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TEORIA e PRÁTICA da FORMAÇÃO do LEITOR leitura e literatura na sala de aula Lena Lois L834t Lois, Lena. Teoria e prática da formação do leitor : leitura e literatura na sala de aula / Lena Lois. – Porto Alegre : Artmed, 2010. 151 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-363-2297-1 1. Leitura – Técnicas. 2. Formação de leitores. 3. Educação. I. Título. CDU 028.1 Catalogação na publicação: Renata de Souza Borges CRB-10/1922 leitura e leitura da literatura4 O aprendizado da leitura é diferente de um trabalho com literatura. O aprendizado da leitura é um processo normal e esperado dentro do de- senvolvimento infantil. Em princípio, todos possuem capacidade para de- cifrar o código escrito, sendo papel da escola organizar e sistematizar esse ensino. Trabalhar a literatura é tomá-la como um conteúdo, portanto, algo que possui um caminho estabelecido pela regra e pela norma. Parte das dificuldades na aproximação ao texto literário ocorre em virtude do isola- mento da técnica à cultura. Em outras palavras, ensinar a leitura como técnica é importante para o aprendizado do código e da sua função social, entretanto não assegura o prazer no encontro com o texto literário. Por que ler? Para que ler? E o que ler? Ao mesmo tempo em que o estudante procura responder a essas perguntas e convive com as imposi- ções de conteúdos, currículo e o acelerado tempo de aprendizado da es- cola, ele escuta sobre a importância do gostar de ler e do prazer que se deve ter em ler literatura. Confuso com essas demandas, ele pula de um texto, tentando dar conta de responder às suas perguntas. Por que ler? Num mundo tão informatizado, com apelos visuais tão interessantes e respostas tão imediatas, onde encontrar motivação para ler, um “trabalho” mais árduo que irá exigir do estudante um tempo maior de dedicação e um exercício de pensamento crítico? Está mais do que provado que o que enreda o estudante na direção do saber, antes do conteúdo, é quem lhe leva esse conteúdo, ou seja, o professor. Todo conteúdo vem depois do professor. Rubem Alves defende que o professor deveria se apresentar como um “pastor da alegria” – consi- derando que todo conhecimento deveria ser acompanhado de uma dose de prazer e alegria, “era, de fato, difícil amar as disciplinas representadas por rostos e vozes que não queriam ser amados” (Alves, 1994, p.16). Todas essas reflexões remetem aos primeiros encontros informais com a palavra (cantigas e contos). O saber que se formava, por trás da- queles contatos com a leitura da literatura, contribuía para o desenvolvi- mento da criança e a fazia “pensar o mundo”. A lógica dos acontecimentos faz pensar que isso deveria continuar nesse caminho: prazer, descobertas, conhecimento e saber. Tudo isso tendo, na leitura, seu ponto de partida. Mas não é isso que se revela. Ao entrar na escola, a leitura tende a mudar de roupagem. Gratuidade e leveza se perdem, dando espaço a metodologias, técnicas e cobranças. Sem a motivação do prazer, abando- nam-se o interesse e a curiosidade. O prejuízo pela perda do interesse e da curiosidade assume propor- ções amplificadas em todas as áreas de conhecimento. Se não compreen- demos o que pede um problema matemático, não o desenvolveremos, mesmo que saibamos executar os cálculos. O professor que sinaliza para a aprendizagem de seus conteúdos, através das descobertas, tem a ga- rantia de um estudante envolvido com todos os projetos pedagógicos. Por outro lado, se o que está em jogo é um professor, cuja relação com o saber não possui o sabor necessário, o estudante que se formará estará próximo do estudante da repetição, aquele que só memoriza textos e re- gras para a sua respectiva reprodução nas avaliações. A pergunta “Para que ler?” poderia ser substituída por “Para quem ler?”. Se a partir de agora, passamos a acreditar que é na figura do educador que se encontra o sabor pelo conhecimento, então o estudante já tem a quem de- volver seu crescimento e suas descobertas. Uma vez ensinado “o caminho das pedras”, o estudante se converterá em leitor e pesquisador e terá imenso prazer em presentear o professor (modelo inicial) com suas descobertas. O que ler? Essa, talvez, seja a mais delicada das três porque remete às escolhas e aos planejamentos do corpo docente. Em qualquer área de co- nhecimento essa decisão fica nas mãos do professor. O que é justo: ele sabe do assunto; ele prevê os textos necessários; ele é quem conduz a sala de aula. Alguém TEM que dar o primeiro passo nas escolhas da leitura. Entretanto, o percurso do aprendizado, qualquer que seja, solicita mais do que o básico. Pede que o professor abra espaço para que o estu- dante traga novas leituras e questione o conteúdo – nenhuma verdade é irrefutável. A história da ciência e da humanidade ensina isso: saberes são dinâmicos e conhecimentos são mutáveis, basta que alguém apresen- te uma nova “leitura” para o mesmo evento. Teoria e prática da formação do leitor 37 38 Lena Lois A trilha do conteúdo pode já estar marcada pelo professor, mas são os atalhos, ou os percursos mais longos que fazem ampliar todo nível de co- nhecimento. Ser flexível à participação dos estudantes na escolha da leitura, dar opções e fazer votações, mostra o nível de respeito que se tem sobre a bagagem de seus ouvintes e revela que, mesmo na posição de professor, vo- cê também não esgotou as leituras que deve fazer sobre aquele assunto. Como ressalva, gostaria de dizer que pôr isso em prática significa cor- rer riscos: risco de mais trabalho; risco de reformulações no planejamento; risco de sair do fio condutor; risco de não ter todas as respostas (e ter que buscá-las com os estudantes); risco de sair do óbvio e risco de conseguir es- tudantes mais questionadores e mais apaixonados pela disciplina. literAturA, linGuAGem, eScOlA e eScritA A expressão “crise da leitura”, tão escutada nos meios educacionais e familiares, remonta a origens bem mais anteriores do que se pode ima- ginar. A leitura faz parte de um todo educacional que, desde a coloniza- ção, deixou uma marca na formação cultural do cidadão brasileiro: a da precariedade e do improviso. Num primeiro momento, a corte portuguesa exigia, como forma de manter o controle, que os caminhos daquele que desejasse seguir os es- tudos passasse pelas decisões dos que estavam no poder. Assim, os elei- tos para esse lugar eram poucos e as escolas eram, necessariamente, as religiosas (jesuítas). Mesmo já sendo uma história conhecida por todos, é importante que se repita essa realidade para que se possa compreender o porquê de tantas lacunas atuais nas competências da educação. Não que esse quadro não tenha sofrido alterações, ou que o governo não te- nha se apercebido dessa realidade, mas é preciso revisar a imensa “bola de neve” que até hoje se tenta diminuir e conter. Após quase 40 anos de conflitos ideológicos quanto aos rumos que deveria tomar a educação, houve, entre as décadas de 1930 e 1940, um desejo de renovação: escolas públicas para atender à população de baixa renda e capacitação de professores que pudessem atender a essa demanda imediata. Acontece que esse reformismo da urgência não trouxe resultados efetivos. Os professores apresentaram uma relação com um ensino ocupado em repetir padrões e, visivelmente, desprepa- rado culturalmente. (Aliás, a distância entre o grupo docente e a cultu- ra aumenta a cada dia.) Teoria e prática da formação do leitor 39 Por volta da década de 1970, o problema com a educação persistia, e a formação do professor, a essa altura, já se encontrava no topo da pre- cariedade, como aponta Regina Zilberman: A solução foi trocar o docente por engrenagens que atuassem em seu lugar: uma metodologia que acreditasse em mecanismos autorreguláveis, como a cibernética, que, na mesma época, fazia sua estreia na educação nacional; uma fachada de modernização, fornecida pela mesma metodologia, para encobrir a improvisação; e a adoção de técnicas didáticas que, por funcio- narem sozinhas,podiam dispensar a interferência – e esconder as falhas – do professor ... (Zilberman, 1991, p. 74-75) Não é proposta, aqui, negar o uso da metodologia e da didática – sabemos que são orientadores do trabalho do professor – mas revelar suas limitações e suas consequências: os diálogos internos na escola fica- vam escassos e o aprendizado, comprometido. O professor, encontrava- se preso a uma linguagem pré-fabricada para esconder sua defasagem cul tural; o estudante, por sua vez, trazia uma bagagem popular e coti- diana que ficava sem ter onde colocar: ele não era escutado em sua rea- lidade. Resultado: falta de comunicação, interação e relação. Justo a pri- meira condição para se compreender a linguagem e a leitura em sua for- ma mais ampla. Compreender o panorama era confuso. Agir sobre uma realidade na proporção territorial do Brasil, mais confuso ainda. As propostas conti- nuavam na direção de algum acerto, alguma mudança substancial. Após tentativas na capacitação do professor, era hora de se pensar no estudante. Foco escolhido (e muito necessário!!): a linguagem. Lingua gem enquanto expressão. As tendências levavam ao estudo da gramática: saber escrever a própria língua e se comunicar bem através dela. Isso denunciou outros problemas: A tendência mais marcante é a de reforçar o ensino da gramática nor mativa. A maior parte dos cursos propõe-se a revisar conteúdos de sintaxe e morfologia, o que é revelador dos problemas vividos pelo ensino da Lín gua Portuguesa. Seus conteúdos, uma vez que dizem respeito à estrutura gramatical da língua, são, de certo modo, imutáveis. Portanto, supõe-se que, uma vez apreendidos, não serão mais esquecidos, porque não apenas não se modificam, como con- sistem na condição de comunicação por parte de cada indivíduo. A necessidade, segundo os projetos, de revisá-los indica então que não fo- ram introjetados durante a escolarização do professor. E, se assim se passa, 40 Lena Lois é porque o professor foi diplomado apressadamente – logo, foi objeto de uma escolarização de menor qualidade, como a destinada às camadas mais inferio- rizadas da pirâmide social – ou ele domina padrões de comunicação que a es- cola despreza, mas que se mantêm vigentes, legando, por dividir o professor entre o que sabe e não pode ensinar e o que não sabe e deve ensinar, uma contradição que solapa e impede a virtual eficiência do primeiro grau. [...[ Porém, outros projetos perguntam-se se é esta a função do primeiro grau: ensinar a norma gramatical sob sua forma descritiva, em detrimento da produção de linguagem. Por isso, propõem outro caminho: ainda que de sejando transmitir e fixar as regras da língua portuguesa, substitui-se o ensino normativo pelo produtivo, entendido este como a aprendizagem, suscitada pelo estudo do texto, da utilização adequada do código linguís ti- co. (Zilberman, 1991, p. 78-79) Partir da linguagem como saída para uma modificação do perfil e da competência dos estudantes é, sem dúvida, a base para todas as ou- tras áreas. E, embora existam divergências sobre qual aspecto deve ser relevante no papel da escola, surge um ponto comum, até então ignora- do: pensar em escrita é pensar em leitura. A linguagem deve ser desenvolvida pela escola e as ações pedagógi- cas são de extrema importância na alfabetização, mesmo reconhecendo que a criança é exposta ao universo da escrita, antes da sua formaliza- ção. A escrita como representação de domínio da língua, ou como apro- priação gramatical, isoladamente, não trará grande benefício ao cresci- mento do estudante, se considerarmos que a língua é um halo de muitas implicações e que, só em parceria com a leitura, o estudante poderá re- velar resultados precisos e verdadeiros. Já sabemos um pouco sobre que percursos são feitos sobre os textos em sala de aula. Abordamos o reducionismo dos livros didáticos e a frag- mentação de textos literários que privam o leitor de um contato maior com a fonte originária desse material, a fonte que o posiciona na arte, acima de tudo. Desde o tempo da cartilha (e aqui estou considerando que esse tem- po já passou), o ensino das letras passeava por textos que priorizavam elementos da escrita enquanto decodificação, desconsiderando o interes- se da criança (Quem não se lembra de “Ivo vê a uva”?). Surgiu, então, a literatura infantil como possibilidade para associar texto, aprendizado da leitura e formação do leitor. No entanto, para se realizar esse trabalho, a marcha de arranque seria uma metodologia específica para o uso da lite- ratura na sala de aula, mas ainda não possuímos um traço pedagógico Teoria e prática da formação do leitor 41 que una a arte ao contexto escolar formal. Desenha-se aí uma proposta inovadora sem prejuízos para nenhuma das categorias. Durante o processo de alfabetização, a escola deve ter uma visão ul- terior da relação que o leitor estabelecerá com o texto – seja literário, in- formativo ou didático. É nesse sentido que marcamos a literatura como um texto fundante para o sujeito e de extrema serventia na sedimenta- ção de uma proposta alfabetizadora, visto que ele traz elementos fami- liares e curiosos, que despertam o interesse do leitor iniciante. A literatu- ra traz da realidade os conteúdos que dizem respeito ao homem, ao mes- mo tempo em que os transforma, potencialmente. Além disso, a estética própria desse tipo de texto joga com as pala- vras, possui licenças gramaticais que saem do rigor e fazem o texto cami- nhar em direção à fantasia, ao imaginário, ao faz de conta e às chaves alegóricas que desembocam na decifração do enigma. E de jogos e ima- ginações as crianças entendem muito bem. O terreno, então, fica propí- cio para um resultado favorável à leitura e ao leitor. Quem, assim, não se disponibilizaria ao aprendizado de uma língua para ter mais opções de voo e pilotar, sozinho alguma aeronave perdida em busca de novas aven- turas? O código e sua decifração entram por acréscimo, numa relação maior: a do prazer pela história e pelo lúdico. O livro de literatura, diferente do livro pedagógico, brinca, ainda, com outras possibilidades de leitura: as imagens e as variações das letras (tamanho e forma). Elas também comunicam e apelam por uma partici- pação maior do leitor do que aquela solicitada por um texto moldado para alfabetizar num só peso e numa só medida. Tudo parece encaixado para que leitura, literatura e aprendizado se entrelacem, possibilitando a formação de um leitor integral, envolvido nessa grande manifestação cultural e artística. E tudo, de fato, comunga para que isso ocorra. Mas os fatores de formação do corpo docente que foram citados e todo o percurso de aproximação desse grupo com a lite- ratura, enquanto arte, não favorece para que esse trabalho aconteça da maneira como deveria: com leveza e prazer pelo texto escrito. O encontro com a literatura, enquanto texto que possibilita uma série de links com o aprendizado da leitura, abre diversos caminhos pa- ra o leitor. O primeiro deles é o do reconhecimento de si na voz do per- sonagem. A isso se segue a diversão, a brincadeira e o lúdico. Trata-se de um texto que assume a sua condição de aberto, natureza que não pa ra de se multiplicar e que se oferece ao leitor como fonte de prazer, acima de tudo. 42 Lena Lois Que fique clara, então, a prioridade de se fazer desse uso um uso de prazer. Para ler literatura não é necessário uma atividade ao final do li- vro. Ainda que a atividade possa fluir e ela pareça livre, transgressora e criativa, é fundamental que ela não venha antes do desejo de viver a his- tória, pura e simplesmente. O texto da literatura se mostra disponível, alimento para ser rapida- mente absorvido pela alma, antes mesmo de o ser pelo cognitivo. Segu- rá-lo com as duas mãos, com força, para que se garanta extrair dele tudo, absolutamente tudo, é perder sua essência. Sua diferença funda- mental está exatamente, no fato de sempre restar um pedaço para ser consumido, numa nova leitura que se faça,ou numa interpretação que surja, vinda de um “leitor flutuante”, atento à força da identificação. corpo e desejo do leitor o saber através dos sentidos 5 cOrpO e OrGAniSmO O corpo tem alguém como recheio Arnaldo Antunes Não há como negar que o início das descobertas se dá através do corpo. Desde que o homem se vê como humano, toda fala e toda investiga- ção sobre si, é, na verdade, uma fala sobre seu corpo. Em sua origem, a palavra corpo traz alguns significados: garbhas (sânscrito) – embrião; karpós (grego) – fruto, semente, envoltura; corpus (latim) – tecido de mem bros, envoltura da alma, embrião do espírito. Pode-se perceber que, ainda que haja variações em torno das defini- ções, todas elas consideram o corpo como algo que possui um “mistério a mais”. Estava claro que havia algo no homem que o impulsionava para a vida. Seu corpo possuía diferenças em relação ao corpo do outro. O que move esse corpo, afinal? Perguntas como essas fizeram surgir noções como a dicotomia corpo/alma. Precisava se descobrir o que “recheava” o corpo e o punha em movimento na vida e com a vida. Compreender o corpo é, desde sempre, compreender o homem. Os caminhos foram muitos e a jornada já data de muitos séculos. A ciência, numa busca incessante de definições e descobertas, se especiali- zava e se fragmentava para especificar seu objeto de estudo. Diferentes investigações teóricas se ofereciam como possibilidades para novas leitu- ras e novas polêmicas sobre esses estudos. Na área da educação, surge 44 Lena Lois um nome que localiza, no corpo, um agente importante para a constru- ção de conhecimentos: Jean Piaget. Piaget formula a teoria da equilibração para apresentar o percurso feito pela criança em seu desenvolvimento cognitivo e reconhecimento do mundo. Tal teoria defende que o organismo possui um processo au- torregulador, dinâmico e contínuo que, através da assimilação e acomo- dação de novos desafios e novos conceitos, consegue se superar em dire- ção a uma equilibração progressiva. A isso, Piaget acrescenta a experiência em si, o ato e o movimento do corpo no espaço. A criança, empiricamente, descobre os objetos, atua sobre eles e percebe sua capacidade de transformação. O corpo da crian- ça é um agente ativo nos primeiros passos em direção ao saber. O cogni- tivo, o conhecimento, se desenvolve a partir de uma interação e inter- venção no mundo. Quem nunca viu uma criança entre 1 e 2 anos, levando tudo à boca, mexendo em tudo e, até mesmo, mordendo o outro (nessa hora não se sabe quem chora mais, se a vítima ou o quem mordeu)?. Entrar em con- tato com essa faixa etária é assistir, de perto, ao que diz a teoria piage- tiana. Os sucessivos movimentos de erro e acerto vão se somando aos su- cessos encorajadores para novos desafios. E começamos a perceber que ela (a criança) ajusta sua compreensão e vai percebendo o quanto pode avançar. E, de novo, erra, acerta, erra, acerta, até conseguir um encaixe, um degrau, um pulo diferente, etc. Seu corpo dialoga em gestos e apro- priações, enquanto a palavra não entra em cena para fazer seu teatro. O diálogo com o corpo é muito importante, sobretudo porque é um dos primeiros canais de comunicação na relação com o outro – a amamenta- ção, o acalanto, a brincadeira que situa o sujeito em ser possuidor de um corpo que pode interagir com o mundo. A definição de corpo, pelo menos a que será tratada aqui, não pode ser confundida com a definição de organismo. São diferentes. Por orga- nismo, entende-se um conjunto de órgãos fisiológicos para um funciona- mento harmônico. Corpo é a soma dos aspectos orgânicos aos aspectos afetivos e emocionais. Dentro do organismo existem vísceras; dentro do corpo, existe um sujeito que desenha nesse organismo reflexos de sua vida afetiva e emocional. A gênesis, na Bíblia, começa o relato da existência do mundo, desta forma: “No começo era verbo e o verbo se fez carne”. A psicanálise acredita que o corpo é feito de palavras e, mesmo que o processo de desenvolvimento cognitivo preveja um percurso semelhan- Teoria e prática da formação do leitor 45 te a todos os indivíduos, a marca de cada um se fará presente nas dife- rentes relações que serão estabelecidas com o mundo. Essa marca vai sendo construída à medida em que palavras vão sendo cunhadas em nosso corpo. O outro (aquele que cuida) vai apresentando ao pequeno indivíduo, recém-chegado ao mundo, palavras (carregadas de afeto), que signifi- cam sua existência. Lembrem-se do recém-nascido: seus primeiros cho- ros chegam aos pais como uma necessidade a ser satisfeita. Podemos di- zer que nesse momento há uma experiência de dor. O corpo do bebê dói e alerta a exigência de uma atitude para que ele volte a seu estado de re- pouso e satisfação. Nesse momento, o recém-nascido é pura sensação. O adulto, tateando a situação, com grande desejo de compreender o seu choro para acalmá-lo, toma atitudes, seguidas de nomeações: “é fome”; “é sono”; “é cólica”. Tudo na tentativa de dar um nome a essa angústia que se revela pelo corpo. Assim, desde sempre, o sujeito é cercado pela palavra para fazer existir cada sensação. O corpo explora o mundo para se apropriar dos espaços e avançar em suas possibilidades. As palavras nomeiam a propriedade e garantem seu registro de posse. Quando aponta para um copo de água, a criança consegue matar sua sede, mas quando pede um copo de água, ela afirma sua posição e toma posse de sua condição de sujeito da linguagem. A primeira coisa que recebemos do mundo, daquele que está exter- no a nós, antes mesmo de sair da barriga da mãe, é uma palavra, um nome. O nome próprio. Ainda que existam milhares de Marias e cente- nas de milhares de Josés, nenhuma Maria e nenhum José se repete. Suas histórias marcam seus desejos. Suas sensações ajuízam suas leituras. O mundo se apresentará a cada um com matizes e contrastes próprios. Rubem Alves se utiliza da história do príncipe sapo para argumen- tar sobre a importância da palavra na formação de nosso corpo: Era uma vez um lindo príncipe por quem todas as moças se apaixonavam. Por ele também se apaixonou uma bruxa horrenda que o pediu em casa- mento. O príncipe nem ligou e a bruxa ficou muito brava. “Se não vai casar comigo, não vai se casar com ninguém mais!’ Olhou fundo nos olhos dele e disse: ‘Você vai virar um sapo!” Ao ouvir esta palavra o príncipe sentiu uma estremeção. Teve medo. Acreditou. E ele virou aquilo que a palavra de fei- tiço tinha dito. Sapo. Virou um sapo. [...] O príncipe ficou enfeitiçado. Mas feitiço – assim nos ensinaram na escola – é coisa que não existe. Só acontece nas estórias da carochinha. 46 Lena Lois Engano. Feitiço acontece sim. A estória diz a verdade. Feitiço: o que é? Feitiço é quando uma palavra entra no corpo e o transfor- ma. O príncipe ficou possuído pela palavra que a bruxa falou. Seu corpo fi- cou igual à palavra. A estória do príncipe que virou sapo é a nossa própria estória. Desde que nascemos, continuamente, palavras nos vão sendo ditas. Elas entram no nosso corpo, e ele vai se transformando. Virando uma outra coisa, diferen- te da que era. Educação é isto: o processo pelo qual os nossos corpos vão ficando iguais às palavras que nos ensinam. (Alves, 1994, p. 32-33) Recebo, na clínica, muitas mães preocupadas com seus filhos, mas que não se dão conta das palavras que emitem sobre eles. No decorrer de um psicodiagnóstico, é necessário que se trace a história daquela crian ça desde sua gestação até seu momento presente. Fazemos pergun- tas. Usamos palavras. Pescamos palavras ditas. E tais palavras denun- ciam desejos e marcam o lugar e o espaço que esse filho ocupa. Algumas frases guardo até hoje: “Vim aqui porque acho que ele não tem mais jeito.” “Ele é totalmente impossível.” “Eu não espero mais nada dele.” “Acho que ele não é normal, mesmo.” Essas frases são “feitiços”, usando a metáfora de Alves. A psicanálise acredita num desejo, cuja compreensãomuitas vezes não alcançamos porque faz parte da própria constituição desses pais, antes mesmo de eles estarem nesse lugar. Eles, assim como todos os sujeitos, viveram em seus corpos a realidade da palavra. Mas Rubem Alves continua dizendo que os professores também são “feiticeiros” da palavra e, por isso, possuem papel fundamental no pro- cesso de aprendizagem do sujeito. Não só a aprendizagem da técnica, mas, principalmente, a aprendizagem de si mesmo. Aquela que desperta o príncipe por trás do sapo enfeitiçado. Quantas vezes, não desejamos (ainda que em silêncio) que aquela criança complicada, barulhenta e pouco participativa não compareça à aula? É normal. É humano. Nós também possuímos nossas limitações para compreender o outro. E é necessário que reconheçamos a existência desses sentimentos para elaborá-los e resolvê-los. O que não podemos deixar acontecer é que eles virem rótulos cumulativos no estudante, im- pedindo que ele acredite em outras verdades sobre si. Teoria e prática da formação do leitor 47 pOrque O cOrpO é feitO de pAlAvrAS É no lugar onde a palavra faz amor com o corpo que começam os mundos... Rubem Alves Existe uma “lei” que rege a nossa relação com nosso corpo: só pen- samos sobre ele, se algo não estiver funcionando bem. Não nos alimenta- mos pensando no processo de digestão ou nas funções que o estômago está executando naquele momento. Só percebemos sua presença, quan- do ele dói. Assim também acontece com os nossos sentidos. Visão, audi- ção, tato, paladar e olfato estão presentes em todos os instantes de nos- sas vidas, mas não percebemos as construções leitoras que eles desempe- nham no mundo. Quando quis começar este capítulo trazendo o sensório-motor para ex- plicar como começamos a conhecer o mundo através de nosso corpo, tinha um propósito maior do que pensar sobre o cognitivo ou aquisição de conhe- cimentos. Aliás, tinha o interesse, exatamente, de tratar de questões que ex- trapolam esses campos: queria falar sobre conhecer o mundo. O primeiro contato com as coisas e as experiências do mundo passa pelos sentidos. Eles encaminham leituras, estabelecem conexões com memórias de fatos ou vivências passadas e acumulam teorias e sensa- ções. A percepção vai sendo desenvolvida e os sentidos parecem ficar cada vez mais sensibilizados a colher tudo que estiver em torno. A razão desse percurso é a emoção: nos emocionar significa nos mover em direção a algo. Quem se move não é a cognição – essa vem depois – mas o afeto que, assaltado pela emoção da descoberta, impulsiona o indivíduo. Crianças entendem melhor disso que os adultos. A psicanálise dimensiona tal evento, defendendo que a essência do homem é impulsiva: é dessa forma que ele tende a se lançar no mundo e nas descobertas. Entretanto, sua con- dição sociocultural lhe impõe regras e leis que freiam essas vicissitudes para viabilizar seu convívio com o outro. Isso fez dele mais que um sujeito bioló- gico, mas um sujeito da cultura e da linguagem. O saber que se desenvolve pelos sentidos é um saber que se man- tém num lugar privilegiado da memória por vir de uma experiência afe- tiva. É o saber que se constrói junto a um diálogo interior e consegue respeitar todas as vozes que escuta como sinais que significam sempre novas possibilidades para ler o mundo. É o saber de cor, ou seja, de cora- ção (essa expressão deixa de ser poética, quando as escolas passaram a acreditar na repetição como forma de aprendizado). 48 Lena Lois Por que não nos esquecemos de alguns contos de fada? Por que não nos esquecemos de alguns cuidados especiais, trazidos em momentos de tristeza? Nossa memória se conecta com as emoções, e lembrar-se delas é quase como reviver todas as sensações. Os nossos sentidos têm memó- ria. Quem nunca sentiu, por exemplo, no cheiro do café das 18h, uma lembrança da família e das conversas à mesa, ou no cheiro da terra mo- lhada, que entra pela janela da cidade grande, a imagem de uma infân- cia cercada de quintais e plantações, ou mesmo num perfume de alguém que passou perto, a lembrança de um amigo de horas difíceis, cujo chei- ro era o mesmo. Quem ainda não percebeu quão perto está a memória e os sentidos tem os olhos fechados para um dos grandes aprendizados de leitura que constitui parte do acervo poético de nossa biblioteca pessoal. Quando considero que o saber e o conhecimento transitam pelos sen- tidos e que cada sujeito falará em nome do que seus sentidos viveram, es- tou priorizando nele sua competência para ser leitor do mundo. Ler é dar liberdade aos sentidos e escutar suas interpretações, reconhecendo que, antes de qualquer tipo de sociabilização, há um percurso que emociona só depois ele. reflete, organiza o pensamento, racionaliza e divulga. A exces- siva preocupação com o conhecimento pode atrofiar a dinâmica constru- ção do saber. É importante que, junto a todos os conhecimentos técnicos, o saber sobre o mundo pelos sentidos, pela emoção, ainda seja reconheci- do como parte do sujeito. Caso contrário, sua sensibilidade poderá estar aprisionada e seu envolvimento com o saber, comprometido. Não se trata de intuição ou qualquer coisa transcendente. Falo de sentidos, de desejo, de emoção – elementos que precisam ser retomados se quisermos pensar nos estudantes e nos leitores com um olhar sistêmi- co e não fragmentado. Os sentidos estão sempre prontos para apreender porque a essência do homem não é o pensamento, mas o desejo. E, na criança, a curiosidade pelo novo e pelas descobertas é algo que pulsa constantemente. Todas as construções realizadas pelo homem são fruto de suas expe- riências, de seus movimentos e, acima de tudo, de seu desejo para preen- cher as repostas sobre sua existência. Sob a ótica psicanalítica, o desejo que aqui se coloca não é aquele que se esgota ao fim de uma realização, mas que se renova em si mesmo. Isso evidencia que sua condição principal é a de continuar existindo: o desejo do homem é continuar desejando. E continuar desejando é fator condicionante para sua existência. Com o estudante não é diferente. O movimento que ele faz com a brincadeira é o mesmo que ele faz com a escola, com os conhecimentos Teoria e prática da formação do leitor 49 e com a leitura. Quando isso não acontece é importante que não se loca- lize apenas no estudante uma suposta “falta de interesse”, como se ela nascesse dele, gratuitamente. E por que, enfim, se associam o desejo, o saber e o corpo? Porque o corpo, como vimos, é a primeira ponte entre o bebê e o mundo e é lá que ele guardou sua primeira experiência de prazer. Seu corpo é o princípio que marca, concretamente, sua existência. dO cOrpO AO livrO A atração física do homem pelo livro começa com a curiosidade pelo objeto – pegar, explorar, cheirar (nada melhor que cheiro de livro novo!) e termina com as possibilidades de unir isso à projeção de nossos desejos naqueles personagens e naquela história. É erótica essa relação. O erótico que se explicita aqui não se refere ao genital, mas ao pra- zer de pôr em prática todos os sentidos, e encontrar neles algumas res- postas para as sucessivas perguntas inerentes aos sujeitos. Leitura, desejo e prazer se fundem e “erótica é a alma”, já dizia Adélia Prado. O grau de “erotismo” de uma alma vai depender do quanto ela tenha se permitido acreditar nas leituras feitas pelos seus sentidos e de todas as pa- lavras vindas de fora que ratificaram ou retificaram suas formas de compre- ender o mundo. O sujeito, assim, alça voos maiores ou menores em relação às suas verdades. Verdades vistas aqui com o mesmo olhar de Drummond: A porta da verdade estava aberta, Mas só deixava passar Meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda verdade, Porque a meia pessoa que entrava Só trazia o perfil de meia verdade E sua segunda metade Voltava igualmente como meio perfil E os meios perfis não coincidiam Arrebentaram a porta e derrubaram a porta Chegaram a um lugar luminoso Onde a verdade esplendia seus fogos. Eradividida em metades Diferentes uma da outra Chegou-se a discutir qual a metade mais bela 50 Lena Lois E carecia optar. E cada um optou conforme Seus caprichos, sua ilusão, sua miopia. (Drummond, 1982, p.1005) Carece optar, como nos ensina o poeta maior, sobre a verdade que melhor dialogue com nossos desejos, porque não há, em princípio, outro critério para julgamento do objeto. O mundo se apresenta enquanto acontecimentos e solicita ser significado a todo instante. A leitura e a interpretação dos fatos colocam o sujeito frente a fren- te com suas reflexões e sua individualidade. Pode parecer um discurso óbvio, entretanto, o ritmo da modernidade vem impedindo que notemos que todo conhecimento nasce de uma leitura de mundo, previamente feita pelos sentidos e pelo corpo. A ciência e a epistemologia não criam verdades, apenas analisam, fragmentam, descrevem e explicam o existente. Mas, nem mesmo esse objeto definido encontra-se numa posição soberana em relação ao olhar do sujeito. Aliás, o que hoje é ciência um dia foi alvo de um olhar curio- so e de uma leitura empírica. Portanto ao desprezar as verdades indivi- duais, as sensações, o aprendizado pelos sentidos e pelo desejo, o profes- sor poderá estar limitando o desenvolvimento da sensibilidade de seu es- tudante e subestimando sua capacidade criadora. As voltas que damos por diversos assuntos parecem desviar-nos do foco principal, a leitura, mas evidencia, por outro lado, a amplitude do horizonte que esse tema provoca. A leitura se sobrepõe ao estudo porque o estudo é a formalização de um universo que vem sendo lido pela hu- manidade; a leitura é o que conduz o homem a pensar sobre. Experimente deixar um grupo de estudantes explorando uma sala, cheia de estímulos - livros, objetos de arte, equipamentos técnicos, etc. – e não lhe peça nada, além de observarem tudo que está à sua volta. Aguarde por um tempo predeterminado. Ao final, peça que cada um fale sobre o que percebeu na sala (suas impressões, seus receios, suas estra- nhezas, etc.). Você poderá verificar uma série de leituras feitas pelos sen- tidos, ampliadas pelo repertório de cada um e concluídas a partir das lei- turas que foram feitas. Nessa mesma experiência, se, após a observação do espaço, você pedir que eles elejam e escrevam sobre algum dos obje- tos – de preferência, o que sentiu quando encontrou um determinado objeto – você poderá verificar que relações eles estabelecem com seus pensamentos e sua respectiva escrita. Queixas do tipo “não sei fazer isso”, “é difícil” ou “não entendi” se- rão inevitáveis, por vários motivos: o primeiro deles diz respeito à falta Teoria e prática da formação do leitor 51 de intimidade com a escrita – as palavras sempre lhe foram apresentadas como um dom para poucos privilegiados; segundo, porque nunca lhe foi dado o direito de escrever sobre o que pensa – suas reflexões ou seus sentidos sobre os temas abordados erma menos privilegiados que todas as regras gramaticais presentes nesse processo. Por último (e considero esse o motivo mais importante), porque toda escrita é, de alguma forma, autobiográfica – escrever sobre qualquer tema, de certa forma, é escre- ver sobre si mesmo. Por isso, escrever não é uma tarefa fácil. Considerar esses aspectos existentes no mundo do leitor poderá apro- ximar o professor da realidade do estudante. Por outro lado, minimizar to- das as implicações pessoais do ato de escrever é perder um elo de grande cumplicidade que poderia ser construído entre o professor e o aluno. Es- crever é difícil, sim. Sobretudo, quando a história da educação cristalizou alguns conceitos e relações com a aprendizagem, ainda vigentes. Se esse respeito for dado, gradativamente, o estudante voltará a con siderar seus sentidos, os diálogos que trava consigo mesmo e com o mundo e poderá se sentir mais seguro para se arriscar mais no terreno do conhecimento formalizado pela escola, sem perder sua capacidade lei tora empírica – importante para seu crescimento pessoal. Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.