tempo, a situação de escravidão na qual
é lançada. O corpo exprime a pessoa em todas as suas situações vitais e históricas.104
Como o prazer é sempre corporal, precisamos libertar o corpo de toda essa
negatividade na qual ele foi submergido ao longo dos últimos séculos. É claro que
29
precisamos estar atentos para não cairmos nas armadilhas do mito da salvação através
do corpo, como se toda a realidade do ser humano se reduzisse a um punhado de
células e de moléculas. Não podemos passar da excomunhão do corpo para o culto
religioso do corpo. A atual obsessão por um “corpo sarado” revela essa tentação.105
Porém, já é hora de descobrirmos a beleza do corpo humano, descobrir a sua
linguagem e a linguagem do prazer. Precisamos conhecer o nosso corpo, uma vez que
a ignorância sobre ele tem um impacto psicológico muito grande. A falta de
conhecimento da fantástica dinâmica do nosso corpo tem gerado medo, insegurança,
sofrimento, frustração e bloqueado energias saudáveis que estão na base de
relacionamentos sadios e mais humanos. Continuar tratando o corpo e o prazer como
se fossem nossos inimigos e fontes tentadoras significa violentar o ser humano e
depredar a natureza humana na sua beleza originária querida pelo Criador.106
Dimensão sexual
Dizer que o prazer possui uma dimensão corporal implica aceitar também a sua
dimensão sexual. E por sexual não entendemos aqui a relação sexual genital.
Entendemos afirmar que na sensação de prazer está presente também a condição
sexuada do ser humano. Em termos mais claros e mais explícitos queremos afirmar
que, ao sentir prazer, a pessoa goza de tal sentimento como macho ou como fêmea e
não apenas como masculino e como feminino.107 Tal afirmação é indispensável
desde o início para evitarmos concepções ingênuas ou maliciosas, bem como
percepções distorcidas que derivam do maniqueísmo e do dualismo.
O prazer, quando verdadeiro, mexe com toda a pessoa; inunda todo o seu ser. Por
isso mexe também com a sua dimensão sexuada. Isso porque o prazer é, enquanto
expressão da corporeidade do ser humano, algo que toca em profundidade também o
corpo da pessoa e os seus órgãos vitais, incluindo aqui também os órgãos sexuais
com todas as suas funções e reações. Embora a sensação de prazer não leve
necessariamente ao ato sexual, invade e permeia a sua condição sexuada. A sensação
de prazer, que pelo próprio dinamismo das sinapses chega ao intrapsíquico, escorre
por todo o corpo humano e envolve também o sexual. Expressa-se não somente no
olhar, no sorriso, na fala, mas também no desejo de ficar perto de alguém que
amamos. E esse desejo de ficar perto significa quase sempre o desejo de tocar
alguém. O tato passa então a ter uma função significativa na busca e na realização do
prazer e, pela sua natureza, desperta naturalmente uma forte conexão com a condição
sexual da pessoa, que pode até ficar excitada ao tocar e ser tocada. Embora isso não
signifique necessariamente um toque que leve os dois para a cama, para a
consumação do ato sexual. Porém, se a pessoa é normal, sentir-se-á envolvida e
mexida na sua condição sexuada. Não sentir nada sexualmente significa estar numa
situação de anormalidade e de desequilíbrio, mesmo sabendo que também a imediata
busca do prazer venéreo pode significar igualmente desequilíbrio afetivo e sexual.
“Também o encontro tátil pode converter-se numa forma de encontro humano. A
função do tato é uma forma rudimentar do encontro interpessoal, quando tal encontro
fica reduzido ao plano das meras sensações táteis”.108
Não se trata, é claro, de apenas tocar ou de ser tocado, mas de perceber como as
30
“aferências sensoriais” que atingem o nosso corpo biológico se transformam em
experiências subjetivas que, por sua vez, chegam até as outras pessoas. Essa
necessidade de contato corporal, tátil, é tão importante quanto a necessidade que o
corpo tem de se alimentar. O contato físico carrega consigo não só um sentido
fisiológico, mas também um sentido psíquico. Por isso algumas pessoas doentes
psicologicamente evitam obsessivamente o contato físico com outras pessoas, mesmo
que seja apenas aquele de se dar as mãos.
Todo homem tem necessidade de contato físico e cutâneo, de calor do corpo alheio para apaziguaraquela
angústia profunda que trazemos dentro de nós mesmos, desde a infância, a partir do nascimento, quando
fomos violentamente separados do calor protetor do corpo materno. Tanto é verdade que, além da solidão
afetiva, sofre-se também de solidão física, que se tornou ainda mais dramática em nossa sociedade, que
tende a isolar os indivíduos e a despojar os gestos de seu rico significado primordial.109
Embora seja muito importante não “deificar” a natureza e, portanto, a condição
sexuada, precisamos rever muitos conceitos introduzidos no cristianismo a esse
respeito. É claro que, como veremos um pouco mais adiante, esses aspectos têm
conotações culturais significativas e que não podem ser desprezadas. Precisamos
recuperar em nossa cultura o valor da carícia e da ternura como formas de
proporcionar prazer não só para si, mas também para a pessoa que é acariciada.
Infelizmente, nossa cultura, especialmente a cultura religiosa, continua sendo
marcada pela frieza e pelo medo. Por essa razão as pessoas sofrem e adoecem. Se
existisse mais carinho e mais ternura, com certeza teríamos menos pessoas doentes
psicologicamente e psiquiatricamente.110
Porém, sejamos honestos e sinceros, dar carinho, receber carinho, manifestar
ternura e ser tocado pela ternura de alguém são coisas que mexem com a nossa
condição sexuada, pois são expressões da totalidade da pessoa. O prazer que decorre
dessas magníficas experiências não deixa de afetar todo o ser humano. Mas isso não
deve ser motivo para o medo, a ponto de continuarmos distantes, frios e indiferentes.
Precisamos cada vez mais cultivar o evangelho da responsabilidade humana, que
consiste na consciência de que “o homem não é joguete da fatalidade, mas dono do
seu próprio destino e autor de sua própria história”.111
Mais do que condenar essas coisas, precisamos proclamar o evangelho da
liberdade e da responsabilidade de forjar a história pessoal e da humanidade. E isso
só será possível se anunciarmos o “evangelho da graça”, sem condenação, sem
temores de culpa. A vida é dom a ser cultivado e a graça divina é maior do que as
nossas fragilidades. A responsabilidade e a felicidade não são construídas sem
“cruzes”, ou seja, sem luta contínua para superar nossas fraquezas e debilidades. Mas
isso não quer dizer que devamos continuar desconfiando da bondade do ser humano.
É hora de construirmos um cristianismo mais saudável e mais identificado com o
projeto de Deus.112 O prazer permeado da condição sexuada não é uma perversão,
como querem alguns, mas um enriquecimento para a pessoa humana. “A sexualidade
é, desde a origem da vida sexuada, um salto de qualidade na forma da vida. A
reprodução assexuada – até mesmo a moderna clonagem – só reproduz cópia, sem
nenhum enriquecimento nem complexificação”.113
31
Temos a missão de superar uma espécie de “anorexia sexual”114 que nos impede
de sermos plenamente humanos à medida que nos recusamos a admitir que sentimos
o envolvimento da nossa condição sexual na sensação do prazer. Porque a nossa pele
leva e reflete as emoções que sentimos por todo o nosso corpo, é comum e normal
que também o nosso sexo seja envolvido nessa experiência. Negar isso é recusar-se a
aceitar a dinâmica do nosso corpo querida pelo Criador.
Infelizmente, há os que negam e veem a corporeidade “não como fonte de prazer,
mas como ameaça à própria segurança”.115 Em tais pessoas há uma redução da
sensorialidade, o temor das sensações, como o prazer, e procuram se defender delas.
A pessoa vive numa condição de quase morto, uma vez que “o corpo quase ignora o
próprio sexo, os próprios desejos e toda a situação de prazer. A linguagem corpórea
não é entendida, mas rejeitada e condenada”.116 O risco, diz Dacquino, é que tais
pessoas busquem um tipo de vida como o celibato na tentativa desesperada de fugir
do próprio corpo. E ao fazerem isso, e não tendo maturidade psicológica suficiente,
terminam por viver em permanente estado de tensões e de conflito que se expressam
em atitudes desequilibradas como a sexofobia, hiperagressividade e o
antifeminismo.117 O autor conclui dizendo que é muito difícil fazer essas pessoas
“voltarem a sentir não apenas certo contato ou algum prazer, no plano corpóreo, mas
até adquirirem uma nova consideração pelo próprio corpo, graças à qual possam não
apenas experimentar, como também manifestar as próprias sensações corpóreas”.118
Rejeitando o próprio corpo e o prazer a ele conectado, o sujeito tende a cair no
dualismo, num certo angelismo e num espiritualismo de fuga. Busca um tipo de
ascese entendida como fuga da corporeidade, da sexualidade e do prazer.
Desprezando os sentidos e os impulsos normais da corporalidade, a pessoa se
desequilibra afetivamente. Recusando a experiência da corporalidade e sentindo
vergonha do próprio corpo, a pessoa é inundada por fortes desejos e por perturbações
e sensações que são expressão da repressão de seus mais nobres e verdadeiros
sentimentos. Dificilmente consegue segurar a pressão advinda da repressão das
sensações naturais e cai com muita facilidade no cedimento ao prazer erótico, ou, pior
ainda, no prazer da manipulação dos órgãos sexuais (masturbação). E, por causa
disso, termina desesperada, ansiosa, triste e frustrada. Se for católico viverá à cata
desesperada de um padre para confessar-se até diariamente.119
Dimensão espiritual
Vimos anteriormente que o ser humano é uma unidade que se manifesta em três
dimensões interconectadas e complementares: corpo, alma e espírito. Vimos também
que em cada uma dessas dimensões está a pessoa completa, de modo que ao falarmos
de uma das dimensões estamos falando do ser humano na sua totalidade. Assim
sendo, o prazer, por ser uma sensação que envolve a pessoa humana na sua
totalidade, possui também uma dimensão espiritual. Por espiritual entendemos aqui
aquela realidade que sintetiza o ser humano, que melhor expressa a essência da
pessoa. Sabemos que tanto o homem como a mulher se expressam de várias maneiras
e de várias formas. Mas há uma dimensão que resume e revela de maneira magnífica
32
aquilo que é o essencial de cada um e de cada uma de nós:
[...] o espírito é aquilo que expressa o ser humano em sua profundidade e também na sua globalidade de
indivíduo que ama-quer-crê, das motivações que o impelem a agir à sensibilidade que o torna atento à
realidade e o faz deleitar-se.120
Nessa definição de Cencini temos três coisas fundamentais acerca da
espiritualidade que caracteriza a pessoa humana. Em primeiro lugar, a profundidade,
acompanhada da totalidade. A espiritualidade não é inicialmente algo que nos conecta
à divindade. Isso vem em um segundo momento. A espiritualidade é o que nos livra
da superficialidade e nos faz mergulhar naquilo que nos revela aos outros de maneira
autêntica e verdadeira. Essa revelação não pode nem deve ser parcial, mas plena e
total. Assim, é espiritual aquela pessoa que não se esconde nas aparências e nem na
parcialidade. Quem é espiritual se coloca diante das outras pessoas sempre com o
cuidado de ser aquilo que é. Em segundo lugar, a espiritualidade é o que nos motiva a
agir e a ser sensíveis, ou seja, atentos à realidade. Lamentavelmente, durante muitos
séculos, chamamos de espiritualidade a fuga mundi, ou seja, o distanciamento da
realidade. Quanto mais uma pessoa era alienada e distante do mundo, mais era
considerada uma pessoa espiritual. Cencini nos diz que a espiritualidade nos empurra
para o mundo real, tornando-nos profundamente sensíveis. Por fim, o terceiro aspecto
diz respeito ao prazer, ao ato de deleitar-se. Espiritualidade é aquilo que nos dá
prazer.
E isso tem uma motivação teológica: “Deus não é somente beleza, como repete
sempre mais frequentemente a teologia moderna, mas é alegria”.121 Por esse motivo
é possível afirmar que o prazer possui essa dimensão espiritual, uma vez que é a
expressão da alegria divina. Sendo o homem e a mulher imagem e semelhança de
Deus, eles precisam revelar a essência divina também nesse aspecto. Pode-se, então,
afirmar que a pessoa que não vive com intensidade oprazer deixa de revelar um dos
aspectos mais significativos do Criador.
Mas, além desse aspecto de sintetizar o que é, na essência, o ser humano, a
espiritualidade é também aquela experiência de profundidade, de sensibilidade e de
alegria que dá sentido à nossa existência e à nossa brevíssima vida neste mundo.
Assim sendo, a dimensão do prazer não significa ter breves momentos de excitação e
de gozo, mas é viver intensamente e de maneira significativa cada momento da vida e
toda a vida. Quando nos falta esse elemento, por mais que tenhamos instantes de
prazer, a vida, em si mesma, se torna repugnante e sem sentido.122 Disso nasce outra
dimensão da espiritualidade, que é o cuidado com as outras pessoas, ou seja, “a
capacidade de sentir em profundidade o outro”.123
Nessa perspectiva, a dimensão espiritual do prazer significa que, ao vivenciar uma
experiência de gozo intenso, de alegria profunda, de harmonia, a pessoa não pode
esquecer que existem outros seres humanos que também têm direito ao prazer.
Significa que o meu desejo e a minha realização do prazer não podem acarretar
sofrimento para outras pessoas, como infelizmente acontece no atual momento,
dentro de uma sociedade neoliberal consumista, como veremos mais adiante. A busca
e a concretização do prazer só serão verdadeiramente humanas se respeitarem
33
plenamente o direito que as outras pessoas têm de também buscar, realizar e sentir
prazer. Deixa de ser espiritual o prazer que submete, que destrói a liberdade e a
autonomia da outra pessoa e que nega aos demais a chance de uma vida prazerosa e o
sacrossanto direito de ser diferente.124
Por essa razão, a dimensão espiritual do prazer significa abertura para a
transcendência e para o Transcendente.125 Não será possível vivenciar intensamente
e plenamente a experiência do prazer, nos termos apenas assinalados, se não tivermos
referenciais que estão além de nós mesmos. Se o nosso único referencial for o desejo
de realizar todos os nossos desejos prazerosos, corremos o risco de transformar o
prazer em ânsia e de transformar a vida das outras pessoas num verdadeiro inferno,
uma vez que, para sentir prazer, faremos tudo, inclusive usar, manipular e explorar
outras pessoas. Nesse sentido, a transcendência no prazer significa a capacidade de
irmos além dos nossos desejos e limites, abrindo-nos a novas realidades e
perspectivas. Quem se fecha no próprio mundo e não aspira a sair de si transforma o
prazer numa mera sensação de insatisfação, uma vez que não perceberá as grandes
possibilidades e os grandes potenciais que se encontram pela frente. Pensa que a
chance do prazer está unicamente naquele único momento que está diante dele.126
Para o judaísmo e para o cristianismo, essa transcendência está em Deus, o
Transcendente por excelência. Ele se torna o ponto de referência, de abertura, que
permite romper com toda pretensão de fechamento e de busca de si mesmo. Por isso,
no cristianismo, a espiritualidade é “a vida segundo o espírito, isto é, a forma de vida
que se deixa guiar pelo Espírito de Cristo”.127 Como tal, a espiritualidade norteia
também a busca e a vivência do prazer, uma vez que ela “afeta tudo aquilo que o
homem e a mulher são em sua existência concreta”.128 Por essa razão, o gozo e a
vida gozosa são também aspectos da espiritualidade, não sendo possível imaginar um
Deus cristão que não sinta gozo nem prazer, nem tão pouco uma pessoa cristã que
não sinta o prazer de viver e alegria intensa.
Enquanto experiência espiritual, o prazer possui uma dimensão mística e uma
dimensão ascética.129 Enquanto mística, é uma experiência agradável, bonita,
gostosa, fecunda, ao mesmo tempo divina e humana. Inebria toda a pessoa, toda a sua
existência e todo o seu corpo. Faz a pessoa experimentar o gozo de estar em perfeita
união com Deus. Viver o prazer, aqui, é encontrar Deus e gozar intensamente da sua
companhia.130 Como ascese, o prazer é a aceitação da real possibilidade de sofrer
lutando para acabar com todo o sofrimento. Não se trata, fique bem claro, de
masoquismo, pois isso é uma anomalia psicossexual “caracterizada pelo desejo
mórbido de ser maltratado, como prévia condição da gratificação sexual”.131
A dimensão ascética do prazer significa querer lutar sempre contra todas as causas
do sofrimento humano. O cristão ou a cristã não deixa de viver intensamente uma
vida prazerosa. Mas, enquanto experimenta intensamente o prazer de viver, se
indigna e luta contra tudo aquilo que pode impedir alguém de ter prazer. E, como
sabemos, todo aquele e toda aquela que se decide a lutar para que ninguém seja
excluído da felicidade e do prazer, “inevitavelmente terá de encarar incontestáveis
enfrentamentos, incompreensões, conflitos e até é possível que chegue a se encontrar
34
em situações-limite, situações de vida ou morte”.132 Quem luta contra o sofrimento,
sofre. Não sente prazer em sofrer e não pretende permanecer no sofrimento para
sentir prazer, como faz o masoquista. Mas porque sofre por uma causa justa (o
combate a toda forma de sofrimento humano) ele não perde a alegria de viver, não
deixa de sentir prazer. Saberá identificar, colher e acolher intensamente cada
momento prazeroso da vida, sem afrouxar a luta e sem viver na amargura.
Dimensão cultural
Ao falarmos das bases científicas, dissemos que o prazer é algo biológico. O ser
humano nasce com uma estrutura física que lhe capacita para a vivência intensa da
sensação de prazer. Há no corpo humano todo um aparato fisiológico que o torna um
ser capaz de sentir prazer. Chegamos a afirmar que a busca e a vivência do prazer
independem da simples vontade ou do simples controle do sujeito.
Porém, isso não deve ser considerado puro determinismo biológico, como se nessa
experiência não interferissem outros elementos e outros aspectos. Se no organismo
humano há um mecanismo fisiológico natural, capaz de fazê-lo sentir prazer, o que
motiva a busca do prazer e provoca inicialmente tal busca (a reação orgânica no
prazer e a realização do prazer) está ligado a outros fatores. O principal deles é o fator
cultural.
Os antropólogos ainda não chegaram a um acordo para definir o que seja a cultura.
Por isso dela existem mais de cento e sessenta definições.133 Laraia, citando Taylor,
definiu a cultura “como sendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que
independe de uma transmissão genética”.134 Assim a cultura seria a forma ou o jeito
comum de viver a vida cotidiana na sua totalidade por parte de um grupo humano.
Ela inclui comportamentos, conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes,
hábitos, aptidões etc., tanto adquiridos como herdados.135
As pesquisas antropológicas já revelaram com muita clareza que, superada toda
tentação de determinismo biológico, é possível afirmar que a cultura interfere
profundamente na maneira das pessoas viverem certas experiências. Embora
possuidores da mesma natureza, da mesma constituição fisiológica e biológica, os
seres humanos possuem hábitos e costumes diferenciados. E se essas diferenças não
puderam ser explicadas por razões meramente biológicas, os estudiosos chegaram à
conclusão de que a explicação mais cientificamente correta seria a interferência da
cultura. Os humanos, diferentemente dos outros animais, foram capazes, ao longo do
tempo, de modificar seu jeito de viver, assumindo posturas e comportamentos
novos.136
Pode-se, então, afirmar que o ser humano interferiu no seu próprio processo
evolutivo, adaptando-se a novas situações. Ele não apenas se limitou a, como fazem
os outros animais, repetir determinados atos e comportamentos geneticamente
herdados, mas foi capaz de modificá-los e de transmitir tais mudanças a outras
gerações. Nesse processo, a educação teve um papel muito importante.
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo
acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o
antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as
35
invenções.Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda
uma comunidade.137
Tendo presente essas considerações, podemos afirmar que a experiência do prazer
é algo que também foi aprendido pelo processo de educação dado por cada
cultura.138 Isso significa que há uma relação muito forte entre o prazer e os
arquétipos do inconsciente coletivo.139 O modo de entender e de viver o prazer tem
muito a ver com os arquétipos e os diversos simbolismos que povoam o inconsciente
coletivo. Trata-se, portanto, de uma questão cultural. No momento de conceber e de
viver o prazer, o sujeito costuma proceder inconscientemente de acordo com os
esquemas culturais do ambiente ao qual ele pertence. Assim sendo, o modo de
entender e de sentir prazer pode variar de uma cultura para outra, embora isso não
deva ser interpretado com precisão matemática, mesmo porque, com o fenômeno da
globalização, existem aspectos que vão se tornando comuns a todas as culturas. Desse
modo, o prazer é visto e vivido pelas pessoas a partir de uma simbolização que é o
resultado do encontro entre arquétipos e valores morais difundidos por uma
determinada cultura. Dentro desse contexto é preciso lembrar que o modo de entender
e de sentir prazer estará sempre em evolução, uma vez que o ser humano está sempre
em movimento, em transformação.140
Há, assim, uma relação direta entre prazer e ambiente cultural. É claro que isso
depende também da capacidade de cada pessoa de se sensibilizar, de admirar e de
contemplar. Nesse caso, a sensação de prazer se conecta com a beleza, entendida não
apenas no seu aspecto externo, mas também na sua dimensão de interioridade. Sente-
se prazer à medida que somos capazes de contemplar o belo, embora não possamos
esquecer a interferência de elementos negativos que podem nos tirar essa capacidade.
Cabe à pessoa reelaborar tais elementos negativos para não se ver na impossibilidade
de sentir prazer.
Infelizmente, a atual sociedade, profundamente marcada pela “cultura do
consumo”, não é capaz de contemplar porque costuma não dar-se conta da beleza. E
não se dá conta da beleza porque não possui interioridade, uma vez que é a “luz
interior” que produz a contemplação da beleza que está ao nosso redor. O
consumismo só é capaz de produzir esteticismo, o qual não é a percepção e a
contemplação da beleza, mas mera preocupação com a aparência. Quando a
preocupação é com a mera aparência não há como viver intensamente a experiência
do prazer. A pessoa que vive de aparências é superficial, e a superficialidade não abre
espaço para a vivência profunda e intensa do prazer.141
Para sentir prazer de forma profunda e intensa seria necessário um processo de
purificação, o qual nem sempre é fácil porque nele interferem vários fatores sociais e
também vários aspectos da história pessoal de cada um de nós. E, muitas vezes,
terminamos, enquanto meros consumidores de prazer, por cair no narcisismo e na
autoadmiração, levando-nos àquele processo de fechamento do qual falávamos
anteriormente.142 “A reação de prazer ou de sofrimento nasce do sentido de
harmonia ou de desarmonia do ambiente em relação às necessidades de expansão e de
plenitude do vivente”.143
36
Porém, quando conseguimos realizar esse processo de purificação, somos capazes
de vivenciar experiências intensas de prazer até mesmo em situações simples da vida.
Já tivemos oportunidade de mencionar antes como as culturas mais antigas foram
capazes de fazer isso. Cabe, aqui, relembrar mais alguma coisa, uma vez que estamos
falando da dimensão cultural do prazer. Os gregos, por exemplo, foram capazes de
sentir prazer ao contemplar a nudez, sem relacioná-la diretamente ao prazer sexual
genital. Para eles, a nudez, que se expressava nas inúmeras esculturas espalhadas por
suas cidades-estado, revelava a harmonia e a beleza do ser humano. A veste era
apenas a revelação do “personagem social”, aquilo que a pessoa devia ser para a
comunidade. Mas os gregos sabiam que, para além das vestes, estava uma beleza
humana sem comparação. Por isso, para eles, a nudez em si não era erótica. O erótico
se encontrava no ato de cobrir o corpo para depois descobri-lo de forma convidativa
para o ato de amor. Por trás desse costume grego está uma lição bem significativa:
muitas vezes é necessário “desvestir” a pessoa para encontrar nela a beleza
originária.144
Seguindo tal perspectiva, é possível dizer que a sensação de prazer está bem
condicionada ao que o processo de endoculturação determina. Em muitas culturas,
mesmo atuais, o prazer se conecta com a comida, a bebida e tudo aquilo que faz sair
da condição ordinária da vida para um estado de exultação, de alegria e de felicidade.
Em quase todas elas o prazer se expressa também na festa. Esta, com seus ritmos, é a
celebração do prazer de viver, da energia vital. A festa rompe com o cotidiano, o
costumeiro, a mesmice e celebra o prazer da riqueza de vida acumulada. A festa é
explosão de alegria e manifestação da dimensão prazerosa da vida. A festa faz com
que o prazer adquira uma dimensão comunitária, estendendo-o a outras pessoas. A
festa faz com que a vivência do prazer não fique fechada no egoísmo e no isolamento,
mas se abra para a participação das outras pessoas.145
No contexto cultural brasileiro, a questão do prazer é marcada ainda hoje pelo
impacto da colonização portuguesa. O europeu chega aqui com a cultura medieval
cristã que negava o valor do corpo e da sexualidade. Por isso escandaliza-se com a
nudez indígena, com a naturalidade com a qual os índios conviviam em paz com seu
corpo. Estes não expressavam nenhum sentimento de vergonha ou de culpa pela
exposição de seus corpos, incluindo seus órgãos genitais.146 Nesse contexto, o
vestuário adquire um significado importante. Serve não apenas para proteger o ser
humano das hostilidades da natureza, mas, acima de tudo, para cobrir a nudez, sendo
expressão de conduta moral. Cobrir a nudez dos indígenas, símbolo de depravação
moral, passou a ser uma das tarefas fundamentais e obsessivas dos missionários.147
Para concluir essa reflexão sobre a dimensão cultural do prazer importa fazer uma
análise do atual contexto globalizado. Sem essa reflexão, corremos o risco de não
entender nada da questão e de ficarmos fazendo afirmações sobre o prazer que não
podem mais ser entendidas. Como vimos antes, o ser humano já nasce com o
estímulo para o prazer, inclusive para o prazer sexual. Por isso, desde o início, sempre
houve a atração entre o macho e a fêmea. A sexualidade sempre teve suas expressões
culturais, e o sexo foi visto sempre em sua concepção sagrada e até mesmo divina.
Inicialmente relacionado aos cultos de fecundidade, inclusive agrários, o sexo, aos
37
poucos, foi sendo separado da ideia de geração e de procriação. As divindades do
prazer se sobrepõem às deusas da fecundidade.148
Com a chegada da urbanização, se impõe a ideia de fugacidade das coisas. É
preciso gozar a vida no mais breve período de tempo. O prazer entra no rol das coisas
a serem usufruídas intensamente e rapidamente. O prazer sexual não está mais
conectado com a geração e a reprodução. O exercício da atividade sexual ganha
autonomia. Nesse contexto foi preciso introduzir um ethos, uma ética para a atividade
sexual humana que inclui também a questão do prazer.149 Aos poucos, essa ética
fortemente cristã se manifestava como “controle” dos instintos e das paixões
associadas ao corpo humano. A ética da sexualidade, aos poucos, passa a ser definida
como contenção das atividades sexuais, vistas como animalidade. É tolerada apenas
dentro do casamento em função da procriação. A atração sexual é tida como uma das
consequências do pecado original, uma rebeldia contra a ordem estabelecida por
Deus. Como veremos mais adiante, a influência de Agostinho foi decisiva para esse
tipo de concepção do prazer.150 “Assim sendo, a satisfação dos apelos da natureza e
das exigências fisiológicas passou a ser considerada como manifestação da
degradação humana, ou seja, de uma descida, de uma queda.”151
Portanto,o problema hoje não está no estabelecimento de uma ética do prazer,
mas na pedagogia utilizada para se afirmar essa ética. Em vez de educar para a
autonomia, para a liberdade e para a responsabilidade, as Igrejas e várias outras
instituições da sociedade preferem controlar as pessoas. Como cresce nos homens e
nas mulheres a consciência da própria dignidade e do direito de cada um decidir para
si o que é melhor, há uma reação a essa forma impositiva que, muitas vezes, leva ao
outro extremo, induzindo as pessoas a buscar o prazer sem nenhuma responsabilidade
e sem preocupação com o bem das demais. Se hoje há uma banalização do prazer,
isso se deve não só à má vontade ou maldade das pessoas, mas à maneira como as
Igrejas e as outras instituições (família, escola, Estado etc.) colocaram
pedagogicamente a questão.
1 A Psicologia é a “ciência do comportamento humano e animal. O estudo do organismo em toda a sua
variedade e complexidade, na medida em que responde ao fluxo e refluxo dos eventos físicos e sociais que
formam o meio ambiente” (Álvaro CABRAL; Eva NICK, Dicionário técnico de Psicologia, São Paulo,
Cultrix, 2006, 14ª edição, p. 262).
2 “Neurociência é o estudo científico do sistema nervoso. Tradicionalmente, a neurociência tem sido vista
como um ramo da biologia. Entretanto, atualmente ela é uma ciência interdisciplinar que colabora com outros
campos como a química, ciência da computação, engenharia, antropologia, linguística, matemática, medicinae
disciplinas afins>, <<span class="Hyperlink">filosofia, física e psicologia. O termo neurobiologia é
usualmente usado alternadamente com o termo neurociência, embora o primeiro se refira especificamente a
biologia do sistema nervoso, enquanto o último se refere à inteira ciência do sistema nervoso” (Wikipédia).
3 A respeito disso, veja-se Ana ROY, Tu me deste um corpo... São Paulo, Paulinas, 2000, p. 93-144.
Convém notar que, de acordo com esse texto do Gênesis, a imagem e a semelhança de Deus se dão não na
bipolaridade de ordem psicossocial homem-mulher (’is e ’issah), mas na bipolaridade sexual: macho e fêmea
(zakar e neqebâ). Isso nos dá condições de afirmar que o prazer, inclusive o prazer sexual, é constitutivo da
condição humana de imagem e semelhança de Deus. “A bipolaridade sexual, portanto, faz essencialmente
parte do ’adam. O indivíduo não existe assexuado; existe ou como homem ou como mulher. E tal diversidade
dos sexos, nota o hagiógrafo, foi criada por Deus e está maravilhosamente de acordo com o excelente desígnio
38
de Deus” (Marco ADINOLFI, “Donna”, em Pietro ROSSANO; Gianfranco RAVASI; Antonio GIRLANDA,
Nuovo Dizionario di Teologia Biblica, Cinisello Balsamo, Paoline, 1988, p. 419).
4 Francesco COMPAGNONI, “Corporeidade”, em Francesco COMPAGNONI, Giannino PIANA,
Salvatore PRIVITERA (orgs.), Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Paulus, 1997, p. 184.
5 Ibidem.
6 Ibid., p. 184-185.
7 Ibid., p. 181.
8 Ocimar Aparecido DACOME, Rosângela Fernandes GARCIA, “Efeito modulador da ocitocina sobre o
prazer”, em Revista Saúde e Pesquisa, vol. 1, n. 2, maio/agosto 2008, p. 194. Disponível em:
<www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/saudpesq/issue/view/59>.
9 Acerca do papel e do significado das emoções nesse processo veja-se Anna BISSI, O pulsar da vida. Um
caminho de integração das próprias emoções na perspectiva cristã, São Paulo, Paulinas, 2003.
10 Cf. Ocimar Aparecido DACOME, Rosângela Fernandes GARCIA, “Efeito modulador da ocitocina
sobre o prazer”, p. 194-195. A ocitocina é “um hormônio produzido no hipotálamo e secretado pelo estímulo
dos órgãos sexuais e reprodutivos, durante o orgasmo e no estágio final do nascimento. Gera um prazer que
propicia o apego. Isso ocorre porque, assim como o hormônio vasopressina – bastante envolvido –, a ocitocina
ajuda a processar sinais sociais relacionados ao reconhecimento dos indivíduos e pode acomodar memórias
compartilhadas [...]. Isso explicaria por que as pessoas se sentem angustiadas em uma separação – elas perdem
a oxitocina envolvida em estar juntos” (Alberto Parahyba Quartim de MORAES, O livro do Cérebro, 2:
sentidos e emoções, São Paulo, Duetto, 2009, p. 141).
11 Ibid., p. 132.
12 Ibid., p. 136. Grifo do autor. “A dopamina é um neurotransmissor vital no cérebro. Joga um papel em
diversas funções no cérebro que inclui o movimento, a memória, a recompensa agradável, o comportamento e
a cognição, atenção, inibição de produção de prolactina, sono, humor e aprendizagem”. Informação extraída
de <www.news-medical.net>, acessado em 28/8/2013.
13 Suzana HERCULANO-HOUZEL, “De bem com seu cérebro”, em Mente e Cérebro, n. 19, p. 29. Os
grifos são da autora.
14 Cf. Rolf DERMIETZEL, “O brilho das sinapses”, em Mente e Cérebro, n. 19, p. 52-55.
15 Cf. Umberto GALIMBERTI, Dicionário de Psicologia, São Paulo, Loyola, 2010, p. 870. Grifos do
autor.
16 Michèle Pollak CORNILLOT, “Princípio de prazer/desprazer”, em Alain DE MIJOLLA (org.),
Dicionário Internacional de Psicanálise, 2º vol., Rio de Janeiro, Imago, 2005, p. 1423.
17 É claro que a visão de prazer construída pela Psicanálise a partir de Freud é muito mais complexa.
Porém, não é nossa intenção entrar nos detalhes dessa questão, mesmo porque foge dos objetivos do nosso
trabalho. Para uma visão psicanalítica do prazer, além das obras de Freud, vejam-se textos como: José Otávio
de Vasconcellos NAVES, Terezinha FÉRES-CARNEIRO, “O eu na obra de Freud e a corporalidade”, em
Psicologia, USP, São Paulo, julho/setembro de 2007, 18(3), p. 31-54. Artigo disponível em
<www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642007000300003&script=sci_arttext>; Luis Flávio Silva “Uma
classificação dos sentidos do termo gozo em Freud”, em Estudos de Psicologia, 2006, 11(2), 179-190.
Disponível em <www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-294X2006000200007&script>.
18 Ocimar Aparecido DACOME, Rosângela Fernandes GARCIA, “Efeito modulador da ocitocina sobre o
prazer”, op. cit., p. 195.
19 Cf. José Carlos Flores LIZANA, “Antropología del cuerpo en la cultura andina quéchua”, em Josef
ESTERMANN (org.), Teología Andina. El tejido diverso de la fé indígena. Tomo II, La Paz, Plural Editores,
2006, p. 275-297.
20 Cf. ibid., p. 195-196.
21 Cf. Alexander LOWEN, Prazer: uma abordagem criativa da vida, São Paulo, Summus, 1984, p. 55-70.
22 Cf. ibid., p. 21-25.
39
23 Cf. ibid., p. 189-193.
24 Ibid., p. 26-27.
25 Cf. ibid., p. 193-206.
26 Ibid., p. 204.
27 Leonardo BOFF, Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra, Petrópolis, Vozes, 2004, 13ª
edição, p. 111. Veja-se também Id., Ética e Moral. A busca dos fundamentos, Petrópolis, Vozes, 2003, p. 44-
48.
28 A esse respeito veja-se Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, São Paulo, Paulinas, 1992, p. 13-21.
29 Ibid., p. 15.
30 Cf. Alexander LOWEN, Prazer: uma abordagem criativa da vida, p. 65-68.
31 Cf. Id., Bioenergética, São Paulo, Summus, 1982, p. 118-119.
32 A realidade inclui aspectos para os quais muitas vezes não damos a merecida atenção. Os dogmatismos e
os racionalismos exagerados nos impedem de ver certas coisas. Merleau-Ponty, já em 1948, imediatamente
após a Segunda Guerra Mundial, nos chamava a atenção para esse fato. Ele falava da nossa insensibilidade
para com “as formas de existência mais afastadas de nós”, incluindo nessa afirmação “todos os seres vivos”.
Hoje falaríamos de formas de vida excluídas (cf. Maurice MERLEAU-PONTY, Conversas – 1948, São Paulo,
Martins Fontes, 2009, p. 29-40).
33 Cf. Alexander LOWEN, Bioenergética, p. 120-124.
34 Cf. ibid., p. 125-132.
35 O corpo é a totalidade da pessoa na sua dimensão de relação intersubjetiva, ou seja, de relação com as
demais pessoas. A alma é a totalidade da pessoa na sua dimensão de vitalidade e na sua capacidade de
promover a vida. O espírito é a totalidade da pessoa na sua dimensão de relação com o divino, na sua ação de
deixar-se conduzir pelo divino. De modo que se pode afirmar que em cada uma dessas dimensões está sempre
presente, de maneira inseparável, a pessoa na sua inteireza, na sua totalidade. A compreensão bíblica de
unidadeda pessoa (cf. 1Ts 5,23: basar, nefesh, ruah – sôma, psykhé, pneuma – corpo, alma, espírito) não nos
permite separá-la em “pedaços” como se uma dimensão não estivesse presente na outra em determinados
momentos ou em determinadas situações (cf. Ana ROY, Tu me deste um corpo..., p. 100-102). Toda vez que,
na Bíblia, aparece um desses três elementos é sempre para falar da pessoa inteira vista sob certo aspecto.
Convém observar ainda que o judaísmo e o cristianismo não conhecem o conceito de “alma”, entendida como
individualidade, interioridade, como lugar da verdade, como algo em oposição ao corpo. Essa concepção foi
introduzida no cristianismo por Agostinho, o qual toma ao pé da letra a concepção platônica. Ao introduzir o
conceito platônico de “alma”, Agostinho se afasta tanto do judaísmo como do cristianismo e contribui para
que o dualismo alma/corpo se transforme em fé popular e se difunda por toda parte no cristianismo ocidental
(cf. Umberto GALIMBERTI, Rastros do Sagrado. O cristianismo e a dessacralização do sagrado, São Paulo,
Paulus, 2003, p. 128-130).
36 Luiz Carlos SUSIN, A criação de Deus, São Paulo, Paulinas, 2003, p. 107.
37 Bernard DE LANVERSIN, “Los fundamentos sagrados del orden de la creación en el matrimonio
natural”, em René LATOURELLE (org.), Vaticano II: balance y perspectivas. Veinticinco años después
(1962-1987), Salamanca, Sigueme, 1989, p. 572-574.
38 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 14-15.
39 Bernard DE LANVERSIN, “Los fundamentos sagrados del orden de la creación en el matrimonio
natural”, op. cit., p. 574-577.
40 Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, p. 16.
41 Cf. Juan Luis Ruiz DE LA PEÑA, Antropología teológica fundamental, Santander, Sal Terrae, 1988, p.
138-149.
42 A teologia sempre ensinou que cada pessoa é única, “uma palavra irrepetível de Deus” (CNBB, Guia
pedagógico de pastoral vocacional, São Paulo, Paulus, 1983, p. 31-32). Por isso, também a maneira de
vivenciar o prazer é irrepetível, única, e precisa ser respeitada.
40
43 Cf. Juan Luis Ruiz DE LA PEÑA, op. cit., p. 267-280.
44 Cf. M. NIKIC, “Formação para a maturidade afetiva e para a castidade”, em Franco IMODA (org.),
Olhou para ele com amor. Psicologia da vocação na fase da juventude, São Paulo, Paulinas, 2002, p. 117-
156.
45 Cf. ibid., p. 121-127.
46 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, São Paulo, Paulinas, 1978, p. 143-144.
47 “Segundo o conceito freudiano de estrutura da personalidade, o id é o componente arcaico e inconsciente
do sistema de energias mentais (psique) que dinamiza o comportamento humano. Do id promanam os
impulsos cegos e impessoais devotados à gratificação – direta ou indireta, mas tanto quanto possível imediata
– do instinto sexual (libido), estreitamente vinculado às necessidades primárias da pessoa (comer e não ter
fome). Temos, pois, que o id é o verdadeiro inconsciente ou a parte mais profunda da psique” (Álvaro
CABRAL, Eva NICK, Dicionário técnico de Psicologia, p. 157). Já o ego “constitui o componente intermédio
das energias mentais (entre o id – inconsciente – e o superego – ego ideal ou consciência). Exerce controle das
experiências conscientes e regula as ações entre a pessoa e o seu meio, ocupando, portanto, a posição de um
centro de referência para todas as atividades psicológicas e qualidades egocêntricas” (ibid., p. 94). O
superego, por sua vez, “é a mais recente formação ou componente do sistema de energias mentais e foi
correlacionado com o declínio e dissolução do complexo de Édipo [...]. O superego é o representante de uma
natureza superior no eu (Freud), atuando no sentido de evitar punições por transgressões morais ou de
fomentar a realização de ideais moralmente aceitos” (ibid., p. 321).
48 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 144-149.
49 Cf. ibid., p. 149-150.
50 Cf. ibid., p. 150-153.
51 Cf. ibid., p. 157-162.
52 Cf. ibid., p. 162-168.
53 Merleau-Ponty fala do corpo humano “enquanto humano não encerrado, aberto”, percebido como algo
visível para os outros. Ou seja, para o prazer não basta a corporalidade em si, mas é indispensável também que
essa corporalidade tenha visibilidade, isto é, seja captada por alguém. Um corpo sem comunicação, por si só,
não gera prazer. É a relação com Outrem que faz o prazer acontecer. Além disso, Merleau-Ponty acrescenta
que o corpo precisa ser “carne do mundo”, ou seja, estar profundamente conectado com a realidade. Trata-se
aqui da questão da sensibilidade humana. Não há prazer verdadeiro, profundamente humano, sem um mínimo
de sensibilidade (Maurice MERLEAU-PONTY, O visível e o invisível, São Paulo, Perspectiva, 1971, p. 214-
227. O grifo é do autor).
54 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 173-180. Merleau-Ponty afirma: “Um corpo
humano aí está quando, entre vidente e visível, entre tateante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e
a mão, faz-se uma espécie de recruzamento, quando se acende a centelha do senciente-sensível, quando esse
fogo que não mais cessará de arder pega, até que tal acidente do corpo desfaça aquilo que nenhum acidente
teria bastado para fazer” (Maurice MERLEAU-PONTY, O olho e o espírito, Rio de Janeiro, Grifo, 1969, p.
38).
55 Leonardo BOFF, O rosto materno de Deus. Ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas
religiosas, Petrópolis, Vozes, 1979, 2ª ed., p. 58-71.
56 Cf. Paul HINNEBUSCH, O ministério da amizade, São Paulo, Paulus, 1996, p. 39-43.
57 Nico DAL MOLIN, Itinerário para o Amor. Amadurecimento psicoafetivo, São Paulo, Paulinas, 1996,
p. 89.
58 Paul HINNEBUSCH, O ministério da amizade, p. 44.
59 Cf. ibid., p. 69-73.
60 Ibid., p. 38.
61 Acerca desse aspecto, veja-se Nico DAL MOLIN, Itinerário para o Amor. Amadurecimento
psicoafetivo, p. 85-101.
62 Ibid., p. 89-90.
41
63 Ibid., p. 91.
64 Acerca do “prazer da solidão” veja-se Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, p. 68-91.
65 Cf. Charles André BERNARD, Teologia affettiva, Cinisello Balsamo, Paoline, 1985, p. 34-43. A
afetividade inclui não só os afetos, mas também os sentimentos mais simples de agrado e de desagrado. Na
afetividade temos percepções físicas, mas também percepções sensíveis interiores nem sempre passíveis de
total conhecimento. O afeto, por sua vez, é um estado sentimental que provoca uma inebriação física
perceptível e, ao mesmo tempo, certa perturbação proveniente do processo representativo conservado pela
pessoa. Para Jung, uma emoção só se transforma em afeto quando adquire determinada intensidade a ponto de
provocar reações físicas perceptíveis (cf. Álvaro CABRAL, Eva NICK, Dicionário Técnico de Psicologia, p.
14).
66 Cf. Charles André BERNARD, op. cit., p. 43-45.
67 Cf. ibid., p. 46-51.
68 Cf. ibid., p. 52-55.
69 Cf. ibid., p. 55-56. Acerca dessa questão, veja-se também John A. SANFORD, Os parceiros invisíveis.
O masculino e o feminino dentro de cada um de nós, São Paulo, Paulus, 1987, 5ª ed.
70 Acerca do significado do corpo para a cultura hebraica e para o cristianismo e as perspectivas que
nascem disso, conferir os diversos ensaios publicados em Marga J. STRÖHER, Wanda DEIFELT, André S.
MUSSKOPF (orgs.), À flor da pele. Ensaios sobre gênero e corporeidade, São Leopoldo, Sinodal, Cebi, Est,
s. d.
71 Cf. Charles André BERNARD, Teologia affettiva, p. 140-145.
72 Cf. José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Na órbita de Deus. Espiritualidade do animador e da
animadora vocacional, São Paulo, Loyola, 2004, p. 51-57.
73 É o caso, por exemplo, de Giustino Russolillo, místico italiano da primeira metade do século XX, que,
ao narrar sua experiência mística, o faz com um linguajar típico de amante e de amado. As expressões usadas
revelam não só uma situação prazerosa, mas um prazer místico com tonalidades de prazer sexual orgástico (cf.
Giustino RUSSOLILLO, Spiritus Orationis. Preghiere per la Divina Unione, Cava dei Tirreni, Vocazionista,
1932, p. 133-140).
74 Cf. Charles André BERNARD, Teologia affettiva, p. 155-161. Embora os exemplos citados tenham sido
de místicos do catolicismo, é possível encontrar talexperiência na mística de várias religiões. Uma coletânea
de casos pode ser encontrada em José Jorge de CARVALHO (org.), Os melhores poemas de Amor da
sabedoria religiosa de todos os tempos, Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, 2ª ed.
75 Anna BISSI, O pulsar da vida, p. 46. Grifos da autora.
76 A esse respeito, veja-se ibid., p. 71-85.
77 Cf. Charles André BERNARD, Teologia affettiva, p. 220-224.
78 Cf. ibid., p. 224-234.
79 Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, X, 4, São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 222-224.
80 Charles André BERNARD, Teologia affettiva, p. 235.
81 Cf. ibid., p. 234-238.
82 Convém, antes de prosseguirmos, explicar o que entendemos por amor. “Amor é vibração mais intensa,
maior sensibilidade, percepção mais abrangente [...]. Amor é penetrar na vida. Amor é orientá-la. Amor é
programação, projeto. Amor é viver a vida a plenos pulmões, com todos os nossos recursos. O amor é a força
que nos faz sentir ainda distantes da morte. Sendo assim, deveríamos morrer somente quando odiamos, jamais
quando amamos. O amor é a única força que nos permite suportar a vida. Quando alguém ama, jamais se sente
perdido. Pelo contrário, quando lhe tolhem a capacidade de amar, sente-se como morto. Por isso, nós nos
matamos, quando não amamos” (Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, p. 249). Por isso “o amor é uma
realidade feita de causas simples, e, sendo assim, quanto mais conseguirmos simplificá-lo, tanto mais
conseguiremos entendê-lo. Quanto mais nosso coração for simples e capaz de admirar, tanto mais conseguirá
penetrar os véus do amor” (Nico DAL MOLIN, Itinerário para o Amor, p. 25-26). O mestre Jesus sintetizou
tudo isso em poucas palavras: “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13 – versão da
42
Bíblia Pastoral, Editora Paulus).
83 O narcisismo, interpretado a partir do mito grego de Narciso, o jovem que se apaixonou pela sua própria
imagem refletida na água de uma fonte, é o amor “da pessoa por si mesma” e se torna patológico, isto é,
doentio quando se transforma em fixação ou em regressão psicossexual. Na infância, é um recurso empregado
para enfrentar situações de frustração. Na fase adulta, é regressão e expressão de um estado psicopatológico
(cf. Álvaro CABRAL, Eva NICK, Dicionário Técnico de Psicologia, p. 215-216).
84 Cf. John NAVONE, Dono di sé e comunione. La Trinità e l’umana realizzazione, Assis, Cittadella,
1990, p. 213-214.
85 Cf. ibid., p. 213-214.
86 Cf. ibid., p. 215-216.
87 Cf. ibid., p. 216-227.
88 Cf. ibid., p. 237-239.
89 Nico DAL MOLIN, Itinerário para o Amor, p. 132.
90 Ibid., p. 134. O grifo é nosso.
91 É interessante notar que no diálogo com Caim, após este ter assassinado Abel (Gn 4,9-12), Deus
reprova-lhe não tanto o ato de assassinar o irmão, mas a indiferença, a irresponsabilidade que o levou ao
assassinato, manifestada na sua resposta à pergunta divina: “Não sei. Por acaso eu sou o guarda de meu
irmão?”. A continuidade do diálogo vai revelar que a vida de Caim não será mais prazerosa. A indiferença
mata o prazer de viver (cf. Zygmunt BAUMAN, Ética pós-moderna, São Paulo, Paulus, 1997, p. 61-65).
92 Nico DAL MOLIN, Itinerário para o Amor, p. 136.
93 Ibid., p. 136-137.
94 Cf. ibid., p. 137-141.
95 Cf. M. NIKIC, “Formação para a maturidade afetiva e para a castidade”, p. 127-137.
96 Para uma visão do corpo na perspectiva cristã, cf., entre outros, Sandro SPINSANTI, Il corpo nella
cultura contemporânea, Bréscia, Queriniana, 1983; Carlo ROCCHETTA, Per una teologia della corporeità,
Turim, Camilliane, 1990; Romeo CAVEDO, “Corporeità”, em Pietro ROSSANO, Gianfranco RAVASI,
Antonio GIRLANDA, Nuovo Dizionario di Teologia Biblica, p. 308-321; Marga J. STRÖHER, “Corpos,
poderes e saberes nas primeiras comunidades cristãs – uma aproximação a partir das ‘Cartas Pastorais’”, em
Marga J. STRÖHER, Wanda DEIFELT, André S. MUSSKOPF (orgs.), À flor da pele, p. 105-136.
97 Victor L. HEYLEN, “A promoção da dignidade do matrimônio e da família”, em Guilherme
BARAÚNA, A Igreja no mundo de hoje, Petrópolis, Vozes, 1967, p. 357-378.
98 Cf. Erich FROMM, A arte de amar, Belo Horizonte, Itatiaia, s. d., p. 113-139.
99 Cf. Augustín Herrera QUIÑONES, “Corporeidad, mujer, maternidad y feminidad: desafíos en
perspectiva afroamericana”, em GUASÁ (Grupo de Teología Afroamericana). Teología afroamericana y
hermenéutica bíblica. Raíces e Nuevos Caminos, Bogotá, Guasá, 2001, p. 196-197.
100 Cf. José Carlos Flores LIZANA, Antropología del cuerpo en la cultura andina quechua, p. 285-295.
101 Cf. Augustín Herrera QUIÑONES, “Corporeidad, mujer, maternidad y feminidad: desafíos en
perspectiva afroamericana”, p. 202-205.
102 Cf. ibid., p. 197-200.
103 Cf. Romeo CAVEDO, Corporeità, p. 309-315; Juan Luis Ruiz DE LA PEÑA, Antropología teológica
fundamental, p. 134-138.
104 Cf. Romeo CAVEDO, Corporeità, p. 312.
105 Cf. Sandro SPINSANTI, Il corpo nella cultura contemporanea, p. 19-25.
106 Cf. ibid., p. 31-33.
107 Distinguimos aqui a condição sexuada da pessoa da sua sexualidade. Essa é “o sexo afetivo”, ou seja, a
condição que nos distingue dos demais seres vivos e que nos permite uma relação com as outras pessoas como
43
masculino e como feminino. A sexualidade é o modo de ser da pessoa perante as outras (cf. Ovídio ZANINI,
Como viver a sexualidade, São Paulo, Loyola, 1991, p. 18-23). Como tal, a sexualidade “é um comportamento
pessoal, humano. Pertence ao eu pessoal e não ao corpo apenas ou ao espírito. Não é meu corpo apenas que é
sexuado, mas todo o meu ser. Eu sou também minha sexualidade. A sexualidade humana situa-se no contexto
da busca de identidade por parte da pessoa” (ibid., p. 17). Já a condição sexuada implica, antes de tudo, o
erótico, que são sensações e sentimentos relacionados ao impulso sexual. Implica o amoroso, isto é, uma
prática amorosa na qual o sexual está envolvido. Implica o libidinal, ou seja, um comportamento relacionado
com a experiência sexual. E implica o sensual, que é a gratificação e a sensação gostosa proveniente da
experiência sexual. Cabe salientar, porém, que essa condição sexuada, que pode estar presente na sensação de
prazer, não significa necessariamente a consumação do ato sexual genital ou prazer sexual (cf. Álvaro
CABRAL, Eva NICK, Dicionário técnico de Psicologia, p. 311-312; Antônio MOSER, “Corpo e sexualidade:
do biológico ao virtual”, em Revista Eclesiástica Brasileira 79 [2013], p. 38-68; Id., O enigma da Esfinge. A
sexualidade, Petrópolis, Vozes, 2001).
108 Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 387.
109 Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, p. 52.
110 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 387-402.
111 Ibid., p. 402.
112 Cf. ibid., p. 402-405.
113 Luiz Carlos SUSIN, A criação de Deus, p. 110.
114 A anorexia é uma síndrome psicogênica “que afeta mais frequentemente as adolescentes e que se
caracteriza pela perda de apetite alimentar, deliberada limitação da quantidade de alimento consumido, perda
de peso e (quando apropriado) amenorreia. Fatal em dez por cento dos casos, é acompanhada de acentuadas
anormalidades na estrutura do caráter e nas relações pessoais” (Álvaro CABRAL, Eva NICK, Dicionário
técnico de Psicologia, p. 26). Ousamos afirmar, então, essa espécie de “anorexia sexual” que, a nosso ver,
afeta certas pessoas que se recusam a admitir e a sentir sensações de prazer que envolvam a sua condição
sexual. Partindo da nossa experiência de aproximação e de tentativa de diálogo com essas pessoas (já que o
contato físico é quase impossível) chegamos à conclusão de que esse tipo de anorexia pode afetar também o
caráter e as relações interpessoais.
115 Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, p. 54.
116 Ibidem.
117 Cf. ibid., p. 54-59.
118 Ibid., p. 55.
119 Cf. ibid., p. 55-58.
120 Amedeo CENCINI, A alegria. Sal da vida cristã, São Paulo, Paulus, 2010, p. 15.
121 Ibid., p. 20.
122 Leonardo BOFF, Ética e Moral, p. 43-44.
123 Ibid., p. 44.
124 Cf. ibid., p. 44-48.
125 Id., Saber Cuidar, p. 78-81.
126 É o que vem acontecendo ultimamente, uma vez que, na sociedade consumista, oprazer tem “prazo de
validade”: deve ser imediato e instantâneo e, depois, “jogado no lixo”. A vida não é nem linear nem cíclica.
Ela é pontilhada, ou seja, feita de pequenos e instantâneos momentos totalmente separados uns dos outros.
Nessa dinâmica. o que aconteceu antes e o que acontecerá depois não tem nenhuma importância. Importa
somente o aqui e o agora, o momentâneo (cf. Zygmunt BAUMAN, A ética é possível num mundo de
consumidores? Rio de Janeiro, Zahar, 2011, p. 149-197).
127 José M. CASTILLO, Espiritualidade para insatisfeitos, São Paulo, Paulus, 2012, p. 17.
128 Ibid., p. 17-18.
44
129 Acerca da mística e da ascese na espiritualidade cristã veja-se ibid., p. 20-24; José Lisboa Moreira de
OLIVEIRA, Na órbita de Deus, p. 45-66.
130 A grande Santa Teresa de Ávila assim retratava essa experiência: “Quando o doce Caçador/ me atirou,
fiquei rendida,/ entre os braços do amor/ ficou minha alma caída./ E ganhando nova vida,/ de tal maneira hei
trocado,/ que é meu Amado para mim,/ e eu sou para meu Amado” (cf. José Jorge de CARVALHO [org.], Os
melhores poemas de Amor da sabedoria religiosa de todos os tempos, p. 139). João da Cruz, outro grande
místico do catolicismo, traduzia no Cântico Espiritual a sua experiência de Deus nos seguintes termos bem
prazerosos: “Nosso leito florido/ De covas de leões entrelaçado,/ Em púrpura estendido,/ De paz edificado,/
De mil escudos de ouro coroado [...]. Ali me deu seu peito,/ Ali me ensinou ciência deleitosa;/ E a ele, em
dom perfeito,/ Me dei, sem deixar coisa,/ E então lhe prometi ser sua esposa” (ibid., p. 153).
131 Álvaro CABRAL, Eva NICK, Dicionário técnico de Psicologia, p. 198.
132 José M. CASTILLO, Espiritualidade para insatisfeitos, p. 23.
133 Cf. Marina de Andrade MARCONI, Zélia Maria Neves PRESOTTO, Antropologia. Uma introdução,
São Paulo, Atlas, 2006, 6ª edição, p. 21-24. Para se ter uma ideia sintética do que é cultura e dos seus
principais elementos, veja-se Roque de Barros LARAIA, Cultura. Um conceito antropológico, Rio de Janeiro,
Zahar, 2009, 23ª edição.
134 Roque de Barros LARAIA, Cultura, p. 28.
135 Cf. Marcello MASSENZIO, A história das religiões na cultura moderna, São Paulo, Hedra, 2005, p.
72-76.
136 Cf. Roque de Barros LARAIA, Cultura, p. 21-24.
137 Ibid., p. 45.
138 Talvez fosse mais correto falar aqui de endoculturação e não apenas de educação. De fato, a
endoculturação não é apenas o processo de aprendizagem, mas inclui, além da educação, o condicionamento
da conduta. Isso significa que o aprendizado está marcado por certos aspectos e elementos particulares que
são transmitidos ao sujeito pelo grupo. “As sociedades não permitem que seus membros ajam de forma
diferenciada. Todos os atos, comportamentos e atitudes de seus membros são controlados por ela” (Marina de
Andrade MARCONI, Zélia Maria Neves PRESOTTO, Antropologia, p. 47).
139 O termo arquétipo foi empregado inicialmente por Jung para falar de uma experiência arcaica da raça
humana presente no inconsciente coletivo de um determinado grupo humano ou na humanidade inteira. O
arquétipo é coletivo e, por isso, pode entrar em choque com os instintos biológicos do indivíduo (cf. Álvaro
CABRAL, Eva NICK, Dicionário técnico de Psicologia, p. 161).
140 Cf. Charles André BERNARD, Teologia simbólica, Roma, Paoline, 1984, 2ª edição, p. 37-45; Antônio
MOSER, O enigma da Esfinge, p. 80-91.
141 Cf. Charles André BERNARD, Teologia simbólica, p. 354-360.
142 Cf. ibid., p. 144-156.
143 Ibid., p. 36. Nesse processo, não se deve esquecer a importância do simbolismo do corpo, uma vez que
aquilo que chamamos de “corpo” é também uma “fabricação cultural”. Isso quer dizer que a sensação de
prazer está profundamente relacionada com a concepção de corpo que foi fabricada pela cultura à qual
pertencemos. Um dos fatores decisivos para a “fabricação cultural do corpo” é a religião. Esta, entendida
como sistema de construção e de manutenção da cultura, constrói mecanismos e modelos de comportamento
que incidem profundamente na concepção e na sensação de prazer. A esse respeito veja-se Monique Rose-
Aimée AUGRAS, “A construção simbólica do corpo”, em Marta Helena de FREITAS (org.), Saúde e
Religião, Brasília, Universa, 2003, p. 39-59.
144 Cf. Charles André BERNARD, Teologia simbólica, p. 236-246.
145 Cf. ibid., p. 262-268, 360-364. Acerca do significado antropológico da festa veja-se Mircea ELIADE,
O Sagrado e o Profano. A essência das religiões, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 76-84. Nas culturas
brasileiras, embora as grandes festas sejam “da ordem”, ou seja, planejadas e realizadas pelas elites para
reforçar o status quo social, elas não deixam de ser uma “abertura de todas as portas e de todas as muralhas e
paredes” (Roberto DAMATTA, O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco, 1986, p. 81-91). As nossas
festas são sempre festas “carnavalescamente desordenadas” (ibid., p. 86) que “permitem ligar a casa, a rua e
outro mundo” (p. 82), realizando verdadeiras “des-construções ou re-arrumações sociais” (p. 86). Mas esses
45
rituais carnavalescos e desordenados “não se esgotam nessas festas grandiosas em que o mundo social é
reafirmado e englobado pelo Estado e pela Igreja. Eles também estão presentes em situações muito mais
familiares a todos nós, como as festas de formatura...” (ibid., p. 88).
146 Cf. Riolando AZZI, Razão e fé. O discurso da dominação colonial, São Paulo, Paulinas, 2001, p. 115-
116; Antônio MOSER, O enigma da Esfinge, p. 88-91.
147 Cf. Riolando AZZI, Razão e fé, p. 131-145. A nudez espantava mais do que outros costumes, como a
antropofagia. Montaigne, político, filósofo e escritor francês cético, contemporâneo (1533-1572) da chegada
dos espanhóis e portugueses ao continente americano, ao tomar conhecimento dos costumes praticados pelos
Tupinambás da costa brasileira, afirmou não se espantar tanto com esses costumes. Afirmou que não deveria
ser considerada barbaridade a antropofagia por eles praticada, uma vez que, segundo ele, isso deveria ser visto
de acordo com os costumes da terra. Porém, não deixou de ficar escandalizado com a maneira de vestir dos
indígenas, chegando mesmo a exclamar: “Tudo isso é interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças”
(citado por Roque de Barros LARAIA, Cultura, p. 13).
148 Cf. Riolando AZZI, Razão e fé, p. 116-122.
149 Antônio MOSER, O enigma da Esfinge, p. 141-171.
150 Cf. Riolando AZZI, Razão e fé, p. 122-129.
151 Cf. ibid., p. 125.
46
II
O ENSINAMENTO BÍBLICO
SOBRE O PRAZER
Meu espírito se enche de prazer por causa de Deus, meu Salvador.
(Lc 1,47)
Uma vez colocada a questão do conceito e do sentido do prazer, inclusive em sua
base científica, podemos passar à análise do ensinamento bíblico sobre o tema.
Inicialmente tentaremos mostrar como o conceito de prazer aparece na Bíblia.
Tomaremos como ponto de partida a visão do Segundo Testamento, uma vez que
vamos abordar o tema na perspectiva cristã. Mas como não é possível entender o
cristianismo sem levar em séria consideração o Primeiro Testamento, ao falarmos da
concepção neotestamentária do prazer faremos uma conexão com a Bíblia judaica e,
consequentemente, com algumas concepções culturais que se refletem nos escritos do
Segundo Testamento. Após essas considerações, faremos uma breve análise dos
“prazeres divinos”, dos “prazeres humanos” e dos “prazeres desumanos”, segundo a
perspectiva bíblica.
1. O conceito bíblico de prazer
No Segundo Testamento, há duas concepções de prazer: uma mais positiva e outra
mais negativa. A concepção mais positiva é manifestada pelo verbo grego eúdokéo,
que pode ser traduzido como “ter prazer”, “alegrar-se”.1 A concepção mais negativa
é descrita pelo substantivo ‘édoné, que literalmente significa o prazer como “uma das
tantas forças, próprias do mundo da carnalidade não santificada, que lutam contra a
obra de Deus e do seu Espírito, e atraem os homens para o domínio do mal”.2 Porém,
o prazer pode ser designado também através de outras expressões como, por exemplo,
por meio do verbo ’agalliáo, o qual geralmenteé traduzido como “alegrar-se”,
“exultar”, “encher-se de júbilo”, “jubilar”. Também o substantivo chará (cf. Lc 15,7)
e o verbo chaíro (cf. Lc 1,28), de um modo geral traduzidos como “sentir gozo”,
“alegria”, “alegrar-se”, “regozijar-se”, podem, dependendo do contexto, ser
traduzidos como “ter prazer”, “sentir prazer”.3
A concepção positiva do prazer
Com o verbo eúdokéo, o Segundo Testamento, refazendo-se à tradução grega do
Primeiro Testamento,4 designa, em primeiro lugar, o prazer misericordioso de Deus
por seu povo, considerado sua propriedade. Assim, buscando fundamento no
Primeiro Testamento (cf. Is 62,4), o Segundo fala de um prazer misericordioso de
Deus em revelar a sua bondade para com a humanidade (cf. Lc 1,72). Mas, além de
expressar o prazer misericordioso de Deus, o verbo eúdokéo significa também o ato
47
de sentir prazer próprio da pessoa humana. Geralmente o prazer indicado por esse
verbo é resultante de uma decisão tomada a partir de uma vontade afetuosa e
agradável de escolher algo ou alguém. Enquanto tal, eúdokéo traduz a raiz hebraica
rsh e a expressão hebraica hafes be sáléah, cujo significado é o prazer que brota do
querer fazer, do fazer livremente uma determinada coisa. Trata-se daquele prazer
proveniente da disposição para fazer algo e resultante da aprovação recebida, do
consentimento dado e da concordância. O verbo mencionado traduz a sensação de
estar contente, feliz, satisfeito; o ato de alegrar-se por qualquer coisa boa acontecida.
É a sensação do prazer.5
Portanto, eúdokéo se relaciona com o hebraico rswn (rasôn) e significa
beneplácito, graça, aprovação, consenso, aplauso, favor humano resultantes do querer
de Deus. No hebraico bíblico, os termos apenas mencionados são utilizados para falar
do sentimento de prazer, do prazer que brota a partir de um favor recebido (cf. Pv
14,35; 16,15), da realização de um acordo (cf. Pv 14,9) e por se ter cumprido a
vontade de Deus (cf. Sl 145,19). É o que se pode deduzir também da Septuaginta.6
No Segundo Testamento, esse verbo, quase sempre substantivado (eúdókesa,
beneplácito, gozo), indica, antes de tudo, o prazer divino do Pai na escolha do Filho e
o prazer deste na adesão ao projeto do Pai de salvar a humanidade (cf. Mt 3,17; 17,5).
Quando atribuído ao ser humano, indica o prazer de ter escolhido o melhor; o prazer
obtido pela realização de algo ou por algum acontecimento bom.7 O verbo eúdokéo
indica o prazer de Deus ao usar do seu beneplácito e a alegria da pessoa humana em
louvar a Deus por esse beneplácito (cf. Rm 10,1). Mas indica também o prazer em
fazer alguma coisa agradável (cf. Fl 1,15), o prazer da boa disposição e da boa
vontade, o prazer de agir corretamente, fazendo assim o que Deus quer (cf. Fl 2,13).
Pode ainda significar o prazer de uma boa notícia vinda de Deus e que enche a Terra
de paz (cf. Lc 2,14); paz que, em hebraico, se diz shalom e, em grego, eírene. No
Segundo Testamento, a experiência do prazer está sempre relacionada com o gozo
pela redenção trazida por Deus. Isso porque no contexto cultural dos povos bíblicos é
impossível separar a experiência humana da experiência do divino.8
A concepção negativa do prazer
Vimos que na Bíblia há também uma concepção negativa do prazer, expressa pelo
uso do substantivo ‘édoné, do qual veio depois a palavra “hedonismo” da língua
portuguesa. Tal concepção, porém, não deve sobrepor-se à anterior, como
infelizmente aconteceu na história do cristianismo. O termo ‘édoné é usado somente
para expressar aquele tipo de prazer que desumaniza, ou seja, que tira do ser humano
a sua humanidade. Por essa razão, é sempre muito importante fazer essa distinção
quando se fala do prazer na Bíblia, a fim de se evitar a sua “demonização”.
Aliás, na raiz da palavra ‘édoné está o prefixo ‘édés, que no grego antigo
significava aquilo que é doce, prazeroso e alegre. Os gregos antigos falavam do
prazer como “deleite dos sentidos” e o prefixo apenas mencionado servia para
expressar aquilo que tem um bom sabor, que provoca o gozo dos sentidos, o
sentimento de prazer, a diversão, o deleite. Nesse sentido, a expressão servia também
para falar do desejo de alegria, do desejo apaixonado de alguém e de alguma coisa
48
que gera sentimento de prazer. Por isso os gregos antigos acreditavam que a ‘édoné é
um elemento necessário à vida, embora em alguns casos esse desejo de vida pudesse
se tornar uma ameaça, chegando até mesmo à dissolução dessa vida.9
Inicialmente o conceito era eticamente neutro, mas, aos poucos, sofre uma
desvalorização progressiva. Na filosofia grega antiga, o termo significava
sentimentos, movimento do ânimo, fazendo parte dos sentimentos fundamentais da
pessoa humana. O ‘édoné fazia parte da finalidade suprema da vida e, por isso, era
considerado uma virtude. Isso, porém, se fossem respeitados certos limites,
considerando que o bem é moderado, harmônico, racional e livre de ímpetos e de
paixões. Por essa razão, o prazer não era considerado fim em si mesmo. Epicuro e os
cirineus consideravam o prazer um valor fundamental. Aristóteles afirmava que uma
vida feliz era prazerosa e, por isso, conecta o ‘édoné à felicidade, sendo o prazer parte
do instinto fundamental do ser humano.10 Convém, porém, lembrar que tanto para
Aristóteles como para Platão o verdadeiro prazer é idêntico à atividade racional.11
Assim, à medida que o tempo foi passando, o elemento negativo de ameaça foi se
introduzindo na concepção grega de prazer, especialmente com o afirmar-se do
dualismo e do maniqueísmo.12 Aos poucos ‘édoné vai significando também o prazer
sexual e o ato de abandonar-se a uma vida de gozo e de prazeres.13 Nesse processo
de afirmação negativa os estoicos tiveram um papel fundamental. Contestando a
afirmação de Aristóteles, eles viam o ‘édoné como algo desprezado e indigno, a não
ser quando fosse o resultado de uma vida virtuosa, coisa que eles consideravam
difícil, uma vez que o ‘édoné era apenas o efeito da satisfação das necessidades
naturais.14 Por essa razão, ainda no período da filosofia grega clássica se começou a
distinguir os ‘édonaí (prazeres) superiores e inferiores.15 Existem alegrias
verdadeiramente humanas e aquelas infra-humanas. Houve uma discussão sobre o
assunto tendo inclusive quem defendia, como Arístipo, que os prazeres físicos eram
melhores do que aqueles da alma. Epicuro dizia que o prazer físico era a fonte dos
prazeres espirituais, embora não defendesse a ideia de que o prazer fosse fim em si
mesmo.16
Na literatura judaica canônica, o termo correspondente para ‘édoné (em sentido
negativo) é o hebraico ta‘am, embora o seu uso fosse muito raro. Aparece somente
duas vezes na Septuaginta (cf. Nm 11,8; Pv 17,1). Fora disso, o uso do termo ‘édoné
na tradução dos Setenta se dá no seu significado clássico de bom paladar, bom gosto.
Algumas vezes é usado para falar do prazer sexual (cf. Sb 7,2). Na literatura judaica
grega, como, por exemplo, no Quarto Livro dos Macabeus, existe certa hesitação
entre a concepção clássica grega eticamente neutra (afeição, alegria, prazer etc.) e
uma concepção mais dualista, negativa. Nessa concepção mais negativa, o prazer é
visto como fonte de todos os impulsos ruins, seguindo a linha dos estoicos.17
O prazer no Segundo Testamento
O Segundo Testamento acolhe a concepção clássica de ‘édoné entendendo-o como
prazer, deleite, diversão (cf. 2Pd 2,13), desejo de gozo (cf. Tg 4,1; Tt 3,3), mas
49
também o sentido de gozo terreno, sensual, sem, porém, nunca associar o sensual ao
prazer sexual.18 De um modo geral, ‘édoné indica um estilo de vida oposto ao
cristianismo, inserindo-se naquela visão de contraste que o caracteriza. Nesse sentido,
pertence ao âmbito das forças contrárias a Deus. ‘Édoné pertence ao bíos, ou seja, à
condição fragilizada do ser humano. Está associado ao conceito de sárkis (carne) e de
‘amartía (pecado) e se opõe à charís (graça, favor divino) do Espírito (cf. Gl 5,22).
No Segundo Testamento, o ‘édoné está associado à natureza decaída.19
Enquanto tal, o prazer se opõe a Deus e é considerado uma traiçãoao projeto
divino (cf. Tg 4,1), um inimigo de Deus (cf. Tg 4,7). Encontra-se no ser humano
contra a vontade de Deus (cf. 1Pd 4,2), e expressa um estado de rebeldia. Esse tipo de
prazer luta contra a Palavra de Deus (cf. Lc 8,14), e procura destruir a ação divina (cf.
Mc 4,19). Os cristãos e as cristãs que se deixam levar pelo ‘édoné agem de maneira
perniciosa, e vivem uma vida contrária a Deus (cf. Tg 4,3). Esse tipo de prazer não é
somente inimigo de Deus, mas também inimigo do ser humano. Por esse motivo, a
pessoa deve viver numa permanente luta contra o ‘édoné. De fato, este é agressivo, e
o seguidor ou seguidora de Jesus deve defender-se dele (cf. Ef 6,11), vivendo num
estado de guerra. Se não empreender essa luta, a pessoa se torna escrava e fica
sufocada por ele (cf. Lc 8,14). De acordo com o Segundo Testamento, as vítimas e os
sujeitos do ‘édoné são os pagãos, os cristãos relapsos e os heréticos.20
É fácil ver aqui a influência da filosofia grega na sua vertente mais recente. De
fato, como sabemos, a partir do terceiro século a.C., há uma difusão muito grande da
cultura helênica por toda a região do baixo Mediterrâneo. Entre 176 e 134 a.C., a
Judeia se torna parte do império selêucida e, como nos contam os livros dos
Macabeus, há uma imposição da cultura helênica por toda parte. Os judeus são
dispersos violentamente e perdem o contato com a terra de Israel e com os costumes e
tradições. Muitos judeus espalhados pelo mundo de então chegam a esquecer a
própria língua. Foi necessário escrever textos em grego (Tobias, Judite, Ester, Livros
dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico) para que eles não esquecessem a tradição dos
pais. Todo esse movimento de contato com a cultura grega da época exercerá uma
influência decisiva sobre a composição dos escritos do Segundo Testamento. Mesmo
conservando a intuição e a mentalidade do Primeiro Testamento escrito em hebraico,
o Segundo Testamento não deixa de herdar, de maneira impactante, vários elementos
da cultura grega que predominava em toda a região.21
Pode-se, então, deduzir que essa concepção mais negativa do prazer, presente no
Segundo Testamento e expressa através do substantivo ‘édoné, seja uma evidência da
influência da cultura helênica tardia. Porém, não devemos esquecer que, tanto na
cultura grega clássica como no Primeiro e no Segundo Testamentos, o prazer é, antes
de tudo, eúdokéo, ou seja, algo profundamente bom e divino. Não resta dúvida de
que, como veremos mais adiante, existem formas de prazer e de busca de prazer que
não humanizam e, por isso, são nocivas e são contrárias ao projeto que Deus tem para
cada pessoa e para a humanidade. Mas isso não deve ser motivo para demonizá-lo e
para vê-lo como algo pecaminoso e impróprio para quem se coloca no seguimento de
Jesus. Na leitura cristã não deve prevalecer o aspecto negativo, ou seja, o medo do
prazer e a sua associação ao pecado. Se prevalecer o medo e o temor do prazer, e se
50
este for sempre visto como pecado, corremos o risco de nos tornarmos neuróticos e
de não termos uma boa saúde psíquica.22
2. Os prazeres divinos
Lamentavelmente certa tradição cristã pintou a figura divina como a de alguém
bastante irado, nervoso, vingativo e castigador. Um Deus assim não tem prazer, a não
ser o prazer de castigar e punir o pecador. Por esse motivo, não existe nessa tradição
nenhuma referência aos prazeres divinos. Na maioria das culturas não cristãs os
deuses são revestidos de certo antropomorfismo. Por isso, normalmente, são também
“deuses terrestres” que amam determinados prazeres como, por exemplo, caçar,
pescar, criar animais etc. Os gregos tinham o deus Dionísio, adotado depois pelos
romanos com o nome de Baco, que era a divindade do vinho, da ebriedade e dos
excessos.23
O prazer de criar e de se divertir
Porém, esse tipo de concepção do Deus dos cristãos não corresponde aos dados
bíblicos. É mais uma experiência religiosa marcada pelo desejo infantil de
onipotência que não foi superado com o passar do tempo. Quando crianças, tínhamos
necessidade de sentir segurança, amparo e apoio. Por essa razão, vivemos um estágio
de fusão total com a figura da mãe. O pai depois entra na relação e nos obriga a
romper com essa fusão, projetando-nos para a autonomia e a independência. Mas
quando isso não foi bem vivido, de modo particular pela ausência do pai ou pela
excessiva interferência da mãe, nós permanecemos dependentes, sonhando com a
figura de um pai que venha nos fazer adultos. Isso, depois, é transferido para o âmbito
religioso. Deus é o substituto do pai ausente. Nele projetamos nosso desejo de
segurança, de amparo e de apoio. Por isso não admitimos um Deus “frouxo” cheio de
misericórdia, de compaixão e de bondade e, muito menos, um Deus que se dá a
determinados tipos de prazeres. Para satisfazer essa nossa carência, precisamos de um
Deus onipotente, “um Deus de bota e guerra, de inquisição e fogueira, de ortodoxias e
excomunhões”.24
Mas se olharmos atentamente para alguns textos da Sagrada Escritura vamos
perceber que o Deus bíblico é um Deus que tem prazer e que ama cultivar o prazer. Já
nas primeiras páginas da Bíblia encontramos um Deus que “curte” prazerosamente a
sua criação. Ele vai criando e contemplando o que cria. Essa contemplação é uma
ação prazerosa como revela muito bem a expressão “Deus viu que isto era bom” (cf.
Gn 1,12), termo que poderia ser traduzido pela expressão “Deus sentiu muito prazer
pelo que tinha acabado de fazer”. Depois de continuar a criar, ele volta a contemplar
sua criação e sente muito prazer ao perceber que tudo o que ele tinha acabado de criar
“era muito bom” (cf. Gn 1,31). Deus sente em profundidade infinita aquele prazer
que nós sentimos quando terminamos de realizar algo com o que sonhamos e que
contribui para a nossa realização e felicidade. Dessa forma, a contemplação da beleza
da criação se torna para todos nós um chamado a uma vida prazerosa.25 Quando o
salmista olha o céu estrelado e admira a obra dos dedos divinos (cf. Sl 8,4), ele está se
51
enchendo de prazer. A admiração do prazer divino criador se torna motivo para sentir
prazer. E o sentimento de prazer humano se transforma em louvor ao prazer de Deus,
que foi capaz de povoar a terra de tanta beleza (cf. Sl 8,6-9).
Estudiosos da Bíblia observam com perspicácia que a criação divina não está
voltada exclusivamente para uma função meramente econômica, ou seja, somente
para atender as necessidades básicas da sobrevivência humana e dos demais seres
vivos. Deus, ao criar o mundo, faz muitas coisas que, por si só, não seriam
indispensáveis. Percebe-se, então, que ele cria não só por necessidade, mas para sentir
prazer e para oferecer ao ser humano oportunidades de sentir prazer.
Deus não fez uma criação meramente útil, limitada a cumprir sua função da maneira mais econômica
possível. A criação de Deus não é constrangida pelas fronteiras da necessidade; Deus não foi forçado a
criar o mundo. Sua criação é cheia de possibilidades e enormemente diversa, plena de coisas saborosas e
agradáveis. Ele fez muitas árvores frutíferas, com gostos e texturas diferentes e agradáveis ao paladar, ao
tato e à visão humana. Ele fez diversidade de cores, animais, sons, que visam dar ao ser humano um
aproveitamento prazeroso da criação [...]. Há muito na criação que é supérfluo se considerado apenas em
termos de sobrevivência, mas esses aspectos extras são tanto fonte de deleite como causa para adoração ao
Criador. O desígnio de Deus é para uma vida repleta da maravilhosa e bela criação.26
Mas esse Deus bíblico sente prazer também em terminar a sua obra, em deixar de
trabalhar, em cessar toda a obra que tinha feito até então (cf. Gn 2,2-3). É o prazer de
concluir um trabalho e depois descansar, apenas contemplando o que foi feito. Trata-
se aqui do prazer do ócio, daquela experiência agradável de ficar um tempo sem fazer
nada. Talvez isso seja difícil de entender numa cultura como a nossa, que valoriza o
ativismo e a produção e que tem dificuldade de encontrar tempo para o prazer de
descansar, para o prazerde parar para ficar sem fazer nada. Na era do consumismo e
da busca obsessiva de ter dinheiro para gastar, o ser humano vai perdendo o prazer do
ócio. Trabalha como louco para, um dia, ter tempo livre para gastar o dinheiro. Mas a
obsessão é tanta que ele nunca consegue parar para descansar. No cristianismo
chegou-se à obsessão de pensar que o descanso e o ócio eram pecados.27
Esse princípio está presente em outras culturas religiosas que chegaram a criar a
figura do “deus otiosus”, ou seja, do deus que se afasta da sua criação e não faz nada,
a não ser descansar. Nas religiosidades africanas, por exemplo, temos a figura de
Olorum, o deus criador, que depois de ter começado a criação se afasta
definitivamente dos “assuntos terrestres e humanos”, confiando a responsabilidade de
concluir a sua obra a Obatala, um deus inferior.28
Além disso, o Deus bíblico é um Deus lúdico, ou seja, que gosta do prazer de se
divertir e aproveita de momentos de folguedo para passear e praticar o lazer. Nesse
sentido é muito significativa a cena do livro do Gênesis (3,8) segundo a qual Deus,
aproveitando a brisa da tarde, passeia pelo jardim por ele criado. A Tradução
Ecumênica da Bíblia (TEB), mencionada no início deste trabalho, nota que o termo
usado para designar essa brisa é ruah, palavra feminina que significa o sopro divino
criador. Continuando a reflexão, a TEB deixa entender que Deus pretendia encontrar
o ser humano criado por ele num ambiente prazeroso e não num clima de tensão. Será
a ruptura humana com o divino a gerar um clima de medo e de conflito que se
concluirá com a expulsão do homem e da mulher do jardim de Éden. Portanto, o
Deus da Bíblia não é o Deus do terror, mas um Deus que adoraria estar com os seres
52
humanos curtindo gostosamente as maravilhas da criação e saboreando a alegria de
uma boa diversão, de uma boa festa.
Por essa razão, o Segundo Testamento vai apresentar o Reino ou Reinado de Deus
como sendo uma grande festa prazerosa, com muita comida, muita bebida e muita
diversão (cf. Lc 14,15-24; Mt 22,1-14). Considerando que, segundo esses e outros
textos bíblicos, o Reino e o Reinado de Deus não pode ser confundidos com o céu, ou
seja, com a vida após a morte, isso adquire um significado muito profundo para o
tema que estamos tratando.29 Significa que, no projeto divino para o seu Reino e para
o seu Reinado, está incluída também uma vida prazerosa para os seus filhos e filhas já
aqui nesta vida terrena. Não faz parte desse projeto o sofrimento e a dor. Se isso
acontece é porque houve da parte do ser humano um distanciamento desse desejo de
Deus de ver a humanidade alegre e feliz, vivendo intensamente e de forma prazerosa.
Não! A glória de Deus é o homem vivo; não o homem torturado, nem o masoquista que afunda a alegria
de viver no pessimismo e na autopunição; ou num derrotismo vivencial que pretende oferecer a um deus
sádico seus “sacrifícios”, suas mortificações, a progressiva destruição da própria vida numa forma larvada
de suicídio. Nosso Deus não é um Baal, um deus cruel, que exige sacrifícios humanos, destruição
instantânea ou gradual da vida.30
O prazer de agraciar e de perdoar
A Bíblia também nos revela que Deus sente um enorme prazer em agraciar os seus
filhos e as suas filhas. O Segundo Testamento mostra um Jesus exultante por causa da
bondade e da ternura do Pai que enche de graça e de sabedoria as pessoas simples e
humildes (cf. Mt 11,25-27). Mas já no tempo dos profetas, Deus é apresentado como
aquele que se enche de prazer ao comunicar a sua graça ao ser humano: “A que Deus
te comparar, tu, que tiras o pecado, tu, que passas por cima das rebeldias? Por amor
do resto, seu patrimônio, longe de obstinar-se na cólera, tem ele prazer em agraciar”
(cf. Mq 7,18).
A partir desse e de outros textos (cf. Sl 103,1-10) é possível perceber que Deus
sente prazer em esquecer os nossos pecados e as nossas revoltas. Ele não sente prazer
em encher-se de cólera, mas em passar por cima, ou seja, em não levar em conta as
nossas fragilidades. Bem diferente do que se costuma pregar e afirmar, o Deus bíblico
é um Deus que se enche de prazer não em castigar, mas em perdoar e esquecer o que
fazemos. Nos Evangelhos, isso aparece com muita frequência nos gestos e nas
palavras de Jesus. Sendo o Filho sacramento visível do Pai invisível (cf. Jo 14,9-10),
o que ele faz e o que ele diz revelam a essência de Deus.
Acreditamos que é indispensável reelaborar essa questão no cristianismo, uma vez
que as Igrejas, até agora, têm insistido na figura de um Deus vingativo e castigador,
deixando de lado a verdadeira mensagem dos Evangelhos, que apresenta um Deus
bem diferente. E para refazer essa tradição tão perversa é indispensável apresentar um
Deus que verdadeiramente se enche de prazer e de gozo quando agracia e quando
perdoa. Não há melhor caminho do que este: substituir a imagem de um Deus
zangado e irado pela belíssima imagem do Pai misericordioso que pula de alegria e de
felicidade quando pode abraçar, beijar e acolher um filho ou uma filha que retorna
para os seus braços.
Já o profeta nos lembrava de que não precisamos ficar desesperados quando
53
cedemos à nossa fraqueza, assumimos atitudes de revolta e sentimos sobre os nossos
ombros o peso de nossos pecados. Ele nos lembra de que Deus não sente prazer com
a nossa morte, mas com o nosso retorno (cf. Ez 33,10-11). O prazer de Deus está
exatamente em esquecer tudo o que fazemos e tudo o que cometemos (cf. Ez 33,16).
Lucas vai expressar esse prazer divino através da parábola do Pai misericordioso (cf.
Lc 15,11-32), que lamentavelmente foi esvaziada ao ser chamada de parábola do
“filho pródigo”. Ao evidenciar mais o arrependimento do filho do que a ternura e o
amor do pai, a tradição ocidental retirou dessa parábola a sua força e a sua
originalidade. Isso porque do contexto do texto é possível perceber que a intenção de
Lucas não foi mostrar um filho arrependido, que se humilha e se curva, mas um pai
que esquece tudo o que o filho fez e o acolhe com compaixão, abraços e beijos (cf. Lc
15,20), mesmo antes de ele pedir perdão.31
Pode-se concluir que, segundo a Bíblia, um dos prazeres mais intensos sentidos
por Deus é poder acolher e perdoar aqueles seus filhos e aquelas suas filhas que,
percebendo-se pecadores ou pecadoras, fazem o caminho de volta para ele. Mas,
como nota Lucas, esse prazer divino não é sádico, como se ele sentisse gozo em ver
seus filhos e suas filhas se humilhando diante dele. O prazer divino está justamente
em antecipar-se, não permitindo a humilhação dos seus amados e de suas amadas.
Isso tem que ser bem evidenciado, pois pode haver uma forma de mostrar o prazer de
Deus em perdoar, mas com colorações sádicas: um Deus que perdoa, sim, mas depois
de ver as pessoas humilhadas a seus pés. É claro que esse tipo de pregação ou de
catequese reflete apenas o sadismo de algumas autoridades e lideranças religiosas que
sentem prazer em humilhar e maltratar os outros. E para justificar suas atitudes fazem
uma leitura enviesada e distorcida da Palavra.
Vivemos numa cultura da mercantilização de tudo, inclusive das relações. O
cristianismo lamentavelmente seguiu o mesmo caminho. A mentalidade das
“indulgências” criou a concepção de que Deus cobra pedágio para nos deixar transitar
pela estrada da reconciliação. Por isso, a pregação e a catequese ainda exploram a
visão de um Deus vingativo e punitivo que sente prazer em nos castigar. Temos que
rever isso com a maior urgência possível. E para que isso aconteça, urge mostrar o
rosto feminino e materno de Deus. Um Deus que dilata seu “útero” para dar vida e
vida plena a seus filhos e suas filhas.32 Mas isso só vai ser possível no dia em que
tivermos uma comunidade cristã capaz de incluir de verdade (e não só na teoria) as
mulheres também nas suas instâncias de poder e de decisão e nos ministérios
ordenados. Enquanto tivermos nas Igrejas uma estrutura hierárquica androcêntrica,
relegando as mulheres para um segundo plano, impedindo seu acesso às instâncias de
poder, de decisão e aos ministériosordenados, a figura de Deus só refletirá essa
estrutura. O Deus dessas Igrejas será masculinizado, duro, vingativo e só sentirá
prazer quando puder punir o pecador.
O raciocínio masculino se move mais no campo da razão e da vontade; fala de ética, de pecado, de leis,
castigos e recompensas. A misericórdia é o rosto materno de Deus. Não estaria, no início da criação, a
vontade de Deus de ser misericordioso, aceitando os limites das criaturas e até os seus pecados, para ter a
oportunidade de manifestar o seu amor materno? [...]. A mãe, nas dores de parto, dilata a porta do útero
para dar à luz seu filho. Deus, na sua infinita misericórdia, não dilatará também a “porta estreita” para que
os homens pecadores possam nascer para a vida eterna? Talvez precisemos de mais teologia feminina para
ouvirmos falar do Deus da misericórdia, que tem o coração aberto para as misérias e sofrimentos dos seus
54
filhos, e que nada mais deseja tão ardentemente do que levantá-los e consolá-los.33
O prazer de dar a vida
O prazer divino que se expressa no criar, no agraciar e no perdoar é, ao mesmo
tempo, o prazer em dar a vida. Queremos ressaltar aqui o artigo “a” que precede o
substantivo “vida”, para dizer que não se trata de uma vida genérica, ou seja, de uma
vida qualquer. Deus, ao criar, ao dotar suas criaturas de graça, beleza e bondade, ao
agraciar e perdoar, está infundindo “a vida”, isto é, a plenitude do viver,
indispensável para que suas criaturas existam conforme o seu projeto de amor.
Acreditamos que no dar a vida esteja o ápice do gozo e do prazer divinos, como
bem expressa a Sagrada Escritura: “Terei eu prazer na morte do malvado – oráculo do
Senhor Deus – e não em que ele se aparte de seus caminhos e viva?” (cf. Ez 18,23).
Para entender que o cume do prazer divino está no seu ato de dar a vida às suas
criaturas é indispensável entender o significado do termo vida na Bíblia.
Nas Escrituras judaicas e cristãs a vida não é algo abstrato, mas um fenômeno bem
concreto e bem real. Embora possa ser definida como “o ato de respirar” ou respiro
(em hebraico: nefesh hajjah; em grego: zoé), a vida inclui vários outros elementos
como o alimento, a saúde, o amor, a fecundidade, a beleza etc. Ter vida, pois, não se
resume à sobrevivência, ao ato de respirar, mas requer um conjunto de elementos que
a tornam realmente plena.34 Enquanto tal, a vida é dom de Deus, como se pode
deduzir da belíssima imagem da infusão do hálito divino nas narinas do ser humano
apenas modelado pelo Criador (cf. Gn 2,7). Somente esse “hálito de vida” (em
hebraico: neshamá) permite à criatura humana tornar-se um “ser vivo”. Assim sendo,
o maior prazer divino está em dar a vida aos viventes, uma vez que é esse seu ato
criador que lhe permite comunicar algo de si mesmo, algo de sua própria essência.
Isso se torna mais explícito se levarmos em consideração o fato de que Deus cria
por amor e não por necessidade. Diferentemente das outras concepções religiosas da
região e da época do povo bíblico, a criação divina se dá por puro ato de amor. A
criação, segundo a Bíblia, não é o resultado de briga entre deuses, de ciúmes divinos
ou mesmo de uma carência de um determinado deus. Ela se dá por pura e exclusiva
vontade de comunicar amor. Deus, na sua infinita liberdade, decide criar para
“extravasar” além dele mesmo o amor intenso que circulava no seu interior.
Os místicos cristãos e as místicas cristãs que fizeram experiência profunda da
imensidão do amor expressaram isso em termos trinitários. Afirmam que, em suas
experiências místicas, conseguiram perceber que a criação é uma explosão do amor
trinitário para além das três Pessoas divinas. A vida é o resultado da explosão do
prazer divino, que circulando intensamente e sem limites entre as três pessoas da
Trindade, expande-se para além do “ilimitável limite da ilimitada Trindade”.35 A
Trindade Santa é vida de prazer ilimitado. Esta vida de prazer ilimitado é o resultado
do amor que circula entre as três Pessoas divinas (Pai, Filho e Espírito Santo). Essa
circulação de amor é tão grande que os três divinos decidem eternamente oferecer
cada um deles aos outros um presente eterno. Por isso decidem juntos pela criação do
Universo e, nesse Universo, decidem criar a pessoa humana à imagem e semelhança
deles. Eis como um místico relata a sua experiência:
55
No nosso modo de entender e de nos expressar, querendo ir além, com toda reverência e adoração,
acreditamos que as coisas aconteceram assim: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, devido àquele amor
infinito que uma Pessoa tem pela outra, ou, melhor dizendo, devido ao amor infinito que uma Pessoa é
para a outra, como se não bastasse dar-se todo Si mesmo um ao outro, quiseram presentear um ao outro
com um presente que fosse ao mesmo tempo digno Deles e exprimisse tudo aquilo que o doador e tudo
aquilo que o donatário mais estimam, mais amam e mais têm em consideração. Ora, fora de Deus não
existe nada melhor que a imagem de Deus, e para cada divina Pessoa nada existe que ela mais estime e
mais ame, além das divinas pessoas, que a sua imagem [...]. E juntas disseram: “Façamos, então, esta
nossa imagem e semelhança, para que cada um de nós possa dá-lo ao outro como presente”. E a Pessoa
humana foi criada e cada Pessoa divina a considerou preciosa e valiosa e a amou como ama as outras
Pessoas divinas e a atraiu e a ela se uniu com tamanha intimidade que somente com o nome e a ideia de
união nupcial se pode, mesmo que de maneira indevida, expressar esse fato extraordinário.36
Na linguagem da mística, a criação e, de modo particular, a criação da pessoa
humana é expressão de uma relação prazerosa que une eternamente as três Pessoas
divinas. Termos como intimidade, atração e união nupcial mostram que os místicos e
as místicas percebem a relação entre os três divinos, e destes com a pessoa humana,
em termos de prazer e de prazer erótico. Desse modo, o ser humano é o fruto máximo
dessa relação prazerosa e amorosa que se concretizou além dos ilimitáveis limites da
ilimitada Trindade, como se expressa muito bem Russolillo.
Isso nos permite concluir, mais uma vez, que o mais profundo prazer divino é o
prazer de dar vida às suas criaturas, de modo particular ao ser humano, sua imagem e
semelhança. Fica evidente que “Deus não pode deleitar-se sozinho nem suporta ver
triste a sua criatura”.37 O Deus dos cristãos é um Deus que sente prazer e quer que
cada pessoa sinta muito prazer em viver. Ele “não deseja simplesmente filhos
obedientes, mas filhos felizes, e é isso que a sua vontade e o seu cumprimento nos
tornam”.38 Negar isso é mutilar a fé cristã da sua essencialidade. Apresentar um
Deus que não tem prazer ou que só tem prazer quando pune e quando castiga os seus
filhos e filhas é esvaziar a fé cristã do seu principal mistério, o mistério da Santíssima
Trindade. O mistério dos três divinos que, prazerosamente amando-se mutuamente,
extravasam esse amor para fora deles mesmos, gerando vida e vida em plenitude (cf.
Jo 10,10).
Jesus: o prazer do povo
Já tivemos oportunidade de mostrar como Jesus se apresentou ao povo de sua terra
como sacramento do Pai prazeroso. Embora os Evangelhos não relatem em nenhum
momento as risadas de Jesus, é possível concluir, a partir de vários relatos, que ele
não era um homem sisudo e fechado, mas alguém que vivia intensamente a alegria e
o prazer. Quebrando regras convencionais, tradições seculares, Jesus é alguém que
gosta da “boa vida” e de curtir momentos prazerosos, regados à base de muita comida
e de muita bebida, inclusive na companhia de gente de má fama.39
O primeiro sinal por ele realizado, segundo o Evangelho de João, foi a
transformação de água em vinho, já no final de uma festa de casamento, quando todo
mundo já estava bêbado (cf. Jo 2,1-12). Em que pese uma interpretação simbólica ou
metafórica desse texto, na tentativa de negar a sua historicidade, não há como
desconsiderar o seu significado para uma leitura positiva do prazer. Normalmente, na
Bíblia, o vinho em abundância, além de expressar a alegria pelos donsconcedidos por
56
Deus, é símbolo de prazer e de gozo.40 O simbolismo ou a metáfora do vinho
indicam uma profunda revolução a ser realizada nos tempos messiânicos. Estes
devem ser marcados pela festa da solidariedade, pela alegria, pelo prazer de viver,
dos quais a abundância do vinho é a expressão mais forte (cf. Is 55,1-2).
Os Evangelhos mostram um Jesus que gosta de curtir os prazeres da vida. Embora
ele não desvalorizasse a ascese, o jejum e o silêncio, sabia colocar essas coisas no seu
devido lugar e no seu devido tempo (Mc 2,18-20). Ele não foi um asceta rigoroso,
preocupado em manter-se distante de uma vida prazerosa e gostosa. Pelo contrário,
como já dissemos antes, amava a “boa vida”, frequentando lugares e pessoas
suspeitas. Esse seu tipo “boêmio” mereceu-lhe a fama de fanfarrão, comilão,
beberrão, além de ser acusado de ser amigo de pessoas indecentes (cf. Lc 7,33-34).41
Porque Jesus era assim tão diferente, valorizando a vida, cultivando uma vida
prazerosa, defendendo o direito das pessoas de terem prazer, ele era escutado “com
prazer” pela multidão (cf. Mc 12,37). O que atraía no Mestre não eram os rigorismos
e a exatidão no cumprimento de normas e preceitos, mas a sua capacidade de viver
prazerosamente e de motivar as pessoas a viverem da mesma forma (cf. Mc 7,1-23).
Para Jesus, o que vinha em primeiro lugar era a vida e não a religião. E a vida não era
para ser vivida debaixo do sofrimento e da penitência, mas para ser desfrutada e
saboreada com imenso prazer. Para Jesus, a vida é felicidade completa, gozo, paz,
harmonia, ou seja, prazer completo. Uma vida sofrida, maltratada, oprimida,
castigada é indigna de Deus e não pode ser aceita nem mesmo estimulada. Para os
pobres e humilhados do seu tempo, essa era uma verdadeira revolução, uma
verdadeira “boa notícia”. De fato, os pobres da Palestina nunca ouviram Jesus
pregando virtudes e vida de penitência, como fazem certos pregadores cristãos de
hoje. Eles escutavam do Mestre apenas um convite a se alegrarem sempre e em
plenitude.42
Foi por isso que o cristianismo, desde os seus primeiros momentos, se apresentou
como uma religião alegre e prazerosa (cf. Fl 4,4; Gl 4,27; Ap 19,7). E quando, no
contato com outras religiosidades, alguns cristãos começaram a querer deixar de lado
a vida prazerosa para se dedicar a ascetismos bobos, os escritores da Bíblia cristã
reagiram com veemência chamando a isso de “inchaço de quimeras” (cf. Cl 2,16-19).
Pena que essa reação não continuou ao longo dos séculos. Como veremos mais
adiante, aos poucos o cristianismo foi abandonando as pegadas de Jesus e se fechando
num tipo de religiosidade que suprimiu quase que de forma absoluta a alegria e o
prazer. Por essa razão, torna-se urgente na atualidade resgatar esta originalidade, pois,
do contrário, a mensagem cristã não encontrará ressonância no coração das pessoas
do século XXI.
A humanidade é sofrida. O sofrimento vem sem ser chamado. O cristianismo, como muitas outras
religiões, parece ainda aumentar a carga, proclamando ou exigindo inúmeras renúncias e mortificações.
Elaboram-se sistemas de conduta que parecem abafar a alegria de viver, e isto em nome de Deus ou de
uma santidade a procurar.43
Temos que nos convencer de que a ausência do prazer não condiz com o
seguimento de Jesus, o rabi glutão e comilão, multiplicador de vinho para alegrar o
coração dos que fazem festa. De fato, “quando a alegria está ausente ou não
57
provamos nenhuma alegria por algo que fazemos e que, portanto – se não provoca
gozo –, demonstra que não é realmente amado e desejado por nós”.44 Precisamos de
um cristianismo que nos ajude a cultivar o prazer a partir de situações simples da
vida, muitas vezes pequenas e discretas. Um cristianismo que nos ajude a aguçar a
percepção para encontrar os motivos e as ocasiões mais simples de prazer. Se o
cristianismo não fizer isso só vai contribuir para que as pessoas vivam o tempo todo
atrás de gratificações imediatas que terminam por frustrar as suas expectativas.
3. Os prazeres humanos
A Bíblia, além de falar dos prazeres divinos, revela também a preciosidade dos
prazeres humanos. Como tivemos a oportunidade de dizer na introdução a esta
segunda parte, que fala do ensinamento bíblico sobre o prazer, os textos bíblicos
possuem uma visão positiva acerca do prazer. É verdade, como veremos mais
adiante, que existem prazeres que desumanizam. Mas isso não tira o valor e a beleza
do prazer. Resgatar esse elemento é fundamental para os tempos atuais, uma vez que,
hoje, as pessoas não mais aceitam uma religiosidade rigorista, que negue o valor dos
sentimentos humanos. Embora estejam de volta certos fundamentalismos religiosos
estúpidos, a maioria absoluta dos homens e das mulheres de nossa geração não mais
admite uma religião que nega o valor do humano.45 Além disso, dada a natureza
própria do cristianismo, é preciso que passemos dos anátemas e das proibições para
preposições mais positivas e mais alegres.
Anunciemos a “alegre notícia”, e não descarreguemos sobre os aflitos sempre novas leis, novas normas
burocráticas e administrativas [...]. Tem-se falado tanto do pecado, que para muita gente parece ser o
assunto principal da moral e da ascese cristã. O termo pouco feliz do “pecado original” tem contribuído
para tal visão vesga da realidade. O pecado nunca é “original”; é sempre “secundário”. Original é o plano
amoroso e maravilhoso do Pai, que fez o mundo para nele implantar o seu Reino [...]. Pregações
excessivamente moralistas e moralizantes colocam os cristãos novamente na vivência da angústia e do
temor [...]. O perdão do Pai é anterior ao pecado; faz parte permanente de sua paternidade.46
A positividade e o elogio do prazer são descritos pela Bíblia através da tríade
comer, beber e gozar a vida (cf. Ecle 5,17-19). Geralmente, quando essa tríade
aparece é para afirmar que a pessoa é portadora das bênçãos divinas e que o Deus
verdadeiro, diferentemente dos falsos deuses, quer espantar da vida dos seus filhos e
de suas filhas a amargura e o sofrimento.47 Mas, ao mesmo tempo, o seu
aparecimento na Bíblia é um convite a “não perdermos os momentos de serenidade
que constelam os nossos dias”.48 Dessa forma, a Sagrada Escritura deixa bem claro
que o prazer é um dom divino, mas, ao mesmo tempo, uma conquista do ser humano,
que deve sempre captar e viver intensamente as oportunidades boas de prazer que lhe
são oferecidas.
Vida prazerosa
A partir dessa perspectiva, a Bíblia afirma que a vida é prazerosa e assim deve ser
(cf. Ecle 2,24). Ao convidar as pessoas, particularmente os jovens, a gozarem a vida
(cf. Ecle 11,9-10), a Palavra de Deus afirma que a alegria está no centro do projeto
58
divino para a humanidade. O prazer aumenta a intensidade da vida e, por isso, se deve
afastar sempre a tristeza do coração. Um coração triste, acabrunhado, é um coração
que está distante do projeto de Deus. Alguém pode estar triste não por culpa própria,
mas por causa da maldade humana e das injustiças. Por esse motivo é nossa
obrigação lutar para que o sofrimento seja eliminado e todos os filhos e todas as
filhas de Deus possam viver intensamente e prazerosamente.49
“Goza a vida” porque “esta é a parte que te cabe na vida” (cf. Ecle 9,9), diz o
Coélet.50 Com esse bom conselho a Bíblia nos convida a aproveitarmos todos os
fragmentos de prazer e de felicidade que a vida humana pode oferecer: o prazer da
refeição, o prazer da festa, o prazer da elegância, o prazer da companhia da pessoa
amada, o prazer da relação sexual etc. Trata-se de um convite a saborear as pequenas
oportunidades de prazer que diariamente nos são oferecidas. Alegrias e prazeres
muitas vezes simples e modestos, mas cheios de intensidade, de valor, de significado
e de realização plena.51
Por esse motivo, o prazer é um dom divino (cf. Ecle 5,18) que deve ser cultivado
diariamente e a cada instante. Mais do que ficar procurando desesperadamente
momentos de prazer, a pessoa humana é convidada pelo Criador a ser sensível e
capaz de perceber as pequenas oportunidades que elatem a cada instante. Às vezes,
nos falta o prazer porque vivemos agitados e angustiados, estressados e apáticos,
incapazes de sensibilidade e de percepção das coisas pequenas e dos momentos
bonitos do nosso cotidiano. Queremos sentir prazer a qualquer custo e, no desespero,
terminamos por não aproveitar os momentos prazerosos que nos são oferecidos pela
vida e que são os mais intensos, os mais gostosos e os mais significativos.
Inácio de Loyola deixou registrado em seus Exercícios Espirituais que Deus, por
meio de seus anjos, proporciona verdadeira alegria e gozo e afasta toda tristeza e
conturbação. Afirma, sem meios termos, que é próprio do “inimigo”, ou seja, do
diabo, combater a alegria e a consolação com razões aparentes. E entre as aparentes
razões está, sem dúvida alguma, uma falsa ascética, como se Deus quisesse e se
alegrasse com a pessoa que fica triste.52 O fundador dos jesuítas afirma que o
“inimigo” costuma, com sua “cauda repentina”, tirar da pessoa a suavidade e o
gozo.53
Isso confirma a necessidade de estarmos sempre bem atentos para aqueles
fragmentos de paraíso que são os pequenos prazeres da vida. A Bíblia, além dos casos
já citados, nos dá alguns exemplos disso. Já nas suas primeiras páginas nos apresenta
Adão e Eva curtindo o paraíso terrestre, onde germinam do solo tantas árvores com
frutos atraentes, deliciosos e saborosos (cf. Gn 2,9). Logo em seguida, o Gênesis
mostra Adão vivendo um momento prazeroso quando contempla a sua amada, “osso
dos seus ossos e carne de sua carne” (cf. Gn 2,23). Mais adiante, o livro das origens
salienta que ambos estavam nus e não sentiam vergonha um do outro (cf. Gn 2,25).
Segundo a TEB, o estar nu e não sentir vergonha significa uma atitude de aceitação
da outra pessoa, sem abusar das fraquezas e das fragilidades alheias. É o prazer de
estar juntos sem cobranças e sem exploração.54
O salmista fala do seu prazer em escutar e seguir a Palavra de Deus (cf. Sl 119).
59
Este, que é o mais longo salmo sapiencial, se abre exatamente com expressões de
felicidade. Nele se afirma que o prazer consiste em seguir o caminho dos preceitos de
Javé. Não se trata, é claro, de um prazer em cumprir meros mandamentos ou normas,
mas de pautar a própria vida segundo os critérios da sabedoria divina. A Lei de Deus,
a que tanto o salmo se refere, é a própria vida. Logo, seguir e cumprir a Palavra é
seguir a dinâmica da vida estabelecida por Deus. O prazer está justamente na
capacidade de acolher essa dinâmica, que inclui também os momentos prazerosos,
saborosos e gostosos.55
O salmo 119 possui uma estrutura quiástica. Nos escritos bíblicos, o quiasma é
uma espécie de paralelismo invertido ou uma sequência de palavras ou ideias em uma
frase, num trecho, numa sentença, num parágrafo, num capítulo ou até mesmo num
escrito inteiro. No quiasmo a sentença principal que dá sentido a todo o texto está no
centro. As frases anteriores conduzem progressivamente a essa sentença e as frases
seguintes partem da afirmação central, retomando de forma invertida o que fora dito
antes. Assim, no Salmo 119 a ideia central está no versículo 92, que diz: “Se a tua Lei
não fosse o meu prazer, eu já teria perecido na miséria”.
Quando se analisa atentamente o salmo, vamos percebendo que ele é movido por
essa ideia do prazer de escutar e de cumprir a Lei, ou seja, a Palavra de Deus. No
versículo 14 o salmista diz que os caminhos, ou seja, as indicações da Palavra são
mais prazerosas do que todas as riquezas do mundo. Ele se delicia, goza
intensamente, fazendo a vontade de Deus que está na Palavra (119,16.24). Essa ideia
vai sendo repetida de tanto em tanto como, por exemplo, nos versículos 35, 47, 54 e
72. É retomada depois de maneira invertida nos versículos 103, 111, 127 e 162. É
possível, então, concluir que a ideia ou experiência de prazer dinamiza a estrutura
desse salmo. Não se pode seguir a Palavra de Deus a não ser de maneira prazerosa.
As indicações da Lei de Deus não são sentenças tristes e dolorosas, mas algo gostoso
e gozoso como o mel na nossa boca (cf. Sl 119,103). No versículo seguinte o texto
diz que é essa condição prazerosa da Palavra que leva ao discernimento e a decisões
corajosas. Uma Palavra que causasse dor e sofrimento não poderia atrair ninguém.
Os Evangelhos, como já foi mencionado anteriormente, falam do prazer que
tinham as pessoas em seguir Jesus (cf. Mc 12,37). Os evangelistas registram o
fascínio que o Mestre provocava entre as pessoas simples e entre os estratos mais
pobres da Galileia. Essa atração que levava multidões inteiras a deixar suas casas e
seus vilarejos era, certamente, motivada por um grande prazer, uma vez que ninguém
seria capaz de fazer assim se não fosse impulsionado por uma grande experiência de
alegria e de gozo. Ao seguirmos atentamente as narrativas evangélicas, será possível
perceber que o que atraía as pessoas não era apenas o fato de Jesus falar a verdade,
denunciar o sistema religioso e político e curar pessoas. Havia algo a mais que
poderíamos descrever como o prazer de estar com alguém diferente, com quem se
pode falar diretamente e de tudo, sem hierarquias e sem intermediários.56
Os místicos e as místicas narram em profundidade a experiência gozosa de estar
com Jesus e de experimentar a sua companhia. Inácio de Loyola, por exemplo, fala da
diferença entre prazeres aparentes e prazeres reais ou verdadeiros. Diz que quando os
prazeres são aparentes e imaginários a pessoa não sente consolação; pelo contrário,
sente remorso. Os prazeres verdadeiros, que nascem daquilo que ele chama de “bom
60
espírito”, dão ânimo, força, consolação, lágrimas de alegria, inspirações e
tranquilidade. Os prazeres verdadeiros limpam o caminho para que a pessoa possa
agir bem e seguir adiante. Pelo contrário, diz Inácio de Loyola, os prazeres aparentes,
frutos do “espírito mau”, incomodam, entristecem, põem impedimentos, inquietam,
de modo que a pessoa não pode seguir adiante no caminho do bem.57
Seguindo esse princípio, o fundador dos jesuítas narra várias formas que ele
encontrou de sentir prazer e gozo e que quis partilhar com as demais pessoas. A
contemplação da forma simples e humilde como Cristo se manifestou aos simples e
pobres: pastores, anjos, Maria, José, o menino na manjedoura e a cena simples do
nascimento. A contemplação da criação, da redenção e dos dons pessoais distribuídos
pelo Espírito. A contemplação de Cristo ressuscitado e a sensação de estar
participando intensamente da ressurreição. A contemplação do gozo das mulheres na
manhã da ressurreição. A contemplação da missão recebida de Deus. A contemplação
do “juízo final” e de como gostaria de se encontrar naquele dia. E assim por diante.58
O cultivo do prazer como vocação
O mais interessante é que a Bíblia vai muito mais além do simples registro dos
prazeres divinos e dos prazeres humanos. Ela apresenta o cultivo do prazer como
vocação. E por vocação entendemos aqui uma dinâmica que inclui um chamamento,
uma resposta e uma missão. A vocação é o chamado que Deus dirige a uma pessoa,
esperando dela uma resposta que se concretiza na aceitação de uma missão que lhe é
confiada pelo próprio Deus em favor da comunidade.59
Dentro dessa perspectiva, a Bíblia diz que a pessoa agraciada por Deus pela
felicidade do prazer deve ser capaz de perceber isso como um dom divino e também
capaz de comunicar essa experiência (cf. Ecle 7,14). O prazer de viver (cf. Ecle 9,9)
não é para ser curtido no fechamento e no isolamento do egoísmo, mas para ser
anunciado, de modo que as pessoas percebam que aquela experiência gostosa não é
em função de uma vida futura. É algo para ser experimentado no presente. Aliás,
convém salientar que dentro da visão do livro do Eclesiastes, como de boa parte dos
escritos mais antigos do Primeiro Testamento, o futuro reservado para toda pessoa é o
Sheol, uma espécie de lugar subterrâneo onde eram reunidos todos os mortos.60 Não
havia naquela época a crença na ressurreição, que só aparecerá nos últimos séculos
antes de Cristo.
Vemos, portanto, que não há aqui umprazer celeste a ser cultivado e
experimentado após a morte. A Bíblia hebraica fala do prazer como algo que diz
respeito à vida terrestre do ser humano. Essa história de prazer após a morte é
posterior; e mesmo no cristianismo, o prazer advindo da vida de ressuscitados é uma
continuação do prazer cultivado nesta vida (cf. Cl 3) e não uma coisa que vai
acontecer depois da morte. “Estamos no mundo para vivermos uma vida humana
saudável, plena e digna.”61
E porque o prazer é para ser vivido aqui neste mundo, a Bíblia propõe, então,
aproveitar bem cada momento prazeroso. Somos convidados a saborear o prazer de
contemplar o cosmos com toda a sua beleza (cf. Sl 8,4). E no cosmos viver o prazer
de olhar para a natureza, com tudo o que há nela. É significativa a maneira como
61
Jesus nos convida ao prazer de ver a simplicidade da natureza e a ver a natureza com
simplicidade. Observar a erva dos campos e os pássaros do céu (cf. Mt 6,26-29).
Talvez o ser humano moderno tenha perdido essa sensibilidade. Mas para quem ainda
não perdeu o hábito de se extasiar diante da natureza, não há nada mais gostoso e
prazeroso.
Além disso, a Bíblia nos convida a viver aqui e agora e com muita intensidade o
prazer da amizade (cf. Pv 17,17; 18,24; Jo 15,14-15) e o prazer do amor humano (cf.
2Sm 1,26; Ct 1,2; Jo 15,13). O prazer de uma boa amizade e o prazer de um profundo
amor foram castigados e maltratados durante muito tempo por uma espiritualidade
cristã mutilada e deformada pelo maniqueísmo. Tanto a amizade como o amor foram
associados ao ato sexual e depois à perversão, de modo que, ainda hoje, as pessoas
têm medo de cultivar em profundidade a amizade e o amor porque pensam que isso
levaria ao ato sexual. Por essa razão estamos doentes, porque não cultivamos
amizades sinceras nem um amor sincero.
Porém, tendo presente as indicações da Palavra, é possível afirmar que o cultivo
da amizade e do amor gera em nós uma sensação gostosa e prazerosa. E isso tem de
ser acolhido com alegria, uma vez que “uma verdadeira amizade nos faz perceber
positividades e limites de nós mesmos que nos poderiam fugir e torna-se, em
consequência, motivo de autêntico crescimento”.62 Sem o prazer do cultivo de
verdadeiras amizades a condição humana vai se definhando e pode até desaparecer.
Sem o prazer da amizade, aquele ou aquela que antes era humano pode se tornar um
monstro. O mesmo diga-se do amor. Podemos até viver muito bem e prazerosamente
sem a prática do sexo, sem relações sexuais genitais. Mas é impossível viver sem o
prazer de amar pelo menos uma pessoa concreta.
O amor é uma resposta profunda ao sentimento de solidão que às vezes nos sufoca. Mais que de solidão
devemos falar de isolamento, que é a origem de toda angústia. Com efeito, estar isolado significa ser
indefeso e incapaz de estabelecer um contato eficiente e criativo com o mundo que nos rodeia. Significa
que o mundo pode nos fazer o cerco, sem que tenhamos possibilidade de reagir.63
Este amor de que fala o texto apenas citado se torna abstrato, fictício, irreal e
mentiroso se não se traduz em atração prazerosa por alguém que tem um nome e um
rosto bem concreto. Aliás, os entendidos no assunto dizem que o medo fóbico da
morte que atormenta tantos cristãos acontece porque os discípulos e as discípulas de
Jesus não amam de verdade.64 O cultivo prazeroso do amor afasta o medo e cria no
seguidor e na seguidora do Senhor a consolação e o gozo: “Não há temor no amor;
mas o perfeito amor lança fora o temor, pois o temor implica um castigo” (1Jo 4,18).
E é fundamental lembrar que o amor do qual fala Jesus não é aquele amor meloso,
obsessivo e obcecado por ele, mas o amor ao próximo. Jesus não é esse sujeito
carente que anda por aí mendigando amor de seus discípulos e discípulas. Ele quer
ser amado e louvado através do amor que manifestamos por pessoas de carne e osso
(cf. 1Jo 4,7-21).
O prazer sexual
Para a quase totalidade das pessoas, o amor por alguém concreto desemboca na
paixão, no namoro e na decisão de unir os próprios corpos para uma doação mútua
62
que inclui a relação sexual genital e, em consequência, o prazer sexual. Na Bíblia
encontramos os maiores elogios ao prazer sexual, embora não faltem também, como
veremos mais adiante, exortações acerca da possibilidade de um prazer sexual que
desumaniza. Porém, o modo positivo como a Bíblia encara o prazer sexual deve nos
ajudar a corrigir todas as distorções que relacionam ainda hoje o prazer sexual ao
pecado.
Queremos abrir essa reflexão sobre o prazer sexual na Bíblia com uma frase
magistral do livro de Coélet (Eclesiastes). Fazendo um elenco dos vários elementos
que compõem uma vida prazerosa, o autor afirma que o maior prazer de um homem,
ou seja, “dos filhos de Adão”, é ter “um harém de princesas” (Ec 2,8). Embora o texto
se conclua dizendo que “tudo isso é vaidade e perseguir vento” (Ecle 2,11), tal
conclusão pessimista não tira o caráter positivo do prazer sexual, que, dentro da
cultura semítica de então, era simbolizado pela quantidade de mulheres que um
homem possuía.65 No ambiente dos povos do baixo Mediterrâneo, o eros era
considerado o prazer supremo de um homem. Era o vértice da viagem do prazer e do
gozo. Por esse motivo, os povos semitas não consideravam o prazer sexual como algo
pecaminoso ou vergonhoso.66 O mesmo Coélet, que antes afirmou ser o harém de
princesas pura vaidade e idiotice, em outro lugar vai dizer que a síntese do prazer
humano é o prazer sexual: “Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua
vã existência, porque é Deus quem te dá, sob o sol, todos os teus dias vãos. Pois esta
é a parte que te cabe na vida e no trabalho com o qual te afadigas sob o sol” (Ec 9,9).
O prazer da relação de um homem com uma mulher é presente divino e, como deixa
bem claro o texto, é a única coisa boa da vida humana.67
Mas o texto mais expressivo da positividade do prazer sexual é o livro do Cântico
dos Cânticos, no qual o amor humano “é apresentado com toda a passionalidade e
erotismo que envolvem duas pessoas que se amam dentro de um furacão que arrebata
o humano em todos os níveis”.68 Continuando o seu comentário, Storniolo lamenta o
fato de que “o amor humano, com todo o seu cerimonial de paixão, erotismo,
sensualidade e sexualidade, foi relegado para o nível profano”.69
Ele critica a dicotomia introduzida por certo tipo de cristianismo que passou a
considerar a paixão entre dois amantes e o respectivo prazer sexual como coisas
sujas, como se fosse possível separar a dimensão humana da vida da dimensão
espiritual. O nosso autor nota que, contrariamente a essa ideia, o Cântico dos
Cânticos considera o prazer sexual vivido pelos dois amantes uma verdadeira faísca
ou labareda de Javé (cf. Ct 8,5-6).70 Conclui suas observações introdutórias ao
comentário ao Cântico dos Cânticos lembrando a Primeira Carta de João, segundo a
qual Deus é Amor e o Amor é Deus. Logo o Amor leva a Deus e Deus nos conduz ao
Amor. Lembra que a salvação está em amar, e a perdição, em não amar. Por ser
criativo, o amor não aceita certas regras impostas de fora. Assim, o amor que une um
homem e uma mulher que decidem doar-se um ao outro, formando “uma só carne”
(Gn 2,24) na relação sexual genital, não pode ser controlado.
O amor não suporta leis ou normas que o determinem, porque ele é soberano e, na sua criatividade, seu
maior prazer é criar a novidade, sem jamais repetir uma forma sequer. Teríamos nós o direito de dizer:
“Esta é a única forma correta de amar?”. De jeito nenhum. Todavia, caso em nossa teimosia pretendamos
63
classificar, ou aprovar ou desaprovar este ou aquele amor, cedo ou tarde, o amor genuíno acabará pondo
abaixo todas as nossas regras, normas e fórmulas. Simplesmente porque o amor é invencível e, em todo e
qualquer embate, sempre sairá vitorioso.71
Todo o livro do Cântico dos Cânticos pode ser considerado um hino ao prazer
sexual, mas o capítulo quatro é aquele que mais explicitamente fala do tema. Esse
capítulo reflete um costume cultural da época, segundo o qual o noivo, ao se
encontrarcom a noiva, cantava para ela um elogio. O texto é de uma beleza sem par.
O amado vai descrevendo o corpo da amada em seus mínimos detalhes e se diz
enlouquecido por ela, por suas carícias, pelo seu perfume e pelos seus beijos (cf. Ct
4,9-11). Ela acolhe o elogio e se declara uma nascente, um poço de águas correntes
que rega o seu jardim, ou seja, seu bem-amado. A noiva conclui sua declaração de
amor com a seguinte frase: “Que meu querido venha a seu jardim e nele coma suas
frutas d’escol!” (Ct 4,16c).
Os estudiosos afirmam que o Cântico dos Cânticos foi composto entre os séculos
V e III a.C. O fato de ser atribuído a Salomão (cf. Ct 1,1) é apenas um recurso muito
usado na época com o objetivo de dar legitimidade ao texto, uma vez que Salomão
era considerado uma espécie de patrono da sabedoria. Porém, o gênero literário, bem
como os vários elementos e informações contidas no Cântico não permitem situá-lo
na época de Salomão, que viveu por volta do século X a.C.72 Para a cultura semita da
época, a vida do próprio Deus se manifesta na vida humana, inclusive na relação
sexual. O divino está presente em tudo e não há nada no ser humano e na sua
existência que possa ser separado de Deus. Assim, a contemplação da beleza do
corpo no ato do amor, o desejo de tocar e de acariciar este corpo, a paixão fulminante
que arrebata os dois amantes são partes integrantes da manifestação divina. “Não é a
pessoa que se apaixona: é a paixão que lhe acontece, que a toma, independentemente
de sua vontade ou intenção. A pessoa cai na paixão como que em uma armadilha,
inesperadamente, sem o desejar ou esperar”.73
Há nessa parte do Cântico toda uma simbologia que vela e desvela, mas que, para
as pessoas da época e da cultura de então, expressam a beleza, o valor e o significado
do prazer que acompanha o ato sexual. Assim, por exemplo, a referência ao toque nos
seios da amada, típico do momento do coito, é velada e, ao mesmo tempo, desvelada
pela metáfora dos filhotes gêmeos de uma gazela pastando em meio aos lírios (4,5). O
toque nas nádegas da mulher amada é simbolizado por uma subida a um monte, cheio
de ervas perfumadas. Não se trata, é claro, de uma linguagem camuflada e nem tão
pouco de um disfarce moralista para enganar as pessoas menos informadas. Trata-se
de uma linguagem erótica muito profunda, típica da comunicação da época.74
O mesmo se diga do quarto poema do Cântico dos Cânticos (5,2-6,3). Aqui o
amado bate à porta da amada em plena madrugada. Mas como ela se demora, o
amado vai embora. Ela, então, sai de madrugada, vestida com trajes íntimos, à
procura do amado. Essas coisas eram impensáveis dentro da cultura da época. Mas o
impulso do amor, o desejo ardente que queima o corpo de ambos, a ânsia por viver o
prazer sexual fazem os dois cometerem verdadeiras loucuras. “Mais uma vez o amor
se impõe, acima da conveniência e até da prudência. Depois de desperto, o amor toma
as rédeas e não há represa possível, sensata ou insensata, que o possa conter.”75 E o
64
Cântico dos Cânticos apresenta tudo isso como algo divino e permeado da graça de
Deus.
Alguns autores chegaram a notar a ausência de referência às mãos nesses lindos
relatos do jogo do amor entre os dois amantes. Storniolo lembra que esse detalhe foi
proposital, pois geralmente na Bíblia as coisas mais importantes não são ditas porque
são totalmente óbvias. No ato sexual não há como excluir o toque com as mãos. Isso
é praticamente um dado universal.
Provavelmente a omissão das mãos na descrição erótica do amado e da amada se deva ao fato de que o
detalhe era por demais óbvio para ser contemplado. As coisas mais importantes em geral não são ditas.
Mas ambas as descrições mostram todo o resto, que se apresenta como campo de exploração para as mãos.
Haverá gesto mais expressivo do que a mão tocando algo que se ama? A linguagem mais arcaica e intensa
que todo ser humano aprende é a linguagem do toque, pois é por meio do toque que se configura a
inconfundível sensação da pertença.76
Por fim, cabe mencionar como o Cântico dos Cânticos exalta o prazer sexual ao
descrever três cenas fantásticas.77 A primeira é a do baile da sedução (7,1-6). A
segunda é a descrição do ritual erótico que antecede o ato sexual (7,7-10). A terceira é
a descrição da entrega dos dois amantes no ato sexual (7,11–8,3). A descrição do
baile é voluptuosa e erótica e responde bem ao costume oriental que levava os
homens a se divertirem vendo uma linda mulher, quase nua, se torcendo e se
insinuando para eles. Hoje uma dança desse tipo, em nossa cultura ocidental, seria
imprópria para menores e escandalizaria muitos puritanos. A Bíblia não tem nenhuma
vergonha de apresentá-la nos seus mínimos detalhes.
Quanto ao ritual erótico que antecede o ato sexual, a sua descrição é de uma
beleza extraordinária. O amado começa dizendo que sua amada é uma delícia,
formosa como uma palmeira. Ele quer subir nessa palmeira para tocar seus cachos, ou
seja, os seus seios. Quer inebriar-se do vinho, ou seja, dos seus beijos deliciosos, e ir
direto à consumação do amor, colando seus lábios nos lábios dela e adormecendo um
nos braços do outro. Mas o amor pulsa e não se faz esperar. Os dois querem
consumar o amor e sentir o prazer que nasce da relação sexual genital. Então, ela se
entrega a ele e permite que ele beba do seu “vinho aromatizado” e do seu “suco de
romã” (Ct 8,2). Uma referência explícita ao ato sexual, como também revela o
versículo seguinte: “Sua esquerda sustenta-me a cabeça e sua direita me enlaça!” (Ct
8,3). Os dois estão bem agarradinhos no ato do amor e aos beijos. E sabemos que o
beijo “é associado ou comparado ao prazer dos sentidos”.78 Por esse motivo, em
muitas culturas o beijo não é dado publicamente, pois isso revelaria uma forma de
prazer que é reservada exclusivamente para a intimidade dos amantes ou do ambiente
familiar.
Não faltaram tentativas de mistificação do livro do Cântico dos Cânticos. No
judaísmo, ele foi lido como alegoria da aliança entre Deus e o povo. No cristianismo,
o amado foi visto como sendo Jesus e a amada como sendo a Igreja.79 Essa
interpretação alegórica pode ser admitida tranquilamente, desde que se aceite o fato
de que a descrição da aliança de Deus com seu povo e de Jesus com sua Igreja é feita
em termos eróticos, exaltando a relação sexual entre um homem e uma mulher. O que
não se pode admitir é uma interpretação que exclua o valor e o significado da relação
65
sexual e do prazer que brota dessa relação. Uma interpretação angelical, puramente
mística, falsificaria a proposta real e verdadeira do texto, uma vez que nesse livro da
Bíblia o que aparece em primeiro lugar é a beleza do amor humano e do prazer
sexual. O texto do Cântico não nos permite rotular a relação sexual e o prazer sexual
como sendo algo “profano”. Mesmo porque em nenhum momento se diz que aquilo
que se passa entre os dois amantes é algo que se dá no âmbito do matrimônio. O
Cântico canta e exalta o amor, a relação sexual e o prazer sexual entre dois amantes e
não apenas dentro do casamento.80
Prazer sexual libertador
A mensagem bíblica sobre a positividade do prazer sexual nos permite fazer
algumas considerações teológicas sobre o assunto. Vemos, em primeiro lugar, que o
prazer sexual é libertador e quem perde essa oportunidade de encontro libertador não
encontrará nunca mais uma ocasião propícia para se libertar. Para ser libertador, o
prazer sexual não precisa ser necessariamente genital. É necessário apenas que seja
norteador de todo encontro entre pessoas que são movidas pela condição masculina e
feminina. Quando nos encontramos como seres sexuados, que não têm medo de
permitir que aflore na relação essa condição própria do ser humano, temos a
possibilidade de viver um amor que não seja despersonalizado e nem
despersonalizador. O prazer sexual, que é típico da relação sexual genital, quando
está presente numa relação humana – mesmo que não chegue à consumação – evita
que o amor entre duas pessoas seja abstrato. De fato, a solidão é fria e o amor é
quente. Esse prazer sexualque norteia e esquenta as relações entre duas pessoas pode
ser definido como dimensão erótica da vida humana.81
Eros não é um estorvo ao amor. É, sim, uma energia de união, um querer e arder-se pelo outro, para estar
com o outro e no outro: comunhão [...]. Erótica é nossa profunda dimensão de vínculo, saudade e desejo.
É paixão de viver e deixar viver. Eros é riso e festa e dança. Ele possibilita a descoberta do novo, em
novos patamares de existência e felicidade. Eros é fantasia, criatividade e união. Coesão de elementos na
mesma unidade plural. Ao mesmo tempo harmonia e provocação. Eros pertence ao dinamismo próprio do
amor. Paixão. Atração.82
O prazer sexual, que brota do amor carnal entre duas pessoas, se manifesta nas
relações comuns entre os seres humanos através do erotismo, de modo particular
entre o masculino e o feminino. Por meio do erótico há o contato dos corpos, o face a
face. Coisa que não acontece no abstracionismo de certas espiritualidades.
A experiência erótica começa pelo tato, pelo contato, pela delicadeza e ternura da carícia, pelo ritmo da
respiração, pela intimidade das mucosas no beijo, na sucção, no calor, onde a palavra só assegura uma
bipolaridade fática, a aceleração cardíaca, a sensibilidade olfativa etc., vai criando um ritmo que se
alimenta por si mesmo, que quase desconecta a consciência, descentraliza o indivíduo, culminando num
momento visceral-extático de profunda significação recíproca alterativa.83
O erótico incomoda os poderosos políticos e religiosos porque gera ternura,
compaixão, aproximação, sensibilidade, coisas que assustam os que não querem
flexibilidade, democracia e participação. A pessoa que não cultiva o erotismo é
insensível e desumana. Por esse motivo, a Bíblia, como vimos, apresenta a aliança
com Deus em termos eróticos, do face a face, da carne com a carne, com todas as
66
implicações de fidelidade, traição, adultério, perdão e reconciliação. O amor de Deus
e a Deus se reveste de uma dimensão de amor humano. A própria encarnação do
Filho não é um ato genérico, mas uma relação de justiça erótica. Sem erotismo, a
procura de Deus é abstrata porque não toca a profundidade do ser humano que é
também carne.84
Foi por esse motivo que Orígenes, escritor cristão do século IV, chegou a declarar:
“Théos éros éstin”, ou seja, “Deus é Eros”.85 Desse modo podemos concluir que não
é possível chegar a uma intimidade com a Trindade – aquilo que chamamos de
espiritualidade – sem o cultivo do erotismo, o qual nos coloca no ardor real da nossa
capacidade de amar.86 Vimos anteriormente como os místicos e as místicas das mais
diversas religiões relataram suas experiências do divino em termos eróticos. Esses
homens e essas mulheres, profundamente religiosos, não tiveram nenhum receio de
traduzir numa linguagem erótica a experiência que tiveram da divindade.87 Também
as poetisas e os poetas, ao falarem da relação com Deus, inundam-se da poesia erótica
para expressar aquilo que sentem da comunhão com o divino:
Quando ele aparece/ bonito e mudo se posta/ entre moitas de murici./ Faz alto-verão no corpo, no tempo
dilatado de resinas./ Como quem treina para ver Deus,/ olho a curva do lábio, a testa,/ o nariz afrontoso./
Não se despede nunca./ Quando sai não vejo,/ extenuada por tamanha abundância: seus dedos com unhas,
inacreditáveis [...]. Sei agora a duras penas/ porque os santos levitam./ Sem o corpo a alma de um homem
não goza./ Por isto Cristo sofreu no corpo a Sua Paixão,/ adoro Cristo na Cruz./ Meu desejo é atômico,/
minha unha é como meu sexo,/ meu pé te deseja, meu nariz,/ meu espírito – que é o alento de Deus em
mim – te deseja/ pra fazer não sei o quê com você./ Não é beijar, nem abraçar, muito menos casar/ e ter
um monte de filhos./ Quero você na minha frente, estático/ – Francisco e o Serafim, abrasados – / e eu
para todo o sempre olhando, olhando, olhando...88
Na tradição judaica, a experiência erótica estava relacionada à experiência de
iadáh ou yadah, ou seja, ao louvor, saber, saborear, sentir, amar e conhecer. O
erotismo expressa uma posição existencial de totalidade alterativa da corporeidade
humana do Outro, cujo ápice é o próprio ato do coito e através do qual o homem e a
mulher se unem numa “única carne”. Por esse motivo, na espiritualidade hebraica, o
erotismo não é visto de maneira negativa, mas como um elemento significativo para
afirmar que “o Outro” tem um rosto e um rosto sexuado, e que a alteridade pede um
“face a face” e um “boca a boca”. A alteridade pede compromisso, aproximação e
intimidade. Sem isso, o outro é visto com indiferença.89
O cultivo do erotismo, no sentido justo do termo, é o único capaz de nos levar ao
amor verdadeiro que não exclui ninguém e que é capaz de solidarizar-se com quem
mais precisa. Sem erotismo, teremos uma espiritualidade desencarnada, sem corpo,
abstrata, sem pessoa, fora da história. Sem erotismo, o amor se reduz ao dar esmola,
sem compromisso algum com a pessoa concreta que sofre. Sem erotismo, até mesmo
a oração é puro formalismo.90 “O medo do sexo traz como resultado a convivência
de pessoas que se tratam com agressividade e que renunciam uma vez para sempre à
tentativa de cultivar uma verdadeira amizade.”91 Lamentavelmente a nossa cultura
ocidental e católica, “com uma moral de tendências repressoras, acentuou
unilateralmente os perigos de Eros, esquecendo toda sua potencialidade humana e
67
positiva” e nós “confundimos Eros com tudo o que é pornográfico”.92
O que estamos dizendo é que certa “pureza sexual” pregada por determinados
grupos cristãos é desagregadora. O não uso do sexo por si só não é libertador e
humano. Há muitos casos nos quais a “pureza sexual” se torna fonte de arrogância, de
indiferença e de possessividade. Nesse caso, a abstenção do prazer sexual se torna
uma tortura pessoal inútil que tortura os outros e contribui para a desagregação da
pessoa e dos outros.93
O Criador, na função sexual – que antes de ser reprodutiva é função de comunhão – incluiu um prazer. A
nossa pedagogia sexual maltratou a tal ponto tal função que a tornou incapaz de realizar a tarefa para a
qual existe em nós [...]. Não dá mais glória a Deus um corpo virgem do que um corpo fecundo de vida. Dá
mais glória a Deus quem é mais íntimo participante desta história, ao mesmo tempo alegre e dramática,
que parte da decisão de Deus de unir-se ao seu povo.94
Seria importante deslocar a nossa atenção do não uso do sexo para a sua vocação
relacional. Isso faria com que o tema fosse tratado com mais realismo e menos
histeria. Ver, por exemplo, como mais importante do que o não uso do sexo é a
sensibilidade para com a alteridade. Permitir que o instinto pulsional, que palpita
dentro de nós e nos impulsiona para o ato sexual genital, pudesse nos abrir para a dor
das vítimas dos sistemas injustos e exploradores do ser humano. Fazer com que a
nossa pulsão sexual fosse criadora e solidária, capaz de se comover diante do
sofrimento alheio. Porque o sofredor é carnalidade sensível, ou seja, corpo esmagado
pela dor da exploração, faz-se necessário saborear, pelo menos com a fantasia, o
máximo do prazer, que é o prazer sexual, para se ter uma ideia do que a ele está sendo
negado.95
Muitas vezes a abstenção do sexo gera sujeitos frios, calculistas, insensíveis.
Muitos celibatos e muitas castidades não são criadores, mas castradores, incapazes de
ajudar eunucos e celibatários a descobrirem a realidade sofredora das vítimas. E isso
acontece porque lhes falta a experiência do gozo, do prazer. Na maioria das vezes,
tais pessoas são assaltadas pelo terror e pelo pavor do pecado sexual. Suas únicas
experiências são de práticas e de experiências de relação sexual que aprisionaram e
não libertaram. Por isso, mais do que afirmar a abstenção sexual, seria necessário
dizer que Deus pode nos pedir a entrega generosa de nossos corpos a alguém que
realmente amamos. Em certas situações, a abstenção do ato sexual é inútil tortura,
uma verdadeira evasão do mandamento do amor, o qual, em determinados contextos
e situações, pode nospedir que não seja negado o sacrossanto direito ao prazer
sexual.96
A abstenção do prazer sexual não é virtude
Nesse sentido, deve-se dizer que a abstenção do prazer sexual não é uma virtude,
mas incapacidade de integração do ser humano. Especialmente quando a abstenção
do prazer sexual cria marginalização, exclusão, arrogância, orgulho e vaidade. É
preciso, pois, dessacralizar a abstenção sexual e pensar essa questão com realismo,
tendo os pés na terra. De fato, quando a abstenção sexual é vista como virtude,
facilmente apodrece e espalha rapidamente o odor de morte. Basta pensar, por
68
exemplo, na situação de certos seminários, conventos e casas religiosas. Aqui, nesses
locais, onde há contenção da relação sexual (pelo menos teoricamente), respira-se,
muitas vezes, o odor de morte.97 Isso acontece porque a abstenção do prazer sexual
foi buscada apenas como fuga e não como resposta a um chamado claro e decisivo de
Deus. Quando cristãos vivem assim, o que temos não são pessoas humanas realizadas
e felizes, testemunhas do amor de Deus, mas personagens que tentam fazer teatro no
palco da vida.98
Quando a abstenção sexual é vivida dessa maneira, o que vemos é a busca de
compensações, de coisas substitutivas que terminam por escravizar a pessoa. Esta se
torna incapaz de amar e termina buscando refúgio num estilo de vida frustrante e
decepcionante. Acuada numa falsa vida, a pessoa começa a delirar e a despistar sua
situação dramática com afirmações vazias do tipo “só Deus me basta”. Tudo não
passa de mero sentimentalismo que não consegue concretização na realidade
cotidiana da vida. Seria melhor que a pessoa preenchesse a sua solidão existencial
partilhando seu amor com uma pessoa, do que viver delirando e buscando
compensações em coisas, dinheiro, poder e ilusões fantasiosas. De fato, para quem
preenche sua vida com objetos e ilusões não há esperança.99
De nada serve uma abstenção sexual reprimida que não é invadida pela
fecundidade do amor, e que se arma contra qualquer aproximação das pessoas, com a
desculpa de que é dedicação exclusiva a Deus. Uma abstenção sexual desvestida de
prazer, que não permite ao sujeito interessar-se pelos outros, transforma o cristão
numa múmia. A solidão do “puro” é uma ameaça de morte porque não lhe permite
abrir-se aos outros. Somente o outro é libertador, uma vez que não permite que a
abstenção sexual apodreça. E tal apodrecimento acontece mesmo quando o sujeito
insiste em afirmar que é um ato de amor exclusivo a Deus. E o apodrecimento da
abstenção sexual normalmente acontece quando o egoísmo, o orgulho, a vaidade, a
arrogância e a ambição assumem o controle e eliminam qualquer pretensão de um
amor exclusivo a Deus. “Não pode ser feliz e fazer felizes os outros senão uma
pessoa que descobre ser profundamente e permanentemente amada.”100
Jesus advertiu sobre esse risco de uma abstenção sexual que não é permeada pela
fecundidade do amor. Após ter apresentado as exigências do matrimônio na
perspectiva do seu seguimento, os discípulos se assustam e concluem que é melhor
praticar a abstinência sexual do que casar-se. Jesus reage dizendo que a abstenção
sexual não tem sentido a não ser quando praticada “por causa do Reino dos céus” (Mt
19,12). A abstenção sexual por medo do casamento ou da pessoa do outro sexo é um
absurdo e uma violação da natureza humana.101 A TEB (p. 1895-1896), comentando
essas palavras de Jesus, conclui que o ato de privar-se do prazer sexual é uma
exceção que só tem sentido e significado quando assumido numa situação de resposta
aos apelos de Deus, em vista de uma missão específica em favor do Reino. Por isso,
acrescenta o comentário da TEB, a abstenção do ato e do prazer sexual genital, que
no cristianismo recebeu o nome de celibato ou castidade, supõe necessariamente um
dom ou carisma do Espírito (cf. 1Cor 7,25-28). Sem esse dom, a abstenção do ato
sexual é uma coisa sem o menor sentido e que pode, inclusive, ser motivo de
desequilíbrios e de muito sofrimento.
69
A abstenção da relação sexual e do prazer dela decorrente, motivada por um
carisma do Espírito Santo, está, por exemplo, na origem da vida consagrada que
surgiu na Igreja por volta do século IV d.C. Homens e mulheres, sentindo os apelos
divinos, decidiram abrir mão da relação sexual genital e do prazer sexual para se
tornarem testemunhas de determinados valores. Porém, ao renunciarem à relação
sexual genital e ao prazer sexual, essas pessoas não renunciaram ao amor e nem
mesmo ao prazer. Embora não tenham faltado, ao longo dos séculos, pessoas e grupos
de frades e de freiras que veem o celibato e a castidade como fuga do sexo e renúncia
ao amor, a maioria absoluta dessas pessoas vive prazerosamente e cultiva verdadeiros
relacionamentos autenticamente humanos. O que move essas pessoas não é o medo, a
pureza ritual ou legal, mas simplesmente o amor. E quando existe amor autêntico o
prazer está sempre presente. Não existem razões para fugir dele.102 Cabe, porém,
lembrar que um dos sinais mais verdadeiros de que a pessoa possui o carisma do
celibato ou da castidade é a liberdade, de modo que ela possa entregar-se a Deus e
aos outros sem reservas e sem medos. Quando falta a liberdade, a abstenção da
relação sexual e do prazer sexual torna-se verdadeira tortura para a pessoa e para
aqueles e aquelas que são obrigados a conviver com ela.103
O prazer sexual como experiência espiritual
Considerando a perspectiva bíblica da criação, o prazer sexual, momento máximo
da relação entre um homem e uma mulher, é o cume de uma experiência espiritual.
Por espiritual entendemos aqui aquela vida humana conduzida segundo o Espírito.
Espiritual não é aquilo que é contrário ao corpo e à carne, mas é a forma de vida do
homem e da mulher, na sua totalidade, que se deixam guiar pelo Espírito de
Cristo.104 Essa observação é muito importante, uma vez que, durante muito tempo,
certas formas de cristianismo associaram a espiritualidade a tudo aquilo que negava a
condição humana, a corporeidade, a matéria e a sensualidade. Autores famosos, como
Tomás de Aquino, chegaram a afirmar que espiritualidade seria a superação ou o
triunfo sobre a nossa condição carnal, entendendo aqui a “carne” como nossa
corporalidade. Dentro dessa lógica era impensável, por exemplo, unir espiritualidade
e sexo. A autêntica espiritualidade desprezaria tudo o que é humano, sensível e
corporal.105
O Concílio Vaticano II nos ajudou a superar tal concepção, mostrando a
positividade de tudo o que é humano, uma vez que a pessoa é criatura de Deus e tudo
o que ela é e tudo o que nela existe é bom.106 É verdade que fomos atingidos pelo
pecado e todos estamos marcados por ele (cf. Rm 5,12-14). Porém, a graça de Cristo
foi derramada sobre nós em abundância e realizou a nossa justificação, de modo que,
em Cristo, tudo voltou a ser bom. Cristo, com a sua entrega ao Pai, nos tornou justos
e fez de novo a vida reinar (cf. Rm 5,15-21). Dessa forma, todos os aspectos da vida
humana, inclusive o sexo, a relação sexual, o prazer sexual, devem ser valorizados e
considerados bons, uma vez que não só integram o ato criador de Deus, mas também
foram resgatados pela ação salvífica realizada pelo Pai através do Filho e na ação do
Espírito.
70
O homem, ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza em si mesmo, pela sua natureza corporal, os
elementos do mundo material, os quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam
livremente o Criador. Não pode, portanto, desprezar a vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o seu
corpo como bom e digno de respeito, pois foi criado por Deus e há de ressuscitar no último dia.107
Assim sendo, no momento do gozo, os amantes podem experimentar em
profundidade o encontro com a Trindade. Na intimidade profunda da relação sexual,
no ápice do prazer e do gozo, eles podem sentir a presença prazerosa daquele que é
mais íntimo a nós do que a nossa própria intimidade. É claro que, para que isso
aconteça, é indispensável que os amantes tenham chegado a uma consciência
profunda de respeito pela alteridadee, ao mesmo tempo, à superação de visões
dualistas e maniqueístas do sexo e da sexualidade.108 Porém, a vivência da
intimidade com a Trindade não se dá “espiritualizando” a relação sexual e o prazer
sexual, como, infelizmente, costumam fazer alguns casais contaminados pelo
maniqueísmo. Não se trata de fazer orações pedindo para “fazer sexo com Jesus na
cama”, como se Deus fosse um grande capataz que fica espiando o que os dois fazem,
sinalizando quando eles passam da conta. A espiritualidade ou comunhão com a
Trindade é vivida na realização do ato em si e por si. Podemos até louvar e agradecer,
mas isso não torna uma relação sexual mais espiritual ou menos espiritual. Partindo
da concepção do livro do Gênesis (2,18-24) poderíamos definir a experiência
espiritual que brota do ato sexual e do prazer sexual nos seguintes termos:
O êxtase do prazer é o caminho através do qual dois corações se juntam para novamente repetir a
experiência de sempre: a alegria de se terem conhecido e o sentimento de privilégio por um amor que os
funde. Então, constituem uma só carne não só porque seus corpos se juntam, mas também porque essa
união expressa uma mútua doação de corações.109
Vimos anteriormente como o sentimento de prazer e o gozo amoroso estão
presentes nas narrativas bíblicas que falam de casais de amantes. Nesse gozo está
incluída a atração intersexual. No prazer sexual, o ser, o corpo, os sentidos, os
sentimentos e a liberdade estão plenamente presentes. A Bíblia fala do sexo não como
algo autônomo e independente, mas como elemento integrado na vida das pessoas. O
modo de falar do sexo é espontâneo, natural, direto, desinibido, sem constrangimento.
Não há embaraços nem rodeios, mas a linguagem é espontânea, equilibrada e serena.
O sexo é visto dentro do contexto da criação e da aliança.110 Por ser algo natural e
muito bom, a Bíblia não tem motivos para ser reservada quanto a isso. “Não há razão
alguma para ocultar aquilo que se experimenta como júbilo e gozo, que enche de
sentido a existência presente e futura.”111
Ora, esse modo natural e desinibido que a Bíblia usa para falar do sexo e do prazer
sexual está relacionado com a clara convicção de que tais dimensões da vida humana
integram perfeitamente a espiritualidade. Porque a Bíblia não é dualista nem
maniqueísta, ela entende que a relação sexual e o prazer sexual fazem parte
plenamente da vida de cada pessoa que é conduzida pelo Espírito de Deus. Todo o ser
humano, em tudo o que é e em tudo o que faz, vive sob a ação de Deus e do seu
Espírito. Assim, quando dois amantes se entregam um ao outro e chegam ao orgasmo,
ao máximo do prazer sexual, obedecendo ao dinamismo criador divino, estão também
71
nesse momento cultivando uma espiritualidade, ou seja, estão sendo conduzidos pelo
Espírito divino.112
O corpo desejado articula o desejo em promessa, revelando a nudez que é polifonia de linguagens,
incessante passagem da linguagem da visão à do tato, da embriaguez do chamado ao êxtase da
participação. Aqui a semântica da luz se confunde com a da graça. É a luz na rebelião do raio. É uma
nudez que nasce sem decisão, como a luz no olhar apaixonado. É a renúncia à vergonha como autodefesa
última, esquecimento da medida, desarme perfeito da entrega de si.113
Enquanto espiritualidade, o ato sexual e o prazer sexual recebem o devido valor e
o devido significado. São completamente plenificados e divinizados. “O sexo não
aparece como agressivo e autônomo, mas como força enquadrada na vida, a serviço
de um projeto. Integra-se na atividade total da pessoa, do casal e do povo. Ajusta-se
adequadamente ao projeto criacionista e é valorizado como merece.”114
Mas convém ressaltar que, para ser uma profunda experiência de Deus, o prazer
sexual deve ser humano e humanizante. Deve ter em conta a natureza do sexo e da
sexualidade humana. O sexo, muitas vezes e como veremos logo a seguir, responde a
diversas necessidades humanas. A sexualidade, por sua vez, permeia toda a
personalidade humana. E na maioria das vezes não nos damos conta disso. Assim
sendo, muitos conflitos pessoais podem se manifestar no campo sexual e o prazer
sexual pode promover ou bloquear o desenvolvimento da pessoa humana.
Dependendo do caso, o prazer sexual pode ser manipulador, sedutor e exibicionista.
Quando isso acontece, é preciso buscar as raízes dos problemas não apenas no campo
sexual, mas em outras áreas nas quais situações não resolvidas interferem na maneira
de sentir o prazer sexual.115 Isso, porém, não significa que o prazer, por si só, seja
negativo ou ruim. “Na Bíblia, não existe a mais leve indicação de que o prazer como
tal, no sexo ordenado, pudesse ser errado. Há, todavia, uma grande quantidade de
advertências contra a busca do prazer numa vida sexual desordenada.”116
4. Os prazeres desumanos
O caminho percorrido até aqui nos permite concluir que há uma positividade do
prazer. Os textos bíblicos não nos autorizam a vê-lo como algo negativo, ruim ou até
mesmo diabólico. Porém, como vimos no início de nossa reflexão sobre o
ensinamento da Sagrada Escritura, o prazer, como qualquer outra realidade humana, é
afetado pela fragilidade e pela fraqueza do ser humano.
Não há dúvida de que o prazer faz parte da vida e que sua missão é torná-la o mais agradável e o menos
penosa possível. Assim, nossa vida seria bem insípida sem o prazer de comer, o prazer de satisfazer
necessidades fisiológicas, o prazer de dormir e assim por diante. Na mesma linha encontra-se o prazer
sexual, em toda sua profundidade e amplitude. Acontece que uma coisa é o prazer como componente de
uma vida, outra coisa é o prazer isolado, como se tivesse razão de ser em si mesmo. Nesta última condição
o prazer absolutizado acaba se transformando num tirano, que escraviza as outras pessoas e acaba por
escravizar o próprio sujeito do prazer.117
O que acabou de ser dito revela que o prazer, como todas as demais realidades
humanas, carrega consigo uma grande ambiguidade. Muitas vezes pode se tornar uma
72
energia verdadeiramente mortal. Ao invés de ser símbolo de comunhão, de entrega,
de doação, de felicidade, torna-se expressão de egoísmo, dominação e divisão.118
Quando o prazer se transforma em thanatos (morte), o Segundo Testamento, como já
vimos antes, o descreve com a palavra ‘édoné. Muitas vezes, ao vivenciarmos a
experiência do prazer, terminamos por fazer exatamente aquilo que não gostaríamos
de fazer. Terminamos por transformar uma experiência gostosa e gozosa numa
vivência que nos traz sofrimento e que faz outras pessoas sofrerem. Isso significa que
existem formas de prazer que não humanizam e que até contribuem para a destruição
do ser humano. Isso nos coloca diante de um grande desafio: por um lado proclamar e
defender o direito ao prazer e, por outro, evitar que o prazer, eleito como fim em si
mesmo, se torne um tirano, capaz de massacrar e destruir vidas humanas.
A mercantilização do prazer
A ditadura do prazer acontece, sobretudo, nos ambientes dominados pelo
neoliberalismo. Há muito tempo estamos constatando que no capitalismo,
transformado posteriormente em neoliberalismo, o que determina tudo é o mercado.
Tudo é mercadoria submetida à venda e à compra. “O princípio que alicerça a
sociedade capitalista e o princípio do amor são incompatíveis.”119
Dentro desse princípio capitalista e neoliberal, a busca do prazer se dá nos
shoppings e não na “vida doméstica”, ou seja, não se dá na vida normal de todos os
dias. Há um culto à satisfação instantânea do prazer, sem espaço para a espera, para o
encontro e para a interação com o outro. A procura do prazer é sacrificada pela
correria, pela vida apressada e, por isso mesmo, “terceirizada”: delegamos a outras
pessoas, às empresas e ao comércio a tarefa de procurar e encontrar o prazer que
buscamos. Símbolos disso são os cartões de crédito e as teclas dos celulares, tablets e
computadores.120 Na sociedade atual, a busca do prazer é “reconhecida como
atividade absorvente, consumidora de energia, enervante e repleta de riscos”, que
“provoca maior incidênciade depressão psicológica” e “provavelmente mais dinheiro
será gasto com antidepressivos”.121
Essa mercantilização da busca do prazer é regida por um movimento impulsivo e
propulsivo que reduz tal busca a “suprimento de bens” e provoca medo. Medo de que
a busca chegue ao fim, pois isso seria equivalente ao fim do próprio prazer. Há,
assim, geração de insatisfação permanente, uma vez que a simples compensação não
gera verdadeiro prazer porque este não pode ser comprado com um cartão de crédito.
Cria-se, assim, a ilusão de ter prazer, uma vez que o verdadeiro prazer consegue-se
com a labuta, o cultivo de relações humanas intensas e íntimas, o cultivo de
disposições interiores e não com uma soma de dinheiro gasta através de um cartão de
crédito. O prazer que se diz ter com isso é apenas um simulacro.122
Se a felicidade está permanentemente ao alcance, e se alcançá-la leva apenas uns poucos minutos
necessários para folhear as Páginas Amarelas e sacar o cartão de crédito, então, obviamente, um eu que
não consiga atingir a felicidade não pode ser “real” ou “genuíno”, mas antes uma relíquia da indolência,
ignorância ou inépcia – senão das três em conjunto. Esse eu deve ser uma imitação ou uma fraude.123
Portanto, num ambiente capitalista ou neoliberal o prazer se resume a consumir. E
73
a felicidade que brota do prazer é uma felicidade enquanto dura, ou seja, uma
felicidade reduzida ao tempo de espera para se atingir a felicidade, o qual deverá ser o
mínimo possível. O prazer, neste caso, se reduz à esperança de ser feliz. No momento
em que a pessoa atinge a tão sonhada felicidade ela deixa de ter prazer. Por essa
razão, os frequentadores de shoppings vivem sempre à procura de novas
oportunidades e querem estar sempre iniciados em novas formas de prazeres, ou seja,
consumindo sempre. O prazer do consumista é sempre uma cadeia de busca de
prazeres. Sua vida é fatiada, uma vez que é feita de fatias para curtir fatias de
prazer.124
Na sociedade capitalista e neoliberal, a busca do prazer baseada no consumo
jamais bastará, nunca será suficiente. Haverá sempre ansiedade e insatisfação e o
mundo real se confunde com o mundo da fantasia. Bauman diz que, nesse contexto,
se desenvolve uma espécie de “compromissofobia”. As pessoas querem viver sem
responsabilidades, sem compromissos com nada e com ninguém, a não ser a
preocupação de “cuidar de si mesmos”. O prazer está voltado para a satisfação
imediata dos próprios desejos e fantasias. Não há prazer em “viver para o outro” ou
em “fazer a diferença”. Essa insatisfação e insaciedade provocam ressentimento e o
desejo insaciável. Tal situação desperta raiva e rancor, uma vez que o sujeito não
consegue alcançar o prazer nem satisfazer o desejo de consumir mais coisas para
tentar desesperadamente chegar ao prazer. Este, por sua vez, continuará inalcançável,
uma vez que a pessoa nunca chegará ao estado máximo de prazer e de felicidade, e
viverá numa permanente busca do prazer.125
Nesse contexto, o amor e o compromisso que leva ao amor são descartados porque
se vive na certeza ou convicção de que o prazer e a felicidade sempre estão mais à
frente. Por esse motivo, vivemos sempre “excitados”, estressados, por um constante
desejo de nos ajustar ao que o marketing do consumo afirma ser o caminho para se
chegar ao prazer. A ânsia de ajuste gera mimetismo e subordinação. As pessoas, no
desespero de chegar ao prazer, vivem imitando as estrelas da mídia, da música, do
esporte etc. E para chegar à imitação se submetem a todos os tipos de humilhação e
de sofrimento.126 No caso do Brasil, por exemplo, há uma imitação e subordinação
ao estilo de prazer norte-americano:
Treinados, estimulados e aconselhados a manterem seus corpos, esses receptáculos de prazeres passados,
presentes e, ao que se espera, futuros, preparados para absorver novas delícias, mas advertidos
diariamente contra gorduras, tóxicos e outros “inimigos internos” que ameaçam impedi-los disso caso se
permita seu ingresso.127
No estilo norte-americano (american way) há uma relação forte entre prazer e
comida. Mas dessa relação também brotam os dilemas que são bem expressos pelos
casos de bulimia e de anorexia. Por um lado, a ânsia de dotar o corpo de todos
aqueles prazeres gostosos. Por outro, a preocupação com a aparência do corpo, uma
vez que essa aparência é fundamental para atrair outras formas sensacionais de
prazer. Por essa razão, o prazer tende a se tornar algo ambivalente e fonte permanente
de ansiedade. Busca-se fornecer ao corpo tudo o que ele precisa para sentir prazer,
mas, ao mesmo tempo, vive-se o drama de ter que controlar o que se oferece ao
corpo, a fim de se evitar o risco de perder a capacidade de sentir prazer. Por causa
74
disso, o altruísmo e a solidariedade são vistos como verdadeiros empecilhos para a
busca e a realização do prazer. Tudo é pensado em vista tão somente da
autossatisfação.128
Essa mercantilização do prazer provoca desesperança porque os indivíduos não
reconhecem nenhum referencial ou valor. As pessoas vivem de “momentos” e jamais
aceitam “sacrificar” a própria vida por uma causa duradoura que contribua para o
prazer e a felicidade de mais seres humanos. A ideologia mercantilista do prazer leva
os consumidores a viverem atrás de “depósitos de prazeres”, de oportunidades que
levem à satisfação máxima e ao sucesso rápido e fácil. Os reality shows são a
expressão máxima disso. Em consequência, a humilhação do outro se torna o
princípio básico da busca do prazer, bem como a total indiferença diante do que
acontece com as demais pessoas. Para se afirmar o direito ao próprio prazer, nega-se
aos outros, particularmente aos mais pobres e excluídos, o sacrossanto direito ao
prazer. Melhor dizendo, a busca e a realização do prazer se dão através da exploração
e da opressão dos fracos. Os prazeres de alguns são o resultado da negação dos
prazeres de outros.129
Diante do que foi exposto, permanece a certeza de que o amor é o único caminho
para o verdadeiro prazer.130 A Bíblia, mesmo apresentando o prazer de maneira
positiva, não alimenta falsas promessas nem indica nenhum caminho fácil para a
felicidade. Os textos bíblicos são muito enfáticos em dizer que o autêntico prazer é
possível e que buscá-lo e experimentá-lo é algo profundamente bom. Porém, a mesma
Sagrada Escritura afirma, sem meios-termos, que o prazer não pode ser encontrado
em algo, mas no estilo de vida que se vive. As coisas não são elementos isolados que
por si mesmas propiciam prazeres. O prazer está, acima de tudo, na capacidade de ir
construindo e reconstruindo diariamente a própria vida através da solidariedade e do
amor. “Quem ama a sua vida perde-a” (Jo 12,25). Por isso, na atual busca de prazer
no estilo norte-americano, o amor tende a ser abandonado, pois ele supõe imaginação
e espera. E as pessoas hoje perderam a imaginação e a capacidade de esperar o
momento certo. Para os atuais consumidores de prazeres o provérbio latino “dum
spiro, spero” (enquanto respiro, espero) soa como um verdadeiro absurdo. Mas o
amor é acima de tudo espera esperançosa, e somente isso é capaz de fazer de nossos
prazeres experiências profundas e verdadeiramente humanas. “O amor tem paciência
[...], tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,4.7).
Os prazeres que desumanizam
Depois dessa reflexão sobre a mercantilização do prazer podemos analisar, mesmo
que rapidamente, as principais indicações da Bíblia acerca dos prazeres que
desumanizam. O principal deles é o prazer dos ricos que exploram as pessoas, de
modo particular as mais pobres e excluídas. Os textos bíblicos são muito severos
quando tratam do assunto. Basta-nos lembrar dois deles. O primeiro é um texto da
profecia de Amós (cf. Am 4,1-3). De maneira irônica, o profeta denuncia os prazeres
das madames da Samaria que se deliciam em verdadeiros comensais à custa da
exploração dos pobres e indigentes que são por elas triturados. O segundo texto, da
Carta de Tiago (5,1-6), condena a vida de conforto e de luxo dos ricos regada com a
75
exploração dotrabalhador braçal.
Bastaria pensarmos, por exemplo, a história da América Latina e do Caribe nos
últimos quinhentos anos. Aqui os prazeres da elite foram mantidos graças à
exploração dos pobres, de modo particular dos negros, tratados como mercadoria.
Entre os negros, as mulheres foram as mais exploradas. Os prazeres dos senhores de
engenho de ontem e dos grandes empresários, latifundiários e banqueiros de hoje
foram e são mantidos graças à exploração dos pobres. Exploração essa que foi e
continua sendo muitas vezes silenciada não só pelo Estado, mas também pelas
Igrejas, as quais defendem com seu silêncio certos privilégios e vantagens.131
Enquanto há uma verdadeira obsessão de certos grupos de cristãos contra o aborto e a
homossexualidade, nota-se a omissão diante da exploração do corpo e da pessoa
humana. Para esses cristãos, a defesa intransigente da vida e da sacralidade do corpo
não tem valor quando se trata de denunciar certos tipos de exploração dos pobres.
Uma segunda forma de prazer, apontada pela Bíblia e que desumaniza, é o prazer
dos poderosos. Trata-se daquele tipo de prazer que é obtido graças à opressão de
outras pessoas (cf. Dn 5,1-9; Mc 6,17-29). A diferença aqui é que esse tipo de prazer
não é necessariamente o prazer a partir da exploração dos pobres. Entre os oprimidos,
podem estar também pessoas que não são pobres. Esse é aquele tipo de prazer que
sustenta os regimes ditatoriais, as oligarquias mandatárias de certos países. Para que
um pequeno grupo possa ter uma vida gozosa ou prazerosa é preciso manter oprimida
a população; é preciso usar da força, da tortura, do autoritarismo.
Trata-se do prazer que nasce do poder, da corrupção, da dominação e da
politicagem. A Bíblia condena sem dó e sem piedade esse tipo de prazer obtido
graças à dor e ao sofrimento das pessoas. A esse tipo de prazer está associado o
prazer da sabedoria arrogante; daquelas pessoas vazias e idiotas que se acham tais e
que, por isso, pretendem agir autoritariamente sobre as demais. O livro bíblico de
Coélet tem palavras duras contra esse tipo de prazer. Diante de tais pessoas só nos
resta o “prazer da loucura”, ou seja, o prazer de rir do prazer ilusório daqueles que se
consideram mais importantes, mais sábios e mais inteligentes que os demais.132
O mais interessante é que a Bíblia afirma que esse tipo de prazer é amargo, uma
vez que, geralmente, é resultante da subserviência ao poder corrompido, mafioso e
injusto. É o prazer vazio proveniente do dinheiro e do acúmulo insaciável de riquezas
injustas, da exploração e da avareza (cf. Ec 5,9-16). Esse tipo de prazer se dilui
quando acontecem os transtornos financeiros, uma vez que o prazer proveniente desse
tipo de vida é subtraído de repente e a pessoa se vê nua, como no seu estado original
ou como na sepultura.133 O prazer fruto da corrupção deixa o sujeito “na maior
aflição, deprimido e irritado” (Ec 5,16). Não é verdadeiro prazer porque é
desumanizante. É muito melhor o prazer do trabalhador honesto que pode ter um
“sono suave” (Ec 5,11), ou seja, “comer e beber, experimentar a felicidade em todo o
trabalho” (Ec 5,17). Lamentavelmente, dentro do sistema neoliberal esse tipo de
prazer amargo toma conta de quase todas as pessoas, como nota sabiamente um
filósofo e sociólogo:
As raízes da dor da qual nos lamentamos hoje, assim como as raízes de todos os males sociais, estão
profundamente entranhadas no modo como nos ensinam a viver: em nosso hábito, cultivado com cuidado
e agora já bastante arraigado, de correr para os empréstimos cada vez que temos um problema a resolver
76
ou uma dificuldade a superar. Como poucas drogas, viver a crédito cria dependência. Talvez mais ainda
que qualquer outra droga e sem dúvida mais que os tranquilizantes à venda.134
Junto a esse prazer está outro para o qual a Bíblia tem muitos sinais de
advertências, uma vez que ela o considera profundamente desumanizante. Trata-se do
prazer de trabalhar para acumular dinheiro ou riqueza com a finalidade de depois
gozar a vida (cf. Ec 4,4-6). Os textos bíblicos mostram que quem assim vive nunca
gozará porque a ânsia de trabalhar para depois gozar não lhe permite parar para
gozar.135 O melhor mesmo é ir saboreando aos poucos os frutos da vida: “Vale mais
a palma da mão cheia de descanso do que duas mãos cheias de trabalho e de perseguir
vento” (Ec 4,6).
Geralmente as pessoas que se deixam levar por essa ânsia de trabalhar para
acumular e gozar a vida nunca se sentem satisfeitas, pois “mesmo trabalhando sem
limite seus olhos ainda não se fartam de riquezas” (Ec 4,8). Provavelmente esse é um
dos males que afeta as pessoas dos países ricos e dos países em desenvolvimento. As
pessoas se matam de trabalhar, visando gozar uma boa vida, mas a morte termina
chegando antes que isso aconteça. E isso se verifica porque foi criada uma “cultura
do viver em dívida”. Fazem-se dívidas para pagar a dívida contraída para se ter
condições de gozar a vida. Mas as pessoas terminam morrendo sem realizar esse
sonho, uma vez que foram induzidas a viver sempre devendo. Os banqueiros e o
comércio as transformaram numa raça de devedores.
[...] uma raça de devedores eternos e a autoperpetuação do “estar endividado”, à medida que fazer mais
dívidas é visto como o único instrumento verdadeiro de salvação das dívidas já contraídas.
Hoje, ingressar nessa condição é mais fácil do que nunca antes na história da humanidade, assim como
escapar dessa condição jamais foi tão difícil. Todos os que podiam se transformar em devedores e milhões
de outros que não podiam e não deviam ser induzidos a pedir empréstimos já foram fisgados e seduzidos
para fazer dívidas [...]. O adestramento para a arte de “viver em dívida” de forma permanente foi incluído
nos currículos escolares nacionais.136
Outro tipo de prazer desaconselhado pela Bíblia é o prazer do orgulho religioso
(cf. Fl 3,18-19; Am 5,21). Essa situação se refere ao prazer que certas pessoas sentem
ao se orgulharem de pertencer a uma determinada religião. Refere-se também ao
prazer em ostentar títulos e vantagens religiosas. Embora pareça algo mórbido,
existem, na verdade, seres humanos que sentem verdadeiro prazer em ostentar diante
de outras pessoas uma quantidade de honrarias religiosas (cf. Fl 3,4-6). Os textos
bíblicos consideram esse tipo de prazer uma estupidez, uma perdição e uma
ignomínia (cf. Fl 3,19). O apóstolo Paulo é radical ao dizer que essa forma de prazer,
decorrente do orgulho religioso, não passa de verdadeiras “fezes humanas”.137
A relação de prazeres que desumanizam e que são mencionados pela Bíblia
poderia ser multiplicada. Mas estes já são suficientes para nos mostrar que eles
existem e que podem fazer muitos estragos em nossas vidas. Geralmente são prazeres
de pessoas sem juízo (cf. Pv 7,6-27) e prazeres de gente irresponsável (cf. Lc 12,45).
Prazeres esses que, na maioria das vezes, se encontram revestidos de profundo
masoquismo (cf. 1Rs 18,28; Mc 5,5), no sentido de que terminam por causar a
autodestruição daquelas pessoas que os buscam desesperadamente.
77
Por que esses prazeres desumanizam?
Mesmo já tendo sido de certa forma explicado, ainda permanece a pergunta: por
que, segundo a Bíblia, esses prazeres desumanizam (cf. Pv 21,17)? Por que a Bíblia
diz que os mesmos prazeres que nos tornam humanos podem também causar a
destruição da pessoa? Por que, no Primeiro Testamento, alguns prazeres são
chamados de hebel, ou seja, de vaidade (cf. Ec 1,2)? Um estudioso do assunto assim
responde: “Um só é o fio que envolve bem e mal, sabedoria e estupidez, prazer e dor
– em si antitéticos – e esse fio tem um só nome, hebel”.138
Também o prazer que é bom e que é gozoso pode entrar em crise, especialmente
em espaços e culturas como a neoliberal, nos quais o referencial do prazer é a riqueza
e o poder. Os ricos, os poderosos e aqueles que imitam os que têm dinheiro, poder e
fama entram em crise porque o mesmo prazer que os estimula ao gozo e ao
esbanjamento é o mesmo que os leva ao taedium vitae, isto é, ao tédio da vida. O
prazer que se tornahebel, ou seja, vaidade, transforma a vida humana em algo
insuportável. Muitos chegam ao desespero e até ao suicídio, mesmo estando cobertos
de ouro (cf. Tb 3,10; 2Sm 17,23; Jz 9,52-55). O prazer fruto da exploração dos pobres
e fruto da opressão é um prazer que não resulta da labuta diária. Não custou suor e
esforço. Por esse motivo se torna facilmente uma coisa desagradável. O mesmo se
diga de quem vive querendo imitar a vida luxuosa desses ricos e famosos.139
Isso significa que há um limite para o prazer. Tal limite está relacionado com a
opção de vida. Ter presente a opção de vida assumida por cada um de nós significa
deixar-se guiar pela lucidez, pela racionalidade, pela calma, pela capacidade de
reflexão, de modo que progressivamente se possa passar da simples e pura
emotividade para a percepção daquilo que naquele momento é expressão de
humanidade e de humanismo.140 Sabemos como o ser humano tende facilmente a
imitar os deuses. Pensa que tudo pode e que lhe é possível fazer o que quer a qualquer
hora e em qualquer lugar. Essa falta de consciência de seus próprios limites, quando
aplicada ao sentimento de prazer, é um verdadeiro desastre, pois leva a pessoa a
praticar os maiores absurdos em relação a si mesma e em relação aos outros. Tais
absurdos terminam por gerar um verdadeiro processo desumanizante, uma vez que,
na irracionalidade, o ser humano perde o controle e, como o homem de Gerasa, se
autodilacera (cf. Mc 5,5).
A falta de limites marca a cultura neoliberal. O marketing do consumo cria a ideia
de que com um cartão de crédito nós podemos realizar tudo o que queremos. Assim,
uma vida decente, que tenha em consideração certos valores, como, por exemplo, o
respeito pela dignidade da pessoa humana, é ridicularizada e banalizada. O sujeito, na
busca desenfreada de bens e de coisas que lhe causem prazer, acredita que tudo pode
fazer. Mas a vida impõe limites. Não se pode fazer o que se quer. Não é possível ter
prazer a todo custo e de qualquer jeito. E quando a pessoa se vê diante dos limites
impostos pela realidade da vida ela se rebela e perde a sua humanidade. E tal perda de
humanidade se dá de modo particular através da indiferença e da agressividade.
Para ter prazer o indivíduo não considera as demais pessoas, mas as transforma em
coisas ou objetos a serem usados em benefício da satisfação dos próprios caprichos.
“O amor frustrado acaba, na melhor das hipóteses, em indiferença, mas no mais das
78
vezes em suspeição e ressentimento.”141 Vimos, antes, que o referencial do prazer é
o amor, entendido como despojamento de si e doação da própria vida pela pessoa
amada (cf. Jo 15,13). Porém, o amor nesses termos foi banalizado ao longo dos
séculos e hoje não significa mais nada. Os padrões do amor, afirma Bauman, foram
abaixados. E até mesmo uma aventura sexual passageira com alguém numa noite em
um motel é rotulada de “fazer amor”.142
Porém, é preciso cuidar para que o sentimento de culpa não termine abafando a
beleza de uma vida prazerosa, como tem acontecido ultimamente entre alguns grupos
conservadores e fundamentalistas. Se por um lado devemos reconhecer os limites do
prazer, por outro precisamos estar bem atentos para não demonizá-lo. O risco da
demonização está ligado a situações ainda não resolvidas do período infantil e que
podem atrapalhar a vivência do prazer. Marcada profundamente pelo superego a
pessoa poderá ver o prazer sob o signo do conflito. Sua pulsão instintiva pede a
satisfação do prazer, mas ela se vê impedida por uma espécie de interdição. A falta de
realização do prazer gera frustração que, por sua vez, aguça ainda mais a busca pelo
prazer e a sensação de culpa e de castigo pela infração cometida. Caberia, então, uma
melhor compreensão do que é e do que não é “pecado”, de modo que a angústia
pudesse ser superada.143
Quanto ao prazer sexual desumanizante, cabe lembrar que em nossas culturas
ocidentais a alteridade é marcada pelo machismo. Assim sendo, o “macho” vê a
mulher como dependente dele. Ela se torna oprimida por ele. Por esse motivo há uma
grande probabilidade de que a busca do prazer sexual seja marcada pela dominação
do varão e pela coisificação da mulher, vista apenas como objeto barato de satisfação
imediata dos instintos sexuais. Nesse caso o erótico pode se transformar em
“egótico”, com a profanação da relação de alteridade e da sacralidade do encontro
entre o masculino e o feminino.144
O momento erótico, por si mesmo bonito e altamente significativo, que une “duas
extremidades” pode estar carregado de ambiguidade e de equívocos, uma vez que a
voluptuosidade pode estar buscando a si mesma e não o outro. Assim o prazer pode
se reduzir a mera satisfação do apetite sexual genital que não se compromete com o
outro para além do coito e da união carnal. Assim sendo, o prazer sexual é buscado
apenas como forma de satisfação do egoísmo, tratando o outro como objeto
descartável a ser abandonado após o uso. “O que acontece é que o prazer voluptuoso
é equívoco, porque tende a mover-se dentro do âmbito de ‘o mesmo’, embora tenda
também para o outro.”145
O prazer sexual não pode ser o resultado da imposição de alguém sobre outra
pessoa. Não posso obter prazer dominando e maltratando a pessoa amada,
violentando-a para obter a satisfação sexual a qualquer preço. O prazer sexual será
profundo, intenso, verdadeiro à medida que for o resultado da entrega mútua de dois
amantes totalmente livres e totalmente independentes. “O amor erótico, se é amor,
tem uma premissa: que eu ame da essência de meu ser e experimente a outra pessoa
na essência do seu ser [...]. O amor será essencialmente um ato de vontade de decisão
de entregar minha vida completamente à outra pessoa.”146
79
É verdade que a repressão do prazer se dá à custa da destruição da felicidade da
pessoa humana.147 Porém, o combate à repressão do prazer não deve ser confundido
com a exaltação do erotismo exacerbado, da idolatria desse mesmo prazer e daqueles
mecanismos desintegradores do ser humano. São considerados mecanismos
desintegradores aqueles que infantilizam, que coisificam a outra pessoa e a relação
com ela. É desintegrador o mecanismo da dominação, do autoritarismo, que manipula
as pessoas e que leva a uma pretensão de superioridade. O prazer integrador,
humanizante, é aquele que possibilita uma abertura ao “tu”, que vivifica a dimensão
relacional do ser humano.148
1 Cf. G. SCHRENK, “Eúdokéo”, em G. KITTEL, G. FRIEDRICH (orgs.), Grande Lessico del Nuovo
Testamento, vol. III, Bréscia, Paideia, 1967, p. 1107-1142 (Versão original em alemão).
2 G. STÄHLIN, “Édoné”, em G. KITTEL, G. FRIEDRICH (orgs.), Grande Lessico del Nuovo Testamento,
vol. IV, Bréscia, Paideia, 1968, p. 15-62. Aqui p. 15 (versão original em alemão).
3 Assim, por exemplo, no início do Magnificat (cf. Lc 1,47), em vez de se dizer que o espírito de Maria “se
encheu de júbilo” poderia se dizer que seu espírito “se encheu de prazer”. O mesmo poderia ser dito do
menino João, que ouvindo a saudação de Maria, “saltou de alegria” no útero de Isabel (cf. Lc 1,44). Aliás, os
atuais conhecimentos científicos permitem afirmar que a reação do menino João é uma reação de prazer,
motivada pelo prazer sentido pelo corpo da mãe.
4 Trata-se da Septuaginta, nome da versão da Bíblia hebraicapara o grego koiné, traduzida em etapas entre
o terceiro e o primeiro século a.C. Essa tradução teria sido feita em Alexandria, no Egito. Dentre outras tantas,
é a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego, língua falada no Mediterrâneo oriental, a partir do
tempo de Alexandre, o Grande. A tradução ficou conhecida como a Versão dos Setenta (ou Septuaginta,
palavra latina que significa setenta, ou ainda LXX), pois, segundo a tradição, setenta ou setenta e dois rabinos
(seis de cada uma das doze tribos) trabalharam nela e teriam completado a tradução em setenta dias. A
Septuaginta, desde o século I, é a versão clássica da Bíblia hebraica para os cristãos de língua grega, e foi
usada como base para diversas traduções da Bíblia (cf. Stephen PISANO,“O texto do Antigo Testamento”,
em Horácio SIMIAN-YOFRE, [org.], Metodologia do Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2011, 2ª edição,
p. 53-56).
5 Cf. G. SCHRENK, Eúdokéo, p. 1107-1112.
6 Cf. ibid., p. 1118-1124.
7 Cf. 2Ts 2,12; Hb 10, 6.8; G. SCHRENK, Eúdokéo, p. 1113-1118.
8 Cf. G. SCHRENK, Eúdokéo, p. 1121-1142.
9 Cf. G. STÄHLIN, ‘Édoné, p. 17-21.
10 Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VII, 14, p. 174-176.
11 Cf. G. STÄHLIN, ‘Édoné, p. 24-30.
12 Mais adiante explicaremos melhor o que foi o dualismo e o maniqueísmo. Por hora basta saber que o
dualismo é uma concepção filosófica ou teológica do mundo baseada na presença de dois princípios ou duas
substâncias ou duas realidades opostas e inconciliáveis, irredutíveis entre si e incapazes de uma síntese final
ou de recíproca subordinação. O maniqueísmo foi uma filosofia fundada pelo profeta persa Mani ou
Maniqueu, que aplicou à religião, de maneira radical, o princípio dualista, dividindo o mundo entre o
simplesmente Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo. Por isso, a matéria é intrinsecamente má, e o espírito,
intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina
fundada nos dois princípios opostos do Bem e do Mal (Wikipédia).
13 Cf. G. STÄHLIN, ‘Édoné, p. 22-24.
14 Cf. ibid., p. 29-30. O estoicismo foi uma das grandes escolas filosóficas gregas, e teria sido fundado por
80
Zenão de Cício, por volta do ano 300 a.C. Afirmava o primado da moral sobre a teoria e sobre as ocupações,
preocupações e emoções. Depois do aristotelismo, foi a doutrina filosófica que mais influenciou o mundo
ocidental (cf. Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 437-438).
15 Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VII, 13; X, 5, p. 173-174. 224-226.
16 Cf. G. STÄHLIN, ‘Édoné, p. 32-34.
17 Cf. ibid., p. 34-40.
18 Cf. Lc 8,14; Tg 4,3; Tt 3,3; G. STÄHLIN, ‘Édoné, p. 40-41.
19 Cf. Lc 8,14; Rm 7,3; Tg 4,1; Rm 6,13.19; 7,5.23; G. STÄHLIN, ‘Édoné, p. 41-44.
20 Cf. G. STÄHLIN, ‘Édoné, p. 45-62.
21 Acerca do impacto da cultura grega na formação de alguns livros do Primeiro Testamento e em todos os
livros do Segundo Testamento, veja-se Pierre GIBERT, Como a Bíblia foi escrita. Introdução ao Antigo e ao
Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 2004, 3ª edição, p. 86-92; Ildo Bohn GASS, Uma introdução à Bíblia.
Porta de entrada, São Paulo, Paulus, 2002, p. 88-90; Stephen PISANO, O texto do Antigo Testamento, p. 53-
63.
22 Cf. Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, p. 13-21.
23 Momolina MARCONI, Prelúdio à história das religiões, São Paulo, Paulus, 2008, p. 21-26.
24 Carlos Domínguez MORANO, Crer depois de Freud, São Paulo, Loyola, 2009, 2ª edição, p. 135-139. A
este respeito, veja-se também Alfonso García RUBIO, A caminho da maturidade na experiência de Deus, São
Paulo, Paulinas, 2008, p. 69-82.
25 Cf. Carlos CARRETTO, Procurei e Encontrei, São Paulo, Paulus, 1985, p. 64.
26 Emílio Garofalo NETO, “A busca humana da diversão sob a ótica bíblica de criação-queda-redenção”,
em Fides Reformata XVI, 2 (2011), p. 35. Disponível em
<http://cpaj.mackenzie.br/fidesreformata/visualizar/216>.
27 Cf. ibid., p. 43-49.
28 Cf. Mircea ELIADE, Tratado de História das Religiões, São Paulo, Martins Fontes, 2010, 4ª edição, p.
46-49.
29 Nos Evangelhos, o Reino ou o Reinado de Deus (em grego: basiléia tou Theou) é o projeto que Deus
tem para toda a humanidade, anunciado por Jesus. É algo que já está se realizando, embora ainda não de forma
plena, devido à resistência de algumas pessoas ou de alguns sistemas, inclusive o sistema religioso. Cf.
Salvatore Alberto PANIMOLLE, Regno di Dio, em Pietro ROSSANO, Gianfranco RAVASI, Antonio
GIRLANDA, Nuovo Dizionario di Teologia Biblica, p. 1296-1322. Veja-se também Alessandro SACCHI,
Cibo, em ibid., p. 268-282.
30 Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 27.
31 A TEB (p. 2011) afirma que “o foco da parábola não é a conversão do filho, mas o amor do pai” e nota
como Lucas “faz ressaltar a pressa do pai e o fato de que a sua acolhida impede o filho de chegar ao fim de
sua humilhação” (p. 2012).
32 O Concílio de Toledo (Espanha), realizado no ano de 675, num contexto de reflexão trinitária, declarou
que o Filho foi gerado e nasceu do “útero do Pai” (de utero Patris), deixando assim bem clara a identidade
materna do Deus dos cristãos (Cf. Jürgen MOLTMANN, “O Pai maternal. O patripassianismo trinitário
vencerá o patriarcalismo teológico?”, em Concilium 163 [1981], p. 60-66).
33 Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 110.
34 Seguimos aqui as intuições de Romeo CAVEDO, “Vita”, em Pietro ROSSANO, Gianfranco RAVASI,
Antonio GIRLANDA, Nuovo Dizionario di Teologia Biblica, p. 1660-1680.
35 Giustino RUSSOLILLO, I Direttori di Spiritualità, Pianura, Vocazionista, 2000, p. 36-48.
36 Ibid., p. 43.
37 Amedeo CENCINI, A alegria. Sal da vida cristã, p. 20.
81
38 Ibid., p. 53-54.
39 Cf. Mc 2,13-17; José Antonio PAGOLA, Jesús. Aproximación histórica, Buenos Aires, Claretiana,
2009, p. 204-211.
40 Cf. Gn 27,28; Sl 104,15; Alessandro SACCHI, “Cibo”, p. 276; Hugo SCHLESINGER, Humberto
PORTO, Crenças, seitas e símbolos religiosos, São Paulo, Paulinas, 1983, p. 378.
41 No versículo seguinte, Lucas coloca na boca de Jesus a seguinte afirmação: “Mas a Sabedoria foi
reconhecida justa por todos os seus filhos” (cf. Lc 7,35). Comentando esse texto, a TEB (p. 1987) nota que
Lucas costuma relacionar Jesus com a Sabedoria de Deus. De acordo com a TEB, a Sabedoria nesse texto
indica aquilo que é próprio de Deus, aquilo que está de acordo com os desígnios divinos. O que significa que
o agir de Jesus, taxado de fanfarrão, comilão e beberrão, estava de acordo com o projeto de Deus. As pessoas
simples, revestidas de tal sabedoria, reconheciam nele um homem de Deus, diferentemente dos fariseus e dos
legalistas (doutores da Lei) que, ao rejeitá-lo, rejeitavam os desígnios divinos (cf. Lc 7,30-32).
42 José Antonio PAGOLA, Jesús, p. 102-107.
43 Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 15.
44 Amedeo CENCINI, A alegria, p. 31.
45 O fundamentalismo religioso é a atitude de pessoas e de grupos que vivem exclusivamente de dogmas e
que não admitem nenhuma interpretação diferente desses dogmas. Por esse motivo, procuram sempre
permanecer na defensiva e no isolamento dos demais. No caso do fundamentalismo cristão, é a crença em
determinadas doutrinas e não na pessoa de Jesus de Nazaré. Crer em doutrinas é bem diferente de crer numa
pessoa e com ela manter uma relação profunda. Acerca dessa questão, veja-se Martin Norberto DREHER,
Para entender o fundamentalismo, São Leopoldo, Unisinos, 2002; Leonardo BOFF, Fundamentalismo. A
globalização e o futuro da humanidade, Rio de Janeiro, Sextante, 2002.
46 Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 41-42.
47 Cf. Gianfranco RAVASI, Coélet, São Paulo, Paulus, 1993, p. 99.
48 Ibid., p. 161.
49 Cf. ibid., p. 250-253.
50 Coélet ou Qohélet é o título hebraico do livro do Eclesiastes, que, embora atribuído a Salomão (cf. Ecle
1,1), trata-se de uma coletânea de ditos redigida entre os séculos III e II a.C. Apesar do seu caráter
aparentemente pessimista, o texto encara a vida com otimismo, afirmando que o mundo criado por Deus é
bonito (cf. 3,11) e que a vocação do ser humano é o prazer e a felicidade (cf. 8,15; 9,7; 11,9). O que,
inicialmente, parece pessimismo é, na verdade, um convite à responsabilidade e a estar sempre em sintonia
com o projeto de Deus, que fez todas as coisas (cf. 11,5). Nesse sentido, o Coélet é um dos livros mais
importantes da Bíblia para se compreender o valor do prazer e da vida prazerosa.
51 Cf. ibid., p. 215-218.
52 Inácio de LOYOLA, Exercícios Espirituais, Rio de Janeiro, Agir, 1968, nº 329, p. 167.
53 Ibid., 334, p. 169.
54 Cf. TEB, p. 27. Naturalmente nos distanciamos daquela visão criacionista que vê Adão e Eva como
sendo um casal histórico que, de fato, tenha vivido em algum tempo e lugar. Do ponto de vista bíblico, Adão
(em hebraico: ’adam) não é um homem histórico do sexo masculino, mas um termo usado para falar do
gênero humano emgeral. Já o termo Eva é uma expressão hebraica (havvah, hayah) para designar
simplesmente “vivente” ou “a mãe de todo vivente”, como nos explica a própria Bíblia (cf. Gn 3,20). Essa
interpretação alegórica não diminui a força daquilo que dissemos sobre o prazer do primeiro casal bíblico. A
respeito do significado dos termos Adão e Eva, veja-se Giuseppe BARBAGLIO, “Uomo”, em Pietro
ROSSANO, Gianfranco RAVASI, Antonio GIRLANDA, Nuovo Dizionario di Teologia Biblica, p. 1590-
1609.
55 Cf. José BORTOLINI, Conhecer e rezar os Salmos. Comentário popular para nossos dias, São Paulo,
Paulus, 2000, p. 489-501.
56 Podemos deduzir tudo isso de uma simples leitura de José Antonio PAGOLA, Jesús, p. 281-313.
57 Cf. Inácio de LOYOLA, Exercícios Espirituais, 314-315, p. 161-162.
82
58 Cf. ibid., 187-301, p. 108-155.
59 A respeito do conceito, significado e importância da vocação para todo ser humano veja-se José Lisboa
Moreira de OLIVEIRA, Teologia da Vocação. Temas fundamentais, São Paulo, Loyola, 1999.
60 “O sheol é a ‘terra’ do esquecimento, das trevas, do silêncio e das sombras. Lá não existe vida, como no
deserto. O sheol se encontra nas profundezas da terra (cf. Dt 32,22), além do abismo subterrâneo (cf. Jó 26,5;
38,16-17). Nunca se diz que Deus criou o sheol. Este se encontra no limite extremo do universo” (Antonio
BONORA, Cosmos, em Pietro ROSSANO, Gianfranco RAVASI, Antonio GIRLANDA, Nuovo Dizionario di
Teologia Biblica, p. 325).
61 Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 46.
62 Nico DAL MOLIN, Itinerário para o Amor, p. 108.
63 Ibid., p. 133.
64 Cf. ibid., p. 113-115.
65 Cf. Gianfranco RAVASI, Coélet, p. 72.
66 Cf. ibid., p. 87.
67 Segundo a TEB, comentando Ec 9,9, essa concepção não era exclusiva do povo hebreu. Afirmações
semelhantes foram encontradas também na epopeia babilônica de Guilgamesh (TEB, p. 1321). A epopeia de
Guilgamesh é um poema babilônico da criação, provavelmente do século XIV a.C., escrito na língua emegi,
chamada depois de suméria, em tabuinhas de argila úmida no estilo cuneiforme, ou seja, em forma de cunhas
ou de pregos, com um estilete de ponta retangular. A Babilônia foi uma cidade-estado na antiga Mesopotâmia.
Suas ruínas foram encontradas por arqueólogos numa localidade cerca de 85km ao sul de Bagdá, no atual
Iraque (cf. VÁRIOS AUTORES, A criação e o dilúvio segundo os textos do Oriente Médio Antigo, São Paulo,
Paulus, 2005, 2ª edição).
68 Ivo STORNIOLO, O mistério do amor humano. O mais belo cântico, de Salomão, São Paulo, Paulus,
2003, p. 9. Sobre o Cântico dos Cânticos veja-se ainda: VÁRIOS AUTORES, “Amor e Paixão. O Cântico dos
Cânticos” (Estudos Bíblicos 40), Petrópolis, Vozes, 1993. Para uma compreensão do tema da sexualidade na
Bíblia veja-se: VÁRIOS AUTORES, “Sexualidade e homossexualidade na Bíblia” (Estudos Bíblicos 66),
Petrópolis, Vozes, 2000.
69 Ibid., p. 10. O grifo é do autor.
70 A TEB, comentando estes versículos, observa que é a única vez em todo o texto do Cântico dos Cânticos
que o nome de Javé é citado (p. 1306). A narrativa não deixa dúvidas de que a referência à labareda de Javé se
refere à consumação do ato sexual, com seu respectivo prazer. Os dois estão debaixo da macieira, um nos
braços do outro, do mesmo jeito em que a mãe do amado se encontrava no momento em que o concebeu. Os
dois são dominados pelo impulso amoroso que os fazem perder o controle, a ponto de se entregarem um ao
outro numa paixão ardente. Esse estado de entrega descontrolada e passional é que se torna “o raio de Javé”.
“E literalmente amor e paixão, isso de estar encostadinho e aos beijinhos, são fogo de Deus [...]. Nisso não há
nada de extraordinário para a Bíblia, pois nela a sexualidade é obra do Criador. Não é feia e nem necessita de
repressão, como veio a ocorrer na tradição cristã, dominada pela cultura grega” (Milton SCHWANTES,
“Debaixo da macieira...”, Cantares à luz de Ct 8,5-14, em VÁRIOS AUTORES, Amor e Paixão, p. 45).
71 Ivo STORNIOLO, O mistério do amor humano, p. 14.
72 Cf. ibid., p. 19-21. A TEB (p. 1295) afirma que a atribuição a Salomão, colocada no início do capítulo
primeiro do livro, é um acréscimo redacional posterior, e seria influenciada pelo texto de 1Rs 5,12: “Salomão
pronunciou três mil provérbios, e seus cânticos são em número de mil e cinco”.
73 Ivo STORNIOLO, O mistério do amor humano, p. 51.
74 Cf. ibid., p. 50-56; Milton SCHWANTES, “Debaixo da macieira...”, p. 46-47.
75 Ibid., p. 61.
76 Ibid., p. 64.
77 Para o comentário às três cenas, veja-se ibid., p. 73-76. Veja-se também Valmor da SILVA, “Amor e
natureza no Cântico dos Cânticos”, em VÁRIOS AUTORES, Amor e Paixão, p. 30-38.
83
78 Marcial MAÇANEIRO, Mística e Erótica. Um ensaio sobre Deus, Eros e Beleza, Petrópolis, Vozes,
1995, p. 82.
79 Cf. Ludovico GARMUS, “Simbolismo matrimonial nos profetas”, em VÁRIOS AUTORES, Amor e
Paixão, p. 50-63.
80 Cf. Marcial MAÇANEIRO, Mística e Erótica, p. 9-15. Schwantes chama a nossa atenção para certas
traduções da Bíblia que tentam “suavizar” o impacto da linguagem erótica do Cântico dos Cânticos, inclusive
com a introdução de certos comentários ou de títulos dentro do texto (cf. Milton SCHWANTES, “Debaixo da
macieira...”, p. 42-44).
81 O prazer sexual que, a nosso ver, deveria estar na base das relações humanas e que aqui chamamos de
erotismo é a capacidade de se relacionar com os outros envolvendo totalmente o próprio corpo. É a superação
da negação da corporeidade que leva muitas pessoas a se comunicarem com outras como se fossem castradas,
o famoso “angelismo”, ou “anorexia mental”, que nos transforma em seres abstratos e incorpóreos. Tal
comportamento é neurótico, uma vez que separa o corpo da alma e a carne do espírito, negando a unidade
psicossomática que caracteriza a pessoa humana (cf. Giacomo DACQUINO, Viver o prazer, p. 52-59).
82 Marcial MAÇANEIRO, Mística e Erótica, p. 57 e 73.
83 Enrique DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana. I. Acesso ao ponto de partida da
Ética, São Paulo, Loyola, s. d., p. 125.
84 Cf. Arturo PAOLI, Ricerca de una spiritualità per l’uomo d’oggi, Assis, Cittadella, 1984, p. 94-110;
Charles André BERNARD, Teologia simbolica, p. 318-328.
85 Cf. Arturo PAOLI, Ricerca de una spiritualità per l’uomo d’oggi, p. 107.
86 Cf. ibid., p. 112-114.
87 Voltemos ao Cântico Espiritual de São João da Cruz: “Gozemo-nos, Amado!/ Vamo-nos ver em tua
formosura,/ Ao monte e o valado,/ Donde mana a água pura;/ Entremos mais adentro na espessura/ [...]. Ali
me mostrarias/ Aquilo que minha alma pretendia,/ E logo me darias,/ Ali, tu, vida minha,/ Aquilo que me
deste no outro dia” (José Jorge de CARVALHO [org.], Os melhores poemas de Amor da sabedoria religiosa
de todos os tempos, p. 155). Escutemos Djalal Ud-Din-Rumi (1207-1273), um místico e contemplativo do
Islã, no seu poema “O beijo do amado”: “O ladrão de corações/ deu-me um único beijo e partiu./ O que seria
de mim/ se me tivesse dado sete?/ Todo lábio que o meu amado beija/ guarda sempre a sua marca: rachaduras
abertas na ânsia de sugar/ a doçura de seus lábios” (ibid., p. 95).
88 Adélia PRADO, Poesia reunida, São Paulo, Arx, 1991, p. 348 e 350.
89 Cf. Enrique DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 121-128.
90 Cf. ibid., p. 162-170. “Descubro que nunca vi a vera Face de Deus./ Há mulheres no meu grupo que
rezam sem alegria/ e de cabo a rabo recitam o livro todo,/ incluindo imprimatur, edições, prefácio,/ endereço
para comunicar as graças alcançadas./ Eu só quero dizer: Ó Beleza, adoro-Vos!/ Treme meu corpo todo ao
Vosso olhar” (Adélia PRADO, Poesia reunida, p. 377-378).
91 Ibid., p. 110.
92 Marcial MAÇANEIRO, Mística e Erótica, p. 55.
93 Id., Cercando libertà: castità, obbedienza, povertà, Turim, Gribaudi, 1980, p. 31-41.
94 Ibid., p. 29 e 38. O grifo é nosso.
95 Cf. Enrique DUSSEL, Ética da Libertação. Na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Vozes,
2002, 2ª Edição, p. 345-372.
96 Cf. Arturo PAOLI, Cercando libertà: castità, obbedienza, povertà, p. 38-41.
97 Muitas vezes, quando tocamos nesse assunto,há sempre aquelas pessoas que se sentem ofendidas
porque acham que estamos maltratando a Igreja. Porém, o que acabamos de afirmar está constatado em
pesquisas e estudos sérios. Por isso, faz parte do nosso amor à Igreja aceitar essas fragilidades e lutar para que
esses males sejam superados. Acerca de situações deploráveis provenientes de uma abstenção sexual
resultante de fugas e não de vocação, veja-se, entre outros, os seguintes estudos: Gino NASINI, Um espinho
na carne. Má conduta e abuso sexual por parte de clérigos da Igreja Católica no Brasil. Visão geral das
questões relacionadas e pertinentes, Aparecida, Santuário, 2001; William Cesar Castilho PEREIRA,
84
Sofrimento psíquico dos presbíteros. Dor institucional, Petrópolis, Vozes, 2012; Edênio VALLE (org.),
Tendências homossexuais em seminaristas e religiosos. Visão psicoterapêutica e pedagógica, São Paulo,
Loyola, 2011; Giovanni CUCCI, Hans ZOLLNER, Igreja e pedofilia uma ferida aberta. Uma abordagem
psicológico-pastoral, São Paulo, Loyola, 2011.
98 Cf. Arturo PAOLI, Cercando libertà: castità, obbedienza, povertà, p. 41-47.
99 Cf. ibid., p. 47-52.
100 Cf. ibid., p. 55-60.
101 Isso hoje já é comprovado cientificamente. A esse respeito, veja-se Giacomo DACQUINO, Viver o
prazer, p. 135-182.
102 A esse respeito veja-se Felicísimo Martínez DÍEZ, Vida religiosa. Carisma e missão profética, São
Paulo, Paulus, 1995, p. 183-220; José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Viver os votos em tempos de pós-
modernidade. Desafio para a vida consagrada, São Paulo, Loyola, 2001, p. 39-95.
103 Amedeo CENCINI, Os sentimentos do Filho. Caminho formativo na vida consagrada, São Paulo,
Paulinas, 2002, p. 147-150.
104 José M. CASTILLO, Espiritualidade para insatisfeitos, São Paulo, Paulus, 2012, p. 17-19.
105 Cf. ibid., p. 11-17.
106 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 11-22.
107 Ibid., n. 14.
108 Cf. Bernard DE LANVERSIN, Los fundamentos sagrados del orden de la creación en el matrimonio
natural, p. 578-584.
109 Eduardo López AZPITARTE, Ética sexual. Masturbação, homossexualismo, relações pré-
matrimoniais, São Paulo, Paulus, 1991, p. 99.
110 Ángel González NÚÑEZ, O casal humano na Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 76-92.
111 Eduardo López AZPITARTE, Ética sexual, p. 103.
112 Cf. José M. CASTILLO, Espiritualidade para insatisfeitos, p. 17-19.
113 Umberto GALIMBERTI, Rastros do Sagrado, p. 121-122. Grifo nosso.
114 Ángel González NÚÑEZ, O casal humano na Bíblia, p. 91.
115 Cf. M. NIKIC, “Formação para a maturidade afetiva e para a castidade”, p. 142-148.
116 Bernhard HAERING, Livres e fiéis em Cristo. Teologia moral para sacerdotes e leigos. Volume II: A
verdade vos libertará, São Paulo, Paulinas, 1982, p. 493.
117 Antônio MOSER, “Corpo e sexualidade: do biológico ao virtual”, p. 52.
118 Cf. ibid., p. 52-54.
119 Erich FROMM, A arte de amar, p. 166-168.
120 Zygmunt BAUMAN, A arte da vida, Rio de Janeiro, Zahar, 2009, 12-16.
121 Ibid., p. 10.
122 Cf. ibid., p. 16-24.
123 Ibid., p. 24
124 Ibid., p. 25.
125 Cf. ibid., p. 27-45.
126 Cf. ibid., p. 56-60. Acerca da humilhação a que é submetido o corpo humano para responder às tantas
exigências de satisfação do prazer imediato e consumista, veja-se Antônio MOSER, “Corpo e sexualidade: do
biológico ao virtual”, p. 54-58.
127 Zygmunt BAUMAN, A arte da vida, p. 144.
85
128 Cf. ibid., p. 146-171.
129 Cf. ibid., p. 67-122; Enrique DUSSEL, Ética da Libertação, p. 313-383.
130 Cf. Zygmunt BAUMAN, A arte da vida, p. 172-173.
131 Cf. Augustín Herrera QUIÑONES, “Corporeidad, mujer, maternidad y feminidad: desafíos en
perspectiva afroamericana”, p. 191-194.
132 Cf. Gianfranco RAVASI, Coélet, p. 74-83.
133 Cf. ibid., p. 157-161.
134 Zygmunt BAUMAN, Capitalismo parasitário e outros temas contemporâneos, Rio de Janeiro, Zahar,
2010, p. 24. O grifo é nosso.
135 Cf. Gianfranco RAVASI, Coélet, p. 134-135.
136 Zygmunt BAUMAN, Capitalismo parasitário e outros temas contemporâneos, p. 19-20.
137 Cf. Fl 3,8. Os termos gregos skúbala, skúbalon, usados neste versículo da Carta aos Filipenses,
geralmente são traduzidos por “lixo”. Porém, a tradução exata seria fezes e fezes humanas, denotando assim a
inutilidade e a baixeza dessa situação.
138 Gianfranco RAVASI, Coélet, p. 101.
139 Cf. ibid., p. 93-96.
140 Cf. Marc ORAISON, Psicologia e sentido do pecado, São Paulo, Paulinas, 1974, p. 19-30.
141 Zygmunt BAUMAN, Comunidade. A busca por segurança no mundo atual, Rio de Janeiro, Zahar,
2003, p. 101.
142 Id., Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos, Rio de Janeiro, Zahar, 2004, p. 18-21.
143 Cf. Marc ORAISON, Psicologia e sentido do pecado, p. 31-40.
144 Enrique DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 13-125. Bauman acrescenta a
isso uma observação interessante e, ao mesmo tempo, preocupante: “Hoje, a sexualidade não condensa mais o
potencial de prazer e felicidade. Ela não é mais mistificada positivamente como êxtase e transgressão, mas
negativamente, como fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal” (Zygmunt
BAUMAN, Amor líquido, p. 56).
145 Ibid., p. 125-126. Para falar da banalização do prazer sexual, Moser usa a metáfora do tálamo, ou seja,
da cama de casal. Ao invés do “sexo orgânico” que implica “compartilhar a cama com outra pessoa”,
passando pelo ritual do amor (despir-se, vestir-se de novo, tocar um corpo concreto, acariciar a pele da pessoa
amada, beijar-se mutuamente etc.) as pessoas estão optando pelo “sexo virtual” praticado em “quartos
virtuais”, ou seja, na tela do computador, com direito a gemidos, olhares, e outros gestos eróticos virtuais. Um
prazer sexual que dispensa o corpo e apenas conecta a mente a um “terminal de prazer”. O prazer sexual não é
mais corporal ou genital. É apenas mental. É o princípio cartesiano aplicado ao prazer! (Antônio MOSER,
“Corpo e sexualidade: do biológico ao virtual”, p. 58-64).
146 Erich FROMM, A arte de amar, p. 82.
147 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 206-213.
148 Cf. ibid., p. 214-218, 274-283, 292-293.
86
III
O TEMA DO PRAZER
NA HISTÓRIA DA IGREJA
Tem se falado tanto do pecado, que, para muita gente, parece ser o assunto principal da moral e da
ascese cristã.
(Dom Valfredo TEPE)
Vimos até aqui o conceito de prazer, as suas bases científicas, suas dimensões e o
ensinamento bíblico sobre o assunto. Após esse percurso, temos condições de fazer
agora uma análise sobre a forma como o tema do prazer foi tratado ao longo dos dois
mil anos de história da Igreja. O objetivo deste capítulo é perceber os diferentes
enfoques que a questão recebeu em épocas diferentes e nos ajudar a tomar
consciência de possíveis distanciamentos da mensagem bíblica. Essa análise vai
também nos permitir uma tomada de posição acerca do assunto, numa tentativa de
maior aproximação possível daquela que deveria ser a visão mais coerente com a
proposta da Bíblia.
Logo no início de nossa conversa precisamos dizer que a forma como o prazer
ainda é visto hoje em muitas Igrejas destoa por completo da maneira como é
apresentado nas Sagradas Escrituras. Temos ainda uma concepção altamente negativa
da questão, fruto do efeito devastador do maniqueísmo. A maneira de lidarmos com o
prazer ainda é doentia, cheia de cautelas, restrições e proibições. Por toda parte
ouvem-se exortações pedindo prudência, recomendando vigilância. Há, no dizer de
Tepe, um “ascetismo profilático radical” que contraria os princípios bíblicos e não
produz o efeito desejado. Pelo contrário, aguça ainda mais a ânsia pelo prazer, uma
vez que a maneira como as coisas são colocadas parece dar a entender que o cristão e
a cristã devem agir sempre contra as próprias inclinações e abrir mão de tudo aquilo
que é gostoso e prazeroso. Precisamos, pois, reencontrar o equilíbrio nesse campo, de
modo que as pessoas saibam viver prazerosamente, tendo como referencial o amor
responsável.1
1. Do seguimento prazeroso de Jesus à abolição do prazer
O que aconteceu, continua Tepe, foi que, aos poucos, se instalou naIgreja uma
espécie de “ascetismo mórbido” que tentou excluir da vida das pessoas a alegria e a
felicidade. Certo tipo de catequese e de pregação foi divulgando uma espécie de Deus
que se alegra com o sofrimento humano, com as flagelações, com os cilícios, com a
penitência. Um Deus tirano que sente gozo e prazer com o sofrimento de seus filhos e
de suas filhas. Um Deus masoquista e sadista que impõe o masoquismo e o sadismo
aos seus seguidores. Esse tipo de Deus está mais para Baal do que para o Deus de
Jesus.2 Além disso, o ascetismo mórbido contribui para o adoecimento das pessoas,
uma vez que a natureza, assim como foi feita pelo Criador, “não se alegra com o
87
sofrimento – a não ser que seja uma natureza pervertida”.3
A incursão do dualismo grego
Diante do exposto cabe a pergunta: como isso entrou no cristianismo? Por que
uma mensagem tão alegre e tão prazerosa como a mensagem de Jesus foi sendo
transformada em algo tão escabroso e triste? Para responder a essas perguntas
precisamos percorrer rapidamente a história da espiritualidade cristã.
Vimos anteriormente que o cristianismo nasce na Palestina, no contexto do
judaísmo da diáspora. Os primeiros cristãos eram judeus, mas fortemente
influenciados pelo helenismo que predominava na região no primeiro século da era
cristã (cf. Jo 12,20; At 6,1). Esses cristãos, influenciados pela filosofia grega tardia,
trouxeram para dentro do cristianismo vários elementos do pensamento helenista.
Entre os diversos aspectos dessa filosofia estava certo desprezo pelo corpo (cf. Rm
1,24; Ef 4,19), o que obrigou lideranças cristãs, como Paulo, a se posicionarem
firmes, opondo-se aos exageros e afirmando o valor do corpo humano destinado à
ressurreição (cf. 1Cor 15,35-39).
A corrente filosófica mais forte e que teve um impacto decisivo sobre o
cristianismo foi o dualismo grego. Essa corrente admite dois princípios: um do bem e
outro do mal. Tais princípios estão em luta constante entre si. O princípio do bem está
associado à alma e ao espiritual. O princípio do mal está relacionado com a matéria e
com o corpo humano. Dentro dessa perspectiva a matéria e o corpo são ilusórios,
enquanto que o mundo das ideias, o espiritual e a alma são a verdadeira realidade.4
Essa corrente encontrou eco no gnosticismo que se difundiu rapidamente nos
primeiros séculos do cristianismo, inclusive com uma vasta produção literária da qual
os chamados Evangelhos Apócrifos são os principais representantes. Para o
gnosticismo, a salvação se encontra no conhecimento. Por essa razão, a atitude mais
comum devia ser a total estranheza da realidade, da materialidade e da corporalidade.
Uma espécie de niilismo antigo.5
Com o passar do tempo o dualismo foi sendo aplicado de maneira mais intensa
pelo cristianismo ocidental na interpretação do corpo. As categorias helênicas foram
ideologizadas com a finalidade de encobrir certas situações, especialmente de
dominação. A manipulação ideológica do corpo permitia a manipulação das pessoas.
Tal concepção, enquanto produto cultural, responsável pelo dualismo antropológico,
levou à depreciação do corpo e, por reação, ao atual “culto ao corpo”. Essa
“espiritualização” do corpo precisa ser superada, uma vez que condicionou a
compreensão de outras realidades humanas.6
A marca dualista grega, que opõe corpo e alma e que coloca a alma como “piloto”
ou “senhora” do corpo, vem de Platão. Santo Agostinho tentou suavizar esse
dualismo, mas, como veremos mais adiante, continuou colocando a alma como piloto
do corpo. Santo Tomás de Aquino faz objeção a esse princípio, mas transforma a
alma em anima corporis forma, ou seja, em “forma do corpo”.7 De certa maneira, a
emenda saiu pior do que o soneto, como se costuma dizer no adágio popular,
contribuindo assim para que a questão do prazer continuasse sendo vista como algo
bastante negativo. Sabemos, porém, que, segundo a tradição bíblica, o ser humano é
88
uno e não dualista, embora tal afirmação não deva ser entendida como uma afirmação
monista, isto é, como se o ser humano possuísse uma substância genérica que mistura
as duas coisas. A pessoa é, ao mesmo tempo, como explicamos no início desse
trabalho, corpo e alma. As duas coisas não estão separadas e em conflito entre elas.
De acordo com os ensinamentos bíblicos, não existe lugar no cristianismo para o
angelismo e nem para o animalismo.8
A maleficência do maniqueísmo
O dualismo grego foi exasperado com a chegada do maniqueísmo no cristianismo.
Já tivemos a oportunidade de apresentar brevemente essa doutrina filosófica, mas
agora queremos aprofundá-la, mostrando os estragos por ela produzidos no que se
refere à questão do prazer. O maniqueísmo originou-se com o sacerdote persa Mani,
o qual, no III século do cristianismo, “proclamou-se o Paracleto, aquele que devia
conduzir a doutrina cristã à perfeição. O maniqueísmo é uma mistura imaginosa de
elementos gnósticos, cristãos e orientais, sobre as bases do dualismo da religião”.9
Os primeiros traços do maniqueísmo já se encontram em alguns escritos dos assim
chamados Padres da Igreja, ou seja, escritores cristãos que viveram entre os séculos II
a VII da era cristã. Inicialmente, o maniqueísmo não tinha nenhuma relação com o
cristianismo. Mas, aos poucos, ele foi tomando aparência cristã. No cristianismo,
adquiriu novos contornos e ganhou uma dimensão missionária e, por isso, se difundiu
rapidamente pelo mundo cristão de então.10
O maniqueísmo, como o dualismo, afirma a existência dos dois princípios (Bem e
Mal), os quais são anteriores à criação do mundo. Insiste na radical oposição e
separação entre os dois, tendo em comum apenas o fato de que são eternos. Um dos
fortes propagadores do maniqueísmo foi o bispo cristão Fausto, com o qual
Agostinho teve uma ferrenha disputa. Para Fausto, é impossível atribuir qualquer
coisa de material a Deus. Por essa razão, a criação, por si mesma, é má, não estando
ligada ao princípio do Bem, mas ao princípio do Mal. O corpo humano e o prazer
estão ligados ao material e, portanto, ao princípio do Mal. Logo são elementos
completamente negativos. E não só isso. A partir da queda de Adão, os dois
princípios estão em guerra permanente que envolve os seres humanos. Essa guerra
durará até o fim dos tempos e até lá só nos resta nos opormos ao princípio do Mal,
rejeitando tudo aquilo que a ele está ligado. Cabe dizer que, segundo o maniqueísmo,
o princípio do Bem é andrógino (masculino, macho). Na guerra entre os dois
princípios, os machos são sempre seduzidos pelas fêmeas (mulheres), as quais
pertencem ao reino do Mal. Isso, como se verá logo em seguida, levou a uma
desvalorização total do feminino e da mulher, que passou a ser vista como a sedutora,
aquela que arrasta os homens para a perdição.11
Essa visão maniqueísta foi se difundido cada vez mais até chegar à exasperação.
Para tanto contribuíram as pregações de muitos missionários e vários escritos,
particularmente no segundo período da Idade Média. É claro que a intenção não era
de aprovar e divulgar o maniqueísmo que, na teoria, continuava sendo considerada
uma doutrina herética. Os pregadores e escritores queriam impactar as pessoas e
provocar a conversão. Mas, para atingir esse objetivo, terminavam exagerando e,
89
talvez sem saber, difundindo na prática o maniqueísmo. Podemos afirmar, sem medo
de errar, que o impacto do maniqueísmo foi tão forte no cristianismo que, a partir de
Agostinho, restou pouco espaço para o prazer, especialmente o prazer sexual. Autores
como Gregório Magno condenaram o prazer sexual. A moral sexual ficou resumida à
questão de saber se é pecado ou não a busca do prazer. Só a procriação é positiva e,
por causa dela, pode-se conceder certa absolvição ao prazer sexual. Mas este continua
sendo considerado intrinsecamente mau.12
Um dos escritos que mais contribuiu para a difusão negativa do prazer foi o
livrinho conhecido como Imitação de Cristo.13 Durante muito tempo, a autoria dessa
obra foi atribuída a um autor chamado Tomás de Kempis, alemão, cônego regular de
Santo Agostinho, nascidoem 1380 e falecido em 1471. Hoje já se discute a sua
autoria.
Há pesquisadores que tentam atualmente revalorizar essa obra, procurando
mostrar que se trata de um texto escrito de monges para monges e que deve ser lido
no seu contexto. Existe quem diga que é um livro fundamentado na Bíblia e que tem
como tema central o conhecimento de si e de Cristo. Mas esses mesmos autores
reconhecem que se trata de um texto reacionário, marcado pelo individualismo
espiritual, pela falta de uma eclesiologia bíblica e por um claro dualismo.14 Porém, a
Imitação de Cristo não ficou somente nas mãos dos monges, mas foi amplamente
difundida e sua leitura foi incentivada pelos pregadores, que o usavam em suas
pregações para impactar seus ouvintes. Por esse motivo, a sua influência sobre as
pessoas foi e continua sendo muito forte, e seus efeitos bastante nocivos para a
compreensão do prazer. Ainda hoje as editoras católicas publicam a obra, a qual
continua tendo alta vendagem. Basta ver a quantidade de edições.
Não é possível aqui fazer uma longa explanação sobre o conteúdo da obra.
Faremos apenas a apresentação de alguns trechos nos quais é bem visível o
pessimismo contra o prazer. Já no início do livro, aparece a afirmação explícita de
que é vaidade “seguir os apetites da carne e ambicionar o que mais tarde deve ser
severamente punido”.15 O modo como é feita a colocação não deixa dúvida de que o
prazer está excluído por essa afirmação. Em outro lugar, se diz que somente quando
alguém se rebaixa e se aniquila totalmente, renunciando a toda estima e humilhando-
se até o pó, poderá receber a graça de Deus.16 O sofrimento deve ser aceito, uma vez
que é a única e verdadeira forma de se imitar Cristo e os santos. Quem tenta eliminar
ou combater o sofrimento não está no caminho de Cristo. Diante do sofrimento a
única alternativa é se resignar, pois só a resignação torna suave o sofrimento.17 Ora,
se o sofrimento é graça, se a tribulação é aprazível e amável, se devemos aceitar
varonilmente o sofrimento, se não nos é permitido desanimar do sofrimento, fica
implícito que a busca do prazer contraria a imitação de Cristo. De fato, diz o texto:
“padecer, sofrer e ser mortificado por amor de vós é mui proveitoso para a minha
alma”.18
Considerando o sofrimento e a adversidade como dons de Deus e como lucro, a
Imitação de Cristo, mesmo que indiretamente, exclui a busca e a experiência do
prazer. Só há prazer na aceitação resignada da dor e do sofrimento, ou seja, no
90
“sofrimento por amor”. Querer lutar contra isso é considerado insensatez. Nesse
sentido, a deleitação, isto é, o prazer de viver, é algo mundano e deve ser condenado.
O viver deliciosamente não é digno do cristão, o qual deve viver para Deus em “santa
disciplina”. Jesus só escuta e se enternece com as lágrimas e os suspiros da “alma
desterrada”. Por esse motivo só resta ao fiel humilhar-se profundamente diante dos
juízos da Divina Providência.19
Portanto, embora não trate explicitamente do prazer, a Imitação de Cristo contém
uma mensagem pessimista com relação a tudo o que é humano; o que não deixou de
induzir as pessoas ao desprezo e ao medo de uma vida prazerosa. Tendo como
princípio básico a afirmação de que “tudo o que não é Deus, é nada e por nada deve
ser reputado” e que é “impuro tudo que há em nós”,20 a obra causou um enorme
impacto nos leitores. Com isso forjou uma espiritualidade temerosa que via pecado
em tudo e que tinha uma visão altamente negativa do prazer.
Um tema bastante explorado pela obra é a morte. Pensando em morrer santamente,
o cristão deve buscar o “perfeito desprezo do mundo, o fervoroso desejo de crescer
em virtude, o amor da disciplina, o exercício da penitência, a prontidão na
obediência, a renúncia de si mesmo e a paciência em sofrer as adversidades por amor
de Cristo”.21 Não há aqui espaço para a ressurreição e para a vida gozosa que há de
vir depois da morte. Pelo contrário, sentencia o texto: “Castiga teu corpo agora, para
que possas ter então legítima confiança”.22 Afinal de contas, o ser humano não tem
em si mesmo nada de bom, e, por causa disso, deve renunciar a toda consolação
humana, ou seja, a qualquer momento prazeroso.23
A situação se complica ainda mais quando se relaciona o prazer com a comunhão
eucarística. No contexto da época em que a Imitação de Cristo foi escrita, a
Eucaristia não era para “o perdão dos pecados” (cf. Mt 26,28), como quis Jesus. Ela
era vista como o “panis angelis”, ou “panis angelicus”, ou seja, o “pão dos anjos” ou
“pão angélico”. Era alimento de anjos e não de pessoas humanas. Nada de pensar em
uma Eucaristia voltada para a salvação dos pecadores, como na verdade é o
sacramento da Eucaristia (cf. Lc 22,19-20). Em consequência, a melhor forma para se
preparar para receber a Eucaristia era através de uma efusão de lágrimas, de um
coração abrasado de chorar, suportando essa “miserável vida”, uma vez que estamos
detidos num “cárcere” (sic) que se chama corpo. Só se pode receber a Eucaristia com
mãos limpas, corpo santo, coração imaculado e puro. Os olhos devem ser castos e
modestos. E, como não podemos viver com tanta inocência, devemos, pelo menos,
chorar amargamente as nossas culpas em espírito de humildade.24 Num clima como
esse, não há lugar para a alegria prazerosa típica de quem celebra o memorial
eucarístico da morte e da ressurreição de Jesus.
2. A relação entre prazer, sexo e pecado
O impacto do dualismo, do maniqueísmo e das correntes de espiritualidades deles
decorrentes levou a uma rápida associação entre prazer, sexo e pecado. Aos poucos se
foi separando a maturidade cristã do exercício do prazer, particularmente no que diz
91
respeito ao prazer sexual. E apesar dos esforços de renovação e das mudanças
introduzidas pelo Concílio Vaticano II, ainda hoje sentimos a presença forte dessa
concepção, inclusive naquelas correntes teológicas que se dizem mais avançadas.25
Pedagogia do “quebra-molas”
A tentação de negar valor ao prazer, de modo particular ao prazer sexual,
funcionou e ainda funciona na Igreja como uma espécie de “quebra-molas”. Um
teólogo bastante vivido, com experiência de anos de pastoral no meio de culturas bem
diferentes da Ocidental, explica que o objetivo de toda essa obsessão é manter o
poder sobre as pessoas. Ao insistir na relação entre prazer, sexo e pecado, a Igreja (ou
as Igrejas) visa controlar seus fiéis. Como o prazer e o sexo são inerentes à pessoa
humana, fica fácil manter o controle sobre elas, explorando esses campos e
carregando-as de proibições e de normas. Vamos escutar o autor. A citação é longa,
mas vale a pena ler:
É crível que Deus tenha posto um prazer tão intenso no corpo humano para depois reduzi-lo radicalmente
a um uso tão exclusivo, limitado e condicionado? Não é o sexo válido, belo e completo em si mesmo?
Não se pode desligar o prazer sexual da necessidade de procriar e dar assim maior liberdade à mulher e ao
homem, recuperar o valor do melhor da natureza, alegrar a vida, aliviar as consciências, e desse modo dar
até maior valor à procriação buscada por si mesma, e não como um tributo imposto ao uso do sexo? [...].
A razão do exagero que a Igreja sempre exerceu nesse domínio e da gravidade do pecado sexual é fácil de
ver. A Igreja deseja controlar seus súditos, e o instrumento de controle mais eficaz é o medo. Por isso a
Igreja construiu o sistema mais eficaz de engendrar e conservar o medo. Basta um único pecado mortal
para encerrar inevitavelmente a vítima em tormentos horrendos por toda a eternidade. E a Igreja é quem
controla, com seus mandamentos, absolvições e penitências, a culpa ou o perdão desse pecado que
determina o eterno destino do pecador. O mecanismo de controle da consciência e do comportamento de
todo o povo católico fica assim nas mãos da autoridade oficial. O que fazia falta para completar esse
mecanismo era um pecado, suficientemente grave para que se pudesse falar de inferno e suficientemente
geral para que se aplicasse a todos [...]. Aí se encaixa o sexo: afeta-nos a todos, pois todos nós temos
corpo e desejosde usá-lo; e tem aspectos sérios que podem facilmente aprofundar-se e generalizar-se na
direção de uma culpabilidade universal. Foi assim que o sexto mandamento se tornou o mais importante
dos dez, transformando-se o sexo na obsessão permanente do povo cristão. Basta ver a naturalidade sem
complexos com que culturas aborígenes pré-cristãs lidam com o sexo em diversas partes do mundo para
perceber o exagero sistemático e planejado a que fomos submetidos.26
Vallés afirma que essa pedagogia funciona como quebra-molas numa estrada, no
sentido de que visa colocar limites à ação e à liberdade das pessoas. Porém, diz ele,
como não há proporção entre as proibições e a realidade, esses limites terminam não
funcionando, assim como, numa estrada, os motoristas sempre ultrapassam a
velocidade limitada todas as vezes que percebem que o limite não tem sentido. Por
não serem razoáveis e não levarem em conta a constituição humana planejada pelo
Criador, essas normas terminam sendo desobedecidas, uma vez que “as leis
exageradas não são para ser cumpridas”.27
Ainda segundo Vallés, essa pedagogia do quebra-molas começou com Santo
Agostinho, o qual, como convertido que vinha de uma vida sexual muito desregrada,
uniu “a atitude maniqueísta de rejeição da matéria (neste caso, do sexo) ao trauma de
suas relações sexuais e de sua paternidade sem casamento. É compreensível que seu
excelso gênio perdesse um pouco do seu equilíbrio num assunto que tanto o
atormentara”.28
De fato, Agostinho ataca obsessivamente a libido humana, que, segundo ele,
92
excita as partes sexuais do corpo e termina dominando o corpo inteiro. Na opinião
dele, a libido põe em cheque o ser humano inteiro, uma vez que, misturando afeto e
apetite carnal, produz voluptuosidade. E quando a voluptuosidade chega ao cúmulo,
termina ofuscando a razão e o pensamento.29
Segundo Agostinho, o sábio e o santo prefeririam gerar filhos sem a libido.
Prefeririam uma ação generativa em que os membros destinados à geração serviriam
à mente. O santo de Hipona fantasia, pensando num ato sexual voltado
exclusivamente para a procriação e que esteja apenas sob o arbítrio da vontade, sem
ser tocado pela excitação do que ele chama de fogo libidinoso. Pensa, pois, numa
relação sexual procriativa que exclua por completo o prazer. O ideal seria que mesmo
no casamento o casal não fosse tomado pelo deleite, pelo prazer e pelo gozo.30 É
claro que uma relação sexual sem prazer seria brutal, animalesca, uma vez que talvez
somente os animais copulem por instinto de sobrevivência e, por isso, sem desejo de
prazer e sem buscar prazer. A busca do prazer sexual, com toda a dinâmica que
envolve a preparação, o ato sexual em si e o gozo que dele decorre é exclusiva dos
humanos. Animalesca seria, então, a relação que não envolve o jogo prazeroso
consciente do amor. Embora recentemente pesquisas estejam apontando que “existem
animais, em várias espécies, que se entregam ao comportamento sexual nem sempre
visando, apenas, à reprodução, mas, também, a criação de estratégias de convivência
e satisfação biológica. Entregam-se à autoestimulação, à homossexualidade e à
cópula”.31
Mas voltemos a Agostinho. Na opinião dele, a libido, assim como a ira, vicia o
ânimo da pessoa e gera desordem. Por isso é proibida pela sabedoria e precisa ser
contida pela razão e pela mente.32 Continuando sua reflexão, Agostinho relaciona o
prazer com a desobediência de Adão. O pecado original contribuiu para a sua
degeneração, especialmente para a degeneração do prazer sexual:
Não há dúvida de que a natureza humana se envergonha dessa libido. E com razão, porque em sua
desobediência, que deixou os órgãos sexuais submetidos a seus próprios movimentos e os desligou da
vontade, se mostra bem às claras a paga que o homem recebeu de sua própria desobediência. E foi
conveniente que seu vestígio aparecesse em especial nos membros que servem à geração da natureza,
piorada pelo primeiro enorme pecado.33
Fica, pois, evidente a contribuição de Agostinho na exacerbação da condenação do
prazer. Ele chega a propor uma relação sexual, no casamento, voltada exclusivamente
para a procriação de filhos, mas sem a libido, da qual as pessoas honestas deveriam se
envergonhar.34 Embora ventile a possibilidade de um ato gerador de filhos no
paraíso, antes do pecado, para a continuidade da espécie humana, ele acredita que
isso se dava sem prazer e sem libido.
A libido surgiu depois do pecado e, depois do pecado, nossa natureza, pudica, despojada do domínio que
tinha sobre o corpo, sentiu esse desarranjo, advertiu-o, envergonhou-se dele e cobriu-o [...]. Ali (no
paraíso) o homem semearia e a mulher receberia o sêmen, quando e quanto fosse necessário, sendo os
órgãos da geração movidos pela vontade, não excitados pela libido.35
Percebe-se claramente a negação do ato sexual e a negação do prazer. Em
93
consequência, na ressurreição não haverá libido e a mulher ressuscitada não
exercitará a concupiscência do homem.36 Houve, pois, ao longo dos séculos, por
influência do maniqueísmo, uma tentativa de negação do valor da experiência do
prazer, de modo particular do prazer sexual ou orgasmo. Propôs-se aos casais em
matrimônio que o eliminassem por completo, uma vez que é um ato indigno do
cristão e que causaria a degradação do ser humano. O sentir prazer levaria a pessoa ao
nível dos animais irracionais. É claro que não se pode negar os riscos do prazer, o
qual nunca deve ser absolutizado. Mas os riscos não justificam a negação do seu
valor e a sua condenação.37
É preciso distinguir as formas de prazer e diferenciá-las. Muitas vezes, por causa
da tentação de negar valor ao prazer, se nivelam todos os modos de sentir prazer,
como se todos fossem ilícitos ou pecaminosos. É verdade que aumentam sempre mais
as maneiras de buscar prazer sem o mínimo de compromisso com as pessoas,
maneiras grosseiras que coisificam e desumanizam. Mas isso não pode ser uma
desculpa para nivelar e “excomungar” todas as formas de prazer. Nesse sentido, é
preciso desvestir o prazer de todas as formas de preconceito.38
Resgate do valor do prazer sexual
Como vimos, nessa história de desprezo pelo prazer, o prazer sexual foi o mais
afetado. “Os maniqueus e os gnósticos construíram sua visão do mundo e sua
condenação radical do prazer sexual e da própria sexualidade sobre a experiência da
desordem. Agindo assim, porém, cometeram uma grande injustiça contra muita gente
boa que vivia seu casamento no amor e com autêntica alegria.”39
Ainda hoje teólogos e documentos da Igreja Católica Romana falam de tal forma,
como se o prazer e o prazer sexual fossem coisas diabólicas a serem não só evitadas,
mas totalmente combatidas. Com essa insistência na negatividade do prazer sexual,
eliminam a beleza e a alegria que deveriam caracterizar sempre a relação entre duas
pessoas que se amam profundamente e que querem manifestar esse amor profundo
numa entrega mútua, que envolve a dinâmica dos corpos em movimento. Um amor
matrimonial destituído de prazer, vivido exclusivamente como dever marital para
procriar filhos, se torna um “fantasma”. Onde não há alegria, a tristeza toma conta.
Talvez aqui esteja a razão do falimento de tantos casamentos, mesmo entre pessoas
cristãs. Ninguém aguenta viver muito tempo num estilo de vida que está mais para
cemitério do que para vida plena.
O ato conjugal tornar-se-ia insípido se um dos esposos quisesse tentar rejeitar o prazer dele decorrente,
destruindo, assim, a alegria do estar juntos, do ser uma só carne. Quanto mais profundo for o sentido do
verdadeiro amor na autodoação recíproca, tanto maior serão a alegria e o prazer.40
Vimos antes que não se pode aceitar o prazer mercadoria, o prazer consumo. Isso
por uma simples razão: quando barateamos as coisas, elas perdem seu significado e
deixam de ter sentido. Porém, mesmo mantendo esse firme propósito, precisamos
redescobrir a beleza e o valor do prazer e do prazer sexual. O prazer que decorre da
alegria do amor, da profundidade da união de dois amantes, é um prazer bonito que se
tornalouvor ao Criador, que, na sua infinita bondade, quis que as coisas fossem
94
assim. Quando dois amantes vivem o auge do prazer estão, na inebriante experiência
do orgasmo, experimentando na própria existência a alegria profunda da salvação
trazida por Cristo. É uma experiência mística. De fato, a salvação é sempre
acompanhada de muita alegria e de muito gozo. E nada mais expressivo dessa
realidade que o prazer sexual.41
Isso tudo nos diz que o prazer sexual se justifica por si mesmo, sem que precise
ser referendado pela obrigatoriedade da procriação. “Antes de gerar filhos é preciso
que o casal se gere como casal.”42 É claro que dois amantes que se amam de verdade
estarão sempre abertos a um “terceiro”. Se isso não acontecer, a relação apodrece em
pouco tempo, uma vez que se torna possessividade, egolatria e indiferença. E o filho
é a expressão mais sublime dessa abertura, uma vez que é a concretização carnal e
visível da profundidade do amor. A Igreja, entendendo muito bem que a doação
prazerosa entre dois amantes tem sentido, sempre permitiu o casamento entre pessoas
estéreis ou entre pessoas idosas, quando a procriação estava totalmente fora de
cogitação. Embora, na prática, continue insistindo sobre a prioridade da procriação.43
Nesse sentido, devem ser valorizadas também as fantasias eróticas que visam levar
os dois amantes ao mais profundo prazer e à mais profunda entrega mútua.
Lamentavelmente muitos casais cristãos olham para isso com certo horror e desdém.
Por essa razão, as relações se tornam monótonas e sem muita novidade. Cada relação
sexual deveria ser sempre única, e jamais se deveriam repetir no ato sexual as
mesmas coisas de sempre. Também aqui neste momento tão intenso e tão gostoso a
criatividade deve estar presente, de modo que a experiência gozosa seja intensa e
profunda. O que não pode acontecer é a imposição de um dos parceiros, exigindo que
o outro lhe contente naquilo que ele pretende. Tudo tem que ser muito natural e
espontâneo, fruto da naturalidade do próprio amor e da própria doação mútua.
Haering diz que as fantasias eróticas não devem virar obsessão, e o momento sublime
do orgasmo não deve ser visto como se fosse uma espécie de “torneira” para fazer
jorrar uma enxurrada de prazeres.44
A legitimação do prazer, do erotismo, das fantasias eróticas, no sentido explicado
até agora, encontra seu fundamento na encarnação de Jesus. No momento em que o
Filho de Deus decidiu abrir mão da sua condição divina para viver como nós, tudo
aquilo que é humano se tornou divino, se tornou muito bom (cf. Fl 2,6-8). O dualismo
grego e o maniqueísmo negam o valor e o significado da encarnação do Verbo
divino. Em Cristo, Deus assumiu a humanidade em todas as suas dimensões e
realidades e com todas as suas consequências. Não faz, pois, sentido negar a beleza
do prazer e do prazer sexual se o Criador não só nos quis assim, como também o
Filho de Deus quis ser, “por seu aspecto, reconhecido como homem” (cf. Fl 2,7).45
Em Cristo, Deus Pai se revela no corpo humano, que tem suas exigências e seu
dinamismo. Em Cristo, todas as dimensões do ser humano são resgatadas, valorizadas
e valiosas. Também a sexualidade, o sexo, o prazer sexual e todos os elementos
bonitos que compõem o jogo do amor passam a ter um sentido totalmente positivo.
Nesse sentido, cabe dizer também que o sacramento da Eucaristia ajuda-nos a
entender tudo isso. Na Eucaristia, Cristo quis se doar a nós como alimento através do
seu corpo. O corpo de Cristo é fortaleza para nossos corpos. A realidade da
95
Eucaristia, na qual Cristo se faz pão partido, bebida derramada e banquete gozoso
para toda a humanidade, não permite desprezar o gozo e o prazer, nem mesmo o
prazer sexual.46 A Eucaristia é o sacramento que une os nossos corpos ao corpo de
Cristo e que une os corpos dos cristãos à realidade da terra. Enquanto expressão
máxima da humanização do divino, a Eucaristia nos impede de fazer cortes e rupturas
entre o que é profundamente humano e o que é profundamente divino. Um
cristianismo maniqueísta não é autêntico, mas apenas uma caricatura de religião.47
Mas para que a Eucaristia nos ajude a resgatar o valor do prazer e do prazer
sexual, é indispensável libertá-la da ideia de sacrifício que, infelizmente, passou a
vigorar no segundo milênio católico. Por obra de alguns espiritualistas, a Eucaristia
foi deixando de ser memorial alegre da morte e ressurreição de Jesus e se
transformando apenas em memória do sacrifício de Jesus na cruz. Com isso, ela foi se
tornando o sacramento da fixidez e da cristalização da dor de Jesus e da nossa dor. A
alegria do banquete eucarístico foi sendo trocada pela lembrança do Cristo
crucificado e coberto de chagas. O aspecto gozoso da ceia foi substituído pela
imagem fantasiosa do Cordeiro imolado. “Ao sofrimento de Cristo juntam-se os
nossos sofrimentos, que servem para aplacar a ira do Pai. Uma espécie de depósito
bancário, que cresce continuamente com a soma de nossas dores.”48
Ao analisarmos cuidadosamente a própria doutrina da Igreja, vamos ver que a vida
sexual ou corporal sempre foi considerada componente essencial do casamento e do
consentimento. Em consequência, o prazer sexual experimentado no momento do
orgasmo é parte integrante e indispensável do consentimento matrimonial. Não se
pode falar de casamento se não existir a relação sexual com orgasmo e prazer
sexual.49
A mulher como símbolo do prazer degenerado
Nesse processo de “satanização” do prazer e do prazer sexual, a pior parte coube à
mulher. Vimos, um pouco antes, como Santo Agostinho acreditava que a mulher
excitava a concupiscência do homem. Aos poucos, ela foi se tornando o símbolo do
prazer degenerado, de modo que se pode afirmar, sem medo de errar, que a “delicada
flor da moral sexual é uma felicidade adquirida à custa da escravidão da mulher à
sociedade”.50
Essa história começa já no tempo do povo da primeira Aliança. Embora o
Primeiro Testamento tenha uma visão positiva do sexo e da relação sexual, a situação
muda quando se relaciona sexo com a esfera do sagrado e, sobretudo, quando se
coloca o sexo da mulher em relação com o mundo sacro. Na cultura hebraica antiga,
de um modo geral, a declarada impuridade das pessoas está quase sempre relacionada
com o sexo. O coito, a emissão de esperma, a mulher menstruada, o sangramento fora
do período menstrual, o parto, o período do pós-parto, as doenças sexuais são
considerados impurezas. Porém, é a relação sexual com a mulher o campo mais
revestido de tabus e mais relacionado com a impureza.51
No Segundo Testamento, Jesus quebra muitos desses tabus. Basta lembrar, por
exemplo, o fato de que ele não tinha medo de tocar ou de ser tocado por pessoas que
96
eram consideradas impuras (cf. Lc 8,43-48). O Mestre deixa bem claro, em suas
diversas intervenções, que aquilo que vem de fora não torna a pessoa impura. A
grande impureza é aquela que sai de dentro da pessoa, uma vez que “é do interior, é
do coração do homem que saem as más intenções, desregramentos, furtos,
homicídios, adultérios, cupidez, perversidades, astúcias, invejas, injúrias, vaidade,
insensatez. Todo este mal sai do interior e torna o homem impuro” (Mc 7,21-23).
Jesus quebrou as regras da impureza e, por meio de palavras e de ações, mostrou
que não há mais incompatibilidade entre o sagrado e o sexo. Porém, como já foi dito
antes, a partir da metade do século II, o maniqueísmo e o gnosticismo começaram a
fazer suas incursões sobre o cristianismo. Dessa forma, o conceito de impureza volta
a ser relacionado ao sexo, de modo particular ao sexo da mulher. Autores como
Tertuliano começam a depreciar a mulher, considerada “a porta do inferno”.52 Aos
poucos, as mulheres vão sendo associadas ao pecado do sexo, à tentação do prazer e à
impuridade. São definidas como megeras, diabólicas, devassas e tentadoras. Faz-se
uma relação direta entre a mulher, Eva e o pecado original. Este teria sido um pecado
sexual, ao qual o homem foi induzido pela sedução da mulher. Como Eva ontem, as
mulheres de hoje continuam a seduziros homens e a atraí-los para o “pecado da
carne”.53
Sabemos, pelos estudos da Antropologia, que por trás de toda essa carga negativa
estava o medo da mulher.54 Para os homens de todos os tempos, a mulher é portadora
de uma grande potência que causa pavor. E a melhor maneira de quebrar essa
potência é negando-a e submetendo a mulher a ritos e purificações que eliminam sua
força. E a forma mais simples e mais comum de fazer isso é relacionando-a com o
mal e com as potências demoníacas. Fazendo isso, tirava-se toda a força que a mulher
demonstrava possuir.55
A quebra do potencial da mulher ficava ainda mais fácil se o medo dos homens
fosse associado ao sexo feminino. Mais terrível ainda era a menstruação, uma vez que
ao sexo feminino era associado o sangue, considerado por si mesmo uma realidade
potente. “O fluxo menstrual da mulher permanece sempre uma realidade potente e
temível, na qual se concentra toda uma potência particular que o homem atribui à
mulher, fazendo disparar o mecanismo da exclusão de todo poder institucional e,
sobretudo, do poder ‘sagrado’”.56
A influência do maniqueísmo levou, aos poucos, a uma associação entre pecado,
sexo, prazer sexual e mulher. Dessa maneira, chega-se à Idade Média e ao terrível
período da Inquisição, quando as mulheres passam a ser vistas como seres
terrivelmente perigosos, porque sedutoras dos homens. Tal visão pessimista
desabrochou numa verdadeira perseguição à mulher, facilmente identificada como a
fonte do pecado carnal para os homens. “As agressões voltaram-se para dentro,
fazendo das mulheres as vítimas preferenciais. Sendo consideradas inferiores e fonte
de tentações sexuais, era óbvio que qualquer desvio da mansa submissão que se
esperava delas seria atacado.”57
Durante o século XV e parte do século XVI, a mulher foi facilmente associada à
bruxaria, vista como prática supersticiosa, sacrílega, maléfica e demoníaca. Embora a
97
Inquisição visasse o combate aos “hereges” de ambos os sexos, acredita-se que a
maioria absoluta das pessoas condenadas à morte era de mulheres; em torno de cem
mil. A acusação mais forte era de que as bruxas eram perversas, luxuriosas, lascívias
e que tinham pacto com o demônio. Aliás, a lascívia era considerada a forma de
atuação mais forte do demônio. Porque as mulheres eram carnais, sensuais,
insaciáveis sexualmente, o demônio as seduzia, chegando a copular com elas. Ficou,
assim, formulado o estereótipo da mulher perigosa, símbolo do prazer degenerado.58
Esse estigma lamentavelmente continua a existir até os nossos dias. Na Igreja
Católica Romana, ainda há muita pregação nesse sentido. Bispos e padres que veem
na mulher um grande perigo e, por esse motivo, tentam mantê-las distantes das
funções de poder e de coordenação. Para muitos deles, o corpo da mulher, por si só,
já é uma tentação. O horror e o medo continuam vigorando ainda em nossos dias.59
O medo e o desejo de frear o potencial feminino são explorados em nossos dias pela
indústria pornográfica, a qual, exaltando a beleza e o corpo da mulher, a transforma
em mercadoria bastante lucrativa.60 Nessa associação entre mulher e prazer sexual
pervertido a Igreja tem a sua responsabilidade. Ao condenar o sexo e o prazer sexual,
ao transformar a mulher numa permanente e perigosa sedutora do homem, ela tornou-
se, sem querer, uma forte aliada da indústria pornográfica. Pois, na verdade, o que faz
a pornografia é explorar esse caminho iniciado pela própria Igreja Católica.61
Portanto, a situação da mulher ficou bastante complicada, uma vez que ela passou
a ser vista como a grande provocadora dos pecados sexuais, pela busca desenfreada
do prazer. Colocada numa situação de submissão ao homem, escrava do marido e dos
filhos, obrigada a satisfazê-lo sempre que ele quisesse, a mulher foi elevada também
à categoria de principal responsável pelos pecados que levam os homens ao inferno.
O sexo, apresentado como a fonte de todo e qualquer pecado, tem na mulher o seu
“bode expiatório”, uma vez que a ela se atribui toda a culpa pelo desregramento dos
homens. Nesse contexto, nasce a expressão “femina nulla bona”, ou seja, “nada de
bom existe na mulher”, conceito infelizmente ainda muito presente na cabeça de
muitos homens. Desde a Idade Média, em nossa cultura machista, criou-se a ideia de
que as mulheres são “incapazes de amar, egoístas, interesseiras, mesquinhas, avaras,
infiéis, ladras, invejosas, maledicentes, concupiscentes, inconstantes, inconsequentes,
desobedientes, rebeldes, soberbas, mentirosas, indiscretas, gulosas, alcoólatras,
charlatãs, hipócritas, insaciáveis, supersticiosas etc.”.62
3. Um cristianismo triste e assustador
A associação entre prazer, sexo e pecado, de modo particular a relação entre
pecado sexual e mulher, fez do cristianismo uma religião triste e assustadora. Não por
acaso, ainda hoje, as pessoas costumam dizer que as coisas mais gostosas e mais
bonitas são proibidas pela Igreja. Para que o cristianismo volte a ser uma religião
bonita é preciso libertá-lo da rigidez e do moralismo eclesiástico, construídos ao
longo do segundo milênio e impostos de maneira autoritária por sua hierarquia. Não
se trata, é claro, de eliminar orientações e propostas vindas da Igreja. Trata-se de não
confundirmos a verdade da fé com doutrinas e dogmas que foram construídos em
98
contextos históricos bem precisos. Trata-se de nos educarmos para uma consciência
crítica capaz de distinguir a essência do Evangelho daquelas formas históricas nas
quais ele foi interpretado. Formas essas que não podemos mais aceitar porque se
revelam sem sentido e contraditórias à própria mensagem evangélica.63
O resgate da beleza do prazer
Precisamos resgatar a beleza do prazer, mesmo porque esse é um valor altamente
cristão. Ainda na Idade Média, houve um esforço para se recuperar os aspectos
positivos do prazer. Alberto Magno e Tomás de Aquino fizeram de tudo para dar uma
visão mais positiva do prazer. Muito significativa foi a contribuição de Alberto
Magno, que, influenciado pelo aristotelismo, defendeu o “caráter natural e honesto do
sexo, da relação conjugal e do prazer que de maneira normal acompanha o exercício
de toda função natural”.64
Tomás de Aquino, articulando várias correntes filosóficas e teológicas, se esforça
para mostrar o valor positivo das paixões e do prazer. Para ele, as paixões e o prazer
não se opõem às virtudes, mas são a expressão do dinamismo da vida humana. Ao se
deter especificamente sobre o prazer, Tomás de Aquino afirma que é algo bom. Em
sua reflexão, tenta articular o pensamento aristotélico sobre a bondade da natureza
humana e a visão de excelência da pessoa humana criada por Deus.65 “Exorciza,
portanto, a ideia de que o prazer tenha algo de mau, e que de si venha o pecado ou
leve a ele. Chega a compor uma tese para provar que no paraíso, antes ou fora do
influxo do pecado, o prazer sexual teria o máximo de intensidade, não deixando por
isso de ser o mais santo e inocente”.66
Apesar de seus esforços, Tomás de Aquino não conseguiu impactar de maneira
suficiente o pensamento de então, de modo que a visão negativa sobre o prazer
continuou pelos séculos seguintes. E hoje, mesmo com os avanços obtidos,
especialmente a partir do Vaticano II, a dificuldade em reconhecer a positividade do
prazer continua. Porém, não podemos deixar de reconhecer a sua valiosa contribuição
para o nosso tema. Tendo presente que ele reconhece a legitimidade e o valor do
prazer, inclusive do prazer sexual, num contexto histórico e eclesial em que essa
questão era considerada tabu ou era vista de modo altamente negativo, podemos
afirmar a atualidade do seu pensamento. Ao que tudo indica, Tomás de Aquino
lançou as bases antropológicas da questão, deixando bem claro que o prazer não é
pecado e nem conduz ao pecado. A partir das intuições de Tomás de Aquino, é
possível afirmar hoje que o prazer e o prazer sexual não estão necessariamente
conectados com a questão da procriação. O prazer, por si mesmo, independentemente
dos objetivos do matrimônio, é bom e santo, e, por isso, nãose pode demonizá-lo ou
reduzi-lo à finalidade da procriação. Depois de Tomás de Aquino, o prazer e o prazer
sexual não são elementos desordenados da natureza nem expressão da
concupiscência, como se passou a pensar a partir de Agostinho. O prazer e a busca do
prazer são coisas boas por natureza, mesmo quando não estão em relação direta com
a procriação.67
Os autores que vieram depois de Tomás de Aquino sentiram certa dificuldade em
justificar o prazer de maneira positiva, embora, aos poucos, com a chegada da
99
modernidade, isso passe a fugir do controle social da Igreja. Colaboram para isso o
surgimento das questões da revolução industrial e o avanço das ciências que passam a
questionar certas posições intransigentes da Igreja. Entre os séculos XVII e XVIII se
dá uma grande crise por causa da controvérsia entre laxistas e rigoristas. Os laxistas
defendiam que certos atos sexuais não podiam ser condenados, mas deveriam ser
considerados normais, inclusive a relação sexual fora do casamento, desde que
houvesse consentimento do marido. Não faltaram, porém, autores como Santo
Afonso de Ligório, que buscaram o equilíbrio na reflexão sobre o tema.68
A questão que estamos analisando deve ser vista na perspectiva de uma
antropologia integral, na qual o prazer não fica reduzido aos órgãos genitais nem à
mera satisfação do apetite sexual. O prazer deve ser visto como expressão da pessoa
inteira. Além disso, como vimos na primeira parte desse trabalho, com os
conhecimentos científicos que já temos, é possível afirmar que o prazer é uma
realidade dinâmica, que tem muito a ver com a história de vida de cada pessoa e de
sua personalidade. Particular importância adquirem os conhecimentos da biologia e
da genética da pessoa humana. Esses conhecimentos nos permitem superar
afirmações ultrapassadas e arcaicas que viam na busca do prazer algo ruim e
pecaminoso. Permitem ver de maneira positiva o prazer sexual, cujo ápice é o
orgasmo.69
O atual retorno ao dualismo e maniqueísmo
O resgate da beleza do prazer se faz urgente no momento atual, quando estamos
assistindo a um retorno do dualismo e do maniqueísmo. Grupos conservadores e até
ultraconservadores, com raízes bem fundamentalistas, estão semeando nas Igrejas
uma profunda desconfiança com relação a tudo aquilo que é profundamente humano.
Diante da pluralidade e da diversidade dos desafios que isso representa, muitas
pessoas e muitos grupos se fecham na defensiva ou na ofensiva e partem para o
fundamentalismo, para o fechamento comunitário e para o retorno a doutrinas que
ofereçam segurança e tranquilidade.70 A desconfiança é ainda maior no que se refere
ao prazer, à sexualidade, ao sexo e ao prazer sexual. É claro que o equilíbrio nessas
questões nem sempre é fácil, mas a Psicologia já nos ajudou a entender que certos
surtos neuróticos e psicóticos nessa área levam a conflitos terríveis, o que não ajuda
na construção de um cristianismo sadio e maduro.71
Precisamos nos convencer, cada vez mais, de que houve na Igreja uma profunda
desvalorização das realidades humanas, e que precisamos, com certa urgência,
recuperar o tempo perdido. Essa urgência não deve ser só em função de uma
recuperação daqueles fiéis que, indignados, se afastaram daquelas Igrejas que deram
provas de falta de humanidade.72 A urgência se deve ao fato de que precisamos
voltar ao Evangelho e à fidelidade à palavra de Jesus. Não pode ter mais credibilidade
uma Igreja que ainda insiste em proibições, em excomunhões e que propõe como sua
nota distintiva o sofrimento e não a alegria de pessoas ressuscitadas. A Igreja que
continuar por essa estrada estimulará o prazer consumista, a busca desenfreada de
emoções e sensações puramente fictícias, como aquelas que são vendidas nos
100
shoppings.73
A Igreja permaneceu fixa no programa ascético medieval, mas, ao dar-se conta de que esse programa está
superado, renunciou à ascese, substituiu-a pelas festas e caiu na ilusão de que a concentração das massas é
a forma de se viver em comunhão. Essa estrada não oferece nenhuma alternativa à sociedade capitalista; o
caminho é um só: tomar consciência de que, antes de convocar-nos como cristãos e membros de um
partido político, é necessário convocar-nos, em primeira instância, a ser homens e a redescobrir a nossa
essência humana [...]. A juventude se sente presa numa armadilha como mosca em teia de aranha e não
sabe sair: todas as instituições são orientadas mais para consolar os presos do que para libertá-los [...]. A
proposta de Jesus – “vem e segue-me” – parece-me cada vez mais distante da memória dos cristãos, e eu
diria que os educadores religiosos, resignados à impossibilidade da relação de proximidade, se adaptam a
produzir objetos de consumo sempre mais sofisticados. Jesus não promete nada.74
Para recuperar a sua credibilidade, a Igreja (ou as Igrejas) precisa falar de
felicidade, ser a Igreja de pessoas felizes, prazerosas, e não de gente que vive uma
alegria artificial, resultante dos tantos rituais celebrados mecanicamente e
superficialmente. Para recuperar a sua credibilidade, as Igrejas precisam falar uma
linguagem humana e não uma linguagem de anjos. Mas para fazer isso, elas precisam
contar com pessoas maduras humanamente; pessoas que sejam capazes não só de
decorar artigos do Catecismo, mas de encontrar uma solidez e uma sabedoria interior
que as leve a não ter medo de viver de forma bem humana. Pessoas que, como fez o
Mestre Jesus, quebrem tabus e rompam com normas obsoletas que nos mantêm
presos e nos escravizam. Para recuperar a sua credibilidade, as Igrejas precisam
reformular por completo sua catequese, mostrando que, segundo o Evangelho, não é
o sexo, não é o prazer “que pode entorpecer em primeiro lugar o caminho do homem
para Deus, mas, antes de tudo, a injustiça, o dinheiro, o legalismo, a hipocrisia
farisaica e, inclusive, em determinados casos, as próprias práticas religiosas”.75
A vida que Jesus propõe nos Evangelhos é uma vida de liberdade, que tudo
canaliza para o gozo, tido como essência da realização pessoal. É verdade que ele
propõe tomar a própria cruz cada dia, caso alguém queira segui-lo (cf. Lc 9,23).
Porém, como nota muito bem o comentário da TEB (p. 1942) ao texto paralelo de
Marcos (cf. 8,34), a atitude de tomar a cruz não significa renunciar a uma vida
prazerosa e gozosa, mas assumir o risco de ser feliz na perspectiva do Reino e do
Evangelho. O Mestre não viveu fugindo de pessoas nem de situações de perigo. Não
apontou nenhuma situação prazerosa que fosse perigosa para o nosso corpo e para a
nossa sexualidade. Não era um tipo asceta que vivia pregando privação e sacrifícios
para os seus discípulos. Pelo contrário, como já tivemos oportunidade de mostrar,
chegou a escandalizar muita gente porque não se detinha diante de regras proibitivas
que excluíam a alegria de viver prazerosamente.76
Jesus jamais olhou para a mulher como um potencial perigo para a sua existência.
Jamais considerou a mulher como a tentadora e sedutora. Sua relação com as
mulheres, inclusive com mulheres casadas, era de total liberdade e aproximação,
coisa impensável naquela época.77 Por um lado, ele nunca se aproximou de uma
mulher, olhando-a como um objeto a ser possuído, como rezava a disposição legal de
seu tempo através da qual a mulher era tratada como simples propriedade do homem,
colocada ao lado do boi e do jumento (cf. Ex 20,17; Dt 5,21). Mas ele, que ao que
parece foi um celibatário, nunca fugiu delas como se fossem perigosas para a sua
101
opção de vida. Mantinha com elas um relacionamento amigável e de muita
proximidade.78
Com Jesus aprendemos que o amor pela mulher é o pano de fundo de todo o viver
e de toda a existência. Esse amor pela mulher nos ajuda a entender realidades que o
machismo nunca tinha nos permitido: que a Igreja, o Povo de Deus, Israel são
realidades femininas. Aprendemos que a espiritualidade cristã é feminina. Por esse
motivo, diferentemente daquilo que pensam os maniqueístas, toda subestimação, todo
desprezo e todo preconceito contra a mulher, contrao prazer e contra o prazer sexual
fazem de nós cristãos de segunda categoria, “incapazes de dirigir uma comunidade de
oração ou indignos de tocar nas coisas sagradas”.79
Não podemos, pois, aceitar na Igreja de nossos dias um retorno ao dualismo e ao
maniqueísmo. Não podemos mais aceitar um cristianismo sem alegria e sem prazer;
um cristianismo no qual as pessoas são constrangidas e forçadas a fazer determinadas
coisas por medo de Deus ou por medo do inferno. Embora o prazer não deva ser
buscado por si mesmo, como finalidade última, embora exista uma relação muito
grande entre prazer e sentido da vida, entre prazer e busca do bem e da verdade, não
podemos mais pensar em um cristianismo que pretenda abolir uma vida prazerosa.
Caso a Igreja continue insistindo em negar valor ao prazer, teremos como consequên-
cia um cristianismo de fachada, superficial, uma vez que, na prática concreta, as
pessoas buscarão aquilo que dá prazer.80 A pedagogia do medo produz efeito
contrário ao desejado: leva as pessoas a absolutizarem a busca do prazer. Por essa
razão, é biblicamente mais correto propor não um Deus triste e que ama a tristeza de
seus filhos e de suas filhas, mas “um Deus como aquele de quem nos fala Jesus no
Evangelho de Lucas, que, inclusive, organiza festas no céu”.81
1 Cf. Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 23-27.
2 Cf. 1Rs 18,28; Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 27-32. A TEB (p. 532), comentando a
citação bíblica mencionada afirma que a prática da autopunição era um costume característico de uma
cerimônia fúnebre em honra a Baal. Portanto, algo detestável para o povo hebreu, seguidor de Javé, o Deus da
vida.
3 Ibid., p. 27.
4 Cf. Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 346.
5 Cf. ibid., p. 565-566.
6 Cf. Augustín Herrera QUIÑONES, Corporeidad, mujer, maternidad y feminidad: desafíos en perspectiva
afroamericana, p. 194-196.
7 Cf. Luiz Carlos SUSIN, A criação de Deus, p. 103-107.
8 Cf. Juan Luis Ruiz DE LA PEÑA, Antropología teológica fundamental, p. 129-134.
9 Cf. Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 739.
10 Cf. Francisco García BAZÁN, Aspectos incomuns do sagrado, São Paulo, Paulus, 2002, p. 178-189.
11 Cf. ibid., p. 189-200.
12 Antonio AUTIERO, “Sexualidade”, em Francesco COMPAGNONI, Giannino PIANA, Salvatore
PRIVITERA (orgs.), Dicionário de Teologia Moral, p. 1145-1156. Aqui p. 1149.
102
13 Imitação de Cristo, São Paulo, Paulus, 1987, 19ª edição.
14 Sobre esta questão veja-se, por exemplo, Antonio BLASUCCI, “La spiritualità nel secondo medievo”,
em A. BLASUCCI, B. CALATI, R. GRÉGOIRE (orgs.), La spiritualità del medievo, Roma, Borla, 1988, p.
235-494. Aqui p. 456-462.
15 Imitação de Cristo, Livro I, Capítulo I, p. 12.
16 Cf. ibid., Livro III, Capítulo VIII, p. 194.
17 Cf. ibid., Livro III, Capítulo XIX, p. 237-239.
18 Ibid., p. 239.
19 Cf. ibid., Livro III, Capítulos XX-XXI, p. 241-249.
20 Cf. ibid., Livro III, Capítulo XXXI, p. 285.
21 Ibid., Livro I, Capítulo XXIII, p. 88.
22 Ibid., p. 89.
23 Cf. ibid., Livro III, Capítulo XL, p. 316-319.
24 Cf. ibid., Livro IV, Capítulo XI, p. 469474.
25 Alysson Massote CARVALHO, “Sexualidade e religiosidade entre adolescentes: um estudo
comparativo”, em Marina MASSIMI, Miguel MAHFOUD (orgs.), Diante do Mistério. Psicologia e senso
religioso, São Paulo, Loyola, 1999, p. 99-122.
26 Carlos González VALLÉS, Querida Igreja, São Paulo, Paulus, 1998, p. 106-107, 109-110.
27 Ibid., p. 103. A poetisa traduziu isso nos seguintes versos: “Quando esta nossa cidade ressonar em
neblina,/ os moços marianos vão me esperar na matriz./ O céu é aqui, mamãe./ Que bom não ser livro
inspirado/ o catecismo da doutrina cristã,/ posso adiar meus escrúpulos/ e cavalgar no torpor/ dos
monsenhores podados./ Posso sofrer amanhã/ a linda nódoa de vinho/ das flores murchas no chão” (Adélia
PRADO, Poesia reunida, p. 177).
28 Carlos González VALLÉS, Querida Igreja, p. 105. Para uma análise do pensamento de Agostinho, veja-
se Carlos JOSAPHAT, Ética Mundial. Esperança da humanidade globalizada, Petrópolis, Vozes, 2010, p.
281-283.
29 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus (Contra os Pagãos). Parte II, Petrópolis, Vozes, 1990, 2ª
edição, Livro XIV, Capítulo XVI, p. 156. Provavelmente Agostinho tinha essa visão negativa também por
desconhecer os aspectos científicos da libido. Hoje as pesquisas no campo da sexologia e da psicologia nos
fizeram entender que a libido é não só a energia do desejo sexual, mas também a energia vital que mantém as
pessoas vivas, ativas e dinâmicas. Embora a libido inclua o prazer erótico, ela é muito mais do que isso. É a
energia psíquica intensa que anima o ser humano na direção da vida e, como tal, é essencial e determinante
não só para a felicidade como para a própria sobrevivência. Sem libido seríamos apagados e inertes (cf.
Álvaro CABRAL, Eva NICK, Dicionário técnico de Psicologia, p. 191).
30 Cf. SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, Livro XIV, Capítulo XVI, p. 156.
31 William Cesar Castilho PEREIRA, A formação religiosa em questão, Petrópolis, Vozes, 2004, p. 228-
229.
32 Cf. SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, Livro XIV, Capítulo XIX, p. 159-160.
33 Ibid., Livro XIV, Capítulo XX, p. 160.
34 Ibid., Livro XIV, Capítulo XXI, p. 161.
35 Ibid., Livro XIV, Capítulo XXI, p. 161; Capítulo XXIV, p. 164.
36 Ibid., Livro XXII, Capítulo XVII, p. 560-561.
37 Cf. Eduardo López AZPITARTE, Ética sexual, p. 14-16.
38 Cf. ibid., p. 95-98.
39 Bernhard HAERING, Livres e fiéis em Cristo, p. 494.
103
40 Ibid., p. 495.
41 Cf. ibid., p. 495-496.
42 Antônio MOSER, O enigma da Esfinge, p. 123.
43 Cf. Bernhard HAERING, Livres e fiéis em Cristo, p. 533-534.
44 Cf. ibid., p. 533.
45 Quando o Segundo Testamento afirma que em Jesus Deus se fez “homem” (anthropos), não está
querendo afirmar que ele se fez macho, varão, do sexo masculino. O termo grego “anthropos” significa
humano, humanidade, participante da raça humana. Para falar do varão, pessoa do sexo masculino, o Segundo
Testamento usa os termos andrós e anér (cf. At 17,12; Mt 14,21). Portanto, o que conta não é o fato de que
Jesus nasceu macho, um ser do sexo masculino, mas que ele, enquanto Filho de Deus, se tornou um ser
humano como todos nós. Sobre a diferença entre “anthropos” e “andrós” (ou anér) veja-se Manuel GUERRA,
Diccionario Morfologico del Nuevo Testamento, Burgos, Aldecoa, 1978.
46 Cf. Wanda DEIFELT, “Deus no corpo: uma análise feminista da revelação”, em Luiza Etsuko TOMITA,
Marcelo BARROS, José María VIGIL (orgs.), Teologia Latino-americana pluralista da libertação, São
Paulo, Paulinas, 2006, p. 79-102.
47 Cf. Arturo PAOLI, Testemunhas da esperança, São Paulo, Paulus, 1992, p. 18-36.
48 Id., Fraternidade no mundo. Exigência da Eucaristia, São Paulo, Paulinas, 1980, p. 41.
49 Cf. Antoni STANKIEWICZ, “La relevancia canonica de la comunión conyugal”, em René
LATOURELLE (org.), Vaticano II: balance y perspectivas, p. 585-594.
50 Alexandra KOLONTAI, A nova mulher e a moral sexual, São Paulo, Expressão Popular, 2008, p. 32.
51 Cf. Maria Caterina JACOBELLI, Sacerdozio-donna-celibato. Alcune considerazioni antropologiche,
Roma, Borla, 1981, p. 20-24. A autora cita vários textos bíblicos para exemplificar suas afirmações.
52 Cf. ibid., p. 31-46.
53 A respeito disso, veja-se Peter N. STEARNS, História das relações de gênero, São Paulo, Contexto,
2007, p. 115-118.
54 Jacobelli está convencida de que a lei que exclui a mulher do acesso ao ministério ordenado está
fundamentada nesse medo. Na opinião dessa antropóloga não existem razões suficientes, no Segundo
Testamento, para excluí-las da ordenação. A verdadeira razão é cultural e tem muito a ver com a antiga visão
sacral e terrificante da potência da mulher; potência essa que se expressa de maneira particular na sua
sexualidade e, mais particularmente ainda, na sua menstruação (Maria Caterina JACOBELLI, Sacerdozio-
donna-celibato, p. 49-60). Nós também estamos de acordo com a opinião da autora.
55 Cf. Maria Caterina JACOBELLI, Sacerdozio-donna-celibato, p. 48-64.
56 Ibid., p. 88.
57Peter N. STEARNS, História das relações de gênero, p. 118.
58 Acerca dessa questão veja-se Maria do Amparo Tavares MALEVAL, “Representações diabolizadas da
mulher em textos medievais”, em Sérgio Nazar DAVID (org.), As mulheres são o diabo, Rio de Janeiro,
Eduerj, 2004, p. 45-80; Momolina MARCONI, Prelúdio à história das religiões, p. 105-118.
59 Cf. Maria Teresa Porcile SANTISO, A mulher espaço de salvação, São Paulo, Paulus, 1993, p. 248-292.
60 Aldo Natale TERRIN, Antropologia e horizontes do sagrado. Culturas e religiões, São Paulo, Paulus,
2004, p. 139-142.
61 A Igreja Católica abusou do conceito de “prudência”. Originalmente, o termo “prudência” (em grego:
phrónésis; em latim: prudentia) indicava o exercício da mente, da razão, com o objetivo de compreender bem
uma determinada situação ou problema. Na Igreja Católica, ainda hoje, a prudência é entendida como medo de
algo que exige uma fuga, uma escapatória. Ora, a atitude de fugir leva à curiosidade e ao desejo de
experimentar para ver como é que é. A indústria pornográfica simplesmente se apoderou dessa ideia de
prudência, típica da Igreja Católica, para fomentar a obsessão pelo sexo, especialmente pelo sexo da mulher
(cf. Vito MANCUSO, Obbedienza e libertà. Critica e rinnovamento della coscienza Cristiana, Roma, Fazi,
2012, p. 100-108).
104
62 Maria do Amparo Tavares MALEVAL, “Representações diabolizadas da mulher em textos medievais”,
p. 55.
63 Vito MANCUSO, Obbedienza e libertà, p. 168-177. O autor nos lembra de que certas doutrinas
católicas foram definidas a partir do uso da violência e da tortura. Se, ao invés de queimar as pessoas na
fogueira, a “Santa Inquisição” tivesse escutado os argumentos dos condenados e, junto com eles, buscado uma
compreensão sincera e honesta da verdade cristã, muitas doutrinas hoje seriam bem diferentes, e o Evangelho
seria muito mais aceito. A imposição da doutrina, as condenações, os anátemas levaram à terrível crise pela
qual passa a fé cristã hoje no continente europeu. Crise essa que, aos poucos, chega a outras regiões do
mundo. Precisamos aprender a lição e reverter enquanto é tempo essa situação. O Concílio Vaticano II já nos
dizia que “os crentes podem ter tido parte não pequena na gênese do ateísmo, à medida que, pela negligência
na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida
religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da
religião” (Gaudium et Spes, 19). Quase cinquenta anos depois, ainda não fomos capazes de escutar esse apelo
do concílio.
64 Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 96.
65 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma de Teología, II, Parte I-II, Madri, Biblioteca de Autores Cristianos,
1989, 2ª edição, Questões 31 a 34, p. 270-298. Acerca do pensamento de Tomás de Aquino sobre o prazer
veja-se Carlos JOSAPHAT, Ética Mundial, p. 284-288.
66 Carlos JOSAPHAT, Ética Mundial, p. 285. A tese de Tomás de Aquino à qual Josaphat se refere
encontra-se na Suma Teológica, I, questão 98, artigo 2.
67 Carlos JOSAPHAT, Ética Mundial, p. 286-288.
68 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 96-107.
69 Cf. ibid., p. 109-142.
70 Cf. Faustino TEIXEIRA, “O fundamentalismo em tempos de pluralismo religioso”, em Alberto da Silva
MOREIRA, Irene Dias de OLIVEIRA (orgs.), O futuro da religião na sociedade global. Uma perspectiva
multicultural, São Paulo, Paulinas, 2008, p. 69-80.
71 A esse respeito, veja-se Carlos Domínguez MORANO, Crer depois de Freud, p. 171-202.
72 Cf. Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 92-102.
73 Cf. Amedeo CENCINI, A alegria, p. 9-11.
74 Arturo PAOLI, Testemunhas da esperança, p. 12-13.
75 Carlos Domínguez MORANO, Crer depois de Freud, p. 178.
76 Cf. ibid., p. 179-182.
77 De acordo com os costumes da época, a mulher em público deveria cobrir o rosto, ocultar a face e passar
despercebida. Era inadmissível que uma mulher publicamente conversasse sozinha com um homem (cf.
Fátima Maria Carvalho Rocha de MOURA, Maria Madalena. A discípula amada, São Leopoldo, Cebi, 2013,
p. 12-13).
78 Cf. Carlos Domínguez MORANO, Crer depois de Freud, p. 189-194; José Antonio PAGOLA, Jesús, p.
219-280.
79 Carlos CARRETTO, p. 64-125. Aqui p. 125.
80 Pesquisas realizadas na Europa revelaram que os católicos, embora não neguem publicamente a sua
pertença religiosa, na prática já se afastaram por completo da doutrina da Igreja Católica. A situação é tão
grave que já se fala de um “cisma silencioso”, ou seja, de um gradual afastamento e de uma progressiva
divergência do “povo católico” das normas emanadas pelo papa, pelo Vaticano e pelos bispos. A esse respeito,
veja-se Piero CAPPELLI, , São Paulo, Paulus, 2010.
81 Amedeo CENCINI, p. 77-113. Aqui p. 113.
105
IV
AFIRMAÇÕES TEOLÓGICAS
PARA UMA VIDA PRAZEROSA
Sem sensação de prazer, a felicidade é apenas uma ilusão.
(Alexander Lowen)
O longo percurso feito até aqui já nos permite caminhar na direção da conclusão.
Por isso, nesta última parte de nosso trabalho queremos fazer algumas considerações
sobre o que seria uma vida cristã prazerosa, do ponto de vista teológico. Com Paoli,
estamos convencidos de que a energia produzida pelo prazer é de suma importância
para a vitalidade do cristianismo. A repressão do prazer, inclusive do prazer sexual,
serve apenas para criar cristãos fascistas. O cristão fascista é aquele que não confia
no outro, que é violento e autoritário; que vê ignorância e perversidade por toda parte.
O cristão fascista não acredita na maioridade das pessoas e, por isso, sente
necessidade de vigiar sempre os outros. Mas o cristão fascista é, ao mesmo tempo,
bajulador e subserviente diante da autoridade e diante dos poderosos. O
comportamento do cristão fascista é típico da pessoa que não é livre. Porque não é
capaz de amar eroticamente, prazerosamente, o cristão fascista precisa fabricar armas
para se defender. Precisa tornar-se agressivo, violento, cínico, arrogante e explorador
do outro.1
1. Prazer: plenamente divino e plenamente humano
Acreditamos que tenha ficado muito claro que o prazer é algo plenamente divino e
plenamente humano. Mas, para percebermos isso, é necessário descobrirmos na
experiência o sentido ou a essência das coisas, dos fatos e dos acontecimentos.
Muitas vezes o cristianismo se perdeu e continua se perdendo porque se fixa em
doutrinas e normas abstratas que nada têm a ver com a realidade. Porque não parte da
experiência de vida, o cristianismo não fala para ninguém. É uma doutrina abstrata,
sem vida, sem sangue, sem pulsão, sem excitação.
O valor da experiência de vida
Sabemos que a nossa experiência de imagem, de percepção e o que elas significam
determinam o nosso existir. A percepção é a base sobre a qual se constrói a visão da
essência, da realidade, dos fatos assim como eles são. As referências simbólicas são
vitais para o nosso caminhar. A vida consciente ou a tomada de consciência de si
mesmo estão em proporção direta aos símbolos que norteiam o ambiente cultural em
que vivemos. A religião é também o resultado de emoções, de representações e das
manifestações corporais. O significado da nossa existência cristã tem a ver com a
própria experiência concreta que fazemos do cristianismo. Se o cristianismo é
abstrato, reduzido a uma lista de cânones e de artigos de um catecismo, a vida dos
106
cristãos e das cristãs será também abstrata. E isso no sentido de que, na prática, a
teoria será totalmente outra.2
As instâncias religiosas, de modo particular as Igrejas cristãs, com uma visão
idealista, costumam pensar que a disfunção entre a teoria e a prática não existe dentro
delas. Mas, enquanto comunidades de pessoas e instituições históricas, as Igrejas não
escapam desse descompasso, e elas não se darão a conhecer se não forem capazes de
esclarecer bem qual a relação entre sua teoria e sua prática. Sabemos que o
descompasso entre teoria e prática é expressão de uma patologia geral do
comportamento humano. Porém, quando essa patologia se dá no interiorde uma
Igreja, a situação fica ainda mais grave. A teoria pregada por ela não consegue se
refletir na prática, ou seja, no comportamento das pessoas.3
E o mais triste disso é que, de um modo geral, o descompasso entre teoria e prática
se dá por uma atuação do poder que rege essas Igrejas. De fato, o poder religioso
costuma distinguir e desunir a teoria e a prática. E isso se dá não porque haja a
preocupação com o bem das pessoas, mas para servir aos interesses individuais, ao
carreirismo e às vantagens pessoais. No seu exercício de separar teoria e prática, o
poder religioso prescinde do bem comum e se impõe arbitrariamente e
autoritariamente, fazendo prevalecer interesses de classe ou de grupo. No caso da
Igreja Católica, sabe-se que, na maioria das vezes, as coisas são impostas
autoritariamente para defender os interesses do clero, que, lamentavelmente, se
tornou uma classe privilegiada.
Na prática, o poder religioso separa teoria e prática, embora continue afirmando na
teoria a coincidência entre ambas. Assim, um campo como o do prazer, que deveria
se tornar um âmbito de libertação das pessoas, torna-se um espaço de manipulação
dos fiéis, uma espécie de “quebra-molas”, como já foi explicado anteriormente,
colocado a serviço da dominação do clero.4 “A teoria é presente para os outros
aplicarem ou acreditarem. A teoria é fachada social, é justificativa verbal, conceitual,
em si, sem relação perceptível com o mundo dos interesses servidos pela praxe”.5
A superação dessa esquizofrenia eclesiástica só é possível através da aceitação da
realidade e da inserção das Igrejas na existência concreta da vida das pessoas reais.
Dizemos “pessoas reais” porque, muitas vezes, as pessoas que são referenciais para as
normas da hierarquia das Igrejas são indivíduos que vivem abstratamente e
superficialmente. Assim, por exemplo, ao baixarem decretos sobre a sexualidade,
sobre a relação sexual, sobre o prazer, a hierarquia costuma se pautar a partir da
experiência de celibatários ou de casais “beatos”, ligados a movimentos
ultraconservadores, cuja prática concreta é o medo e o pavor do sexo, visto quase
sempre como coisa nojenta a ser evitada sempre que possível.6
Ora, não falando a partir da realidade concreta de pessoas concretas, a hierarquia
das Igrejas monta ficções morais inúteis que não respondem aos problemas reais dos
seus fiéis, mas à necessidade de sobrevivência de um sistema religioso que resiste a
mudanças. Tais leis morais fictícias são vistas como indispensáveis para regular o
caos que reina no mundo e que ameaça a continuidade do sistema religioso. Assim
sendo, tais morais fictícias servem, na verdade, como instrumento de manipulação
das pessoas, visando interesses unilaterais, ou seja, a defesa do sistema clerical ou
107
hierárquico. Por essa razão, essas peças morais fictícias, quando confrontadas com a
realidade nua e crua, quando submetidas à mais simples racionalidade ou à crítica
mais comum, não conseguem se justificar ou mostrar a sua utilidade para o bem dos
seres humanos. Não é, pois, de se estranhar que as pessoas considerem o
distanciamento dessas normas fictícias como autêntica libertação.7
As Igrejas precisam se dar conta do poder da realidade, da vida concreta das
pessoas, se quiserem oferecer propostas que realmente toquem o coração da
humanidade. Se não levarem em conta a realidade, os seres humanos se limitarão ao
puro convencionalismo. Farão algumas coisas apenas aparentemente, para “fazer de
conta” que estão cumprindo as normas. Na prática, porém, farão outra coisa, uma vez
que se darão conta do irrealismo das normas de suas Igrejas. Isso porque, no atual
momento, toda norma para a vida prática, se não passar pelo crivo da realidade da
vida, não será aceita. A apreensão de uma norma passa pelo seu entendimento. Este,
por sua vez, acontecerá somente à medida que houver um teste a partir da realidade
vivida por aqueles e por aquelas que são convidados a colocá-la em prática. Para que
uma norma seja acolhida, a pessoa humana precisa vê-la como algo próprio, como
algo para si. E esse processo só acontece quando a norma proposta considerar a
realidade daqueles e daquelas aos quais se destina.8
A captação da realidade humana como “próprio”, como pessoa, a obrigação como respeito à realidade,
que abre uma estrutura debitória, a necessidade física de adquirir propriedades, assim como de realizar o
ajuste ao mundo justificando a escolha, inclusive a consideração da felicidade como a possibilidade
sempre apropriada, diante da qual não cabe escolha, configuram uma forma, uma estrutura irrenunciável,
que nenhum idealismo ou convencionalismo pode ignorar.9
No caso específico do prazer – tema que estamos analisando – as Igrejas, se
quiserem ser ouvidas, precisam antes de tudo entender que tal experiência faz parte
da estrutura primordial da vida humana, como, aliás, ficou claro desde o início. Em
segundo lugar, precisam se dar conta de que o corpo, a corporalidade, o sexo e a
sexualidade estão relacionados com um projeto de felicidade que toda e qualquer
pessoa humana sempre busca. Em terceiro lugar, precisam ter consciência de que as
orientações para a vivência dessa energia criadora, que é o prazer, não funcionarão se
escolherem a negatividade e o pessimismo. Por fim, se quiserem que suas sugestões
sejam acolhidas, precisam ter sempre presente a realidade das pessoas, tendo presente
inclusive que cada ser humano é único e que as “receitas prontas” não funcionam
nesse caso.10
Ter presente a realidade (a experiência de vida das pessoas) significa compreender
que, entendido como gosto pela vida e como alegria gozosa do viver, o prazer é um
imenso projeto que está presente no coração de cada pessoa, quer ela tenha ou não
consciência disso. Por isso, a educação para o prazer inclui um compromisso de
entender bem o enigma humano, que é extremamente complexo porque envolve
dimensões e situações diversas que mudam de cultura para cultura e de pessoa para
pessoa. Trata-se de harmonizar história e historicidade, ou seja, de relacionar os
costumes e tradições desenvolvidos pelas instituições com a vida concreta das
pessoas que se situam em tempos e espaços bem definidos. O grande pecado das
Igrejas é que elas insistem na história (nas tradições e costumes construídos pelas
108
gerações passadas) e se esquecem dos desdobramentos de tudo isso no tempo que é
vivido hoje pelas atuais gerações.11
Cristianismo: mística prazerosa
O cristianismo precisa, então, reconstruir-se como mística prazerosa. Como
seguimento de Jesus que responde pelo anseio de felicidade que está escrito pelo
próprio Criador no coração da humanidade, no coração de cada homem e de cada
mulher.
Para que seja uma experiência gostosa, o cristianismo terá que se apresentar como
uma grande energia que impulsiona a pessoa a crescer, expandir-se e ir ao encontro
das outras. Não poderá ser um estilo de vida que amarra e que proíbe. Terá que ser
uma experiência de prazer, de paixão, de amor, de dinamismo que envolve amantes.
O cristianismo precisa ser fecundado pelo prazer de viver. Este, por sua vez, precisa
ser fecundado pelo cristianismo.12
O seguimento de Jesus se define como vida de relação com Deus Pai e de amor
entre os irmãos e as irmãs. Porém, este relacionamento com Deus e este amor entre
irmãos e entre irmãs não são uma coisa abstrata, mas se pautam a partir da realidade e
da essência das coisas. Por esse motivo, o cristianismo é a experiência de Deus que
conduz as pessoas a um autêntico processo de humanização, às coisas da terra. Para
se relacionar com o Deus de Jesus, o ser humano precisa revestir-se de profunda
humanidade. Um cristianismo que pretendesse afastar os crentes da condição humana
estaria traindo a sua essência, uma vez que o próprio Jesus decidiu humanizar-se para
realizar o projeto de libertação do Pai (cf. Fl 2,6-8). Isso quer dizer que o Deus de
Jesus só pode ser experimentado na profundidade da condição humana.13
Ora, como visto até aqui, o prazer é uma realidade profundamente humana. Assim
sendo,ele terá que fazer parte do caminho do cristianismo, ou seja, do caminho que
nos conduz ao encontro com o Deus de Jesus. Para se fazer experiência de Deus é
preciso mergulhar profundamente na realidade humana, no cotidiano da vida e em
todas aquelas realidades verdadeiramente humanas. O prazer, o prazer corporal, o
prazer erótico, o prazer sexual fazem parte da realidade da vida humana e do
cotidiano da vida das pessoas. Por esse motivo, também a relação com Deus precisa
estar revestida de muito prazer.14
Estudos têm mostrado que o prazer está na base de um cristianismo autêntico: é a
experiência de alegria, de exultação e de gozo pela vitória de Jesus sobre a morte,
sobre o mal e sobre todas as injustiças (cf. Mt 28,8; Lc 24,11; Jo 20,20). Se faltar o
prazer, o cristianismo permanece ancorado na Sexta-feira santa e não entusiasma a
ninguém. E talvez aqui esteja uma das razões pelas quais o cristianismo, em muitos
lugares, esteja caminhando para a extinção.15 Ao dizermos isso, não estamos
exagerando, mas trabalhando com resultados de pesquisas sérias. Os dados mostram
que as pessoas abandonam cada vez mais as Igrejas que satanizam aspectos humanos,
como é o caso de uma vida prazerosa. Por essa razão, em certos países da Europa, as
Igrejas estão cada vez mais infantis, feminis e senis. Somente crianças e mulheres
idosas suportam uma Igreja desse tipo.16
109
O caminho de recuperação da credibilidade do cristianismo passa pela ruptura
com esse modelo de Igreja que insiste em demonizar tudo aquilo que é genuinamente
humano e, por isso mesmo, profundamente divino. É preciso romper com um tipo de
cristianismo que apresenta o prazer e a vida prazerosa como contrários ao projeto de
Deus. Precisamos desenvolver um tipo de evangelização que não tenha medo de
afirmar que o prazer é portador de uma grande energia que nos conduz a Deus. Não é
mais hora de continuarmos com pregações e afirmações que falem de sublimação,
uma vez que essa palavra serviu quase sempre para induzir as pessoas a uma
repressão da energia vital dos seres humanos. É hora de afirmarmos, sem medo, que o
despertar do prazer leva-nos ao encontro do Deus de Jesus Cristo.17
Não estamos falando aqui de dar evasão a um tipo de prazer que desumaniza. Isso
já ficou bem claro anteriormente. Falamos aqui da urgência do resgate da santidade, a
qual não consiste em separar o divino do humano, mas em afirmar peremptoriamente
que, na encarnação de Jesus, o humano foi totalmente revestido do divino. Ao aceitar
entrar no mundo, abrindo mão da majestade divina e querendo viver de forma
plenamente humana (cf. Fl 2,6-7), Jesus assumiu “um corpo” (cf. Hb 10,5) e excluiu
toda forma de sacrifício desse corpo. Em Jesus, o corpo humano é plenamente
glorificado e vocacionado ao prazer, à alegria e à felicidade. Os holocaustos, os
sacrifícios e todas as coisas e comportamentos que maltratam e sufocam a felicidade
humana estão abolidos e não agradam a Deus (cf. Hb 10,6-8). “Se Deus, a partir da
‘encarnação’, se fundiu e confundiu com tudo o que é verdadeiramente humano, é
lógico afirmar que Deus se funde e se confunde com a experiência humana do deleite
e da alegria.”18
Nessa perspectiva, para recuperar a credibilidade do cristianismo, é preciso
devolver à criação a santidade própria da encarnação de Jesus. Isso significa que, por
causa da encarnação do Filho, todas as realidades humanas estão revestidas de
santidade, ou seja, todas as realidades humanas são boas e profundamente positivas.
Lamentavelmente o próprio cristianismo, por influência do maniqueísmo, retirou de
toda a criação a santidade que lhe era própria. Agora, se quisermos propor um
cristianismo atraente e bonito, precisamos ser mais propositivos e menos proibitivos.
Precisamos afirmar categoricamente que o cristianismo é a religião da alegria, do
prazer, do gozo e da felicidade. As cruzes podem aparecer ao longo da caminhada,
mas não porque Deus deseja o sofrimento para nós humanos, mas porque as nossas
fragilidades, os nossos pecados e as nossas limitações impedem a verdadeira vida
prazerosa.19
Apresentar um cristianismo prazeroso não será uma estratégia para fazer
prosélitos, para voltar a encher as igrejas. Trata-se de revelar a essência do
cristianismo, o qual não nasce da aceitação resignada do sofrimento do Filho de Deus
na Sexta-feira santa, mas da explosão da vida na manhã do domingo da ressurreição.
Um cristianismo que exaltasse os sofrimentos da paixão e não afirmasse e fizesse
prevalecer a exultação da ressurreição seria falso e mentiroso: “se Cristo não
ressuscitou, a nossa pregação é vazia, e vazia também a nossa fé” (1Cor 15,14).
Durante muito tempo, uma vez que excomungava o prazer, a vida prazerosa, o
gozo e a felicidade, o cristianismo negou a ressurreição e se apresentou como uma
110
falsificação do seguimento de Jesus (cf. 1Cor 15,15). Sua pregação se concluía na
Sexta-feira santa, enfatizando desesperadamente um “Senhor morto” que não
conheceu a vitória sobre a morte e sobre toda forma de sacrifício da vida e da
felicidade. Parafraseando Müller, podemos afirmar que, através da encarnação do
Filho, Deus escolheu o prazer como a sua porta de entrada no mundo. E quer que
todos os seus filhos e todas as suas filhas entrem por essa porta. Se, ao invés da porta
do prazer, o cristianismo escolhe a porta do sacrifício, terminará por oprimir a
humanidade com sentimentos de culpa e de desespero. Não será um cristianismo com
asas para voar longe, mas uma religião amputada, medrosa e deprimida.20
Somente o prazer de viver, o prazer de seguir Jesus nos impele para a missão e o
serviço, especialmente para os lugares mais pobres, mais necessitados e mais
sofridos. A ausência do espírito missionário, que deixa abandonadas tantas
comunidades cristãs, revela a falta de alegria e de prazer das pessoas cristãs. Por
alimentarem uma forma de cristianismo deprimente, sem alegria e sem entusiasmo,
os cristãos e as cristãs não se animam, como Jesus, a “descer aos infernos” (cf. 1Pd
3,19-20), ou seja, a ir ao encontro daquelas pessoas que vivem em situação de miséria
e de sofrimento. Somente a alegria da ressurreição, o prazer de viver, nos mobiliza na
direção dos mais necessitados e excluídos. Cristãos deprimidos, que pararam na
Sexta-feira santa, não se animam a ir à missão. O medo de sofrer os mantém fechados
em seus “guetos” igrejeiros. Pode-se, então, concluir que “é quase uma tragédia que
muitas vezes não chegue a ser percebida essa íntima ligação entre Eros e religião,
entre experiência sexual e vivência religiosa, ou mesmo que as duas experiências
sejam entendidas como opostas”.21 É uma tragédia para as Igrejas separar o prazer da
vivência e da profissão de fé.
Cristianismo, prazer e ascese
O que acabamos de dizer revela que o cristianismo, se quiser voltar a ser uma
experiência atrativa, terá que reelaborar o tema e a prática da ascese. Essa última,
entendida como esforço para consolidar a vocação cristã, é de fundamental
importância para o seguimento de Jesus. De fato, o apelo de Deus é sempre dirigido a
pessoas livres e autônomas, as quais, para responder ao chamado divino, precisam
comprometer-se com uma missão específica. Comprometer-se significa afastar de si
mesmo a frouxidão, a lerdeza, a mediocridade, a hipocrisia, a indiferença, o egoísmo
etc. Isso implica rupturas, tomadas de posição, coragem, audácia; coisas que
terminam muitas vezes trazendo sofrimento e dor para aquelas pessoas que querem
levar a sério o seguimento de Jesus. Porém, isso não quer dizer que a ascese cristã
signifique necessariamente e sempre sacrifício, renúncia e aceitação passiva do
sofrimento e da dor.22
Acontece que, durante séculos, o cristianismo relacionou a ascese cristã com a
aceitação passiva do sofrimento e a exclusão total do prazer e de uma vida prazerosa.
Por séculos ele desenvolveu toda uma “teologia do vale de lágrimas”, segundo a qual
o destino do cristão neste mundo não era a felicidade plena, mas o sofrimento. A
felicidade ficava relegada para a vida depois da morte. Isso fez com que,aos poucos,
as pessoas fossem vendo a fé cristã como algo que “desmancha prazeres”. Nessa
111
perspectiva, tudo aquilo que trazia sofrimento, dor e tristeza tinha algo de divino.
Tudo aquilo que levava ao gozo, ao prazer, à alegria e à felicidade era tido como
diabólico. Nesse sentido chegava-se a afirmar a “divinização” do sofrimento, da dor e
da morte.23
A teologia cristã se ocupou mais com o sofrimento do que com a alegria. E se preocupou mais com as
situações duras e penosas da vida do que com aquilo que nos proporciona felicidade, bem-estar e
satisfação. Em boa medida, pode-se garantir que os teólogos se interessaram mais pela morte do que pela
vida [...]. Mais ainda, todos nós sabemos que nas igrejas se fala com frequência da renúncia ao prazer, da
mortificação do bem-estar, da austeridade, do sacrifício, da suportabilidade e da resignação, ao passo que
mal se escuta algo que mova e leve as pessoas a procurar ser felizes, a deleitar-se com tudo aquilo que de
bom Deus pôs no mundo e na vida, desfrutar o prazeroso, o sensível, o corporal.24
O resultado disso foi a geração progressiva de um grande mal-estar, que foi
distanciando as pessoas das Igrejas e do cristianismo. No âmbito da sociedade, foi
fazendo com que os indivíduos transformassem o prazer em ídolo, de modo que a
busca do prazer fosse erigida como meta a ser conquistada de qualquer jeito. Isso se
agrava com a chegada da Modernidade e, mais ainda, com o advento da Pós-
Modernidade. As pessoas não mais aceitam um tipo de religiosidade que apresenta
um Deus profundamente irritado com os que vivem prazerosamente. Dessa forma, as
próprias Igrejas contribuíram para que o efeito de suas pregações fosse exatamente o
contrário: a corrida desenfreada para o prazer e, pior ainda, para o prazer que
desumaniza. Podemos, então, afirmar que o prazer consumista, hoje vendido nos
shoppings, nas revistas pornográficas, nos programas midiáticos, nada mais é do que
o resultado dessa trágica pregação contra o prazer.
Precisamos nos conscientizar de que hoje existem os virtuosos num mundo sem valores. Esses virtuosos,
que exercitaram as virtudes até o heroísmo, deixaram este mundo nas mãos do mal, sem lei e sem ética.
O cristianismo foi muito pouco terreno e, por isso, se tornou tão materialista. Exatamente porque fomos
pouco terrenos é que nos tornamos tão materialistas diante do dinheiro e diante do consumo. Deixamos
nos envolver completamente e aceitamos passivamente uma sociedade materialista, completamente vazia
de valores.25
A Igreja não precisa inventar sofrimento, pois a vida do povo já é extremamente
sofrida. Talvez alguns clérigos e pessoas de vida consagrada, que vivem
confortavelmente em alguns conventos, precisem de uma ascese mais severa. Mas as
pessoas comuns, que diariamente enfrentam a luta pela sobrevivência, não precisam
de mais sofrimento. A vida cotidiana já é mais do que suficiente. Por esse motivo,
mais que aumentar a carga da dor e do sofrimento, o cristianismo, seguindo o
exemplo de Jesus (cf. Mt 11,28-30), precisa contribuir para aliviar e diminuir essa
carga pesada. Isso significa que é preciso rever as pregações e as propostas de
mortificações e de renúncias que ainda hoje são apresentadas em muitas Igrejas.26
Dentro dessa perspectiva é possível afirmar uma perfeita conciliação entre ascese
e prazer. Se olharmos a ascese como superação do medo e como audácia para
enfrentarmos os riscos e os perigos do viver plenamente, então é possível afirmar que
não há contradição entre isso e o prazer. O que assusta as pessoas hoje é aquele tipo
de ascese medrosa, profilática, que tenta a todo custo insistir na prudência, na
segurança, impedindo os seres humanos de se lançarem na aventura de uma vida
112
gostosa e prazerosa.
Quando, porém, a ascese é apresentada como a capacidade de caminhar, de ousar,
de seguir adiante, apesar dos riscos e dos tropeços, as pessoas aceitam o desafio
porque percebem que esse tipo de esforço cristão não tira a possibilidade de viver
intensamente e “gozosamente”. Se a ascese não asfixia, não tira a alegria de viver,
mas, pelo contrário, estimula o risco, a coragem, a ousadia, será sempre bem-vinda e
bem aceita pelas pessoas. Mas se a proposta ascética começa a insistir sobre o perigo
do pecado, sobre a obrigatoriedade de abdicar de toda e qualquer forma prazerosa de
viver, será imediatamente rechaçada, uma vez que as pessoas perceberão que se trata
de uma ascese mórbida que puxa as pessoas para baixo, para a depressão e a tristeza.
Esse tipo de ascese acaba com a alegria de viver e, hoje, causa repugnância. E tal
repugnância é evangélica, uma vez que Jesus em nenhum momento de sua existência
viveu ou pregou algo desse tipo.27
Diante do que acaba de ser exposto, percebe-se a urgência de rever determinados
livros de espiritualidade que ainda circulam por aí e que são difundidos por grupos
fundamentalistas e conservadores cristãos. Precisamos rever a forma como
apresentamos alguns santos e algumas santas da Igreja Católica e até personagens
bíblicos, como é o caso de Jó. Precisamos rever determinados conselhos que ainda
são dados na catequese e nas pregações de padres e de pastores. Precisamos acabar
com certas práticas ascéticas artificiais que não levam em conta a luta diária do povo.
Ora, a ressurreição, a fé na vida eterna, é indispensável para uma visão cristã do sofrimento e do esforço
ascético de paciência e entrega total a Deus. Sem ressurreição só resta a Sexta-feira santa, com a
manifestação de solidariedade de tantos cristãos com o Cristo sofredor, acompanhando a procissão do
Senhor morto, mas sem marcar presença na vigília da ressurreição. Será falha, insuficiência de verdadeira
evangelização. Não é a morte, mas a ressurreição, que tem a última palavra no anúncio!28
Portanto, a recuperação da credibilidade do cristianismo passa necessariamente
pelo anúncio de uma vida prazerosa ainda neste mundo. Não se trata de excluir a
ascese, a postura radical na fidelidade ao seguimento, as indispensáveis rupturas (cf.
Mt 5,29-30), mas de não confundir isso com a eliminação do prazer na vida das
pessoas. Afirmar o valor do prazer é viver a experiência de fé como algo que
proporciona alegria. É testemunhar que a nossa relação com Deus é um profundo
momento de deleite e de felicidade. E é bom que neste testemunho fique bem claro
que essa alegria e essa felicidade não provêm somente das “coisas espirituais”, mas
da fruição normal do dia a dia da vida, dos diversos momentos de prazer que nos são
proporcionados ao longo de nossa existência. Nesse sentido é possível afirmar que o
cristianismo é a religião secularizada no sentido de que, ao anunciar a encarnação do
Verbo de Deus, ele declara boas todas as coisas criadas por Deus e assumidas por
Jesus Cristo. E o prazer entra na relação daquilo que Deus criou e daquilo que foi
assumido por seu Filho.29
A ascese tão necessária para a vida cristã não pode ser confundida com uma
espiritualidade mortificante e mortificadora. A espiritualidade cristã é a
espiritualidade da alegria, não no sentido de que temos que programar a nossa vida
para só vivermos de prazeres e gozos, mas que somos sempre convidados por Deus a
permanecermos abertos a todos os momentos prazerosos que ele, através do nosso
113
próprio viver, nos quer proporcionar. Isso significa também compromisso e luta para
que todas as pessoas humanas tenham o mesmo direito: o direito de ser felizes e de
viver prazerosamente.
Viver para tornar felizes os outros é muito mais duro e exigente do que ser praticante e cumpridor. É
também mais duro e exigente do que ser mortificado ou inclusive levar uma vida intensa de piedade e
oração. Viver para conseguir que os outros se sintam mais felizes por terem nascido é a mesma coisa que
renunciar a ser o centro. Pois é antepor a alegria partilhada à minha alegria pessoal.30
2. Seguir Jesus com prazer
Precisamos redescobrir a alegria de seguir Jesus com prazer (cf. Fl 4,4-6) e a
beleza de um cristianismo prazeroso (cf. Cl 2,16-19; Gl 4,8-11; Jo 2,1-12). Nãopodemos continuar com esse modelo de religiosidade segundo a qual tudo aquilo que
nos agrada desagrada a Deus. Não podemos continuar com uma teologia e uma
espiritualidade que ficam esperando a morte chegar para que tenhamos o prazer e a
felicidade. Precisamos nos dar conta de que, “no âmago da mensagem cristã, estão
presentes de tal modo a felicidade e a bem-aventurança que aceitar e assumir o
projeto cristão é a mesma coisa que aceitar e assumir um projeto de deleite, de
felicidade e de alegria para a vida presente de qualquer pessoa e da humanidade em
seu conjunto”.31
Prazer, discernimento e responsabilidade
Redescobrir que o cristianismo é essencialmente uma vida prazerosa não significa
fazer tudo aquilo que vem em mente; não significa que tudo é permitido. Significa
agir com discernimento e muita responsabilidade. Muitas vezes a busca do prazer e o
prazer em si mesmo são altamente positivos e, como dito antes, representam o âmago
do cristianismo. Porém, em determinadas circunstâncias, certas buscas de prazeres e
certos prazeres podem escandalizar os mais fracos e os mais simples (cf. 1Cor 8,4-
13). Por essa razão, o cristão ou a cristã, pensando nas pessoas que ainda não são
capazes de entender a nossa liberdade (cf. 1Cor 8,7), será capaz de abrir mão do seu
direito, mesmo sabendo que não estaria cometendo nenhum mal em buscar
determinado prazer. Terá como princípio norteador de sua ação o cuidado para não
ferir a consciência fraca de algum irmão ou irmã (cf. 1Cor 8,12-13).
Numa situação como essa, os discípulos e as discípulas de Jesus são chamados a
agir com discernimento, evitando que a sua liberdade signifique escravidão para
aquela pessoa que ainda não é capaz de entender certas coisas. De fato, algumas
pessoas de nossas Igrejas ainda se mantêm apegadas a tradições, costumes e normas
resultantes da interferência do maniqueísmo. Embora sejamos convidados a ajudá-las
a perceberem que o cristianismo é a religião do prazer, precisamos fazer isso de
maneira equilibrada e com muito discernimento para não ferirmos a sensibilidade e a
crença de tais pessoas (cf. 1Cor 10,23-33). Afinal de contas, elas foram informadas e
educadas para a contenção e para o sacrifício, nem sempre conseguem entender e
acolher mudanças bruscas e violentas. Nessa situação, a nossa missão é acolher
aquele que é fraco na fé, que ainda guarda escrúpulos de certas coisas e precisa de
tempo para entender determinadas questões (cf. Rm 14,1-3).
114
Respeitada essa exigência evangélica, precisamos sempre e cada vez mais nos
educar e educar as demais pessoas para a beleza do prazer, da sensualidade, do prazer
sexual, do gozo. Isso porque tais coisas são dignas por si mesmas pelo fato de serem
realidades profundamente humanas. Lamentavelmente, o cristianismo ocidental deu a
si mesmo uma característica dolorosa e penitencial. Mas a fé judaico-cristã, como
ficou demonstrado no capítulo sobre o ensinamento bíblico acerca do prazer, é uma fé
alegre, esperançosa e prazerosa.32
Precisamos superar aquela mentalidade, segundo a qual o cristianismo consiste em
viver sempre sob pressão para contentar a Deus e não cometer nenhum pecado,
nenhum erro, nenhum mal. Viver assim é terrível e não tem nenhuma relação com a
prática de Jesus. Quando se vive assim se vegeta, e a nossa existência se torna
superficial e artificial. É claro que não devemos, a todo custo, viver de fachada,
mascarados e fazendo de conta que vivemos prazerosamente e felizes. Porém, não
podemos também transformar a nossa vida num fracasso e num azedume, pensando
que com isso estamos agradando a Deus.33 “Sem humor, a vida fica triste e tediosa.
Humor não significa simplesmente bom humor. É capacidade de transpor a situação
concreta, as circunstâncias adversas”.34
É hora de recuperarmos, no cristianismo, a dimensão do prazer. Percebermos que
o seguimento de Jesus não exclui de forma alguma o gozo, a festa, o amor, a alegria,
a felicidade e a plena satisfação. No cristianismo, o corpo tem o seu lugar; um lugar
significativo. Isso significa que, de acordo com o Evangelho, a nossa vocação não é a
privação da felicidade e do prazer corporal, mas a exaltação gozosa e gloriosa. E
nesse dinamismo, a nossa corporalidade “torna-se um ponto de encontro e, no ato de
compartilhar, expressa a felicidade da comunhão”.35 Negar isso, negar o direito ao
prazer, é negar a própria essência do cristianismo, o qual não nasce do choro de um
grupo de desesperados que viu um crucificado apodrecer no sepulcro, mas da alegria
retumbante de testemunhas que viram um ressuscitado vencer a dor, a morte, o mal e
toda e qualquer forma de tristeza.
Não podemos negar que, já a partir do período da Patrística (séculos IV-VII),
houve exageros na visão pessimista e negativa do prazer e da sexualidade. Isso,
porém, tem que ser visto no contexto ambiental. Os cristãos tinham que se posicionar
diante dos exageros do ambiente pagão e tinham que defender o cristianismo de
certas acusações. A visão nem sempre era pessimista, e pode-se notar, na maioria dos
escritos cristãos desse período, certo equilíbrio quanto ao assunto. Embora se deva
admitir que certas tendências tiveram forte impacto nas comunidades cristãs
primitivas. Na maioria das vezes, os escritores cristãos do período da Patrística,
querendo combater certos erros, terminaram por provocar certas polêmicas. E no
ambiente polêmico, há enrijecimento e fechamento em posições rigoristas. Muitas
vezes, esse rigorismo terminou se impondo e prevalecendo até os dias de hoje.36
Exemplo disso é o caso de Tertuliano, escritor cristão, leigo, que viveu mais ou
menos entre 160 a 220 d.C. Esse autor, em seus escritos, tende a considerar o prazer,
o prazer sexual, as relações conjugais, como algo repugnante. Foi muito pessimista
com relação ao casamento. Vimos antes como Agostinho vai além e afirma que o
pecado original maculou o prazer e o ato conjugal, os quais vêm sempre misturados
115
com o mal, embora, em sua opinião, o matrimônio atenue este mal.37 Esses e outros
autores cristãos acreditavam que quem se priva do casamento age melhor, e quem, no
casamento, evita sempre que pode a relação sexual, age ainda melhor. Jerônimo,
outro autor cristão, que viveu mais ou menos entre 347 e 420 d.C., tradutor da Bíblia
para o latim, considerava o prazer, especialmente o prazer sexual, um verdadeiro
estorvo. Tal concepção levou à restrição do prazer, de modo particular o prazer
sexual. Chegou-se a proibir a relação sexual na noite anterior à celebração eucarística,
durante a quaresma e no domingo.38
Um aspecto muito importante em que aparece o influxo extracristão é na avaliação do prazer que está
inerente ao comportamento sexual. Ao longo da história da moral cristã, perdurou este mal-estar
provocado pelo fato de não se saber encarar perfeitamente o prazer dentro de uma concepção integral da
sexualidade. Desde a concepção agostiniana do prazer como um mal unicamente justificável pela desculpa
da procriação, a solução do problema recebeu um cunho negativo que daí para cá não mais perdeu. É certo
que não têm faltado teólogos que procuram o modo de integrar o prazer no conjunto harmonioso do
comportamento sexual, mas a doutrina comum tem sido negativa a tal propósito. Basta pensar que
somente no começo do século XX os moralistas entraram em acordo sobre a não iliceidade da busca do
prazer moderado entre esposos fora do ato conjugal. Recorde-se igualmente a dificuldade que tem havido
em conseguir ver integrados harmoniosamente o amor espiritual e o ato carnal, consequência evidente do
dualismo helênico e das tendências neoplatônicas.39
Prazer ecologicamente correto
Conclui-se, diante de tal situação, que o discernimento e a responsabilidade nesse
campo não se reduzem a apenas evitar escandalizar os mais fracos, ou seja, aquelas
pessoas que se sentiriam incomodadas com a nossa liberdade diante do prazer. Agir
com discernimento e com responsabilidade significa também assumir, como cristão
ou como cristã, a tarefa de reeducar as pessoas. Na realização dessa tarefa oumissão,
convém ter sempre presente que a Bíblia não trata do prazer de forma obsessiva. Não
procurar entrar em muitos detalhes e minúcias. No Segundo Testamento, a questão é
vista de forma bem generalizada. Às vezes, certas normas e prescrições fazem parte
de catálogos de vícios e de virtudes que os autores neotestamentários herdaram do
judaísmo tardio. Este, por sua vez, foi influenciado pelo ambiente helenista que,
como vimos antes, marcou a Palestina nos últimos séculos antes de Cristo.40
Dessa forma, somos convidados a buscar e a desfrutar de um prazer
“ecologicamente correto”.41 Isso significa que precisamos olhar os ensinamentos
exagerados da Patrística dentro de um contexto cultural diferente do nosso, uma vez
que os cristãos e escritores daquele período não dispunham dos conhecimentos
científicos que temos hoje sobre o prazer. Nesse sentido, eles cometeram sérios erros
científicos hoje inaceitáveis. Continuar a pensar como eles seria um contrassenso;
seria agir de maneira ecologicamente incorreta, uma vez que já dispomos de
suficientes informações acerca do assunto. Além disso, autores como Agostinho
transferiram para a questão do prazer experiências pessoais às vezes sofridas e
dramáticas. Por esse motivo, é indispensável submeter tais ensinamentos a uma
crítica hermenêutica para purificá-los dos excessos e para buscarmos a essência da
mensagem cristã sobre o assunto.42
Hoje, ao falarmos de temas como o prazer, temos que considerar quanto afirmou o
Vaticano II acerca da legítima autonomia das realidades terrestres. Segundo esse
116
concílio, “as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o
homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando”. Essa autonomia
legítima, “além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo”, é algo que está
“inteiramente de acordo com a vontade do Criador”. Tal autonomia significa que
“todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o
homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte”.
Por esse motivo, “a investigação metódica em todos os campos do saber, quando
levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais,
nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem
no mesmo Deus”.43
Essa afirmação do Concílio Vaticano II nos autoriza a rever a visão pessimista
acerca do prazer. Não podemos continuar afirmando a negatividade de realidades tão
bonitas e tão significativas, as quais são boas e bonitas por uma disposição do
Criador. Por essa razão, somos convidados a acolher a contribuição dos diversos
campos da ciência, de modo particular as pesquisas feitas no âmbito da Psicologia e
da Neurociência. Essas ciências, como, aliás, ficou evidente no primeiro capítulo
deste trabalho, nos ajudam a entender que o prazer é regido pelo córtex cerebral e não
pela vontade e pela razão. É verdade que a vontade e a razão podem “direcionar” a
finalidade do prazer, mas é preciso entender que o cérebro humano, por meio do
sistema nervoso central, é quem dirige o prazer. Isso significa que o prazer não é
apenas uma função fisiológica, resultante do funcionamento de glândulas, mas uma
atividade psicológica, um fenômeno psíquico. Nesse sentido, é importante não
esquecer que, na sua origem, podem estar aspectos extrafisiológicos, mais do que
elementos físicos e corporais.44
É, pois, deplorável que certos setores de determinadas Igrejas continuem pregando
contra o prazer e demonizando a sua busca e a sua consecução, sem ter presente as
descobertas científicas realizadas nesse campo. Como seguidores de Jesus, não
podemos desconectar o prazer do Criador e da sua criação, pois se fizermos isso
corremos o risco de transferir o problema para a indústria do prazer, que saberá
utilizá-lo muito bem para ganhar dinheiro, explorando as pessoas. Porém, chegou o
momento de, com o Concílio Vaticano II, reconhecermos com humildade o valor e o
significado das últimas descobertas científicas, pois, quando feitas com honestidade e
seriedade, são conduzidas também pelas mãos de Deus. É hora de reconhecer os
avanços científicos que nos ajudam a rever por completo a nossa concepção de prazer
e lamentar que alguns cristãos e algumas cristãs ainda não sejam capazes de
reconhecer a legítima autonomia das realidades terrestres. Lamentar que, com isso,
tais pessoas cristãs alimentem controvérsias e disputas inúteis, que não ajudam a
difundir o “evangelho” do prazer.45
1 Cf. Arturo PAOLI, Il presente non basta a nessuno, Assis, Cittadella, 1978, p. 69-74, 179-185.
2 Acerca da importância da experiência, da realidade e da percepção na vida das pessoas veja-se Maurice
MERLEAU-PONTY, Ciências do Homem e Fenomenologia, São Paulo, Saraiva, 1973, p. 19-56.
3 Cf. Hubert LEPARGNEUR, O descompasso da teoria com a prática: uma indagação nas raízes da
117
moral, Petrópolis, Vozes, 1979, p. 33-45.
4 Cf. ibid., p. 53-54.
5 Ibid., p. 13. Para boa parte do clero, o que é pregado por eles não vale para eles, vale somente para o
povo, especialmente para o povo dos pobres, uma vez que os ricos, com seu dinheiro e poder, sempre
conseguem furar o cerco montado pela pregação dos padres. Ou seja, “na prática a teoria é outra” (ibid., p.
52).
6 Tempos atrás conversávamos com algumas pessoas pertencentes a um movimento católico conhecido por
seu conservadorismo. No vaivém da conversa, uma delas falou de “casais consagrados”. Quisemos saber o
que o movimento entendia com essa expressão. Dissemos para aquelas pessoas que, para nós, a consagração
de um casal se dá mediante os sacramentos do batismo e do matrimônio. As pessoas discordaram, mas não
conseguiam nos explicar do que se tratava. Depois de muita insistência, conseguimos descobrir que, para
aquele movimento, o “casal consagrado” é aquele que consegue se segurar, só fazendo sexo quando não tem
mais jeito.
7 Acerca da montagem de “normas fictícias inúteis” por parte das instituições, veja-se Adela CORTINA,
Ética sem moral, São Paulo, Martins Fontes, 2010, p. 9-24.
8 Cf. ibid., p. 57-63.
9 Ibid., p. 62.
10 O grande problema é que as Igrejas passaram a tratar o prazer como obsceno, como diabólico. E, ao
fazer isso, ligaram o corpo humano à paixão e ao sofrimento, adiando o gozo para a eternidade. No âmbito do
prazer fica proibido transgredir. Deve-se apenas sofrer e esperar por uma vida gozosa depois da morte, pois
querer antecipar esse gozo é pecado e a transgressão da proibição leva à condenação (cf. Umberto
GALIMBERTI, Rastros do Sagrado, p. 155-156).
11 Cf. Carlos JOSAPHAT, Ética Mundial, p. 258-261.
12 Cf. Anselm GRÜN, Mistica ed Eros, Piacenza, Berti, 2000, p. 5-10.
13 Cf. Umberto GALIMBERTI, Rastros do Sagrado, p. 127-138; Elias WOLFF, “Humanismo e religião”,
em Fábio Régio BENTO (org.), Cristianismo, humanismo e democracia, São Paulo, Paulus, 2005, p. 213-248.
14 Cf. Anselm GRÜN, Mistica ed Eros, p. 11-18.
15 Cf. Andrés Torres QUEIRUGA, Fim do cristianismo pré-moderno. Desafio para um novo horizonte,
São Paulo, Paulus, 2003.
16 Cf. Piero CAPPELLI, O cisma silencioso, p. 160-166; Ana Márcia Guilhermina de JESUS, José Lisboa
Moreira de OLIVEIRA, Saindo do recinto sagrado. Mística para cristãs e cristãos inconformados, Brasília,
Ser, 2011.
17 Cf. Anselm GRÜN, Mistica ed Eros, p. 18-32.
18 José M. CASTILLO, Espiritualidade para insatisfeitos, p. 65.
19 Cf. Wunibald MÜLLER, Deixar-se tocar pelo sagrado, Petrópolis, Vozes, 2004, p. 69-74.
20 Cf. ibid., p. 74-79. Convém ressaltar que “a porta estreita”, que leva à vida e da qual fala Jesus (cf. Mt
7,13-14), não é necessariamente a exclusão de uma vida prazerosa. A TEB (p. 1870) relembra que,
provavelmente, se trate de uma alusão ao tema das duas vias, muito cara à literatura sapiencial (cf. Dt 30,15-
20). A porta estreita é uma forma sapiencial de mostrar a necessidade de opções sérias na vida, ou seja, a
necessidade de não ficar “em cima do muro” diante de certas situações. É preciso sempre escolher a vida (cf.
Dt 30,19).
21 Wunibald MÜLLER,Deixar-se tocar pelo sagrado, p. 81.
22 A respeito do significado cristão de ascese veja-se José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Na órbita de
Deus, p. 57-66.
23 Acerca dessa questão, veja-se José M. CASTILLO, Espiritualidade para insatisfeitos, p. 49-71.
24 Ibid., p. 49.
25 Arturo PAOLI, La gioia di essere liberi, Pádua, Messaggero, 2002, p. 19. Grifo nosso.
118
26 Cf. Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, p. 15-19.
27 Cf. ibid., p. 20-27.
28 Ibid., p. 32.
29 Cf. José M. CASTILLO, Espiritualidade para insatisfeitos, p. 63-68.
30 Ibid., p. 70. Os grifos são do autor.
31 Ibid., p. 75-76.
32 Cf. Marcial MAÇANEIRO, Mística e Erótica, p. 110-111.
33 Anselm GRÜN, Cinquenta anjos para a alma, São Paulo, Loyola, 2002, p. 27-75.
34 Ibid., p. 119.
35 Eduardo López AZPITARTE, Ética sexual, p. 16.
36 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 67-76.
37 No Tratado contra Fausto (15,7) Agostinho chega a afirmar que se não fossem os filhos, os esposos
seriam vergonhosos amantes, as esposas, verdadeiras prostitutas, os leitos conjugais, camas de bordéis, e os
sogros, verdadeiros rufiões (cf. Carlos González VALLÉS, Querida Igreja, p. 105).
38 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 77-88.
39 Ibid., p. 87-88.
40 Cf. ibid., p. 59.
41 Usamos aqui o termo “ecologia” no sentido de opção pela vida e por uma vida criativa e dinâmica. Isso
significa que se, por um lado, não podemos agir instintivamente, cegamente, buscando o prazer a todo custo,
por outro, temos que acolher o processo evolutivo da vida, com suas mudanças e transições. Esses
“desdobramentos” criativos e dinâmicos nos mostram que a existência é complexidade e criatividade. Por isso
não podemos simplificá-la e reduzi-la a determinados códigos e normas que, por terem sido elaborados em
contextos históricos e culturais bem definidos, podem caducar com o tempo. Mesmo os códigos canônicos. A
esse respeito, veja-se Jelson OLIVEIRA, Wilton BORGES, Ética de Gaia. Ensaios de ética socioambiental,
São Paulo, Paulus, 2008, p. 61-69.
42 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 88-89.
43 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 36.
44 Cf. Marciano VIDAL, Moral do Amor e da Sexualidade, p. 142-182.
45 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 36.
119
CONCLUSÃO
Não me falte o licor.
(Ct 7,3)
Nosso percurso está chegando ao fim. Durante a travessia, procuramos mostrar
como o prazer é algo conatural ao ser humano criado à imagem e semelhança de
Deus. Tivemos a oportunidade de conhecer a mensagem bíblica a esse respeito.
Vimos que a Bíblia considera o prazer como algo positivo, mesmo alertando para o
perigo de uma modalidade de prazer que pode levar à desumanização. Em seguida
fizemos uma rápida análise sobre a forma como o tema do prazer foi tratado ao longo
dos dois mil anos de cristianismo. Constatamos, com tristeza, que nem sempre o tema
foi considerado numa perspectiva bíblica, alimentando pessimismo e trazendo muito
sofrimento, especialmente para as pessoas mais simples. A conta mais cara foi paga
pelas mulheres, consideradas, por muito tempo, sedutoras e perigosas. Por fim,
fizemos uma reflexão teológica sobre uma vida prazerosa, destacando a necessidade
de recuperarmos o ensinamento bíblico sobre o assunto e a perspectiva do Vaticano
II.
Ao concluirmos nossas considerações teológicas sobre o prazer, insistimos na
necessidade de que as Igrejas deixem a pretensão de serem sempre controladoras e
proprietárias das pessoas. Essa metodologia não funcionou, mas, pelo contrário,
produziu o efeito que não se queria. A rigidez, a excomunhão, a inquisição e os
anátemas só serviram para distanciar as pessoas do cristianismo. A violência brutal
com a qual as Igrejas – e de modo particular a Igreja Católica Romana – impuseram
seus dogmas à humanidade terminou por levá-la ao outro extremo. Isso porque, onde
prevalece a lei inflexível, Deus é completamente afastado. Ao substituírem o
mandamento de Deus por leis caprichosas, os homens de Igreja anularam a Palavra de
Deus (cf. Mc 7,8.13).
Onde existe norma, onde existe lei, não há Deus, mas mundo. A lei garante a legibilidade do mundo e
precisamente por isso suprime o mistério que está além de qualquer leitura possível. Quando a face de
Deus se torna legível, Deus já abandonou a cena, que logo passa a ser ocupada por todos os que, em nome
de Deus, vivenciam a história como paz e guerra, como política e cultura, como moral e comportamento,
fechados num presente que, exatamente porque não sai de si mesmo, é desabitado por Deus.1
Galimberti nos alerta para o fato de que, ao se tornar “cristandade”, o cristianismo
se perdeu e estimulou o laicismo, ou seja, um estilo de vida agnóstica, longe dos
valores cristãos. Ao tentar comprimir Deus dentro dos limites de certas normas
rígidas, o cristianismo abriu espaço para a disjunção, para a cisão e para a irrupção
daquilo que pretendia combater.2 Foi o que aconteceu com a questão do prazer. A
rigidez eclesiástica foi o terreno apropriado para o crescimento da indústria
pornográfica do prazer.
Por essa razão, só resta um único caminho: repensar essa metodologia pessimista e
negatória e buscar uma pedagogia mais propositiva. Mas para que isso aconteça é
120
fundamental repensar por completo a imagem de Deus que herdamos do dualismo e
do maniqueísmo. As Igrejas precisam parar de legislar e cuidar mais da formação da
consciência crítica das pessoas, pois, como nos diz Galimberti, a pretensão de legislar
em nome de Deus transforma esse mesmo Deus em um tirano.
Se há uma possibilidade para o cristianismo recuperar uma relação com o sagrado, essa possibilidade
passa pela renúncia, por parte do cristianismo, a legislar na esfera moral, porque não há mensurabilidade
entre o saber humano e o saber divino, e, portanto, não se pode comprimir o juízo de Deus nas regras com
que os homens organizaram a sua razão e elaboraram as suas morais. Deus está além do verdadeiro e do
falso, e igualmente do bem e do mal. O temor de Deus protege essa diferença impossível de preencher e
teme por Deus sempre que se tenta reduzir a imperscrutabilidade do seu juízo às regras da moral.3
Nessa questão e em outras semelhantes, as Igrejas precisam se dar conta de que a
“lei divina” nos é comunicada através da consciência, a qual, de acordo com o projeto
do Criador, tem a possibilidade do conhecimento moral.4 A consciência é o chamado
absoluto de Deus, que impele o ser humano a praticar o bem. É verdade que, na
citação apenas mencionada, o Vaticano II reconhece a possibilidade real da
infidelidade à consciência, seja por ignorância ou por descuido na busca da verdade.
Porém, os fatos atuais mostram que a imposição, a proibição e o autoritarismo não
resolveram o problema. Por isso, só nos resta o caminho da educação para a
consciência crítica, de modo que as pessoas, sensibilizadas para a necessidade da
escuta da própria consciência, sejam capazes de assumir posturas honestas, sérias,
justas e éticas.
Isso quer dizer que o ser humano é capaz de buscar e de encontrar as soluções para
as diversas questões existenciais. Embora não se exclua a importância das mediações,
inclusive das orientações da própria Igreja, é preciso dizer que o Criador dotou a
pessoa humana da capacidade de conhecer e decidir o que é corretamente melhor para
ela mesma e para os outros. Por esse motivo não se pode tratar as pessoas como se
elas fossem incapazes de saber o que fazer diante de determinadas situações. Em
questões morais, precisamos evitar tratar as pessoas de forma infantilizada. A
tendência atual a estabelecer normas excessivas em torno de determinadas questões
morais denota a incapacidade de certos setores da Igreja Católica Romana de
perceber a mudança de perspectiva apontada pelo Concílio Vaticano II. Ao invés de
educar os fiéis para a fidelidade à própria consciência, a Igreja Romana e também
outras Igrejas insistem em continuar emanando leis caducas que as pessoas, na
maioria das vezes, rejeitam como contráriasao Evangelho, a partir da própria
consciência.5
A formação da consciência é mediada pela fé e pela razão, as quais levam à
inteligência moral. Isso quer dizer que o crente, individualmente ou em grupo, à luz
da fé com a qual crê e da razão, é capaz de conhecer a verdade e de agir a partir dessa
verdade e da liberdade. Numa situação de conflito, na qual é chamada a tomar
posição, a pessoa, seguindo a sua fé de forma inteligente e livre, é capaz de descobrir
as melhores soluções para o conflito diante do qual se encontra.6
Isso significa que a pessoa humana tem todo o direito de dispor de si mesma, de
sua história e de sua realidade. No caso da pessoa cristã, ela tem o direito de, a partir
de sua fé em Jesus Cristo, orientar a sua existência conforme os ditames de sua
121
própria consciência. E a missão da Igreja não é determinar por onde ela deve
caminhar, mas apenas ajudá-la a perceber os apelos de sua consciência. E isso não se
faz com anátemas e proibições, mas com uma catequese séria e profunda, coisa que
infelizmente ainda falta na Igreja Católica Romana e na maioria absoluta das outras
Igrejas.
No caso da Igreja Católica Romana, a catequese é infantil e fragmentária. Fica
naquelas coisas simples e elementares da primeira comunhão. É difícil encontrar uma
diocese ou uma paróquia com um projeto catequético sério para a formação de
cristãos adultos, cristãos capazes de decidir de forma consciente e responsável sobre
o que fazer diante de certas situações. E como o ato de seguir os ditames da própria
consciência supõe atenção à Palavra e a outras mediações presentes na comunidade e
na história, os cristãos pouco educados na fé terminam por optar pelo que os outros
dizem ou pelo que mais lhe convém. E num mundo onde a propaganda, o
consumismo e o comércio ditam as normas, as pessoas ficam perdidas e, ao invés de
seguir o chamado divino que está dentro delas, terminam por fazer aquilo que a mídia
e a propaganda de consumo ditam e impõem.7
Portanto, é hora de mudarmos tudo isso, e não de impedirmos que as pessoas
gozem a vida ao longo da existência, ao lado de quem elas amam (cf. Ec 9,9). Faz
parte de nossa vocação humana e cristã viver alegremente, se deliciando com as
coisas boas da vida, saboreando uma boa comida, um bom vinho, um copo de cerveja
bem gelada, admirando os contornos das ancas da mulher amada (cf. Ct 7,2),
acariciando o corpo do homem amado (cf. Ct 7,13). Faz parte de nossa vocação viver
intensamente o prazer da contemplação de uma flor que desabrocha (cf. Ct 7,13), da
onda do mar que bate nas pedras, da água que cai numa cachoeira. O prazer do
encontro, do trabalho, do serviço ao próximo, da prática de um esporte preferido e de
tantas outras coisas boas e bonitas que o Criador nos oferece diariamente e ao longo
de toda a nossa existência. Nada disso é pecado, nada disso é desumano. Desumano
mesmo é não amar, não curtir a vida com intensidade, vivermos fechados no medo,
obcecados pelo pecado (cf. 1Jo 4,7-21). Não podemos permitir que em nossa vida
“falte o licor” (cf. Ct 7,3), o vinho da alegria, o prazer de viver. Se isso viesse a
acontecer, a nossa existência estaria bem distante daquilo que foi o sonho de Deus
para a humanidade.
1 Umberto GALIMBERTI, Rastros do Sagrado, p. 103-104. O grifo é nosso.
2 Cf. ibid., p. 101-102.
3 Ibid., p. 31. Grifos do autor.
4 “A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja
voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se
realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos
demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida
individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a reta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos
estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objetivas da moralidade”
(CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 16).
5 Acerca dessas questões, veja-se Josef FUCHS, “Conciliación de las declaraciones conciliares sobre la
122
moral”, em René LATOURELLE (org.), Vaticano II: balance y perspectivas, p. 765-778.
6 Cf. Klaus DEMMER, “Cristología, Antropología, Teología moral. Expectativas para la historia de las
consecuencias de la Optatam totius 16”, em ibid., p. 780-783.
7 Cf. ibid., p. 784-788.
123
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