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I IMIIIIIIIIIIIIIIIII~IIIIII
131317
LUCIEN FEBVRE
oproblema da
incredulidade no século XVI
A religião de Rabelais
Tradução
Maria Lúcia Machado
Tradução dos trechos em latim
José Eduardo dos Santos
Lohner
_ltriMl_
COMPANHIA DAS LETRAS
Copyríght © 2003 by Editions A1binMichel
Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação Carlos Orummond de Andrade da
Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores e Européias.
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d' Aíde à Ia Publication Carlos Orummond de Andrade de I'Am-
bassade de France au Brésil, bénéficie du soutien du Ministêre françaís des Affaires Etrangêres et Européennes.
Título original
Le problêrne de J'incroyance au XVI' siêcle: Ia religion de Rabelais
Capa
Rita da Costa Aguiar
Foto de capa
Peixe grande come peixe pequeno, Pie ter Bruegel. Gravura, 22,9 x 29,8 em. British Museum, Londres
Preparação
Maysa Monção
Célia Euvaldo
Índice remissivo
Luciano Marchiori
Revisão
Arlete Sousa
Ana Luiza Couto
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil)
Jebvre, Lucien. 1878-1956
O problema da incredulidade DO século XVI : a religião de
Rabelaís I Lucíen Febvre ; tradução Maria Lúcia Machado; tradução
dos trechos em latim José Eduardo dos Santos Lohner - São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
Título original: Le problême de I'incroyance au XVI· slêcle : Ia
relígion de Rabelais
ISBN 978-85-359-1328-6
I. Ensaios franceses - Século 16 2. França . História religiosa -
Século 163. Rabelais, Prançois, (3 1494-15534. RabeJais, Prançois.
ca 1494-l553 -Crítica e interpretação I. Titulo. 11.Título: A religião
de Rabelais
08·08990 CDD-843.3
índice para catálogo sistemático:
1. Rabelais, Prançois : Apreciação crítica 843.3
[2009J
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
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04532-002 - São Paulo - Sp
Telefone (11) 3707 3500
Fax (11) 3707 3501
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Sumário
Apresentação - Hilário Franco ]unior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Introdução geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
PARTE I - RABELAlS, ATEÍSTA? 37
Nota liminar: O problema do método. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
LIVRO PRIMEIRO: O TESTEMUNHO DOS CONTEMPORÂNEOS . . . . 45
1. Os bons camaradas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
2. Teólogos e controversistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
3. Conclusão: Testemunhos e maneiras de pensar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
LIVRO SEGUNDO: ESCÂNDALOS E QUEIXAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . 145
1. As infantilidades de Rabelais 147
2. A carta de Gargântua e a imortalidade da alma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
3. A ressurreição de Epistemon e o milagre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
PARTE 11 - CRENÇA OU INCREDULIDADE 213
LIVRO PRIMEIRO: O CRISTIANISMO DE RABELAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
1. O credo dos gigantes .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2I7
2. Rabelais, a Reforma e Lutero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
3. Rabelais, Erasmo e a filosofia do Cristo 267
LIVRO SEGUNDO: OSLIMITES DA INCREDULIDADE NO SÉCULOXVI . . . . . . . . . . . . . . 289
1. Influências da religião sobre a vida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291
2. Os apoios da irreligião: a filosofia? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307
3. Os apoios da irreligião: as ciências? 328
4. Os apoios da irreligião: o ocultismo? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360
5. Conclusão: Um século que quer acreditar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386
Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 421
Notas............................................................... 451
lndice remissivo 499
9
Apresentação
Em 1929, como se sabe, os franceses Lucien Febvre e Marc Bloch criaram
uma nova corrente historiográfica com a correspondente tribuna, a revista Anna-
les d'histoire économique et sociale (alargada para um terceiro campo e rebatizada,
em 1946, Annales: économies, sociétés, civilisations). A idéia era combater a história
meramente descritiva dos positivistas, que de certa forma limitavam-se a parafra-
sear os documentos de maneira acrítica. Febvre e Bloch propunham, de seu lado,
novas reflexões metodológicas: a conscientização de que os documentos não exis-
tem per se e sim por serem definidos enquanto tal pelos historiadores; a instaura-
ção de uma escrita da história que se faça a partir de questões concretas colocadas
à documentação; o reconhecimento de que tais questões dirigidas ao passado par-
tem do presente e são, portanto, inevitavelmente influenciadas por ele; a adoção
de instrumentos intelectuais de áreas afins para a construção dessa nova história
ampliada e arejada. A síntese disso tudo seria feita por Febvre na sua aula inaugu-
ral no Collêge de France, em 1933, com a fórmula" se não há problema, há apenas
o vazio", transformada em 1941 na célebre expressão "história-problema". Nessa
linha, a Encyclopédie Française, cuja presidência assume em 1935, foi concebida
como "uma enciclopédia de problemas, não de referências".
Toda essa reflexão seria exercitada por Lucien Febvre (1878-1956) não ape-
nas nos seus livros - e sobretudo nesse O problema da incredulidade no século XVI:
A religião de Rabelais - mas ainda numa grande quantidade de estimulantes rese-
nhas, notas, artigos de crítica historiográfica.' Textos cujo objetivo era dialogar,
levantar questões, abrir possibilidades. Tratava-se de leituras para instigar novos
escritos e fazer avançar a historiografia. Aquelas pequenas peças foram centrais
na obra de Febvre, construída muitas vezes a partir de resenhas, como acontece
com o livro que o leitor tem em mãos, surgido para discutir a Introdução feita
pelo historiador Abel Lefranc aos textos de François Rabelais (1483-1553), a quem
taxa de adepto da "fé racionalista". A intenção de Febvre foi, ao criticar tal defini-
ção, mostrar os problemas de se aplicar o conceito de incredulidade ao século XVI.
Para ele, a história das idéias deve estar articulada à história social, e é preciso
levar em conta as condições da produção das idéias e as modalidades da sua difu-
são e recepção. À história positivista, centrada nos fatos, na política e no indiví-
duo, Febvre contrapunha uma história das interações, do social, do coletivo. Se
Rabelais parece à primeira vista ocupar a maior parte das páginas do livro, não se
deve esquecer que ele surge apenas no subtítulo. O verdadeiro objeto de estudo
é a incredulidade.
Febvre examina Rabelais não por ele mesmo, mas como veículo para alcan-
çar o pensamento da época. O indivíduo é janela para a sociedade. A sociedade é
influenciada por certos indivíduos, sobretudo no "domínio do espírito". O que o
historiador pretende alcançar é a "maneira de querer, sentir, pensar e crer" da
época. Rabelais era ateu? Para desmontar a resposta afirmativa de Lefranc, Febvre
demonstra que o outillage mental do século XVI não tinha o conceito de ateísmo, e
que falar nele em relação àquela época é anacronismo. É verdade que Rabelais nas
suas obras descrevesituações e tece comentários que nos parecem irreverentes,
mas que a rigor apenas manifestavam, na expressão de Mikhail Bakhtin, a "cons-
ciência paródica" do cristianismo medieval e renascentista e sua prática, tanto laica
quanto clerical, de satirizar cerimônias e textos religiosos quando de certas festas.'
Rabelais, ex-franciscano ainda impregnado de religião - como todo o Ocidente
do século XVI -, não poderia negar a existência dela, que lhe parecia evidente e
natural. Como a maior parte dos humanistas, seu intento era reformar a Igreja,
não destruir a religião. Era para preservar esta, aliás, que seria preciso renovar
aquela. Não se tratava, portanto, de ateísmo, e sim de crítica a uma certa vivência
do cristianismo. Como já havia sido feita algumas vezes nos séculos anteriores,
embora não nos mesmos moldes.
Assim, reagindo contra a tendência a modernizar excessivamente o século
IO
XVI, Febvre chama a atenção - outro mérito de seu trabalho - para o fato de a
Renascença não ter sido urna ruptura, não ter iluminado as pretensas trevas da
Idade Média. Esta, aliás, "prolongou-se pelo menos até o século XVI, e mesmo
além".' Quando se atribui aos renascentistas o reaparecimento do espírito de
observação e de inovação, "podemos responder: não ... Ele jamais desapareceu.
Ele somente assume, talvez, formas novas". Pesquisas posteriores confirmaram
essa interpretação.
Bartolomé Bennassar e JeanJacquart, por exemplo, falam de "revolução"
espiritual e estética do século XVI, para logo reconhecerem que ela "continua pri-
sioneira das conquistas dos séculos anteriores", que seus protagonistas" estão car-
regados de passado medieval". No prefácio ao livro daqueles autores, Pierre Gou-
bert afirma que no século XVI "as paisagens, as técnicas e as 'almas' pouco
evoluíram [...]. As rupturas decisivas situar-se-iam antes do século XIII, depois no
século xx". Vitorino Magalhães Godinho, de seu lado, observa que o século XVI
"não é ainda o século da Razão, mas o da sombra e o da luz interpenetrando-se".
Jacques Le Goff, em entrevista recente, é mais enfático: "se eu tivesse a possibili-
dade de corrigir a periodização dos programas escolares, a vítima seria o século
XVI. Minha convicção é que esse século não marca, como se crê, uma ruptura nem
um despertar da modernidade" . A maior novidade da época, ele continua, foram
os Descobrimentos, que, contudo, não modificaram profundamente a vida dos
europeus. O Renascimento do século XII introduziu mais mudanças do que o do
XVI, que foi apenas "um conjunto de acelerações e de inflexões".'
Logo, o presente livro propõe um método fecundo e sugestões estimulantes,
embora atualmente algumas não estejam a salvo de reavaliações. Inclusive um
ponto central como o fundamento da inexistência de incredulidade no século XVI.
Para Febvre, os homens daquela época não recuavam diante da contradição, como
ocorreria a partir do cartesianismo. Eles desconheciam o senso do impossível. Não
tinham a noção de natural oposto a sobrenatural, as duas instâncias estando em
constante comunicação. Fossem camponeses ou intelectuais, eles viam o universo
povoado de demônios. Estavam culturalmente habituados a pensar segundo cate-
gorias enraizadas há muito, ainda que as evidências apontassem noutra direção.
Eram desprovidos de espírito crítico. Encontravam-se preparados para ver o que
tinham ouvido. Pesquisas posteriores matizam, porém, esse quadro.
De um lado, se é verdade que o léxico usado por qualquer sociedade reflete,
mesmo que com algum atraso temporal, tanto sua realidade objetiva quanto sub-
II
jetiva, é preciso levar em conta que a língua francesa manejada por Rabelais dispu-
nha desde o século XIII dos verbos descroire (não crer em Deus) e mescroire (recusar
a crer em Deus ou na doutrina), desde o século XIV com o adjetivo increable (algo
no qual não se pode crer) transformado em 1513 no moderno incroyable.' De outro
lado, desde a Idade Média a visão, e não a audição, ao contrário do que afirma Feb-
vre, era considerada o mais importante dos sentidos. Mesmo qualificando O pro-
blema da incredulidade ... de "livro maravilhoso", Pierre Francastellembra que "a
Idade Média reservou ao ensino visual um papel importante", que "todo o Renas-
cimento se explica pelo desejo de visualizar um saber e mitos", que" o século XVI e
sobretudo o XVII vêem aparecer uma nova forma de utilização da vista". 6 De outro
lado ainda, o peso do empirismo aumentou com as viagens ultramarinas e a
expansão do comércio. O número e a precisão descritiva entraram no dia-a-dia de
uma parcela crescente, embora ainda pequena, da população. Se Colombo, até o
fim de seus dias, pensou ter chegado às Índias, seus contemporâneos portugueses
jamais confundiram a América com elas. Tanto que levaram muitos anos para
designarem os nativos do Brasil como "índios" . Este termo não aparece na Carta
de Pero Vaz de Caminha e continuaria pouco comum nos escritos do padre
Manuel da Nóbrega, transcorrido mais de meio século. A realidade objetiva ia dei-
xando de ser concebida como aberta a todas as possibilidades e passava a ser
apreendida por "critérios cada vez mais estritos para criar a própria noção de
impossibilidade". E por conseqüência, a de incredulidade.-
Também merece nova reflexão a afirmativa, que acabaria por se tornar pos-
tulado, segundo a qual para todo historiador o anacronismo é "o pecado dos peca-
dos, entre todos os pecados o irremissível". Entretanto, o próprio Febvre parece
reconhecer que nenhum historiador pode escapar daquele "pecado", tanto que,
constata, cada época constrói mentalmente sua representação do passado, "sua
Roma e sua Atenas, sua Idade Média e seu Renascimento", E de fato, ele mesmo
não consegue ficar isento de seu quadro histórico. Quando pensa que anacro-
nismo não é apenas algo que não existiu em determinada época, e sim algo que não
podia existir naquela época, ele traça o perfil de um período a partir do de um
outro. O Rabelais que Febvre apresenta é agente histórico que age em um puro
presente, totalmente contemporâneo a si mesmo, uma eucronia ideal" criada pelo
historiador e que se revela anacronismo.
Se anacronismo é uma deformação cronológica, uma mistura de épocas,
escrever história é sempre exercício de anacronia, já que - diziam Bloch e Febvre
12
- é mesclar consciente ou inconscientemente elementos do presente e do pas-
sado. Prova-o até mesmo o elemento básico do discurso do historiador, o vocabu-
lário. Ao longo do tempo as palavras, ainda que sob a mesma forma, vão reco-
brindo novas realidades, ganhando outras acepções. Substituir em passagens mais
dificeis a fala do historiador pela da época estudada não significa necessariamente
evitar a armadilha do anacronismo: ao lermos a citação de um filósofo grego, de
um cronista medieval ou de um literato moderno, atribuimos às suas palavras sen-
tidos que com freqüência não correspondem ao entendimento que delas tinham
os contemporâneos.
A bem da verdade, a escrita da história não pode escapar dos anacronismos
porque a História em si mesma é anacronia, no sentido de que não existe período
temporalmente homogêneo. São desiguais os ritmos e as durações das variadas
conjunturas e estruturas - políticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas, psi-
cológicas - que compõem uma sociedade. O ato aparentemente simples de esco-
lher o período a ser estudado significa superpor camadas temporais diferentes.
Um recorte estreito, um ano, uma década ou mesmo uma geração, pode ocultar
temporalidades mais lentas, caso de certos comportamentos demográficos, reli-
giosos ou culturais. O atual processo de globalização, ao aproximar sociedades em
estágios civilizacionais diversos, exemplifica bem tal situação. Recortes temporais
mais largos, como os séculos, tornam o trabalho do historiador ainda mais vulne-
rável à anacronia.
O anacronismo não deve, todavia, pensam muitos estudiosos hoje em dia, ser
diabolizado. Deve mesmo ser utilizado como fator de compreensão da realidade
abordada. Se ele era prática corrente na historiografiamedieval, que projetava no
passado objetos, costumes e valores do seu presente, tal dado não deve ser simples-
mente criticado - o que, em si mesmo, seria anacronismo - e sim levado em
conta na análise do período. Pode-se entender melhor a visão de história da Idade
Média se incluirmos na análise os tipos de anacronismos praticados pelo período.
O fato de as cortes monárquicas hebraicas do Antigo Testamento serem retrata-
das pelos renascentistas como se fossem cortes senhoriais italianas ajuda no
entendimento da vida cotidiana nobiliárquica dos séculos XV-XVI. Justamente por-
que a literatura romântica descreve o mundo medieval de maneira pouco fiel, ela
nos transmite informações preciosas sobre o século XIX. O filósofo Jacques Ran-
ciêre, em análise arguta, pondera que, se os homens sempre tivessem sentido,
agido e pensado de acordo com o seu tempo, a mutação histórica estaria conde-
13
nada: o conceito de anacronismo é, portanto, para ele, anti-histórico porque
oculta as próprias condições de historicidade."
Deve-se, então, concluir que Lucien Febvre está hoje ultrapassado? Aplica-se
também a ele o comentário de jacques Le Goff, para quem o trabalho de todo his-
toriador sobrevive ao autor cerca de meio século, perdendo depois seu impacto,
ultrapassado por novas problemáticas e novos interesses? Mesmo sem fazer dessa
observação informal uma lei historiográfica, ela precisa ser matizada em relação
a este O problema da incredulidade no século XVI. Isso não diminui em nada, porém,
o valor da obra.
O comentário de Claude Lévi-Strauss sobre ela continua válido: trata-se de
um grande livro de História por observar nos documentos usados as atitudes psi-
cológicas e as estruturas lógicas que só podemos alcançar indiretamente, pois nas
sociedades estudadas "sempre escaparam à consciênda daqueles que falavam e
escreviam". Mais especificamente, esse livro solidifica em definitivo as bases de
uma psicologia histórica lançada em 1924por Marc Bloch em Os reis taumaturgos.1O
Enfim, se mais de meio século depois Oproblema da incredulidade no século XVI apre-
senta certos limites, estes resultam do progresso nos conhedmentos históricos do
qual o próprio Lucien Febvre foi um dos responsáveis. E ele tinha plena consciên-
cia - e esperança - nesse processo, pois "o historiador não é aquele que sabe. É
aquele que procura."
Hilário Francojunior
I4
Prefácio
Psicologia coletiva e razão individual
Ninguém conhece melhor que Lucien Febvre a história do século XVI. Esse foi
seu ponto de partida e continuou a ser o domínio de sua predileção. De uma
maneira mais precisa ainda, o Franco-Condado é que foi seu terreno inicial de
investigação pessoal. Ali ele adquiriu, com um saber bebido nas fontes, o método
e a doutrina. Munido desse pára-quedas - experiência e reflexão -, alçou seu vôo
de historiador. Ampliou sem cessar sua preocupação em compreender. Nada do
que se relaciona aos fatos humanos do passado, aos fatos de toda ordem - polí-
tica, economia, religião, filosofia, ciência -, nada, e tampouco o meio em que se
desenrolam os fatos, 1 permaneceu-lhe estranho; nada do que abarca hoje o saber
enciclopédico escapa inteiramente à curiosidade do diretor da Enciclopédia fran-
cesa. Ninguém, em mais alto grau, tem essa preocupação de síntese que inspirou
nossa própria empresa. Imagina-se tudo que a história do século XVI pode ganhar
ao ser tratada por um espírito dessa envergadura.
O presente volume - que dois outros deveriam ter precedido - difere, tanto
pelo fundo como pela forma, dos volumes habituais de "L'Évolution de
l'Humanité". Eu disse, no começo da obra coletiva, que o que lhe constituiria a
unidade e a autoridade seria, de um lado, o programa destinado a apanhar em sua
rede os grandes problemas explicativos, os elementos orgânicos da história; e que
seria, de outro lado, a solidez do saber, a competência, tão grande, tão reconhecida
'I5
quanto possível, dos autores. Mas disse igualmente que nem todos os volumes se
assemelhariam de maneira absoluta; que, estando salvas as condições primeiras,
cada colaborador manifestaria livremente sua natureza própria, sua maneira pes-
soal, por vezes seu talento. Se eu pudesse ter como colaborador Michelet, acolhe-
ria Michelet com alegria.
Ora, eis um outro Michelet, mas mais bem equipado, de espírito mais crítico
e que, intuitivo também, não se deixa levar pelo gênio criador. Por mais original
que seja este livro, por mais vivo, mais colorido que seja seu estilo, quanto ao fundo
histórico Febvre observa uma prudência extrema (voltarei a isto). A qualquer
preço ele quer" evitar o pecado dos pecados - o pecado entre todos imperdoável:
o anacronismo" (p. 33). Quer evitá-lo; persegue-o em outrem; e a palavra desde-
nhosa retorna com freqüência sob sua pena.' Sem que nem sempre a palavra seja
empregada, foi contra a coisa que "todo este livro se viu dirigido".'
Ora, é tarefa particularmente difícil evitar o anacronismo, alcançar a reali-
dade de um tempo e de um espaço determinados, dela" compreender e de 'fazer
compreender" as "maneiras de querer, de sentir, de pensar e de crer".' "O histo-
riador não é aquele que sabe. É aquele que procura" (p. 29). 'Jamais temos convic-
ções absolutas quando se trata de fatos históricos [...] Nós investigamos. Com as
luzes tão-somente da razão." Evitemos o simplismo. Desconfiemos da hipótese:
"Hipótese sedutora e verdade demonstrada são coisas diferentes". 5
Qual é então aqui, o propósito, no que se refere ao século XVI, desse historia-
dor ao mesmo tempo tão apaixonado por sua ciência e tão convencido da dificul-
dade de saber?
Um problema se levanta: como conceber exatamente a atitude do século em
relação à religião? Suas crenças, e suas lutas de crenças, o tomo 52 está destinado a
expô-Ias: mas foi ele capaz de incredulidade? "É todo um século a ser repensado",
do qual se trata de redescobrir "o sentido e o espírito": As opiniões são diversas:
Febvre o mostra. Mostra-o a propósito de Rabelais, tão diversamente julgado.
Recenseia os Rabelais - o Rabelais da tradição, o Rabelais dos historiadores e dos
críticos. 7 Ora, ele se prende particularmente, porque ela lhe provocou o "choque"
de que saiu este livro, à tese de Abel Lefranc, que viu em Rabelais, desde a data de
1532, um "inimigo do Cristo, um ateu militante" (p. 42), êmulo de Luciano, e "que
foi mais longe que todos os escritores contemporâneos no caminho da oposição
filosófica e religiosa" (p. 210).
Para tratar o difícil problema, Febvre centra então sua investigação em Rabe-
16
lais. E que não cause estranheza se, em uma obra destinada a estudar a evolução
da humanidade, admitimos que um homem seja o "centro" de todo um volume.
Essa obra pretende ser explicativa: ora, a explicação comporta o estudo do papel
do indivíduo, seja como intérprete de um tempo, seja como iniciador do futuro.
E, justamente, aqui se trata de saber em que medida esse homem reflete seu
século, em que medida pôde adiantar-se a ele ou ultrapassá-lo.
Febvre admira em Rabelais "o maior artista em prosa de seu tempo", o "pri-
meiro dos grandes romancistas modernos", "um dos três ou quatro escritores
realmente poderosos e originais que a França possui",' mas não é do escritor que
ele se ocupa, é do homem em relação a seu meio (p. 34). É ele, ou não, o livre-pen-
sador que, desde 1532, "deixara de ser cristão" e cujo riso lucianesco disfarçava
desígnios que "ninguém ousara conceber durante longos séculos" (p. 210-1)? Esse
inovador, era possível que ele o fosse? A questão assim colocada estende realmente
o problema ao século inteiro.
Entre o problema e a solução, a investigação será de um paciente rigor.
Consideremos, portanto, o caso Rabelais. Éum processo que se trata de instruir.
Épreciso pesar testemunhos - testemunhos de amigos, testemunhos de inimigos.
Febvre começa por interrogar os poetas latinos daquele tempo. Ele prova que
epigramas, textos diversos, foram aplicados a Rabelais apenas por lamentáveis
confusões, ou nele atingem apenas ridículos sem importância;" que numerosaspeças, autenticamente consagradas a Rabelais, são-lhe favoráveis ou não levantam
a questão religiosa. 10 Em compensação, parece que cedo Gargântua, Pantagruel e
Panúrgío engendraram um Rabelais legendário, "cantor da Diva Botelha, que
prodigioso beberrão" .11
Em segundo lugar vêm os teólogos, esses controversistas. Nova discussão,
em que os testemunhos são passados "pelo crivo de uma crítica tão cerrada quanto
possível" (p. 147): daí se deduz que nem um prova o "ateísmo" de Rabelais, que
nem um é anterior a 1550, que nem um "emana de um espírito livre", que, nessas
controvérsias, todos esses homens" erguidos uns contra os outros, com injúria na
boca - ou anátema, à espera de coisa melhor" (p. 143); e que, além disso, a pala-
vra "ateu" não tinha então o sentido preciso que lhe atribuímos: "Era empregada
no sentido que bem se lhe queria dar" e "era a injúria suprema que polemistas de
tendências muito diversas dirigiam uns aos outros". 12
E" é chegado o momento de interrogar Rabelais, o próprio Rabelais" (p. 147),
isto é, sua obra. Penetrante análise em que Febvre observa em primeiro lugar que,
17
na continuação da Idade Média que no absoluto de sua fé permitia-se com as coi-
sas e os seres da religião familiaridades anódinas, Rabelais semeia seu romance de
"velhas brincadeiras", "malícias de Igreja", "que é falta de psicologia tomar por
ataques venenosos e sub-reptícios". 13
Textos relativos à imortalidade da alma e ao milagre, interpretados por Louis
Thuasne e Abel Lefranc em acusação a Rabelais, o são por Febvre em seu abono.
Novamente aqui, ele destaca a influência persistente da Idade Média, de sua teolo-
gia quanto à concepção da alma," de seus romances cheios de aventuras maravi-
lhosas quanto ao milagre. I'Em 1532, era possível, observa Febvre, "dizer-se, acre-
ditar-se, ser cristão e querer, antes de tudo, libertar os fiéis, os simples crentes, de
terrores infantis e de superstições grosseiras".
Das conclusões negativas - nessa data de 1532, Rabelais "não foi [...] o anun-
ciador dos novos tempos, o arauto sobre-humano de uma fé racionalista feita para
reduzir a cinzas as religiões'?' - Febvre passa a uma investigação positiva: o que
pensava, no fundo, Rabelais, sempre na mesma data, das coisas da religião? Qual é
o credo dos gigantes?
A quem se faz essa pergunta, torna-se evidente antes de mais nada, não sem
surpresa, que "nos primeiros livros de Rabelais, páginas inteiras são uma série de
citações ou de alusões evangélicas e bíblicas" (p. 219). Como a religião de Erasmo,
a religião gigantal, mais que do Pai e do Espírito Santo, é religião do Filho." É a bon-
dade divina que ela sublinha; é essa bondade que é invocada pela prece; e no
romance rabelaisiano "ora-se largamente, amplamente, solenemente" (p. 222).
"Inúmeras vezes [o Evangelho] é invocado, alegado, citado, preconizado, honrado,
celebrado e sempre num tom de sinceridade comovida e de entusiasta gravidade"
(p. 226). Religião, em suma, que quer um culto interior - a reta consciência antes
de tudo -, indiferente às "constituições humanas", inimiga das práticas, hostil aos
padres e aos monges. ''A salvação é obra individual: afirmação de tom todo
moderno.':" E Febvre cita, em grande número, os textos convincentes, que são reli-
giosos, que são cristãos. "Mas de qual cristianismo?" (p. 240).
Reformado? Rabelais pode ser assim definido? Da discussão dos testemu-
nhos de acusação, resultara que, por volta de 1532, muito longe de tomar "lugar
na coorte dos libertinos", Rabelais era antes considerado, por um Pastel, entre
outros, "um fomentador da heresia reformada". 19 De uma análise minuciosa
depreende-se, agora, que o jovem Rabelais seguia com uma curiosidade apaixo-
nada o "drama das Alemanhas", que foi daqueles espíritos que, entre 1530 e 1538,
r8
tentavam caminhos novos, com uma mistura de audácia e de timidez." Inspira-
ções luteranas e, ao mesmo tempo, influência erasmiana: a piedade gigantal "está
mais próxima da religião erasmiana, interpretada liberalmente e sem curiosida-
des exageradas, que da religião reformada" - mais próxima, por sua profunda
humanidade e otimismo, mas, pelo ardor e o fervor, mais próxima de Lutero que
de Erasmo."
De 1532 a 1538, no entanto, e depois em 1543, em 1548, "o mundo cami-
nhou", e bem depressa. E Rabelais caminhou igualmente: nos livros 11I e IV, ele está
longe da Reforma; é adversário dos "santarrões", dos "demoníacos Calvinos
impostores de Genebra", assim como dos "papímanos". Mas permanece fiel ao
Evangelho. As guerras religiosas se anunciam, e no "velho evangelista impeni-
tente" sua fúria é de antemão denunciada. Nele sobrevive o ideal de sua juventude
- aquele erasmismo que ele tornou mais humano ainda (p. 287). E é então que
Rabelais é visto por alguns com outros olhos; é então que é acusado de ateísmo e
que Calvino lança contra ele o anátema (p. 142).
Podemos nos dar conta por este apanhado da maneira metódica e segura pela
qual o pensamento profundo de Rabelais é penetrado. Mas esse é apenas um dos
aspectos e um dos méritos deste livro de prodigiosa riqueza.
No caminho, Febvre encontra ambientes de todas as espécies, numerosos
personagens. Seguindo-o, pensa -se em algum curso de água que, constante em sua
direção, costeia e reflete margens diversas, paisagens cambiantes.
Ele se depara com os poetas latinistas, os 'Apoios de colégio": pinta um qua-
dro de cores muito vivas desses "fiéis servidores do dístico e do jambo"." Não se
sabe o que é preciso admirar mais: a abundante erudição ou o animado raciocínio
levado adiante entre os textos para descobrir os homens visados, sob pseudôni-
mos, por esses poetas rápidos nas reviravoltas, que vão da amizade à antipatia, para
voltar à amizade, segundo seus humores, seus interesses, seu amor-próprio lison-
jeado ou decepcionado. Sua análise - poder-se-ia dizer: sua instrução - é condu-
zida com uma perspicácia que faria honra a um juiz. Mas o comportamento do
bom historiador difere do do juiz?
Ele se depara também com os poetas humanistas, os verdadeiros poetas -
Ronsard, Ou Bellay, Baíf - e, o que é mais inesperado, o que é próprio de um his-
toriador total da civilização, com os músicos.
Depara-se com os professores, especialmente os do Colégio de Bordéus, que
delineia em algumas palavras (p. 55-6).Depara-se com os impressores, em particu-
19
lar os de Lyon, cidade dos livros, cidade régia, onde reina Gryphe, o impressor do
grifo (p. 57); mas com mais humildes também, as "livrarias de encruzilhadas, os
mascates e os ambulantes" (p. 165). Depara-se com os médicos e estuda sua dou-
trina, atendo-se àquele Fernel - que, "durante um século e meio pelo menos",
milhares de homens seguiram docilmente!'
Depara-se com os predicadores, os "livres pregadores", "rudes e atrevidos
detratores dos vícios daquele tempo" (p. 160). Depara-se com o mundo dos teólo-
gos e controversistas, de uma" estrutura mental" tão particular, temíveis adversá-
rios habituados às soluções peremptórias;" com o mundo da pré-Reforma e da
Reforma, do qual- com exceção de Calvino - Rabelais, como sabemos, tem as
simpatias;" e, como Febvre quis" estabelecer a religião rabelaisiana em relação às
outras religiões de seu tempo" (p. 278) e opô-Ia às tendências irreligiosas, ele se
depara, de um lado, com os "heréticos" , os "descrentes'?' e, do outro lado, os cré-
dulos demais, os "pobres idiotas" .27
Sobre estes últimos ambientes deveremos insistir. Notemos, antes, que em
todos eles há personagens que Febvre, em algumas páginas ou em algumas
linhas, tem o dom de fazer reviver, seu livro é profuso em descrições e retratos.
Retratos de sábios que latinizavam seu nome - um Visagier (Vulteius), um dos
'Apelos de colégio", cuja vida acidentada, errante, "reproduz, traço a traço, a de
cem letrados seus contemporâneos";" um Nicolas Bourbon, "vates apaixonado
por seu grego e seu latim", "abundante declamador de ninharias" ;29 um Sussan-
née, "instável [...] e violento, [ ...] meio-sábio e meio-pedagogo":" um Macrin, um
Chéradarne," um Júlio César Scaliger: desteúltimo, deste" original", aventureiro
bastante dotado, "gladiador de letras", "pavão vaidoso e barulhento" , ele traça uma
imagem impressionante."
Retratos dos precursores e dos protagonistas da Reforma. Lefevre d'Étaples,
"um santo nacional", e Farelnão fazem mais que aparecer." Mas Erasmo é finamente
desenhado, o "sutil, sinuoso e detalhista Brasmo", o "Filósofo do Cristo", ruja "reli-
gião humanista" punha o essencial em "fazer frutificar em si os dons do Espírito:
amor, alegria, bondade, paciência, fé, modéstia", Erasmo, ruja obra "modernista"
- exceto pela sensibilidade, como vimos - apresenta tantas analogias com a de Ra-
belais." E eis Castellion, esse "pobre cavaleiro da triste figura". 3S E eis, enfun, Lutero e
Calvino: o ex-frade, ruja "poderosa voz", vinda do "distante Wittenberg", tinha na
França um amplo eco;" o natural de Noyon que, jovem, não lhe faltavam "energia
nem ardor", mas que se tornará cada vez mais austero e duro - o carrasco de Servet."
20
Retratos também de alguns inovadores ousados - espíritos, por assim dizer,
fora dos quadros. Um Guillaume Postel, "esse curioso, esse original, esse inteli-
gente Postel", "um desequilibrado de gênio no total, com partes de iluminado e de
delirante", sonhando com a Concórdia do Mundo, "propagandista de uma reli-
gião natural" que abarcaria, "na unidade de um cristianismo ampliado, tudo o que
há de melhor (e, no fundo, de idêntico) no judaísmo, no islamismo e no cristia-
nismo"." Um Bodin, animado por preocupações semelhantes, e que quer substi-
tuir o catolicismo por "um universalismo baseado em conhecimentos científicos
e em estudo comparativo dos fatos: digamos, em uma palavra, baseado em huma-
nidade". Ambos ancestrais dos saint-simonianos. Um Étienne Dolet, 'brutal e sen-
sível, inebriado de orgulho e louco por música, notável nadador, espadachim
rápido: uma força da natureza, mas mal regulada e desconcertante em seus efei-
tos", que será mártir, ele, que "grita bem alto seu ódio às perseguições, desumanas
e, ainda por cima, totalmente inúteis"." Um Des Périers, figura enigmática, "que
os críticos, sucessivamente, puxam para aReforma, o livre-pensamento, o misti-
cismo ou a licenciosidade"," cujo estado de espírito Febvre esclarece em um
volume publicado à margem deste. O Cymbalum mundi foi a "Introdução à vida
libertina": é "um livro precursor". 41
E agora chegamos ao objeto essencial do livro, ao estudo de psicologia cole-
tiva que lhe é a base e que corresponde à tarefa principal do historiador. Enquanto
faltarem os trabalhos de psicologia histórica, "não haverá história possível", decla-
rava Febvre em uma Semaine de Synthese:2 Não se poderia, afirma ele aqui, com-
preender o século XVI isolando o indivíduo do "clima moral" ,43 da "atmosfera" da
época. O problema, para ele, é de "saber como os homens de 1532puderam inter-
pretar e compreender Pantagruel e o Cymbalum munâi", ou, mais ainda, inver-
tendo a frase, de "saber como os mesmos homens certamente não puderam nem
interpretá-los nem compreendê-los". Ele repete constantemente: "Eles, e não
nós"; "não se trata de ler um texto do século XVI com olhos de homem do século
XX".44 Através do presente livro, mas sobretudo na última parte - os limites da
incredulidade no século XVI ou, em outras palavras: a influência da religião sobre
as almas - ele leva adiante uma análise psicológica que constitui um modelo.
Mentalidade do século, sensibilidade do século; vida intelectual, vida emocional:
psicologia total dessa época cativante - eis o fruto, o fruto precioso e raro, de um
trabalho de dez anos.
A sensibilidade, Febvre estima com razão que os historiadores, até aqui, não
2I
lhe mediram a importância. 45 Ele, sim, destaca" a extraordinária mobilidade de seu
humor" das gentes do século XVI, "suas violências e seus caprichos", "sua pouca
defesa contra as impressões externas" - tanto mais fortes quanto se estava, então,
mais submetido aos contrastes do dia e da noite, do inverno e do verão." "Sentir"
é a característica do século (p. 385). E ele se aplica em evocar a atmosfera mística
em que então estava mergulhada a existência. Há séculos o cristianismo "penetra
e satura os espíritos, insinua-se pelos usos em todos os atos, em todos os pensa-
mentos dos homens"; o tempo mesmo é ritmado pela religião: é uma influência
insidiosa, multiforme, universal. Aqui, algumas páginas, muito belas e de muita
ciência, sobre o papel da Igreja: a Igreja estabelecida "em pleno coração da vida"
- vida sentimental, vida estética, vida profissional, vida pública; a igreja, centro
de todas as grandes emoções coletivas - festas, cerimônias, procissões, festivida-
des -, local de assembléia, refúgio e asilo em tempo de guerra; a igreja, cujo sino
toca "para o repouso bem como para o trabalho, para a prece e a deliberação, para
o batismo e o enterro":'
Como desprender-se da crença comum? Como não crer? Seria preciso razões
para isso (p. 387). Ora, qual é a estrutura mental desses homens? São extraordina-
riamente crédulos, de uma" ávida credulidade", desprovidos de todo espírito crítico:
presságios, aparições, sinais prodigiosos, curas assombrosas, sonhos proféticos,
milagres - milagres de Deus ou milagres de Satã -," tudo que é sobrenatural,
eles o admitem sem discussão, com admiração ou estremecimento. "Ninguém
então tinha o senso do impossível" (p. 374).
Sem dúvida, há os que raciocinam; mas "seu espírito não seguia os mesmos
passos que o nosso" (p. 138). Sob a influência daqueles "dogmáticos e pessoas pesa-
das, Nossos Mestres, os Teólogos", praticava-se até ao absurdo a lógica dedutiva,
a "velha mecânica lógica"." Eles raciocinavam sem necessidade de provas, sem
preocupação com objetividade, sem receio de contradições, de modo que tendên-
cias opostas podiam coexistir em uma mesma cabeça. 50
Em contraste com o velho método dogmático, o diálogo, ressurreição do
humanismo, o diálogo "liberal e ernancipador" marca uma guinada da mentali-
dade. Febvre, em todo o livro, insiste na evolução que flexibiliza os espíritos. Vimos
que, de 1532 a 1538, depois em 1543 (grande ano), depois ainda em 1552, o século
caminhou: caminhou no sentido da reforma religiosa," mas também no sentido
22
23
da ousadia de pensamento, do "resvalamento [... ] para doutrinas cada vez mais
liberais" .52 "Luciano", "imitador de Luciano", "lucianista" ou "luciânico": esse era
o nome que se dava" a todos aqueles que [...] pensavam um pouco fora de série ou
davam-se ares disso"." E eram numerosos, esses luciânicos que, dizia Calvino,
"fmgem aderir à palavra e dentro de seus corações zombam dela e não a estimam
mais que a uma fábula"."
Além do mais, havia "racionalistas militantes", que podiam chegar à mais
firme hostilidade ao sobrenatural, a soluções "claramente anticristãs"."
Febvre, no entanto, declara que "falar de racionalismo e de livre-pensamento,
tratando-se de uma época em que, contra uma religião com influências universais,
os homens mais inteligentes, mais sábios e mais audaciosos eram realmente inca-
pazes de encontrar um apoio seja na filosofia, seja na ciência: é falar de uma qui-
mera"." A filosofia> Mas ela não dispunha das palavras "que, para filosofar, real-
mente não poderíamos dispensar", carecia do apoio lógico de uma sintaxe
rigorosa." Sem dúvida, havia o latim: mas seria ele "capaz de dar à luz idéias que
hesitavam em nascer?" (p. 317). "A filosofia, então, não é mais que opiniões. Um
caos de opiniões, contraditórias e hesitantes. Hesitantes porque lhes falta ainda
uma base estável e sólida. A base segura que as consolidará. A ciência" (p. 327). Opi-
niões, a filosofia: "a ciência de então? Opiniões, igualmente" (p. 343).
Nasce a imprensa, é verdade; mas ela serve para" compilar": pois os homens
daquele tempo, "para conquistar os segredos do mundo, para invadir os refúgios
da natureza, não tinham nada: nem armas, nem instrumentos, nem plano de con-
junto" (p. 387). Nada de instrumentos; nada de linguagem algébrica; nem mesmo
linguagem aritmética cômoda (p. 336). Em tudo, imprecisão, inexatidão-para
a hora do dia, para a idade das pessoas, para a cronologia. 58 lnexistência do senso
histórico; ausência ou insuficiência da observação, de experimentação, incuriosi-
dade das descobertas - mesmo daquela de um novo mundo ou do universo de
Copérnico."
Não se poderia dizer a que ponto os capítulos que resumimos são ricos em
fatos e idéias, em observações finas e engenhosas. Assim, Febvre nota que o século
XVI não é um século que vê: quanto à visão, o sentido intelectual por excelência,
ele está atrasado em relação ao ouvido e ao olfato; "aspira os sopros", "capta os ruí-
dos"; e, da música, vivia "tanto quanto nós, sem dúvida mais do que nós". so
Finalmente, recaímos na credulidade e no "primitivismo". Todos, mais ou
menos, crédulos e sonhadores, misturando "natureza" e "sobrenatureza", E não
apenas os incultos, os tolos, os ignorantes; não apenas os pseudo-eruditos, os
"especuladores à margem" - astrólogos, cabalistas, hermetistas, pesquisadores
de pedra filosofal, "ocultistas de qualquer crença" , dos quais Febvre fala em inte-
ressantes páginas - que traziam em si um universo fantasmagórico:" mas os pró-
prios sábios, que "ainda não pensam que sua tarefa, seu oficio próprio, é [...] des-
cobrir leis e, mergulhados em uma massa de fatos aparentemente sem ligação, aí
introduzir uma ordem, uma classificação, uma hierarquia". 62
A ciência: esta palavra, aqui, "constitui anacronismo".
Constitui realmente anacronismo? O presente livro - Febvre o disse - nas-
ceu de um "choque"; ele tem em mira "uma deformação da história intelectual e
religiosa"." Sua vigorosa inteligência dá tanto valor à discussão, na busca da ver-
dade, que ele me ficará grato, estou certo disso, por discutir com ele um pouco.
Minha admiração por seu livro não deve parecer, por isso, senão mais sincera e
mais refletida.
"Pretender fazer do século XVI um século cético, um século libertino, um
século racionalista e glorificá-Io como tal: o pior dos erros e das ilusões", diz ele em
sua conclusão (p. 392). E a uma tese desse gênero ele opõe - depois de ter notado
que não é "tão fácil para um homem, por pouco conformista que o imaginemos,
aliás, romper com os hábitos, os costumes, as próprias leis dos grupos sociais de
que faz parte" - a "religiosidade profunda da maior parte dos criadores do mundo
moderno"."
A "religiosidade profunda" do século, ele certamente a provou, vigorosa-
mente provada. Mas aqui dá ele todo seu valor criativo ao papel da elite pensante,
ao trabalho da razão individual?
Que certos textos "tomam para o leitor de hoje um sentido que não tinham
outrora, um alcance que não tinham para o próprio pensador de outrora"; que" a
incredulidade varia com as épocas" e que, de uma época a outra, "por seu modo
de pensar, sua experiência científica e seus argumentos particulares", os espíritos
livres diferem profundamente:" de acordo. Mas a cadeia desses espíritos livres nos
parece formar o elemento essencial da história; e, como o "primitivismo" sobre-
vive na época contemporânea, cremos que a razão - construtiva - e a "ciência"
preexistem no passado.
Admitamos que o que pôde dizer Rabelais contra a religião tenha sido "sem
alcance social", sobretudo "sem força constrangedora"; mas que isso "não
importa, historicamente falando" (p. 305), eis o que nos parece discutível. Quando
24
Rabelais afirma que "pessoas livres, bem-nascidas, bem instruídas [... ] têm por
natureza um instinto e um estímulo que sempre as impele a feitos virtuosos e as
afasta do vício", sem dúvida não se deve ver aí a Natureza dos naturalistas, "esse
ídolo (com a Vida) dos tempos biológicos" (p. 253); mas o mito de Physis oposta a
Antiphysie dá, porém, a esse termo "natureza" uma significação profunda" e
marca uma guinada do pensamento. Além disso, quando Febvre fala da" sede inex-
tinguível de conhecimento" de Rabelais; quando cita palavras dele sobre "a satis-
fação e o prazer maravilhoso do entendimento", que, propondo-se" a conhecer a
verdade de alguma coisa,jamais descansa até que a tenha descoberto e, chegado à
perfeita ciência dela, então se contenta"; quando diz que Rabelais entoa em seu
Gargântua, em seu Pantagruei "o hino à Ciência, ao saber indefinido dos homens" ,67
ele próprio não corrige seu julgamento de "anacronismo"? Sem dúvida, não se
deve instalar as idéias de Rabelais "como cabeça de série, na origem de nossas pró-
prias idéias" (p. 391): mas nossas idéias não são proles sine matre creata [prole gerada
sem mãe]. Há uma genealogia, uma longa e necessária genealogia das idéias - em
que Rabelais toma lugar, e bom lugar.
Em muitos espíritos, ao longo do livro, vemos, de tradições diversas, especu-
lativas ou práticas, a razão fazer tábula rasa pela observação e a experiência. Não
voltemos a esse Dolet do qual Febvre cita um belo texto latino em que está impli-
citamente expressa a idéia de lei natural. 68 Recolhamos, em compensação, seu tes-
temunho sobre os médicos "animados desde o século XIV por um espírito experi-
mental ainda rudimentar, mas já ativo" (p. 433); e sobre "Leonardo, Servet, Palissy,
Bruno e quantos outros: precursores cheios de pressentimentos". Eles não conse-
guiam a" adesão pública". 69 De acordo. Mas esses, acrescenta ele em uma imagem
admirável, "evadiam-se do calabouço em espírito". O "calabouço" é o meio
mítico, místico, a atmosfera de crença. Essa" evasão em espírito", por pouco cla-
morosa que tenha podido ser, toma na história uma importância singular.
Se se entende por" Ciência" os conhecimentos - eles próprios provisórios-
de nosso tempo, com toda a evidência não se poderia encontrá-Ia no século XVI.
Mas o espírito científico - Abel Bey mostrou-o vigorosamente - data do
momento em que homens procuraram saber- saber por saber e não apenas para
viver fora das técnicas, como da crença, mas com o concurso das técnicas e o
suporte da "fé profunda" , a ciência, desde então, foi gradualmente construída.
"Cada civilização com suas ferramentas mentais"; e essas ferramentas "não
valem pela eternidade, nem para a humanidade: nem sequer pelo decurso restrito
25
de uma evolução interna de civilização" (p. 143). Entendamo-nos: esse instrumen-
tal vale para a humanidade, no sentido de que representa um degrau, uma passa-
gem do espírito para os progressos posteriores." Antes dos tempos do trabalho
coletivo, quando os sábios gozam "a portas fechadas de sua verdade", ou a reser-
vam a seus amigos," eles trabalham, contudo, pela verdade. O próprio Febvre não
fala do "esforço perseverante da inteligência humana" (p. 308)? Não declara ele
que, hoje, quase não se fala mais da "Noite da Idade Média"? "Então, quando nos
dizem: na Renascença, o espírito de observação renasce - podemos responder:
não. [ ...]Jamais desapareceu. Talvez tome apenas formas novas. E, com toda cer-
teza, equipa-se racionalmente.'?'
Concluamos. O ponto de partida de Febvre - reação contra a tese de que o
século XVI seria já um "século das luzes" -levou-o a pôr a ênfase na religiosidade
"daquele tempo muito cristão" (p. 320), em tudo o que manifesta a fé, a sensibilidade
coletiva. Há alguns anos, aliás, dando conta de um volume da Histoire littéraire du sen-
timent religieux en France [História literária do sentimento religioso na França], do
abade Bremond, Febvre dizia: "Existem poucos temas (a vida cristã sob o Antigo
Regime) de importância comparável para o conhecimento verdadeiro e profundo
da antiga França, mas poucos são também os que parecem do mesmo modo pôr de
sobreaviso os historiadores de todas as opiniões e de todas as tendências". 73
Uma preocupação tão nova o faz "minimizar", aparentemente, essa lógica
criadora do saber, que ele conhece, que reconheceu, aqui - pois discutimos Feb-
vre com a ajuda do próprio Febvre - e muitas vezes alhures. Naqueles artigos, por
exemplo, da Revue de Synthese Historique, em que se vê sua curiosidade, sempre des-
perta, interrogar o horizonte em todas as direções. Em defesa - em 1924 - de
Pour 1'Histoire des sciences [Pela história das ciências], ele evoca "esse belo drama
comoventeda história de uma ciência que, para dizer a verdade, não é mais que o
drama eterno do pensamento humano". Tratando - em 1927 - Un chapitre
d 'Histoire de 1'Bsprit humain [Um capítulo de história do espírito humano], ele
declara que considera" a história das ciências parte integrante e fundamental dessa
história geral das sociedades humanas que será, um dia, a história propriamente
dita, mas que mal entrevemos em nossos sonhos", e nesse artigo, precisamente,
trata-se do 'belo e corajoso movimento científico da Renascença"."
Para bem compreender a atitude intelectual, a uma só vez instintiva e delibe-
rada, de nosso colaborador, impõe-se ainda uma observação. O historiador nato
que ele é sempre desconfiou de todo parti pris unificador. Já em 1913, À propos
26
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d 'une étuâede psychologie historique [A propósito de um estudo de psicologia histó-
rica], ele dizia: "A percepção das diferenças é pelo menos tão instrutiva quanto a
das semelhanças. Não se deve, jamais, se deixar enganar pela ilusão de uma falsa
unidade de caráter [...] Nossa natureza é feita de contradições, pelo menos tanto
quanto de harmonias"." Neste livro, ele declara: "O homem não é o homem"; mas
"os homens variam, e bem mais do que imaginamos, e em intervalo muito mais
curto" (p. 144).Talvez fosse preciso dizer: há os homens e há o homem; há o meio
contingente da crença e o meio progressivo da razão. Febvre estaria de acordo com
isso: ele vê e faz ver os dois meios; mas não quer dar demais ao homem. Seu senso
histórico é tão escrupuloso, sua visão tão aguda que ele é levado a insistir mais na
diversidade que na similitude, mais na mudança que na continuidade e no pro-
gresso.
Ele fala da ciência "que se cala e se refaz" conti~uamente" (p. 323): não nega-
ria que ela se aperfeiçoa, mas não o acrescenta. Essencialmente cambiante, tal
como ele a concebe, é a obra do historiador: é "filha do tempo"." "Cada época",
diz ele, "fabrica mentalmente sua representação do passado"; sem dúvida, "um
elemento de Progresso pode insinuar-se" no trabalho de história", mas" as curio-
sidades e os motivos de interesse, tão rápidos em se transformar [...] projetam a
atenção dos homens de uma época sobre tais aspectos do passado, muito tempo
deixados na sombra, e que amanhã as trevas novamente recobrírão" (p. 30).79 Não
se pode dizer, antes, que as curiosidades e os motivos de interesse se completam;
que, em história-ciência, nada se perde, tudo se acrescenta; que, assim, o passado
aparece pouco a pouco na complexidade de seus elementos? E o livro mesmo, o
belo livro de Lucien Febvre, pelo modelo que dá de um estudo aprofundado de psi-
cologia coletiva, não enriquece singularmente a ciência da história?"
HenriBerr
27
Introdução geral
Bons manuais são bons. Mas a Évolution de I'Humanité não é uma coleção
de manuais, por excelentes que sejam eles. Então ninguém me acusará, entre seus
leitores fiéis, se, tendo assumido a pesada tarefa de examinar, no quadro desse
grande empreendimento, os problemas religiosos que ocuparam tanto lugar na
vida dos homens no tempo da Renascença, utilizo hoje um caminho insólito ao
consagrar todo um grande volume ao que se poderia chamar a outra face da
crença: a incredulidade.
Que o título deste livro não desoriente, portanto, o leitor. Amo Rabelais. Mas
a presente obra não é a homenagem de um leitor curioso aum autor que o diverte.
Não é, em outros termos, uma monografia rabelaisiana. É, em intenção e em sua
ambiciosa modéstia, um ensaio sobre o sentido e o espírito de nosso século XVI.
Mais um? Como se tudo já não houvesse sido dito desde que há exegetas da
Renascença e que se copiam uns aos outros? - Precisamente, eu desejaria não
copiar meus antecessores. Não por gosto gratuito pelo paradoxal e pelo novo: por-
que sou historiador, simplesmente, e o historiador não é aquele que sabe. É aquele
que procura. E, portanto, que repõe em discussão as soluções estabelecidas, que
revisa, quando é preciso, os velhos processos.
Quando é preciso - não significa dizer "sempre"? Não façamos como se as
conclusões dos historiadores não fossem necessariamente atingidas por contin-
29
gência. De todas as fórmulas tolas, a do livro" que não será mais reescrito" corre o
risco de ser a mais tola. Ou melhor: não se reescreverá mais, esse livro, não porque
ele alcance o absoluto da perfeição, mas porque é filho de seu tempo. História,
filha do tempo. Não o digo, por certo, para diminuí-Ia. Filosofia, filha do tempo.
Física mesmo, filha de seu tempo: a de Langevin não é mais a de Galileu, que não
é mais a de Aristóteles. Progresso de uma a outra? Quero crer que sim. Historia-
dores, falemos sobretudo de adaptação ao tempo. Cada época fabrica mental-
mente seu universo. Ela não o fabrica apenas com todos os materiais de que dis-
põe, todos os fatos (verdadeiros ou falsos) que herdou ou que acaba de adquirir.
Fabrica-o com seus dons próprios, sua engenhosidade específica, suas qualidades,
seus dons e suas curiosidades, tudo aquilo que a distingue das épocas precedentes.
Igualmente, cada época fabrica mentalmente sua representação do passado
histórico. Sua Roma e sua Atenas, sua Idade Média e sua Renascença. Como? Com
os materiais de que dispõe - e por aí um elemento de Progresso pode insinuar-se
no trabalho de história. Mais fatos, e os mais diversos, os mais bem controlados: o
ganho não é desprezível. Com igualdade de talento, não é a mesma a casa que o
bom arquiteto constrói com velhas pedras e duas ou três vigas gastas - ou então
com belas e boas pedras talhadas, em abundância, e belas peças de vigamento pre-
paradas para a montagem. Mas não há apenas os materiais. Há os dons também,
e que variam, as qualidades de espírito e os métodos intelectuais; há, sobretudo, as
curiosidades e os motivos de interesse, tão rápidos em se transformar e que proje-
tam a atenção dos homens de uma época sobre tais aspectos do passado, muito
tempo deixados na sombra, e que amanhã as trevas novamente recobrirão. Não
digamos que isso é humano, mas, sim, que é a lei do saber humano.
Nossos pais fabricaram sua Renascença. Ela já não era mais a Renascença dos
pais deles. Nós herdamos essa Renascença: aos quinze anos, meus colegas e eu lía-
mos Taine, a Viagem à Itália e a Filosofta da arte; aos dezoito, nutríamo-nos de Burck-
hardt. E meu Rabelais foi por muito tempo o Rabelais de Gebhart. No entanto,
de 1900 a 1941, quantas tragédias e derrocadas! Se não me tivesse dado conta delas
por mim mesmo (não ironizo: o homem tem tal necessidade de estabilidade,
encontra na estabilidade tal satisfação que, mesmo lúcido por natureza e profis-
são, muitas vezes recusa-se a sê-lo por instinto e, fechando os olhos à realidade,
enxerga apenas o que viu outrora) - se não me tivesse dado alguma conta pessoal
delas, a leitura, em 1922, da grande Introdução de Abel Lefranc no início do Pan-
tagruel, na edição crítica das CEuvres [Obras], delas me teria advertido. Ela me cau-
30
sou um choque - daí este livro, este livro que desejaria levantar, por reação, os
dificeis problemas da incredulidade.
Diante de nós, alguns dos grandes espíritos do século XV1. E, em primeiro
lugar, Rabelais. Em seu foro íntimo, quem foi realmente esse homem? Um natu-
ral de Touraine escarninho, herdeiro pura e simplesmente da verve anticlerical e
atrevida do orleanês Jean de Meung? Ou então um profundo filósofo que, pas-
sando à frente de seus contemporâneos, ultrapassou-os tanto na crítica e na incre-
dulidade que ninguém pôde segui-ler Foi ele o cético de Anatole France, propondo
a seu século" a fé mais necessária ao homem, a mais conforme à sua natureza, a
mais capaz de torná-lo feliz: a dúvida" - ou, bem ao contrário, o fanático de Abel
Lefranc, decidido a guiar os homens para as certezas laicas de uma ciência sem
limites? Mais plácidos que o exegeta fogoso de Pantagruel, veremos nós em Rabe-
lais um desses cristãos mediocres que empoleiram no altar do Deus da boa gente
um Cristo totalmente desprovido de auréola - ou então o animaremos de uma
paixãoreformada, logo refreada pelo medo dos suplícios? Eis-nos como Panúrgio:
o que escolher, o que rejeitar? E, se se trata de autoridades, abrigam-se dez, e das
mais reverenciadas, atrás de uma e outra dessas opiniões contrárias ...
Rabelais: mas eis Des Périers. O desconhecido Des Périers. Humanista apai-
xonado por pensamento platônico; servidor ora em boas graças, ora em desfavor
com a Margarida das Margaridas; militante da corajosa equipe que dotou a
Reforma francesa de sua primeira Bíblia "em língua vulgar"; colaborador de
Étienne Dolet, príncipe dos libertinos, nos Commentaires de Ia langue latine
[Comentários da língua latina]; autor certo de poemas pessimistas, autor provável
de contos vivos e picantes, autor misterioso de um Cymbalum mundi cuja inspira-
ção e origem, durante quatro séculos, permaneceram como enigmas: entre todos
esses aspectos de um mesmo homem, como escolher? Que figura compor para
aquele que os críticos, sucessivamente, puxam para a Reforma, o livre-pensa-
mento, o misticismo ou a licenciosidade?
Des Périers, mas e sua protetora Margarida de N avarra? A cristã do Miroir de
l 'âme pécheresse [Espelho da alma pecadora]; a mundana dos contos do Heptamé-
ron; a mística das cartas a Briçonnet; a luterana que traduziu em versos franceses
o Comentário de Martinho Lutero sobre a Oração dominical; a calvinista que
apoiou em seus primeiros passos o futuro autor da Instftution; a "intelectual" que
31
Ó doce amor de brando olhar
Que me trespassas com teu dardo ...
Ai, tenho medo
De com bastante bom coração não amar [... ]
protegeu Pocques e Quentin contra as fúrias do picardo que se tornou genebrino;
a sedenta de amor divino:
Com tantos traços díspares (e que seria vão querer classificar por épocas),
como retraçar uma fisionomia viva e coerente?
Des Périers, mas e seu patrono Dolet? Um mártir da Renascença: vejam
Copley Christie. Um paladino do libertinismo, dirijam-se a Boulmier, que renova
Bayle. Um partidário do Evangelho para todos: creiam em Nathanael Weiss, her-
deiro de Des Maiseaux. Autoridades, afirmações, dúvidas. No entanto, todas as
testemunhas estão aí, amigos ou inimigos; todos os textos estão aí e, em primeiro
lugar, as obras de Dolet, seus gritos patéticos, e o Second Enfer [Segundo inferno],
e o Cantique [Cântico] doloroso de 1546. Do Dolet ateu ao Dolet reformado, a dis-
tância é grande: mas, entre conhecedores, o acordo é impossível.
De exemplos, que poderiam ser multiplicados, basta. Eles nos permitem
dizer: quando, colocando-nos bem em frente de um homem do século XVI, inter-
rogando-o, a ele e seus contemporâneos, tentamos definir sua fé, nunca estamos
realmente seguros dele - nem de nós. E eis levantado o problema do método -
o que nos ocupa.
Não vamos logo dizendo: ah, se os textos fossem mais ricos, as testemunhas
mais tagarelas, as confissões mais detalhadas! - Pois, hoje, não temos nós tudo,
aparentemente, para conhecer nossos contemporâneos: suas confidências,
vejam nossos discos; seus jogos de fisionornia, vejam nossas fotografias. E no
entanto ... Um velhaco, dizem estes. Um apóstolo, dizem aqueles. Trata-se do
mesmo homem.
Na verdade, engana a monografia que é apenas retrato de meio-corpo, sem
segundo plano nem cenário. Não há pensamento religioso (nem pensamento sim-
plesmente), por mais puro e desinteressado que seja, que não seja colorido em sua
massa pela atmosfera de uma época - ou, se se preferir, pela ação secreta das con-
32
dições de vida que uma mesma época cria em todas as convenções, em todas as
manifestações de que constitui o lugar-comum. E sobre as quais ela imprime a
marca de um estilo que não se viu ainda - que não se reverá mais.
A partir daí, o problema fica mais nítido e, ao mesmo tempo, delimita-se. Ele
não é (para o historiador, entenda-se) de apreender um homem, um escritor do
século XVI, isolado de seus contemporâneos - e, sob o pretexto de que tal passa-
gem de sua obra inscreve-se no curso de uma de nossas maneiras particulares de
sentir, classificá-lo taxativamente sob uma das rubricas que usamos hoje para cata-
logar os que pensam ou não pensam como nós em matéria de religião. Tratando-
se de homens e de idéias do século XVI, tratando-se de maneiras de querer, de sen-
tir, de pensar e de crer "armadas", como diz Calvino, com as armas do século XVI
- o problema é de estabelecer com exatidão a série das precauções a tomar, das
prescrições a observar para evitar o pecado dos pecados - o pecado entre todos
imperdoável: o anacronismo.
Que som produzem hoje, aos nossos ouvidos de homens do século XX, tais
livros compostos entre 1530 e 1550 por um Rabelais, um Dolet, uma Margarida de
Navarra? O problema não está aí. Ele é de saber como os homens de 1532 pude-
ram interpretar e compreender o Pantagruei e o Cymbalum mundi. Invertamos a
frase: ele é, sobretudo, de saber como os mesmos homens certamente não pude-
ram nem interpretá-los nem compreendê-los. Atrás desses textos, pomos instinti-
vamente nossas idéias, nossos sentimentos, o fruto de nossas pesquisas científicas,
de nossas experiências políticas e de nossas realizações sociais. Mas aqueles que os
folhearam, em sua primeira novidade, sob o alpendre do livreiro, em Lyon, na rue
Merciere, em Paris, na rue Saint-Jacques - o que leram eles entre as linhas bem
ajustadas? E porque seu modo de encadeamento das idéias confere a esses textos,
pelo menos aos nossos olhos, uma espécie de eternidade na certeza, podemos con-
cluir daí que em todas as épocas, todas as atitudes intelectuais são possíveis - são
igualmente possíveis? Grande problema de história do espírito humano. Ele vem
reforçar o problema de método e conferir-lhe uma singular amplitude.
"Como os outros elementos de sua história, as crenças morais da humani-
dade foram, em cada momento, tudo o que podiam ser. Em conseqüência, as ver-
dades morais atuais, mesmo se se tivesse podido pressenti-Ias mais cedo, teriam
sido desprovidas, então, de todo valor prático - e aquele que as houvesse afir-
33
34
mado não teria tido razão contra seus contemporâneos." Assim Frédéric Rauh,
em 1906, levantava, no domínio moral, o grande problema do precursor, do
homem que não é justificado porque adivinhou o futuro. E ele acrescentava,
falando do que para nós, hoje, é "a verdade moral": o homem não teria podido rea-
lizá-Ia outrora; nem sequer deveria; "não teria podido senão sonhá-Ia". - Belo tes-
temunho de espírito histórico nesse moralista, observemos de passagem.
Do plano da moral, transferir essas fórmulas para o plano das crenças: o pri-
meiro de nossos intuitos presentes. Um intuito de acordo com algumas das ten-
dências profundas de nossa época. Ontem, nosso mestre Lucien Lévy -Bruh1 inves-
tigava como e por que os primitivos raciocinam de maneira diferente dos
civilizados. Mas estes, em parte, permaneceram muito tempo primitivos. Eles não
usaram em todas as épocas, indistintamente, os mesmos modos de raciocínio para
formar seus sistemas de idéias e de crenças. Verdade um pouco grosseira ao ser for-
mulada assim: mas por que os historiadores, em vez de nuançá-Ia aplicando-a aos
fatos de sua competência, deixam de bom grado aos filósofos o cuidado de serem
os únicos a exprimi-Ia? O que está emjogo, na verdade, seria tão medíocre?
Tentando reconstituir o estado de espírito de nossos antepassados em relação
às coisas da Religião: "Aqui a Razão, afirmamos nós de bom grado, e ali, a Revela-
ção. Épreciso escolher". - Escolher? Mas para o homem real, para o homem vivo:
razão, revelação, o que pretende, na verdade, esse debate de abstrações? Renan,
constatando, no Avenir de Ia science [Futuro da ciência] (p. 41), que encontramos
com freqüência, entre os mais sinceros crentes, homens" que prestam à Ciência
eminentes serviços", daí tirava a conseqüência de que, "mais forte, no fundo, que
todos os sistemas religiosos", a natureza humana "sabe descobrir segredos para
tirar sua desforra". E acrescentava - ele, que não ignorava o que podem ocultar
os meandros de uma consciência ávida de fé: "Kepler, Newton, Descartese a
maior parte dos fundadores do mundo moderno eram crentes". Os fundadores,
mas os precursores? Descartes, mas antes dele, Rabelais?
A questão é importante. Como não se surpreender com a maneira pela qual
nossos contemporâneos obstinam-se, sob o pretexto de justificá-Ios, em degradar os
grandes homens a que relacionam, não sem razão, a gênese do mundo moderno?
Só ficam satisfeitos quando fazem deles uns covardes. Os únicos covardes de um
século povoado de heróis que pagaram com a própria vida, alegremente, seu apego
I:.
a verdades aliás contraditórias. Ao exibir essa suposta covardia, ao satisfazer, assim,
seu ódio instintivo do espírito e de sua grandeza - alguns experimentam uma ale-
gria que mal dissimulam. Precisam de um Lefêvre detido no declive escorregadio da
heresia apenas por sua prudência de velhote timorato. Precisam de um Erasmo que
se recusa a ir ao encontro de um homem e das doutrinas contra as quais - nós o
sabemos - insurgia-se toda a sua natureza de homem, unicamente - dizem eles-
por amor à sua quietude e desejo de evitar penosas perseguições. E com que tom
altivo tantos homens, que parecem pouco familiarizados com as audácias do espí-
rito, não reprovam no protegido de Margarida, no amigo de Thomas More, o que se
dignam, nos dias de indulgência, a chamar apenas de sua "timidez"? - Na outra
extremidade do século, precisam de um Montaigne poltrão, fugindo da peste e dos
perigos públicos. No meio, um Rabelais calcado em seu Panúrgio: brincalhão ardi-
loso, parasita cínico, total incrédulo - mas dissimulando para prestar à Igreja as
deferências exigidas. Ou então (esta é a versão nova) um Rabelais fanático, violenta-
mente rebelado não apenas contra a Igreja católica, mas contra a crença cristã como
tal: além disso, mascarado, e por medo. Como se o medo fosse, neste mundo, o com-
panheiro natural (e louvável) da inteligência e da razão?
Eis então despachados, por justiça sumária, homens no entanto atormenta-
dos pelo Mistério, homens que se debatiam do começo ao fim da vida com o Des-
conhecido e pensavam o universo não, à maneira de seus filhos do século XVII,
como um mecanismo, um sistema de impulsos e de deslocamentos sobre um
plano conhecido, mas como um organismo vivo, governado por forças secretas,
por misteriosas e profundas influências.
Substituir essas fantasias de uma história medíocre - muito freqüentem ente
ditadas por preocupações pessoais a homens perdidos no infinito detalhe - por
uma concepção mais verdadeiramente humana (o medo é do homem, porém
mais ainda o triunfo sobre o medo) das concepções espirituais de um século
heróico: a ambição deste livro. Monografia de um homem, Rabelais? Por maior
que fosse esse homem, não a teríamos escrito. Investigação de um método ou,
mais precisamente, exame crítico de um complexo de problemas, históricos, psi-
cológicos e metodológicos: isso pareceu valer um esforço de dez anos.
E agora, fiz bem em deixar subsistir, nas páginas que se vão seguir, os rastros
de meus passos? Eu teria podido deitar abaixo meu primeiro andaime, o rabelai-
35
siano, renunciar à discussão dos textos produzidos por meus antecessores, deixar
subsistir somente a segunda parte - ou mesmo a terceira, apenas. Mas não teria
ela se tornado completamente arbitrária, vaga e falsa? Este livro, este livro de par-
tes desiguais e que vêm ordenar-se por massas decrescentes: a mais material
embaixo, com seu peso crítico; a segunda, já mais leve, no centro; a terceira por
cima das duas outras - este livro que, por sua própria estrutura, mostra o que foi
a progressão de um espírito - agrada-me que ele ateste, aos olhos do leitor, que
não nasceu de uma visão teórica, de uma dessas convicções a priori que tanto mal
fazem aos nossos estudos. Eu ficaria bem pesaroso se se visse nele a iluminação de
um ensaísta, um brilhante esboço, uma improvisação. Ele foi para mim um com-
panheiro desde o distante dia em que, em Estrasburgo, diante de Henri Pirenne,
eu confrontava, pela primeira vez, a eloqüente teoria de Abel Lefranc até aquele
dia em que, cedendo às solicitações de Henri Berr, decido-me a publicá-lo tal qual,
como um ato de fé nos destinos do espírito livre, como uma afirmação dessa von-
tade de compreender e de "fazer compreender" pela qual gosto de definir a fun-
ção da história, a tarefa fecunda do historiador.
~ ~'~"·'O·"··~~·'···~· ~ _
PARTE I
RABELAIS, ATEÍSTA?
Nota liminar: O problema do método
Eis o problema do método. Que é sempre muito dificilconhecer um homem
- a verdadeira fisionomia de um homem, bem entendido. Mas, tratando-se do
século XVI, de seus escritores e de suas opiniões religiosas, realmente se exagera.
Da descrença agressiva à mais tradicional crença, põe-se demasiada desenvoltura
em fazê-los passar, ao sabor dos humores. Seria possível que esses problemas de
opiniões, por nós de bom grado proclamados insolúveis - nós, e apenas nós, os
faríamos nascer? Não substituiríamos o pensamento deles pelo nosso e, atrás das
palavras que empregam, não poríamos sentidos que eles não lhes põem de modo
algum? O problema mal colocado pode tornar-se, assim, um problema mais bem
colocado. Mas é toda a concepção do século XVI humanista que se questiona. Em
uma palavra, é todo um século a ser repensado.
Seria preciso fazê-lo sob forma didática? Tratando-se do foro intimo, dos
debates da consciência às voltas com as certezas reveladas assim como com as
dúvidas nascentes, semelhante partido seria traição. O caminho impunha-se, e
vamos segui-lo: centrar a investigação em um homem, escolhido não apenas por-
que continua célebre, mas porque o estado dos documentos que permitem
reconstituir seu pensamento, porque as declarações que essa obra contém, porque
as significações mesmas dessa obra parecem qualificá-Ia especialmente para seme-
lhante estudo. Esse homem: François Rabelais.
39
Em primeiro lugar, Rabelais deixou em seus escritos páginas inteiras consa-
gradas aos problemas que mais dividem seus contemporâneos. Problemas da
alma e de sua imortalidade, da ressurreição e da outra vida. Problemas do milagre,
da onipotência do Criador, das resistências da ordem natural às livres vontades da
divindade.
O essencial. Em torno do qual se agrupam centenas de alusões a outras que-
relas, não menos interessantes. Tudo exposto por um escritor nato, o maior artista
em prosa de seu tempo.
Em segundo lugar, e ainda que o lote de documentos pessoais e diretos que
possuímos de Rabelais esteja longe de saciar todas as nossas curiosidades - esse
lote é, contudo, tão considerável quanto os mais consideráveis dossiês pessoais
que o século XVI nos tenha deixado sobre qualquer de seus grandes escritores. A
forte, a fortíssima personalidade do primeiro dos grandes romancistas modernos
despertou, durante sua vida, violentas reações. Daí, múltiplas peças, latinas ou
francesas, às claras ou em código (mas o código está perdido), que recolhemos,
naturalmente, com uma curiosidade vivamente instigada. Perigosa, aliás, e decep-
cionante: por um lado, é forte nossa tendência a aumentar o número desses docu-
mentos e, portanto, de anexar ao dossiê Rabelais toda uma série de peças que lhe
são estranhas; mas, por outro lado, o que extrair desses documentos e como tratá-
Ias? Tomá-Ias literalmente ou transpô-Ias? Problema de bom senso: como se diz
sempre; e, por certo, ter em conta as amizades e os ódios, os parti pns e os ranco-
res, nem é preciso falar da precaução. Mas reler esses textos com olhos de 1530 ou
de 1540 - esses textos escritos por homens de 1530, de 1540, que não escreviam
como nós; esses textos pensados por cérebros de 1530, de 1540, que não pensavam
como nós: aí está o dificil e, para o historiador, o importante. Em uma palavra, por
que Rabelais? Porque todo estudo atento do romance e do pensamento rabelai-
siano põe em causa, para além da obra mesma, a evolução total do século que a viu
nascer. Que a fez nascer.
Por muito tempo, nos foi dito: quer, sem se perder demais, reconstituir a evo-
lução espiritual do pai de Gargântua? Desenhe em primeirolugar a curva de sua
época e releia o belo artigo que, em 1897, Henri Hauser publicava na Revue Histo-
nque. Ali ele descrevia, com mão segura, a evolução paralela do humanismo e da
Reforma.
4°
Três tempos. Primeiro, união íntima das forças inovadoras contra as sobrevi-
vências da Idade Média - e os homens que renovavam seu pensamento no con-
tato com o pensamento dos antigos imaginando, ingenuamente, que os primeiros
reformados compartilhavam seus desejos e seguiam seus próprios caminhos. -
Breve ilusão; desde 1534, desde 1535, muitos "renascentistas" vacilam. Na França,
sob seus olhos, as reviravoltas do rei Francisco, as primeiras graves perseguições,
a atitude hostil dos grandes, a violência de um clero de combate atiçado pelos toga-
dos; fora da França, cáusticas disputas teológicas, violentos anátemas contra a
livre investigação e a cultura ... Quando, frente a frente, acendem-se a fogueira de
Servet e a fogueira de Dolet - esses otimistas frustrados retiram-se de um com-
bate no qual o que está emjogo se lhes torna totalmente estranho. Humanismo,
Reforma: a ruptura parece consumada. Tal seu século, tal Rabelais. Cada um de
seus livros escande um dos tempos de uma evolução que ele registra - e acelera.
Pantagruá, 1532; Gargântua, 1534: duas manifestações do primeiro humanismo,
daquele que, crendo-se servido pela primeira Reforma, a ela servia por sua vez. No
livro I1I, tudo muda: o Rabelais de 1546 é um filósofo que o conflito dos catecismos
irrita, mas já não interessa diretamente. E o Rabelais de 1552, um galicano nacio-
nalista: seu livro IV serve à causa do rei da França contra Roma; não defende um
credo. Aqui, Putherbe, o fanático; ali, Calvino, o demoníaco: igualmente revol-
tado com seus fanatismos rivais, mas por vezes concordantes, Rabelais afasta-se de
seus furores rábicos e mergulha, como verdadeiro platônico, na contemplação da
Beleza e da Harmonia.
Por muito tempo, nos foi dito ... Bruscamente, em 1923, uma rumorosa intro-
dução ao pantagruel veio perturbar o acordo.
Um reflexo de sua época, Rabelais? Mas, não. Um fora-de-série. O precursor
dos ateus e dos libertinos do século XVIll. Coisa muito diferente do Rabelais de Geb-
hart prefigurando o de Anatole France. Rabelais, um crente da incredulidade. E
sua obra, um toque de reunir: o dos audaciosos que, através do mundo, iam desde
então sonhando com emancipação religiosa integral ...
À pergunta muito natural: qual foi o intuito verdadeiro de Rabelais quando
compôs seu pantagruel: fazer rir seus contemporâneos ou perseguir algum miste-
rioso desígnio? - Abel Lefranc, atingindo o âmago da questão, responde sem hesi-
tar: "O autor deste livro aderiu, no começo de sua carreira literária, à fé racíonalísta":
41
42
ele fez mais; nutriu em si um "pensamento secreto". Ver em Mestre Alcofribas um
bom cristão, seduzido por um instante (como tantos outros) pelas primeiras mani-
festações de uma Reforma que estendia a mão ao humanismo: erro grave. Erro que
tirou dos criticos toda curiosidade, e nenhum deles se perguntou "se Rabelais, em
última análise, não deixara de ser cristão" (p. XLI). Ora, para Abel Lefranc, nenhuma
hesitação. Desde 1532, o pai espiritual de Panúrgio era um inimigo do Cristo, um
ateu militante. Ele, um adepto mais ou menos timorato da Reforma? Ora, vamos!
Um êmulo de Luciano e de Lucrécio, isso sim, "que foi mais longe que todos os escri-
tores contemporâneos no caminho da oposição filosófica e religiosa" (p. LI). E como
"a menor mudança teria constituído uma confissão que teria podido traí-lo", ele
manteve com imperturbável tranqüilidade suas alusões prometéicas e jamais tocou
nelas. "Que poder de ironia latente e contida! Este aspecto desconhecido do gênio
do escritor reserva ainda aos estudiosos, mesmo afora as idéias postas em causa e seu
alcance histórico, múltiplos assombros" (p. LIII).
Rabelais, concluía Gebhart em 1877, Rabelais foi um puro cético; doutrinas
diferentes dividiram sucessivamente sua alma e solicitaram o exame de sua razão.
"O que vale na verdade a adesão exterior que ele deu mais tarde à religião católica?
Esse é um grande Talvez que não se pode resolver." - Um grande Talvez, replica
Abel Lefranc: mas, não. Rabelais jamais foi um cético. Foi um crente, um crente da
incredulidade, e seu credo foi o dos espíritos fortes, radicalmente rebeldes à reve-
lação. Sua originalidade? Éde ter pretendido reunir ao seu redor todos os iniciados
- todos aqueles cuja reflexão inclinava já para as idéias de liberdade, "todos aque-
les que, através do mundo, sonhavam com uma emancipação religiosa total". E,
aliás, alguém em seu tempo não o compreendeu, e disse tão claramente quanto o
podia dizer: o enigmático autor do enigmático Cymbalum mundi de 1537? No
quarto dos diálogos que compõem a obra de Des Périers, o cão Hylactor, a quem
foi concedido o dom da fala, mas que não pode se fazer entender por nenhum de
seus congêneres, até o dia em que encontra seu velho companheiro, o cão Pam-
phagus - não é o próprio Des Périers, e que exige em vão que Rabelais-Pampha-
gus abra enfim a mão, cheia de verdades críticas e mortíferas? "Sob a enorme gar-
galhada do grande satírico", que ninguém se engane, "dissimulam-se as mais
audaciosas ambições. A máscara da loucura é apenas um meio de que Rabelais se
serviu para lançar através do mundo as verdades e as negações que lhe era impos-
sível fazer ouvir de outra maneira" (p. LXVIII).
E aí está, quanto a Rabelais; mas aí está, ao mesmo tempo, quanto a seu
século. O aparecimento, em Lyon, desde 1532, de um manifesto de ateísmo redi-
gido em francês e destinado desde então não à elite latinista, mas à grande massa
daqueles para quem as prensas dos Nourry e dos Arnoullet sempre imprimiam
romances de cavalaria em prosa aburguesada ou almanaques e contos licenciosos:
eis com que subverter a história intelectual e religiosa de nosso século XVI, tal como
a estabeleceram gerações de historiadores e de eruditos. Abramos simplesmente
a vasta exposição das fontes e do desenvolvimento do Racionalismo na literatura
francesa, que foi publicada sob os cuidados de Henri Busson no mesmo ano em
que Abel Lefranc publicava sua Introdução ao Pantagruei: das datas limites inscritas
na capa, a primeira não é 1532, data dopantagruel, mas 1533, data do primeiro dis-
curso de Dolet em Toulouse. E Busson esclarece: aos leitores de antes de 1533,
jamais ocorrera a idéia de construir um sistema de metafisica ou de moral fora da
religião. E 1533 é apenas um ponto de partida; foi lentamente, prudentemente,
sorrateiramente, se se quiser, que, ao longo da década seguinte, os discípulos dos
paduanos introduziram na França suas doutrinas suspeitas - essas doutrinas que
"nem Rabelais em seus dois primeiros livros, nem Des Périers no Cymbaium pare-
cem conhecer". Assim, Busson (Prefácio, p. XN). Mas Abel Lefranc: Pantagruel,
1532, o primeiro toque de clarim do ataque libertino ... E eis levantada a questão.
É verdade que Rabelais, no silêncio revoltado de sua consciência, tenha ali-
mentado desde 1532 o desígnio consciente, e arriscado, de combater a fundo o
cristianismo como religião revelada? É verdade que, num tempo em que o con-
flito brutal das confissões ainda não lançara tantos moderados em um ceticismo
cheio de estranhas novidades - é verdade que antes, bem antes do caso dos Car-
tazes, na França de entre 1530 e 1535 toda povoada de evangélicos, de erasmia-
nos e de "fiéis", o historiador possa abrir uma rubrica "Pensamento livre" em
que se inscreveria atrás de Rabelais, sorrateiramente resoluto, toda uma tropa de
homens possuídos por um mesmo sentimento: o ódio ao Cristo - feroz, impla-
cável, mas refletido?
"É verdade que" - a fórmula cheira a juiz de instrução. Trata-se, então, de
instruir um processo, de pesar testemunhos: os dos amigos, dos inimigos de Rabe-
lais; os do próprio Rabelais depondo por sua vida e, ao mesmo tempo, por suas
obras. Esse processo, vamos retomá-Io. Mas, refeita a instrução, decidir por sim ou
não? O exame crítico dos fatos não nos pode levar a substituira fórmula do magis-
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trado: "é verdade que" - pela do historiador: "como explicar que?" - Fórmula
humana; fórmula daquele que sabe que, em cada momento de seu desenvolvi-
mento, as crenças da humanidade são o que podem ser. E, portanto, o problema
não é de se perguntar se, lendo certas passagens de Rabelais, somos tentados, nós,
a exclamar: "Esse Rabelais! Um livre-pensador, já!". Mas se, quando liam essas
mesmas passagens, os contemporâneos de Rabelais (digo os mais sutis) experi-
mentavam, ou não, uma tentação dessa ordem; finalmente, se o próprio Rabelais
e, além de Rabelais, um homem de cultura equivalente podia, ou não, alimentar
naquele tempo o desígnio de "revelar" uma doutrina da qual nos é bem assinalado
o aspecto de negação: oculta-se de nós, não sem motivo, seu conteúdo primitivo.
Em duas palavras, na prática da história religiosa, o método do "é verdade
que" não levaria a um impasse? Mas o do "é possível que" não conduziria, ao con-
trário, o historiador a esse fim último de toda história: não "saber", a despeito das
etimologias, mas "compreender"? Esse é o espírito no qual vamos retomar a ques-
tão e, em primeiro lugar, examinar testemunhos e testemunhas.
44
Livro primeiro:
O testemunho dos contemporâneos
1. Os bons camaradas
Contra Rabelais um processo é aberto. Um processo de ateísmo e de anticris-
tianismo. Os fatos remontariam a 1532 e à publicação do Pantagruel. Testemunhas
são citadas, múltiplos testemunhos são registrados. Modestos, nós nos contenta-
ríamos com um único texto - mas decisivo. Existe um?
Sim, respondeu, há quarenta anos, Louis Thuasne, esquadrinhado r emérito.
Sim, repetiu, há vinte anos, Abel Lefranc, príncipe dos estudos rabelaisianos.
Vejam aquele texto de 1533, anterior ao Gargãntua, contemporâneo de Pantagruel:
é a condenação por ateísmo do primeiro livro de Rabelais. E o juiz é competente:
vocês recusariam]oão Calvino? - Além disso, leiam aqueles versos latinos. Seus
autores conheciam, freqüentavam Rabelais, davam-se com ele. Eram beneficia-
dos com sua linguagem solta. Também eles, com algum atraso, o acusam, como
Calvino, de anticristianismo. Como duvidar?
Retomemos o dossiê, olhemos com cuidado. E deixando de lado, provisoria-
mente, a peça principal, o documento Calvino, o único contemporâneo de Panta-
gruel: nós o examinaremos mais adiante, com outros textos de controversistas e de
teólogos - ouçamos com atenção os pequenos camaradas, os "poetas" cujo tes-
temunho os dois eruditos de renome concordam em elogiar.
47
I. OS APOLOS DE COLÉGIO
Vejamos, mas como? É aqui que precisamos permanecer fiéis ao nosso pro-
pósito - e recusar-nos ao contato com documentos tomados isoladamente,
enquanto não houvermos, em conjunto, analisado certos hábitos de espírito, cer-
tas maneiras de ser, de agir e de pensar próprias ao pequeno mundo curioso, sim-
pático e desagradável a uma só vez, dos fiéis servidores do dístico e do jambo.
Microcosmo mal conhecido. Não encontrou seu historiador. I Talvez não
o mereça? O tédio de ler tantas laboriosas prosódias, e de as ler com dificuldade
(as coletâneas são raríssimas, é preciso caçá-Ias de biblioteca em biblioteca)-
esse tédio parece superar, em muito, o proveito. Não há aí, inexplorado, um
capítulo de história do espírito humano. Alguns testemunhos de psicologia his-
tórica, isto sim.
Então, evoquerno-Ios diante de nós, todos aqueles que, na Gallia poetica,
entre 1530 e 1540, rivalizavam em zelo, se não em talento: Saumon Meigret de
Loudun, que continuaremos a chamar, por seu nome latinizado, Salmon Macrin;
Nicolas Bourbon, o Velho, o Horácio champanhês; Étienne Dolet, versejando
quando lhe dá na cabeça; Gilbert Ducher, o ApoIo de Aigueperse; Vulteius, com
nome tirado de Horácio, que se chamava, em bom francês,Jean Visagier: ei-los, os
grandes (se assim se pode dizer), os majores escoltados pelos minores: e Germain de
Brie, e Dampierre, e Du Maine, Rosselet, Guillaurne Scéve, o lionês, Antonio Gou-
vea, o lusitano, Júlio César Scaliger, suposto herdeiro dos Della Scala de Verona;
Jean de Boyssoné, jurista de Toulouse; íamos esquecer, pedagogo agressivo,
Hubert Sussanneau ou Sussannée, de Soissons; ei-los todos, Brixi, Dampetre, Bor-
boni, Dolete- Vulteique operis recentis author[Brixius, Dampierre, Bourbon, Dolet/
e Vulteius, autor de obra recente] - tais como os evoca o refrão de um hino de
Macrin; ei-los com seus traços comuns, suas taras profissionais e, antes de tudo,
sua enorme, assombrosa e cândida vaidade ...
Nenhum incenso prodigalizado demais para eles. Aos colegas, dispensam-
no generosamente, mas, bem entendido, esperando a retribuição.' Escutemos
um deles, não o mais desprezível, Ducher. Seu exemplo, seu modelo? O grande
Macrin, o Horácio do século, mas um Horácio diante do qual deve empalidecer
Quinto Flaco, o antecessor. - Seu amigo, seu apoio? Guillaume Scêve, o lionês.
Ah, de quanto seu gênio poético não ultrapassa o de Catulo em pessoa!. .. De
quanto? Ducher o sabe, Ducher o diz:' exatamente tanto quanto um Bucéfalo,
em pleno galope, deixa para trás uma tartaruga: Ut testudineos incessus Pegasus,
aique - Bucephaius, domini ciarus amore sui [... ] [Tal como Pégaso, os passos da
tartaruga, mormente/ Bucéfalo, famoso em razão do amor de seu dono]-
Nicolas Bérault, esse faz as delícias de Palas e das nove irmãs: doido varrido
quem ousa duvidar disso. Charles de Sainte-Marthe vale Febo em pessoa; igua-
lar-se a ele é procurar o destino de Mársias (Ducher, p. 117): Phoebus es, et Phoebo
tibi si me confero, fiam - Protinus extracta Marsya pelle tuus [És Febo, e se a ti, como
Febo, me comparo, tornar-me-ei/ de imediato o teu Mársias, depois de arran-
cada minha pele]. - Terminando por si próprio sua revista dos porta-liras, o
poeta serve-se sem parcimônia; tem a gentileza de desculpar-se por isso (ibid.,
p. 154) e a desculpa é divertida: tu bem sabes, confia ele ao público, interlocutor
resignado a falar apenas a linguagem que se lhe atribui: tu bem sabes, os poetas
não vivem senão para a fama: nos ti, [amam. tantum peti a poetis. - Mas Nicolas
Bourbon descobriu coisa melhor ainda. Para encorajar seu benjamim: "Vai, diz-
lhe ele, trabalha, obstina-te na tarefa; sem trégua nem repouso antes de teres
conquistado teu lugar ao sol. Assim te mostrarás um homem. Assim te tornarás
um segundo eu mesmo!" (Sic vir, sic eris alier ego!) - Palavra magnífica; com três
séculos de distância, a de Gustave Courbet tomando recuo diante de uma de suas
telas:" "Sim, é muito belo ... E olhem, Ticiano, Veronese, seu Rafael, EU MESMO ...
jamais fizemos nada de mais belo!" - É verdade. Só que Courbet era Courbet.
E o que ele olhava com contentamento" era muito belo", de fato.
Naturalmente, esses deuses do Olimpo empolados espreitam um ao outro
com olhar desconfiado. Ai de quem ferir sua vaidade: insultos atrozes, clamores
de ódio seguem-se, sem transição, aos panegíricos mais tresloucados, aos ditíram-
bos mais exaltados.
A querela poética: íamos acreditando, ingênuos, que se trata, de fato, de
uma querela. E sem dúvida, na origem, há realmente melindre e debate. Mas o
conflito serve, antes de tudo, de tema cômodo a uma cascata de peças. Uma dis-
puta: que achado para gente que não tem nada a dizer! Em primeiro lugar, os
fatos, contados de modo trágico. Depois as invectivas: a primeira, a segunda, a
49
terceira, as repetições. Em seguida, uma após a outra, a copla nostálgica da ami-
zade defunta; a explicação leal; a peripécia (a culpa é de X... )-e, finalmente, as
reconciliações.
Quem utiliza os documentos biográficos fornecidos por esses "poetas" de
muito fiel memória - aí está o que ele nunca deve perder de vista. Testemu-
nhos, sem dúvida, mas antes de tudo, destreza profissional. Sinceridade, talvez
- mas boa para ser posta em dísticos. Uma indignação verdadeira, porém guia-
da pela comodidade de reempregar, aqui, aquele hemistíquio de Catulo, ali
aquela cadência de Marcial. Pois as queixas podem ser verdadeiras: mas jamais
impedirão o indignado de imitar, mesmo à custa dedeformações certas, o
modelo de tal peça de Horácio ou de Tibulo: só para mostrar que é letrado, e
que, forte como Ausônio no centão, pode em dez versos alinhar vinte reminis-
cências. Proeza: os próprios rivais, e os injuriados, o apreciarão, caso convenha,
como conhecedores.
Quanto ajamais suprimir nada do que se produziu: pérolas de tal água não se
destroem! Ou se destitui o primeiro padrinho: dedicado primeiro a Nicolas Bour-
bon, tal epigrama torna-se uma oferenda a Marot. Ou então se imprime tudo,
sucessivamente e sem escolha: clamores de admiração, gritos de ódio, protestos
de ternura, explosão de fúria: nada se perde. E se porventura Sébastien Gryphe
oferecer suas prensas ao poeta exaltado antes que a reconciliação prevista lhe
tenha permitido compor as três peças rituais: tanto pior! O leitor, à terceira página
da coletânea, lerá o elogio ditirâmbico de um homem que, à trigésima, verá tra-
tado por sodomita, assassino ou, pelo menos, ateu. Na coletânea seguinte (se vier
à luz algum dia), as coisas serão acertadas e as contas, apuradas.
Daí, para nós historiadores, uma primeira regra de crítica: jamais tomar ao
trágico essas invectivas de magnificência; tanto mais que uma querela traz pro-
veito tão-só aos adversários; amigos e inimigos nela se imiscuem, cada um do seu
lado. E, portanto, segundo preceito: jamais ler um único poeta para julgar uma
acusação lançada contra ele ou por ele; fazer a ronda do Parnaso e consultar os que
o pagam na mesma moeda ou favorecem seus esforços.
Um desses filhos das Musas fanadas, um dos mais notórios em seu tempo,
Nicolas Bourbon, descobriu um dia, por acaso, a palavra justa. Batizou duas cole-
tâneas, sucessivamente, Des Riens: Nugae [Ninharias]. Duzentas e quarenta e oito
50
páginas de Ninharias em 1533 e quinhentas e quatro em 1548 (elas proliferaram).
Contudo, o título preocupa um colega amigo;' e se o público tivesse a idéia de
tomá-lo ao pé da letra? Temor quimérico: nenhuma desonra em escrever ninha-
rias; só o torneio conta, e a prosódia.
Um poeta, por sorte, encontra um "tema". Com uma paciência de relojoeiro,
duas vezes, dez vezes, revira-o, diz a mesma coisa com as mesmas palavras: apenas
a ordem difere - vejam os títulos: de eoâem. [sobre o mesmo], de eadem [sobre a
mesma], ad eumdcm [para o mesmo], ad eamdem [para a mesma]. .. Vulteius é amigo
de umJunius Rabirius que publica em Paris, em 1534, um opúsculo De generibus
vestium [Sobre os tipos de vestimentas]. Ocorre-lhe uma idéia preciosa: "Rabirius,
meu amigo, tu que discorres tão doutamente sobre a vestimenta, nem sequer tens
roupa para te cobrires". Vestecares, intratpenetrabilefrigus inartus; -villosan curnon
dat liber endromidemi [Careces de roupa, atravessa os membros um frio pene-
trante;/ por que esse livro não te dá uma capa felpuda?] (1536, I, p. 35). A idéia
parece feliz: redobremos: Qui vestes, lanas, telas, aulaea, colores- intus habet, nudus
stat sine veste líber [... ] [O livro, que dentro contém vestes, lãs, tecidos, tafetás,
cores, / está nu, sem vestimenta] - Recomecemos agora, de eodem: Vestimentorum
rationem nosse laboras [...] [estás empenhado em conhecer a arte das vestimentas].
Mas em 1526, em Basiléia, Lazare de Bayf, personagem importante, não publicou
um De re vestiaria [Sobre a arte indumentária] muitas vezes reimpresso depois?
Depressa, retomemos o tema mais uma vez para uso próprio, com os arranjos con-
venientes a um ex-embaixador: Romanas vestes docuit qui sericafila - vestitus liber
est pellibus exiguis [O livro que mostrou os fios de seda às vestimentas romanas/
vestiu-se de poucas peles] (I. 45). A multiplicar semelhantes exemplos, esvaziaría-
mos a cabeça, como essa pobre gente.
No entanto, com que violência vigiam seus tesouros de pacotilha! Eles, que
não têm nada de muito seu além de certa destreza: mas sua existência inteira se
passa a gritar "Pega, ladrão!" - As fastidiosas querelas que alimentam suaindigên-
cia vêm todas daí. O colega os pilha, o colega os rouba; toma-lhes as idéias, ó pro-
dígio, e saqueia descaradamente seus dáctilos com seus espondeus. Um deles, Vul-
teius, imprime um título admirável no cabeçalho de uma de suas peças de
Hendécasyllabes [Hendecassílabos] (1538, 11, 52 VO); ele cantava uma Délie, que cha-
mava Clínia. Ela morre, ou ele a mata. E, entre tantos temas que essa morte lhe for-
nece, encontramos este, por prodígio imprevisto: Scribendi materiam sibi morte Cli-
niae ablatam [...] ["Que pena, sua morte me priva de uma matéria!"].
51
Uma matéria, essa raridade ... Assim, dos nomes injuriosos que eles se lançam
à cara, Zoilo é de longe o mais comum. Tão logo enviado, é devolvido ao reme-
tente, com exaltação, com raiva: essa pobre gente sente que os anos passam
depressa. Proezas como a de Marot, levando com irresistível malícia seu "francês
vulgar" ao topo dos Pindus, soam aos seus ouvidos como o fim dos hexâmetros.
Tanto mais eles se obstinam, fazem o policiamento de sua corporação. Por pouco,
criariam um delito: o exercício ilegal do verso sáfico e do jambo."
E todos, herdeiros dos trovadores medievais, vivem, assim, sob o olhar do
cliente, ou melhor, do patrão: notemos de passagem o trabalho que se fez em nos-
sos espíritos para chegar a essa curiosa transposição; para nós, o dono é o autor-
para eles, o leitor. - Imaginemos como lhes é duro ganhar a vida. Enquanto eles
cantam maravilhosos amores com princesas douradas, entrevistas de longe em
algum castelo onde a bonomia do século porventura os recebeu - uma mulher
gorda e sem viço, com sua ninhada de fedelhos pendurada às suas saias, faz tudo para
alimentar toda a sua gente em uma pobre casa de Touraine ou de Anjou: uma gorda
mulher injuriosa, por vezes infiel e que não se nutre de Tibulo nem de Horácio. O
destino de Hans Holbein, fugindo para Londres das fealdades domésticas e dos abor-
recimentos de Basiléia.
Eis o que os torna nervosos, irritáveis e maldosos - essas pesadas preocupa-
ções com o pão cotidiano, essa mendicidade quase obrigatória, esses comprome-
timentos exigidos pela necessidade. Traço revelador: não há coletânea que não
tenha seus dez, doze, vinte epigramas sobre parasitas: De parasito, In parasitum ...
Eles traduzem o recalque, e a idéia fixa: ter o que comer durante toda a vida, sem
nada pedir a ninguém, sem que seja preciso, para se alimentar, adular outrem da
manhã à noite ... Ser rico "de berço", outra idéia fixa revelada por sua insistência
em pretender-se todos - a despeito dos rivais que lhes lançam à cara sua pobreza
- "filhos de ricos" arruinados pelo destino desfavorável. E como se adivinha, por
mil sinais que não enganam, seu ódio secreto pelos burgueses saciados - os que,
mediante paga em ditirambos, lançam-Ihes desdenhosamente um osso debaixo da
mesa.' Mas que desprezo, na alma dos" devedores":
Quando penso, acho bem estranho
Quererjulgarcores sem ver-
52
Aquele que sempre manejou lama
Querer do ouro ojulgamento ter [... J
Para esses gordos iletrados, um tributo de enormes bajulices quando é pre-
ciso, mas uma lucidez feroz. Pois, para citar novamente Jean de Boyssoné, filoso-
fando sobre os ricos de Toulouse:
Se queres ter um amigo que seja rico,
Procura Nolet, Lancefoc ou Bernuy,
E se queres um amigo que seja avaro,
Toma esses mesmos [... J8
Também: nada de dinheiro, nada de entusiasmo. Tal epigrama mudará de
titular na segunda edição; o primeiro beneficiário não poderia lastimar-se: fez bom
negócio, exatamente a duração de uma reedição. Mais elegante, Oucher oferece
cada livro de sua coletânea, simultaneamente, a dois protetores; ao primeiro a
epístola, ao segundo a dedicatória; duas epístolas no total, e quatro me cenas cer-
tos de passar à posteridade. Se são generosos, entenda-se.
Aliás, eventualmente, esses inquietos, essas almas sensíveis, esses irritáveis
perpetuamente suscetíveis mostram-se bons camaradas e se prestam serviço. A
dicotomia tem seus velhos documentos, basta ler Oucher para se dar conta
disso. "Foi Nicolas Bourbon" - notifica ele a um rico lionês solidamente
munido de moeda sonante(Épigr., n, p. 150) - "foi Nicolas Bourbon quem te
assinalou à minha atenção. Sem ele,jamais teu nome se teria exibido em minha
coletânea; em boa justiça, deves-lhe alguma coisa!" Ameaçados, unem-se con-
tra o inimigo comum, aproximam-se e formam bloco. Na ponta, os bem-suce-
didos, os prebendados, os "gordos". Atrás, invejando-os, espreitando seu lugar,
usando-os como escudos enquanto esperam, os magros. Esses pobres-diabos
vivem uma gravura de Bruegel; como legenda, ela poderia tomar os versos de
Antoine Ou Saix, poeta saboiano e coletor de presuntos de Rabelais; um mes-
tre-escola?
Fosse ele primo germano deJúpiter,
Mesmo assim terá apenas de um galgo as pagas -
E muita vez, vestido como os pajens,
53
Mais esfarrapado que arreios de garanhão,
Padre nos joelhos eArgo nos calcanhares,
Eis o estado dos pobres pedagogos [...J
Com tudo isso, virtudes. Em primeiro lugar a de crer no que fazem, ou
mesmo no que dizem. Eles têm a sinceridade do ator que se prende a seu papel.
Nos elogios que se concedem, querem ser os primeiros a acreditar: alimentamo-
nos de orgulho quando tantos grosseirões fazem pouco de nossa miséria. A altís-
sima idéia que esses pobres homens conservam de sua missão os ampara, lhes dá
a força de escrever em pleno inverno em sua mansarda sem fogo, enquanto a tinta
gela em seus tinteiros; eles contam isso com um sorriso de esgar.
E além disso, na Beleza tal como a imaginam, na eficácia soberana das letras,
que fé ingênua? Interessada, sem dúvida: vivem do altar que eles próprios erguem tão
alto. Mas não apenas interessada. Eles celebram o culto com um entusiasmo autên-
tico. Estão dispostos a sofrer por sua fé de humanistas. Aí está seu lado belo, o que faz
com que, a despeito de defeitos tão visíveis, mereçam, no entanto, que os estudemos.
Todos os contemporâneos de Gargãntua e de Pantagruei, - têm todos nesta
terra um Deus a venerar: o próprio Deus do humanismo, Erasmo. 10 A seu culto
celebrado em toda parte na Europa, nossos franceses acrescentam o de um santo
nacional:]acques Lefêvre d'Étaples, o bom Fabri - e não se desdizem, mesmo no
dia em que Lefêvre, suspeito, é perseguido por uma Sorbonne que se defende ata-
cando. A maior parte grita bem alto suas convicções reformadoras - não diga-
mos reformadas - sem preocupação com um ilogismo inevitável: pois é disso
que se trata, quando se exerce por volta de 1530 o sacerdócio de poeta latinista em
Lyon ou em Paris - é um ilogismo reclamar para todos a Bíblia em francês, os
Salmos em francês, o culto em francês. Eles não se importam com isso, defendem
suas idéias, invocam o Cristo tão alto que por vezes a Sorbonne os escuta, ou o
Parlamento. Têm seus pequenos mártires. Terão seu grande mártir um dia,
Étienne Dolet. Um mártir que muitos repudiaram de antemão, e que paga, mais
tarde no século, uma dívida que a maior parte então conseguiu fazer desaparecer
de suas contas a pagar. - Seu mártir assim mesmo, o autor dos Carmina e dos
Commentarii. Pois seus defeitos eram deles. Mas ele os exagerava. Suas virtudes
também, aliás.
Rápido esboço, que não pretende substituir o quadro ausente. Neste livro,
54
neste lugar, ele não é inútil. Permitirá situar melhor, à medida que aparecerem, os
homens cujos testemunhos deveremos pesar: amigos e inimigos de Rabelais, mas
- segundo a fórmula que acabamos de estabelecer- amigos que se transformam
em inimigos, inimigos que voltam a ser amigos.
lI. UMA TESTEMUNHA DE THUASNE: JEAN VISAGIER
Podemos voltar agora aos achados de Thuasne, retomados e completados
por Abel Lefranc. Eles se agrupam em torno dos anos 1536-8, que viram abundan-
tes eclosões, em Lyon e em Paris, de coletâneas poéticas. E foi em um deles, lati-
nista em voga por volta de 1537, que Thuasne primeiro descobriu a prova de que,
aos olhos de seus contemporâneos, Rabelais - o Rabelais de Pantagruel e de Gar-
gântua - passava, sem dúvida possível, por um perfeito ateu.
Vulteius, cujo nome tirado de Horácio Thuasne reafrancesava em Voulté
(alguns, muito engenhosos, tiveram a idéia de chamá-lo Faciot; ele próprio, que
devia saber a explicação disso, 11 chamava-se muito simplesmente Visagier), era um
desses poetas de segunda linha cuja vida reproduz, traço a traço, a de cem letrados
seus contemporâneos. Nascido em Vandy-sur-Aisne, perto de Vouziers, e qualifi-
cando-se em suas coletâneas como natural de Reims - ao que parece ele se tor-
nara mestre em artes em Paris, depois torna-se professor. Quando o magistrado
de Bordéus empreendeu dotar sua cidade de um grande colégio - o equivalente
do Collége Saint-] érôme de Liêge ou da Universidade de Wittenberg sob Me1anch-
thon; quando toda uma colônia de mestres parisienses foi instalar-se às margens
do Garonne, o primeiro diretor da nova fundação,Jean de Tartas, inscreveu Visa-
gier em seu grupo; temos o contrato que concedia ao beneficiário ordenados (40
libras por ano) mais altos que os dos outros mestres. Era um prêmio ao helenismo?
- Depois disso, durante três anos, cronologia indecisa e não poucos enigmas a
resolver. Sabemos apenas que Visagier publicará contra Tartas versos mal-inten-
cionados;" não temos prova de que ele tenha permanecido no Collêge de
Guyenne sob André de Gouvea (o maior diretor da França, no dizer de Mon-
taigne), quando esse sobrinho do velho Diogo, o Beda português, o reacionário
diretor de Sainte-Barbe, foi, em abril de 1534, substituir Tartas com uma equipe
nova: os dois Buchanan,]ean Gelida, Élie Vinet, Antonio de Gouvea; ao menos no
primeiro colégio, e, já, numa atmosfera de piedade inovadora, Visagier pudera
55
conhecer homens interessantes: por exemplo, o melancólico Britannus, um
inquieto, um instável, que respondia a tudo com um eterno: Homo sum miser, etpec-
cator inanis; sum quod sum, grato munere caeiicoium [Sou um pobre homem e vão
pecador; sou o que sou, por grata dádiva dos celícolas]; 13 ou ainda o barbudo Zébé-
dée, a quem ninguém conseguia impor a navalha: frívolo, brigão, intratável e que,
tornando-se pastor na Suíça francesa, foi um flagelo para Calvino; e também o
príncipe dos pedagogos, Mathurin Cordier, de passos lentos de velho mestre-
escola: original e obstinado, no fundo, como um autodidata. 14
O certo é que Visagier, desejoso de fazer estudos jurídicos, foi instalar-se em
Toulouse na escola de Jean de Boyssoné e conheceu, com esse jurista liberal, o
ambiente da cidade, tão conturbado, com suas perseguições dos que" cheiravam
a heresia", suas divisões de nações universitárias, suas revoltas de estudantes
duramente reprimidas. Foi então, ou mais tarde em Lyon, que ele conheceu
Dolet? Em todo caso, no verão de 1536, Visagier cuidava da impressão de uma pri-
meira coletânea, Epigrammatum libri II, em Lyon, por Gryphe, príncipe dos
impressores: Castiga: Stepnanus, sculpit Colinaeus, utrumque Gryphius edocta manu
menteque facit [Estéfano castiga, Colineu esculpe, uma coisa e outra faz Grífio
com a mão e a mente instruídas] (1,54). E, na dedicatória ao ilustríssirno cardeal
de Lorraine, estampava-se um elogio ditirâmbico de Étienne Dolet, esse prodí-
gio,]uuenis de lingua latina optime meritus [jovem o mais benemérito na língua
latina] - que se preparava para dotar a França de admiráveis Comentários, aâ
publicam omnium linguae latinae amantium utiliiatem [para a utilidade pública de
todos os amantes da língua latina].
E então, eis Visagier em contato com aquele sedutor meio lionês; ei-lo ini-
ciando-se nos arcanos da poderosa cidade. Cidade de comerciantes e de banquei-
ros vindos de toda parte para as quatro feiras, florentinos e lucenses, venezianos e
genoveses, suevos e alemães, os agentes dos Mediei como os dos Fugger -
Gadaigne, o proverbialmente rico, assim como Kleberger, o proverbialmente libe-
ral. Cidade de fabricantes e de inventores, os que (dois piemonteses de Cherasco,
Turquetti e Nariz, associados a um francês, Vauzelles, e precisamente em 1536)
estabelecem em Lyon o fabrico da seda, instalam teares, atraem trabalhadores.
Cidade régia, Lyon, onde a corte mantém seu estado durante semanas: a corte,tropa pitoresca, circo ambulante de cortesãos a cavalo, de grandes damas em car-
ros, de lacaios e de bufões, de animais de sela e de albarda, que precisamente em
janeiro de 1536 invade a península entre Saône e Rhône, ali acampa ruidosamente:
Lyon éddade entre todas as ddades
Cheia de gente, de riqueza e de bens...
Pois ali se pode grandes coisas ver,
O Rei, a Rainha, Bispos, Cardeais,
Os três Infantes, os Senhores principais
Com crédito junto desse poderoso Rei. "
Toda essa gente excursiona de Crérnieu a Saint-Chef e a Montbrison na pri-
mavera, de Valence a Avignon durante o outono; mas o Conselho permanece em
Lyon com seus letrados - em Lyon, cidade dos livros, das muitas prensas em ação,
dos impressores ativos controlados de perto por seus ricos patrocinadores; e de
suas oficinas uma torrente de papel se espalha, papel de grande saída, impresso em
francês: livros religiosos e de devoção, livros de leitura popular, romances de cava-
laria postos em prosa burguesa, remédios caseiros e tesouros de drogas, cenas de
plantas com maravilhosas gravuras. O todo, alimentando um pequeno mundo de
impressores aberto às novidades, bastante cosmopolita, ativo, original, turbulento
- um ímã para os letrados, atraídos de longe por essa chama lionesa, iluminadora
e reconfortante: todos se procurando, se descobrindo, aprendendo a se amar ou a
se detestar, em estabelecimentos como o de Gryphe, de Württemberg: Sébastien
Greif de Reitlingen, perto de Tübingen, o impressor do grifo, fixado em Lyon
desde o fim de 1522, trabalhando por conta própria desde 1528, vulgarizado r das
edições aldinas, incansável propagador dos escritos erasmianos." Sua casa, refúgio
de muitos colaboradores e revisores renomados, de Alciat e de Sadolet a Rabelais
e a Dolet, passando pelos Sussannée, os Baduel, os Hotman, Baudoin, Guilland,
Ducher e outros; o ponto de encontro de inúmeros belos espíritos do lugar e de
toda parte: de Marot a Macrin, dos dois Scêve (Maurice e seu primo Guillaume) a
Jean de Boyssoné, Nicolas Bourbon, Barthélerni Aneau e quantos outros, france-
ses ou ligados ao Império germânico? Freqüentar a casa de Gryphe, ter acesso aos
círculos que se formavam e se transformavam constantemente em torno das pren-
sas lionesas; além disso, poder, folheando as novidades, conhecer instantanea-
mente o que se pensava e se escrevia de mais penetrante, de mais novo na França,
nos Países Baixos, na Alemanha e na Itália: que sonho para os estreantes perdidos
57
Diga-se o que se quiser
Do Leão e sua crueldade;
Encontrei mais honradez
Enobreza nesse Leão
Do que por ter freqüentado
De outras bestas um milhão [...]
em sua província natal, que torrente de desejos confusos voltados para a Atenas,
não do Rhône como diríamos hoje, mas, naquela data ainda, do Saône - para o
"Leão" alegórico cantado por Clément Marot:"
Foi lá que, depois de muitos outros, ao longo de 1536, Jean Visagier veio ini-
ciar-se nos segredos do mundo agitado das letras. Não muito tempo,já que, publi-
cada sua coletânea em agosto, em setembro ele voltava a Toulouse junto de Boys-
soné. Mas, quatro meses mais tarde, peripécia trágica: em 31 de dezembro de 1536,
em Lyon, Dolet matava a punhaladas o pintor Compaing. Caso de legítima defesa,
pretendia ele? História sórdida, em todo caso. E, enquanto o homicida fugia atra-
vés da montanha a toda pressa e tentava chegar a Paris para defender sua causa-
Visagier, escutando apenas sua amizade, partia para Lyon, ali não encontrava mais
o fugitivo, tornava a partir imediatamente para Paris e ali chegava bem a tempo-
na véspera mesmo do dia notável em que, agraciado pelo rei em 9 de fevereiro,
Dolet era o herói de um banquete de libertação a ele oferecido por seus mestres e
amigos; no relato que nos deixou dessa festa de amizade, o autor dos Comentários
tem uma palavra amável para esse estreante - Vu[teius non parvam - De se spem
praebens doctis [Vulteius que oferece àqueles sábios não pequena esperança acerca
de si] - que ele faz sentar-se à mesa com o grande Budé, Nicolas Bérault, Danes,
Toussain, Salmon Macrin, Nicolas Bourbon, Dampierre, Clément Marot - e
François Rabelais, honra e glória da arte médica: Franciscus Rabclaesus, honos et glo-
ria certa - artis Paeoniae, qui vel de lumine Ditis - exstinctos revocare potest et redâere
luci [Francisco Rabelais, honra e glória incontestável! da arte de Péon, que mesmo
do lume infernal/ pode fazer voltar osjá extintos e restituí-los à luz]. -Aliás,já, e
em todo caso desde sua passagem por Lyon, Visagier conhecia esse homem céle-
bre; encontra -se nos Epigrammes de 1536 uma peça Ad Rabelaesum (que será repro-
duzida na edição de 1537): calorosa defesa de Rabelais contra um caluniador.
58
<i\quele que pretendeu, Rabelais, que teu coração estava infectado de raiva,
enquanto tua Musa contentou-se em condimentar a verdade - esse aí mentiu ao
dizer que teus escritos emanavam raiva. A raiva, dize-nos, tu a cantas, Rabelais?
Não, foi ele, esse Zoilo, que se muniu de jambos enfurecidos; teus escritos, não é
raiva, são risos que eles emanam." I.Uma das traduções mais indicadas do nome
de Rabelais, Rabeiaesus, prestava-se ao trocadilho: Rabie Iaesus [pela raiva inju-
riado]. Estavam na moda, então, essas brincadeiras de colégio; ela não iria perder-
se tão cedo - atestemos apenas o Bos suetus aratro [boi habituado ao arado] que
acompanhou, durante sua juventude, o futuro águia de Meaux ... Visagier, em
1536, comove-se com o jogo de palavras anti-rabelaisiano. Toma partido pelo
pseudo-raivoso. Contra quem? Como se disse, contra Júlio César Scaliger; volta-
remos a isso. Em todo caso, nenhuma palavra de desaprovação ou de desconfiança
contra Rabelais nessa coletânea de 1536, na escrita de um homem que, desde 1532,
tivera tempo de ler Paniagruei: decerto não se ignorava o livro nos meios que ele
freqüentava. Mas, longe de tomar o médico de Jean Du Bellay por um bUIaO sus-
peito, nele honra uma das luzes não apenas da medicina, mas do direito civil: Civili
dejure rogas quid sentio, Scaevai - Hoc verum noster quod Rabelaesus ait [Perguntas o
que penso sobre o direito civil, Scêver / Sem dúvida isso que diz nosso Rabelais]
(1536,11, 167).
No entanto, Visagier é um cristão piedoso. Também ele, como todos os poe-
tas seus êmulos, a quem Ferdinand Buisson consagrou recentemente páginas de
tom tão justo - 19 também ele multiplica em seus versos as invocações a esse Cristo
cujo nome, freqüentemente impresso em maiúsculas, destaca-se em tantas pági-
nas das coletâneas de então, "como uma espécie de homenagem ao cristianismo
eterno e universal". Nos Épigrammes de 1536 (I, 72), seguem-se longas séries de dís-
ticos, comolitanias: Christuspromissus ... , conceptus ... , natus ... ,passus ... , crucifixus ... ,
toda uma via-sacra em dáctilos e espondeus. Uma peça de bela entonação (I, 70)
canta Lefêvre d'Étaples, arauto do Cristo, e o próprio Cristo, "o Cristo, delícias
deste velho modesto, o Cristo refúgio deste velho trêmulo":
Christus, perfugium senis trementis ...
Quodfert pectorefert in ore Christum.
59
,
f
Uma outra (n, 129) apresenta em dois versos o testamento de Lefêvre:
Corpus humo, mentemque Deo, bona cuncta relinquo
Pauperibus: Faber haec, cum moreretur, ait. *
E então, subitamente, depois de um outro belo tributo de elogios concedido a
Gérard Roussel, esse compromisso comprometedor (r, 13; u, 113; 11, 168), uma
peça celebra o rei Francisco e seu estimável oportunismo (r, 11): tu renovas o san-
tuário, mas não lanças por terra o edificio de nossos pais, tu nova sacra[acis; servas,
Francisce, priora; testemunho curioso de um estado de espírito bastante notável, a
peça é publicada em Lyon em agosto ou setembro de 1536; ela não é mais que ire-
nismo. "Tudo o que fizeram nossos pais, proíbes aboli-Io; os ritos dos antepassa-
dos, não deixas o vulgo desprezá-los: isso seria, tu o ensinas, um crime - e pelo
fogo sagrado, aplicas-te em destruir os chefes das Seitas, em purificar a Gália de sua
escória maldita." Agosto-setembro de 1536; últimos ecos do casodos Cartazes
(outubro de 1534) e daquilo que se seguiu.
Necpateris patrum Jacta priora mori,
Nec priscos veterum ritus contemnere vulgus
Permittis, tetrum sed scelus esse doces [...]
Sentimentos de homem moderado que, com o mesmo coração, celebra a
elevação ao papado de Paulo IlI, promovido, nessa ocasião, à dignidade de intér-
prete de são Paulo - interpres Pauli Paulus sensu abdita monstrat [intérprete de
Paulo, Paulo mostra as coisas de sentido oculto] (r, 75) - e o estabelecimento do
Colégio Real, o nobre ginásio construído com pedras a descoberto, stant vivi
lapides operis [erguem-se as pedras vivas do edifício] (1,65). Se ataca os monges,
distingue imediatamente os maus dos bons: "De mais odioso que os monges,
nada, em todo o Universo; em todo o Universo, de mais santo que os monges,
nada" (n, 151). E mesmo em relação ao feroz Beda, inimigo declarado dos huma-
nistas, o poeta sabe manter a medida: "Expressada levianamente, tua sentença,
* "Deixo meu corpo para a terra, minha alma, para Deus, todos meus bens / Para os pobres; Lefêvre
diz isso ao morrer."
60
Beda, molesta os justos; porém, mais que aos justos, é a ti mesmo que prejudi-
cam tuas decisões" (n, 149).
Dum tua, Beda, /.evis vexat sententia justos
Plus tibi quam justus haec língua nocet [... ]
É que Visagier não pretende pactuar com a iniqüidade. Ataca-a várias vezes
na pessoa de desconhecidos que condena, sem hesitar, à chama da fogueira (I, 46):
Nonne timesjlamman, carnificisque manus? -, enquanto se mostra grande amigo do
presidente Briand de Vallée, o pretenso ateu, e que, à memória de um outro ateu
de renome, o pobre Agrippa, esse caco sacudido por tantas ondas furiosas, dedica
um epitáfio sensível e de tom justo (Épigr., 1537, IV, 257):
Post tempestates, dubíae post somnia vitae,
Agrippam parta mors requíete rapít;
Et ruí nulla foít misero per regna vagantí
Patria, cum superis gaudet habere domum [... J*
Ora, dois anos após os Épigrammes de 1536, esse liberal sem excesso, esse juiz
um pouco hesitante em sua doutrina, publicava (desta vez em Paris, por Colines)
quatro livros de Hendécasyllabes [Hendecassílabos], em um elegante in-octavo. E foi
aí que, em 1904, Thuasne descobriu as provas irrefutáveis do ateísmo rabelai-
siano." Três peças, nos diz Abel Lefranc, retomando a tese de Thuasne, não dei-
xam "nenhuma dúvida sobre as verdadeiras opiniões religiosas" de Rabelais. "Sob
a pena vingadora do cristão Visagier", elas constituem" requisitórios terríveis". O
poeta aí representa o autor de Paniagruel. como "tachando de estúpida increduli-
dade o conjunto da fé cristã. Raramente a impiedade e o ateísmo de Rabelais [esses
dois postulados, Nota do crítico] foram denunciados com uma energia mais
áspera". E não há dúvida possível: entre 1536 e 1538, a ruptura de Rabelais com
Visagier foi causada, exclusivamente, "por motivos religiosos".
* "Depois de tempestades, depois dos sonhos de uma vida incerta, / A morte, concedido o descanso,
arrebata Agrippa; / E quem, infeliz a vagar pelos reinos, não teve / Pátria, alegra-se em ter sua morada
junto aos deuses [...]"
61
Tendo lido, reportamo-nos prontamente aos Hendécasyllabes vingadores de
1538; abrimos com emoção a rara coletânea onde jaz a Prova. Decepção! O nome
de Rabelais não figura uma única vez em todo o volume.
Pouco importa! Rabelais não é nomeado Rabelais; mas vejam, nos é dito, aquela
longa invectiva (p. 10) contra um partidário sem religião de Luciano, in quemãam irre-
ligiosumLucianisectatorum; vejam (p. 30) aquela peça não menos copiosa, queveemên-
cia contra um imitador de Luciano; vejam, enfim (p. 71), aquela imprecação inLuciani
sectatorum, de uma grosseria intencional; nenhuma dúvida, o defensor de Luciano, o
imitador de Luciano é Rabelais. Tão certo quanto se seu nome estivesse impresso,
bem forte, no magnífico papel do editor Colines. - Verdade? dizia Panúrgio.
Algumas bagatelas, em primeiro lugar. Para Thuasne, que não diz uma pala-
vra sobre a peça In Luciani sectatorem - há dois epigramas em causa, Abel Lefranc,
por sua vez, diz três. Pessoalmente, encontro cinco, acrescentando à lista uma
invectiva In quemdam poetam e uma curiosa peça a Guillaume Scêve, que se lêem,
respectivamente, às folhas 28 e 42 da coletânea de 1538. Dois, três, cinco: queira
Deus que ninguém, amanhã, tenha a idéia de contar sete! Em todo caso, li e reli os
fastidiosos "poemas" do pobre Visagier.
A peça a Guillaume Scêve, como, até o presente, ninguém a considerou? Ela
dá a chave de tudo.
Quem é o imitador de Luciano, interroga Visagier? Quem, o poeta Tortonius?
Quem, o camarada ingratíssimo? Quem, ainda, esse Zoilo de que se fala em meus
Hendécasyllabes? Por mais que o perguntes, Scêve, não te direi. Pois eles mesmos se
trairão, e logo, por seus próprios versos, aqueles cujos maleficios meus versos
denunciam de antemão [...] E não duvides: então eles próprios serão mais severos
consigo mesmos do que eu com eles. Poupo-os. Mantenho secretos seus nomes.
Estigmatizo suas faltas, simplesmente. Eles se encarregarão de te dizer tanto seu
nome como sua falta."
Mais bem informados do que Scêve fingia sê-lo em 1538, sabemos o que Visa-
gier brincava de esconder-lhe. Se o poeta Tortonius e Zoilo são um e o mesmo, e
62
se esse um é realmente o poeta Borbonius, Nicolas Bourbon - há todas as proba-
bilidades do mundo de que o camarada ingratíssimo e o imitador de Luciano
sejam apenas um: Étienne Dolet.
IH. VISAGIER, BOURBON, DOLET
Bourbon, Dolet: os Épigrammes de Visagier, em 1536, estão cheios destes dois
nomes. E de seu louvor. Desde o prefácio ao cardeal de Lorraine, em que são exal-
tados em termos ditirâmbicos os Comentários da língua latina do jovem Dolet, essa
obra prodigiosa (at quod opus? quam minime ajuvene exspectandumi ouantae diligen-
tiae? quanti laboris? quam exacti judicii?) [mas que obra? Quão pouco era de se espe-
rar de um jovem? Quanta diligência? Quanto empenho? Que exatidão de crité-
rio?], até o fim do segundo livro, uma boa vintena de peças, curtas ou longas"
atestam, a uma só vez, a admiração de Visagier e sua afeição, sua ternura pelo
jovem humanista. À fórmula quase amorosa do início (p. 8): Huic uni placuisse,
prima laus [...] [Ah! Tê-lo conquistado!], corresponde o voto absurdo da página 11:
O Deus, a simiiem me darei esse Deus! [Ó Deus! Parecer-me com ele!], sem contar as
definições equilibradas: orator bonus et bonus poeta, si quisquam fuu, unus est Doletus
[bom orador e bom poeta, se houve algum, foi somente Dolet] - ou, para termi-
nar (n, 152), este êxtase: Tam pulchrum est corpus, mens est tam pulchraDoleti - Totus
ut hoc possim dicere: pulcher homo estl [Ah, como é belo, teu corpo! Ah, tua alma,
como é bela! Ah, como não dizer: que homem totalmente belo!].
Quanto a Bourbon, se seu quinhão é menor - esse quase compatriota não
tem de que se queixar, porém. Nascido em 1503 em Vandoeuvre, na Champanha,
filho de um fundidor, era alguns anos mais velho que Visagier. Bem cedo reno-
ma do por seus versos fáceis, ensinara em Arniens, Troyes e Langres. Em 1529,
Margarida de Navarra o acolhia. E em 1533, em Paris por Vascosan, em Basiléia
por Cratander, ele publicava, sob o título de Ninharias, uma coletânea que imedia-
tamente lhe custaria grandes aborrecimentos.
É que, desde o prefácio datado de Troyes, 12de abril de 1533, seus sentimen-
tos de proselitismo eclodiam: ele criticava (ed. Cratander, N) seu correspon-
dente, o orleanês Louis de l'Estoile (Lucius Stella), sobre o medo da morte.
Aer,terra,fretum, sylvae,mons, ignis, Olympus,
Omnia transibunt, set meaverbamanent [...]*
"Como, que ouço eu, exclamava ele com veemência; assim, tua fé em Cristo é
tão débil que tão-só a idéia da morte te mergulha no terror? Então foi por nada
que trabalhastes tanto e tão longamente as letras santas?" - E ele passa a desen-
volver prolixamente temas ortodoxos e paulinos: como o filho de Deus, por sua
própria morte, destruiu a morte dos homens; como, por essa mesma morte,
reconciliou a criatura com seu criador etc. Tudosem nenhuma suspeita de here-
sia. Igualmente, quem o teria reprovado por colocar na boca do Cristo estas pala-
vras grandiloqüentes
(f" B4), nem sequer por dizer, de um padre (C'), que resmungava como um
macaco - non ali ter turpis simia Iabra movet - o que, de resto, não implicava uma
excessiva originalidade? Ficou-se mais descontente com ele por vituperar os
monges quanto ao seu orgulho (E3
): "Incontáveis nestes tempos, os que usam
cogulas proclamam-se dignos do céu e julgam-se deuses". Sobrancelhas franzi-
ram-se, na Sorbonne, diante dos elogios justificados, e já assinalados, ao grande
Erasmo, ao piedoso Gérard Roussel, ao suspeito Michel d'Arande - suspeito,
embora sagrado bispo de Trois-Châteaux pela graça de Margarida (I6): "Prelado,
doma a carne, o mundo e o demônio! Ensina a justificação que nasce da fé viva
(vivaejustitiam fidei)! E mostra ao povo o que são os celestes reinos, e o caminho
da morte, e o da salvação!". A exortação e o elogio talvez não fossem inteira-
mente desinteressados: O mihi concedani unà isthicvivere tecum, que os Deuses me
outorguem viver lá, em tua diocese, contigo, exclamava ele um pouco mais
adiante (M4
); mas podia-se, de todo modo, censurá-l o por ter, em uma ode em
louvor do Altíssimo (L6 e Vascosan 1'), lançado rudes invectivas não apenas con-
tra a lógica escolástica: nil teneoamus, nisi syllogismos arte - contortos variosque
nados - mas também, à maneira de Lutero, contra a loba romana, a loba purpu-
rada, lupa purpurata, lerna malorum, e mais ainda, talvez, contra a fradaria, fusti-
gada por epítetos esperados: "raça ávida, dissoluta, amiga de sua barriga e per-
dida de luxúria" (gens rapax, vecors et amica ventris - perdita luxu). Tudo era assim
* "O ar, a terra, o mar, as matas, a montanha, o fogo, o Olimpo,/ Todos passarão, mas minhas pala-
vras permanecem [.. .]"
submetido a exame: não só o culto das imagens, mas também a adoração dos
santos, esses falsos deuses - saxeis stabant simulacra templis - sacra dis falsis et
isdem deabus - unde diversis variisque festis - cuncta fremebant - in statis poni pie-
tas diebus. Enquanto, a crer nele, o celibato dos padres os perdia de desejos: nup-
tiis mire vetitis, libido - foeda revixit. Tudo devidamente terminado pelo elogio
do rei, do Collêge des Trois Langues e da fé em Cristo: Laus Deo Patri, Dominoque
Christo, - spiritu cujus bona cuncta fiunt! Mas sobre a Virgem Maria, nem uma
palavra.
Era difícil, na verdade, que tais ousadias não provocassem uma reação. Tanto
mais que urna última peça ao Cristo crucificado (Vascosan, m') desenvolvia em sua
primeira parte o tema luterano do cristão impotente em fazer o bem e que se
desespera ao contemplar seu Deus sofrendo por ele:
Pois sou eu, piedoso Jesus, a causa de tua imensa dor, eu, cheio de opróbrios, eu,
repleto de impiedade: causo a mim mesmo um horror total; viver me é um desgosto;
mas tua voz imediatamente ressuscita minha coragem: A mim vós todos que pecais!
Por minhas chagas curo vossas chagas.
Nada surpreendente que Bourbon tenha ido dar uma volta nas prisões do rei.
Apesar da intervenção de Margarida, foi preciso tempo e a caução do cardeal de
Lorraine para que, em maio de 1534, por ordem expressa do rei, o Parlamento
de Paris libertasse o culpado. Nessa altura, este julgou mais prudente (não esque-
çamos a data fatídica, 17-18 de outubro, os Cartazes) ir passar algum tempo na
Inglaterra. Introduzido na clientela de Ana Bolena (verno-lo cheio de considera-
ções por Cromwell e Crammer) - foi sucessivamente preceptor de jovens aris-
tocratas de renome; deveu a essas belas freqüentações, além de curiosas expe-
riências, a oportunidade um pouco irritante - para nós, pelo menos: ah, se
Rabelais tivesse tido essa sorte! - de conhecer Holbein e de conseguir dele um
maravilhoso desenho que o representa ao natural, em toda a sua fatuidade
coroada de louros.
Nicolas Bourbon, Germain de Brie, Salmon Macrin: os três poetas do século,
os três doutos, os três piedosos: tal era a escolha de Visagier. Ele a justificava, no
que se refere a Bourbon, tanto mais cuidadosamente quanto, único dos três, ele
Que queres tu, que, cumulando-me, esmagando-me sob tantos louvores desmedi-
dos, pões nas nuvens minhas Ninharias?Acredita-me, és melhor fazedor de ninharias
que eu; é preciso realmente que assim seja, já que tu as imprimes por tua conta e, ao
mesmo tempo, lês as minhas.
estava em exílio: Borbonium expulsum Gallia tota dolet [a expulsão de Bourbon toda
a Gália deplora] - ou ainda: Anglia me lacerum retinet, vestitque poetami plus pere-
grina [ava quam mea terra mihi [a Ingraterra me retém dilacerado e me veste como
poeta; mais me favorece a terra estrangeira do que a minha]. - Dez outras peças
atestam a devoção do Marcial de Vandy pelo Horácio de Vandoeuvre. Tudo pare-
cia feito para unir esses dois champanheses, seus gostos, seus talentos, seus ami-
gos. Tudo, e no entanto?
Quem tivesse a idéia de ler atentamente as Ninharias de 1533 na edição
parisiense, a de Vascosan, ali encontraria (no f' 05 VO) uma curta peça AdJ. Visa-
gerium remensem [A]. Visagier, o remense] que já traduz sentimentos um pouco
ambíguos:
Receio de plágio ainda mal explicitado? Acreditar-se-ia de bom grado. E, além
disso, a obsessão do plágio se espalha por toda parte nessa coletânea de 1533. Bour-
bon está de olho em seus hemistíquios; ai de quem se aproximar e tentar, à noite,
roubar-lhos: Cum mihi surripias noctu mea carmina, Rufe [...] [Ao surrupiares meus
poemas à noite, Rufo] (Basiléia, Cratander, B 4 VO).
Entretanto, eis que Bourbon regressa da Inglaterra. E leva a Lyon, sem hesita-
ções, um opusculum puerile aã pueros de moribus [opúsculo infantil sobre os costumes
dedicado às crianças], prefaciado em Troyes (1Q set. 1536), que manifesta, a uma só
vez, os sentimentos piedosos do poeta e uma recente descoberta: ele acaba de
encontrar, coisa rara, uma alma de elite. E com a mesma tinta que lhe serve para redi-
gir, em uma carta datada de Lyon, em 5 das calendas de outubro de 1536, uma con-
denação em regra dos ateus e dos ímpios, Bourbon, cristão apaixonado, exprime seu
encantamento por ter visto face a face o nobre, o belo Dolet: minuto tão inesquecí-
vel quanto aquele, outrora, de sua primeira visita ao grande Budé, pai das duas elo-
qüências. - Sem dúvida, Bourbon pagava a sua parte; Dolet devia tê-lo acompa-
nhado nos circulos literários lioneses. Mas, é preciso reconhecer, pagava-o à larga ...23
Nessa altura, na casa de Gryphe, um dia ... Mas deixemos a palavra com o pró-
prio Bourbon, que nos conta a aventura não no dia seguinte ao acontecimento,
66
mas dois anos depois, em 1538: é na edição muito aumentada que ele publica de
suas Ninharias:
Em meu regresso da Inglaterra, chego a Lyon. Entro na casa de Gryphe, o célebre
tipógrafo: E então, o que há de novo? - Ele me estende um livro intitulado Épigram-
mes. Leio, viro as páginas, avidamente. Para que longos discursos? Ali encontro,
extraídos de minhas Ninharias, incontáveis versos, e frases deturpadas, e temas rou-
bados - tudo numa mixórdia com as inépcias de um sacripanta. Calo seu nome por
enquanto, mas o revelarei se continuar, e ele se verá pintado com suas próprias cores,
essa cara de larápio, esse impudente ladrão."
Bourbon era muito amável de não imprimir bem forte o nome de Visagier, depois
de ter dado o título e ter nomeado o editor da coletânea de 1536! Além disso, uma
torrente de invectivas e de epigramas seguia-se a essa primeira peça: in eundem, in
versificatorem furacem [contra o mesmo, contra um versificador aladroado]: "Veja
só, eis-me, eu, aquele que acreditavas morto no mar, lá, entre os ingleses! Venho
retomar-te minhas penas, as que me roubaste!". Inesgotável, Bourbon diz e repete.
Tem-se vontade de exclamar, com Visagier, zombando da ostentação de sua efigie
coroada: Tu looueris semper, semper at illa tacetl [Tu sempre falas, ela, porém, sem-
pre se cala!].
Visagier replica, desde 1537. E primeiro, publicando por Parmentier, em
Lyon, uma segunda edição de seus Épigrammes,em quatro livros dessa vez, ele
começa por suprimir dos dois primeiros (que reproduzem, na ordem, as peças de
1536) todas as dedicatórias lisonjeiras, todos os cumprimentos concedidos a Bour-
bon. Grata bonis sunt, grata malis tua carmina [São gratos aos homens bons, gratos
aos maus teus poemas]: em 1536, era ad Borbonium poetam [ao poeta Bourbon], em
1537 é ad Marotum poetam [ao poeta Marot] que vai o cumprimento. Realiza-se
todo um trabalho de paciência. Utnunquam tulerit Campania Belgica vaies [Um vate
tal qual nunca a Campânia belga terá ostentado] dizia, falando do champanhês
Bourbon, o Visagier de 1536. Utnunquam tuleritpraeclara Gallia vates [Um vate tal
qual nunca a ilustre Gália terá ostentado], diz, falando de seu Marot nacional, o
Visagier de 1537. Não se contam menos de oito peças assim transferidas de Bour-
bon a Marot, entre 1536 e 1537. Outras são transferidas de Bourbon a Dolet, por
um azar que já divertia Gilbert Ducher;" de fato, quando no ano seguinte, rompe
com Étienne Dolet, Visagier teve realmente de lamentar ter mudado a atribuição
de sua peça conhecida de 1536 (I, 67): Gallia tres habuit doetosque piosque poetas [A
Gália teve três poetas não só doutos como piedosos] - que visava primitivamente
a Bourbon, De Brie e Macrin; em 1537, ele a dedica a Dolet, De Brie e Macrin,
mudando dois versos. Em 1536, Visagier lamentava Bourbon, exilado na Ingla-
terra: Lingonis ora gemit, Charitesque, novemque sorares - Borbonium expulsum Gallia
tota dolet [Geme o litoral dos lingões e as Graças e as nove irmãs, / a expulsão de
Bourbon toda a Gália deplora]; em 1537, ele lamenta Dolet, em fuga depois do
assassinato de Compaing: Hunc Genabum, Charitesque, novemque sorares - et Stepha-
num expulsum Gallia tota dolet [A este, Gênabo e as Graças e as nove irmãs, / e tam-
bém à expulsão de Estéfano, toda a Gália deplora]. Seguia-se uma torrente de
invectivas: elas se desdobram nos livros III e IV da nova coletânea, sob os mais cla-
ros títulos. In nugatorem poetam; in quemâam poetam malum, in quemdam ridieulum
poetam; de eoâem et suo imagine; in eundem furacem qui alium furti accusabat; in eundem
qui, simulaehrorum osor, se seulpi jussit [Contra o poeta das nugas; contra um mau
poeta; contra um ridículo poeta; sobre ele mesmo e seu retrato; contra o mesmo
aladroado que a outro acusava de furto; contra o mesmo que, tendo ódio de ima-
gens, mandou que o esculpissem]. - Era combate leal. Outros epigramas, mais
simplesmente, diziam: In. Gorgonium. E era uma explosão de zombarias.
Em 1538, nos Hendéeasyllabes, nova mudança de tom. Visagier finge confes-
sar seus plágios: "Tomei-te versos de tua famosa coletânea? Pois bem, seja. Con-
fesso. Illud eonfiteor. E daí? Que mal te fiz? Simplesmente servi para propagar ver-
sos já célebres". E a ironia se torna mais insistente: "Tinha eu o poder de ofuscar
um autor conhecido no Universo inteiro?". Depois disso, o ataque direto: "Toma-
ram-te os versos, dizes? Queres dizer os dos outros? Tuas, inepte? Rides! Pelisso
negat, et negat Perellus, negant serinia nuda Pradiani, eompilata tua rapacitate! [Os teus,
inepto? Ris! Pelisson o nega e o nega Perello, negam-no as estantes vazias de Pra-
diano, pilhadas por tua rapacidade!]". - Última estocada. Já começa a soprar a
bonança, e se, do livro III chegamos ao IV, caímos bruscamente em pleno idílio:
"Rogo-te, poeta Bourbon, dize-me: quem te disse que eu te queria mal?". A inter-
rogação é cômica, e Visagier não deixa de ter certo humor ... 26 Mas claro! É preciso
encontrar um bode expiatório, é a regra do jogo: Quis auetor dissidii fuit? [quem foi
o autor da discórdia?]. Belo pretexto para desfiar anátemas:
68
Vae illi qui male vult tibi, Poeta;
Vae illi qui male velle te mihi optat;
Communem, rogo te, putemus hostcml"
o cômico é que, no mesmo momento, em suas Inscriptiones (29 VO), Visagier
escrevia a um amigo: "Juras-me que Bourbon quer tanto bem a Visagier quanto a
ele mesmo? Tenho dificuldade em pensá-Io ... Quero crer nisso, contudo: mas
sabes por que única razão? É que ele não tinha, na realidade, nenhuma razão para
querer mal a mim!". - No entanto, em suas Ninharias, Bourbon apresentava o
mesmo espetáculo que Visagier em seus Hendécasyllabes. Depois de ter amaldi-
çoado, abençoava. Ou, antes, abençoava e amaldiçoava alternadamente, sem
embaraço aparente. No livro v, duas peças repetem, in Poetam furacem, as acusa-
ções conhecidas (p. 288-9). Depois, assombro: é a reconciliação (Jo. Vulteio amico,
p. 314). Da mesma maneira, no livro VIII: uma última peça intitula-se In quemdam
alienorum carminum suppilatorem et corruptorem [Contra um surrupiador e corrup-
tor de poemas alheios] (p. 460); em seguida, duas outras (451, 474) trazem nova-
mente o nome de Visagier, remense: "Que tudo seja esquecido! Foi um maldoso
que nos quis indispor; decepcionemo-Io, esse celerado, por nossa amizade fiel", ai
sceleraium hominem, stabili fallamus amore; ille potest falli non meliore dolo [... ]. Esse
qualificativo, sceleratus; esse remate sobre uma palavra, dolo, que faz pensar em um
nome conhecido? Mas a segunda peça não fala mais de um único maldoso; foram
ímpios, impii nomunculi, que quiseram arruinar a amizade dos dois poetas: Vides,
amice Vultei, quibus illi artibus - nituntur impii homunculi caveliere - amicitiam nos-
trami' [Vês, amigo Vulteius, com que artificiosl aqueles ímpios homúnculosl se
empenham em zombar de nossa amizade?]. A impiedade visa aqui à amizade, esse
sentimento sagrado, mais que à religião. E assim se encerra, por uma reconcilia-
ção à custa de outrem, esse drama heróico-cômico que a candura dos protagonis-
tas e sua justa preocupação de nada deixar perder de suas elucubrações nos permi-
tem acompanhar, desde a oficina de Gryphe até ... deve-se dizer a casa de Dolet>
Em todo caso, se há dúvida sobre esse ponto, não há sobre este outro: o ingratissi-
mus sodalis [ingratíssimo companheiro] de que Visagier fala a Guillaume Scêve é
* ':Aidaquele que te quer mal, Poeta; / Ai daquele que deseja que tu me queiras mal: Reputemo-Ia.
rogo-te, um inimigo comum!"
70
Dolet. Mas não seria Dolet também, Dolet e não Rabelais - o simius Luciani que
perturbou Thuasne e, o que é mais grave, Abel Lefranc?
IV. ÉTIENNE DOLET, IMITADOR DE LUCIANO
Fora com verdadeiro fervor de amizade que Visagier, no início de sua car-
reira, seguira Dolet. Saberno-lo por ele, e como correu em socorro do amigo em
perigo. Não sozinho: os outros companheiros de Dolet, antecessores conhecidos
ou êmulos a caminho da notoriedade, todos se haviam empenhado com o mesmo
ânimo em obter o perdão do violento. Haviam conseguido. Felicitaram-se, abra-
çaram-se depois da vitória. Mas alguém perturbou a harmonia. Alguém, por si
próprio, dissipou o enorme capital de admiração e de devotamento que não pedia
mais que fazer tudo por ele; alguém preparou, com todo o zelo, a surpreendente
explosão de ódio que, nas coletâneas anormalmente numerosas que o ano de 1538
viu eclodir, reúne contra ele mesmo, contra Dolet, todos os poetas latinos enfure-
cidos: do católico Sussannée, em batalha contra aquele que chama Três Alqueires
(Medimno)," até o trocista Gouvea, ironizando:" "Eu não louvaria Dolet; para
quê? Ele se encarrega disso tão bem sozinho" - todos, até Gilbert Ducher, ata-
cando em Dolet, sob o nome de Cloacus, o ciceroniano furioso, o detrator de
Erasmo;" todos, até Nicolas Bourbon que, ainda em 1536, no Opusculum puerile
[Opúsculo infantil], cobria de flores aquele que, nas Ninharias de 1538,já não quer
nem mesmo nomear. Todos, e é uma curiosa galeria de retratos de Étienne Dolet,
que Copley Christie não soube registrar: concordantes e consonantes todos, trate-
se do Três Alqueires de Sussannée, com sua cara dura, sua atroz magreza, seus
olhos de fanático, gaguejando e revestido daquele casaquinho à espanhola que
tanto impressionava os visitantes - ou então do Dolet de Gouvea, também ele
com sua cara seca, seu olhar mau a afugentar as brincadeiras, os risos e as graças,
seu corpo monstruoso habitado talvezpela alma transmigrada do Cícero romano
- mas era para ali se diluir, e ao primeiro contato perder naquela massa de carne
toda sua virtude e sua eficácia ... 'o Série de instantâneos tirados ao vivo. Eles equi-
param-se ao que, em outubro de 1535, um jovem anticiceroniano dirigia ao huma-
nista franco-condês Gilbert Cousin, o secretário da velhice de Erasmo; seu corres-
pondente esboçava um Dolet mal chegado aos trinta anos, mas que aparentava
quarenta com sua calvície precoce, sua vasta fronte sulcada de rugas, sua palidez
biliosa, suas sobrancelhas espessas, seu curto casaco cortado acima da cintura;"
sedutor mesmo assim, brutal e sensível, inebriado de orgulho e louco por música,
notável nadador, espadachim rápido: uma força da natureza, mas mal regulada e
desconcertante em seus efeitos. Assim é aquele que Copley Christie chamava Már-
tir da Renascença e Boulmier, Mártir do Pensamento Livre; em primeiro lugar e
antes de tudo, sem dúvida, Mártir do próprio Étienne Dolet.
Que pensava ele nesses anos de maturidade, para ele tão próximos de seu fim:
morreu aos trinta e sete anos! A crer em seus Discursos latinos contra Toulouse e
seus habitantes - Orationes âuaein Tholosam [Dois discursos contra Toulouse], pu-
blicados em Lyon, por Gryphe, no verão de 1534 -, ele não era de nenhum par-
tido. Atinha-se à religião de seus pais, à tradição consagrada, evitando toda "novi-
dade": mas seu espírito livre pretendia julgar de cima os homens e suas ações. É
uma belíssima passagem aquela das Orationes na qual, tomando conhecimento do
suplício infligido ao professor Jean de Caturce, queimado vivo em Toulouse em
junho de 1532, ele grita bem alto seu ódio às perseguições, desumanas e, ainda por
cima, totalmente inúteis: "Eu vos peço a todos que creiam", começava ele,"
que não faço parte de modo algum dessa seita ímpia e obstinada [dos luteranos]; que
nada me émais odioso que as doutrinas e os sistemas novos; que não há nada no mundo
que eu condene mais vigorosamente. Sou daqueles que honram e reverenciam apenas
essa fé, apenas esses ritos que receberam a sanção dos séculos, que nos foram transmi-
tidos por uma sucessão de homens santos e piedosos, que foram reconhecidos e con-
sagrados por nossos ancestrais [... ] Mas como se explica (deve ser o Maligno) que a
crueldade faça as delícias de Toulouse? Vistes, recentemente, um homem - não o
nomearei - ser conduzido à fogueira nesta cidade. Que ele tenha proferido palavras
temerárias e violentas, é possível; é possível mesmo que, em certa ocasião, ele se tenha
conduzido de maneira a merecer o castigo destinado aos heréticos. E, no entanto,
quando quis arrepender-se, era preciso ímpedi-Io de salvar ao mesmo tempo seu corpo
e sua alma? Não sabemos nós que todo homem pode enganar-se? E quando ele se esfor-
çava por desprender-se dos abismos e da voragem em que mergulhara, quando tentava
alcançar um refúgio seguro, por que, por que, de comum acordo, não se lhe estendeu
uma mão amiga, para permitir-lhe entrar no porto?
Texto de uma verdadeira e rara liberdade de espírito, esse texto que opõe
ao cristianismo perseguidor dos inquisidores e dos magistrados de Toulouse o
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Cristo de justiça e de caridade, de mansidão e de paz que um humanista podia
querer conciliar com os grandes ensinamentos da Antigüidade; texto que, de
resto, colocando seu autor fora do conflito, vale-se, porém, do sentimento cris-
tão. Pode-se dizer exatamente o mesmo de uma outra carta, datada de 9 de
novembro de 1534 em Paris - 9 de novembro, a véspera do dia em que três
heréticos iam ser entregues às chamas naquela mesma praça Maubert que,
doze anos mais tarde ... Aí se encontra uma dura condenação dos reformados,
"seita estúpida, impelida por uma ardente paixão pela publicidade", e que aca-
bava de provocar por gestos absurdos uma recrudescência de ódios e de perse-
guições ... "Nessas tragédias", concluía então Dolet, "represento o papel de
espectador. Deploro a situação, lamento por seus infortúnios alguns dos acusa-
dos - mas rio da loucura de certas pessoas que põem sua vida em perigo por
uma teimosia ridícula e uma insuportável obstinação." Eis o que é não fazer
muito caso, e bem vivamente, das convicções cristãs." E falaremos ainda de sen-
timento cristão a propósito de uma peça, aliás notável, dos Carmina? Ela acom-
panha, no livro impresso por Gryphe em 1534, as Orationes duae in Tholosan.
Desenvolve o tema da morte - da morte que não se deve temer, mas desejar
ou, ao menos, esperar com serenidade: Expectandam esse mortem. Quem seria
bastante louco, bastante estúpido, interroga Dolet, para não querer trocar sua
vida pela morte? Quem recusaria ser libertado do corpo, essa horrivel prisão?
- E nada de singular em tudo isso; mas eis o fim: ''Amorte? Não lhe temamos
os golpes. Ou ela nos concederá ser privados de sentimento, ou então nos valerá
a acolhida em lugares melhores, e uma condição bem-aventurada. Se é que não
são vãs nossas esperanças elísias" .34
A esse respeito, evitemos, sem dúvida, denunciar bem alto o descrente. A
observação dubitativa introduzida por um nisi: "elegância" que se encontra na
escrita de cristãos muito mais autênticos que Étienne Dolet, eles a tiram, uns e
outros, de seus cadernos de expressões latinas. Quanto à alternativa ou isto ou
aquilo - no fim das contas, poderia passar, com um pouco de boa vontade, por
uma forma tosca da aposta pascaliana - uma prefiguração canhestra ... Mas não é
menos verdade que a peça não produz um tom especificamente cristão. E como
não observar ainda por cima que, entre os quarenta poemas incluídos no primeiro
livro dos Carmina de 1534, entre os dezenove poemas agrupados no segundo, não
se conta nenhuma peça de inspiração religiosa ou cristã - com exceção de duas,
e ambas consagradas à Virgem Maria, De laudibus Virginis Mariae: as duas penúlti-
mas da coletânea, como por acaso; mas a última é dedicada ad Musam; assim, a
última palavra fica com a Renascença.
Tal era a posição sutil, original e, para o comum dos homens cultivados
daquele tempo, sem dúvida bastante dificil de apreender, em que se mantinha o
autor dos Comentários. Uma posição bem capaz de lhe valer ataques de todo lado.
Para permanecer nela, ele teria precisado garantir apoios e devotamentos apaixo-
nados. Com seu espírito dificil, fez tudo para cansá-Ias a todos. Pois todos, na dedi-
catória do livro II dos Comentários a Budé - todos, que de todo o coração se haviam
empenhado em libertá-lo da prisão depois do assassinato de Compaing, todos
leram com horror essa afirmação assombrosa que, tendo o Universo abandonado
Dolet, Dolet não encontrara socorro senão em Dolet ...
A reação de Visagier, para conhecê-Ia basta abrir os Hendécasyllabes de 1538.
Desde as primeiras páginas (I, 9), uma peça "In quemdam ingratum" [Contra um
ingrato] nos grita sua indignação. Dolet não é nomeado, mas quem se enganaria?
Tu, que deves tua vida a teus amigos, tu, ousar dizer que nenhum deles foi para ti,
nos dias de infortúnio, o que um amigo deve ser para seu amigo? Tu, ousar quei-
xar-te a toda a gente de ter sido abandonado? É assim, celerado, que pretendes cor-
responder à afeição de todos? Mas quando fugias, com ansiedade no coração, não
sabendo aonde ir - se ninguém te houvesse assistido, dize-me: onde estarias,
miserável?
Segue-se uma evocação, trágica se se pensar na fogueira da praça Maubert; o infe-
liz Dolet sempre suscitou semelhantes profecias: "Os cães, os lobos não teriam
devorado teus membros? E se te houvessem restado parentes para assistír ao terrí-
vel espetáculo, à execução das sentenças pronunciadas - muito semelhantes às
que teu pai já conheceu - teus olhos impudentes não os teriam visto, dispostos
em círculo, em torno de ti?"."
Primeira peça; seguem-se outras. No livro 11, Visagier tenta aliciar Guillaume
Scêve. Dolet lhe jura que o ama realmente? Ora, vamos, Dolet ama apenas Dolet.
E ele se ama não como as pessoas razoáveis, como as pessoas normais, quibusque
mens est integra, sana, pura, simplex - mas como o infeliz impulsivoque é: hunc cui
nemo placet, placetque nulli ...
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Tu me proclamavas (f" 84) teu maior, teu melhor amigo ... Agora dizes o contrário,
renuncias subitamente aos nossos amores. Mas não podes dar nenhuma razão de tua
mudança, a não ser que sou diferente de ti, e que não te quero aprovar quando não
deves sê-lo [...] Quero amigos que eu possa aprovar!
No livro m, um passo a mais. Visagier, para designar Dolet, forja um ana-
grama transparente: Leâotus.
E, no livro IV, várias peças (91 v", 92, 96, 96 Vo) In Ledotum retomam os temas conhe-
cidos: Dolet, o mais maldoso dos homens; que há de surpreendente nisso? Quem
tem por pai um celerado não poderia ser um bom homem." E sempre a recorda-
ção mordaz: "Se vives ainda, é graças àqueles que feres [...r.
Resumamos. O que constituía o provocante dos Hendécasyllabes para os leito-
res iniciados eram as duas querelas de Visagier contra Bourbon e contra Dolet. De
outros personagens conhecidos, nenhuma menção. Nada que se relacione, nada
que se possa relacionar a Rabelais. Nada - senão as peças in Luciani simium, in
Luciani sectatorem, que prenderam a atenção de Louis Thuasne e de Abel Lefranc.
Chegou o momento de examiná-Ias.
Quantas são elas? Duas ou três? Três, diz Abel Lefranc: Thuasne negligen-
ciou, no livro III dos Hendécasydabes (71 v") uma invectiva In Luciani sectatorem:
imprecação declamatória, virulenta, de uma obscena grosseria contra um cele-
rado: "Espírito imundo, criminoso,jardineiro de vícios, celeiro de iniqüidades, ini-
migo de Deus, escuta os castigos a que te destino!". Segue-se a enumeração das
repugnantes tarefas a que Visagier condena a língua infernal do partidário de
Luciano. Mas nada, nenhum detalhe característico permite atribuir essa peça a
Rabelais. Ela termina pelo voto de que a alma imortal do malvado seja de fato ani-
quilada, como ele próprio professa que ela deva ser, para servir de exemplo aos que
ele enganou. Mais interessantes, as duas outras peças.
Uma, In quemdam irreligiosum Luciani sectatorem [Contra um irreligioso segui-
dor de Luciano], vem no livro I dos Henâécasyllabes (f" 10), logo depois das duas
peças In quemdam ingratum que visam a Dolet e que comentamos mais acima: deta-
lhe material que tem seu interesse. Ora, aí encontramos um traço preciso: o lucia-
nista incriminado, todas as vezes que encontra a palavra CHRISTUS nos versos de
74
Visagier, zomba: "Eis um belo latim! Eis o puro latim! Como se algum dia um latino
tivesse tido nos lábios semelhante nome: Chrisrusl". Nisto, Visagier irrita-se:
Zomba, imitador de Luciano, não me convencerás de tuas doutrinas! Negar a exis-
tência, no céu, de um Deus que quis que seu filho morresse pela salvação dos
homens; negar a culpa de Adão que entregou o gênero humano às ásperas garras da
morte; negar ojulgamento supremo e aspenas infernais: loucura! Acautela-te, acau-
tela-te, arrepende-te enquanto ainda é tempo [...]
E, novamente, a profecia sinistra que não deixou de acompanhar Dolet: "Se não te
arrependes, é a morte em curto prazo. Acabou-se, miserável. .. acabou-se, estás
morto, ah miscr peristu","
Peço perdão por isso: mas o nome de Dolet apareceu na minha escrita muito
naturalmente ... Rabelais, pretende Thuasne - seguido por Abel Lefranc? Qual o
que, esse purismo de latinista ultraciceroniano; essa afetação de humanista faná-
tico, proscrevendo o nome do Cristo porque não é clássico ... isso seria próprio de
mestre François? Próprio, ó prodígio, do devoto erasmizante que escreve em
1532 a carta dita a Salignac, esse ato de amor e de reconhecimento para com o
pesadelo dos ciceronianos, o próprio Erasmo! Próprio de Dolet, isso sim; próprio
do autor apaixonado do De imitatione Ciceroniana [Sobre a imitação de Cícero].
Faz muito tempo que Maittaire observou, na ampla notícia que consagra ao
impressor "do enxó": em nenhum poema latino de Dolet o Cristo é nomeado.
Fala-se de Deus, deJupiter, dos Divi, dos Superi; de Christus, jamais. - Não, não é
sem razão que a peça In quemdam irreligiosum Luciani sectatorem vem, na coletânea
de Visagier, imediatamente depois das duas peças In ingratum [Contra o ingrato].
O ingrato e o lucianista são igualmente Dolet. Dolet, o ultraciceroniano. Dolet,
que o carrasco espreita.
Mas então, a peça In Luciani simium (fb 30 VO)?Ela põe em cena um celerado, o
sceleste. Tomemos a palavra em seu sentido verdadeiro: Dolet, em 1538, chegara a
seu primeiro scelus; Rabelais, em compensação, não tinha, que se saiba, assassinado
ninguém. - Ora, esse celerado, longe de se arrepender, longe de escutar as sábias
admoestações dos que o amam, corre para sua perdição com uma espécie de pressa
furiosa. Essa pressa, essa fúria precisamente que todos os que o viram nos assina-
lam em Dolet: Ah, te - pergis perdere, et in dies furarem - exauges magis ac magis;
reprensus - nec mutas, pudor, o sceleste, mentem! [Ah, / continuas a perder-te e a cada
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dia/ aumentas mais e mais o teu furor; / nem repreendido mudas, ó celerada ver-
gonha, tua mente!]. Ainda por cima: o impudente qualifica de "últimos dos
homens" os que se recusam a segui-lo em seus desvarios: eosqui-nolunt criminibus
tuis javere-neclaudare tuas opiniones [...] [os que/ não querem favorecer teus cri-
mes, / nem louvar tuas opiniões]. - Exatamente o que fazia Ledotus: o motivo de
seu rompimento com Visagier é que este não queria segui-Io aonde ele teria preten-
dido conduzi-Ia, nam amicos volo quos probare possim! [Pois quero amigos que eu
possa aprovar!] - Ora, o que ele queria fazer seus amigos acreditar é que tudo
morre na morte; que tudo está sujeito ao Destino; que não há nem eternidade nem
imortalidade; que não existe Deus; que o homem em nada difere da besta ... Eis as
belas doutrinas desse miserável. Ele as ensina aos infelizes que todo dia freqüentam
sua casa e seguem suas conversações: Ouae doces miseros, tuam domum qui - et collo-
quia qui in diesfrequentant.38 Além disso, um Tartufo, esse imitador de Luciano. Se
alguém o interpela, que não seja de seu bando (qui non degrege sit tuo), ele se mos-
trará bom cristão, repudiará Luciano, dirá por que o detesta e trabalha todo dia para
melhor agradar ao Cristo: causas - âans cur oderis ipse Lucianum, - Christo cur stu-
deos placere soli (30 VO).39 Mas, se um dos seus o aborda: que riso de cúmplices! Belle
te simulasse Christianum rides! Basta, conclui Visagier, basta desses subterfúgios
miseráveis. Ou então Deus te punirá, e tão gravemente que deverás confessá-Ia:
Vixi, non homo, seâ canis (''Vivi como cão, não como homem"). O poeta Visagier
bem o previa, e era verídico ao me predizer mil vezes a catástrofe ... - Tarde demais!
Nessa peça veemente, nada diz Rabelais, tudo grita Dolet. Resta uma quarta
peça, no livro I dos Hendécasyilabes (f' 28); intitula-se simplesmente: In ouemâam
Poetam. "O Cristo, dizes? Amo-o mais que aos meus olhos! Sua cruz está sempre
em teus lábios; sob sua égide sofririas o fogo, os ultrajes, a cruz, a roda, o veneno,
as chacotas, as injúrias, os golpes; tu o juras. De fato, não és mais que um poeta
ímpio. E quem conhecesse a fundo teu espírito, tua língua de víbora, teus costu-
mes, tuas violações da lei, tuas ações fraudulentas, toda a tua vida, enfim, que é a
de um celerado - esse concluiria que, em todo o Universo, não há ser mais repug-
nante que tu [...]" Depois disso, passando às queixas de opinião: "Crer que o Cristo
jamais nasceu, crer que o Cristo jamais sofreu a Paixão, que não foi nem vendido,
nem sepultado, então isso é amar o Cristo mais que aos seus próprios olhos?". 40 E,
não bastando a invectiva, Visagier resume seu sentimento em dois versos que se
seguem. Dois versos in eundem. "Falar de ti como de um homem? Ora, vamos!":
Nam. tu, nec hominem sapis, nec ipse es!
Leiam-se e releiam-se muitas vezes essas peças que, todas, aplicam-se eviden-
temente a um único e mesmo personagem, as fórmulas, as injúrias, os argumen-
tos repetem-se sem cessar de uma a outra. Cada palavra aí grita Dolet - quero
dizer, o Dolet tal como o pintam seus inimigos; nenhuma diz: Rabelais.
Rabelais?Seria ele, esse brutal, esse sectário que insulta os que se recusam a
defender seu materialismo agressivo e violento? Ele, esse propagandista apaixo-
nado, esse fanático doutrinador de infelizes iludidos? Mas então? Esse impudente,
esse obcecado, esse propagandista conhecido por todos, como seria ele ao mesmo
tempo o cão Pamphagus do Cymbalum que, conhecendo a verdade, recusa-se a
dela revelar a menor parcela?
E além disso, todo esse grande silêncio dos contemporâneos? Eles disser-
taram à porfia sobre a desavença de Dolet e de Visagier: a oportunidade era boa
demais. E esses mexeriqueiros, por natureza e por profissão, nada teriam sabido
de uma desavença de Rabelais e de Visagier? Pois releiamos os textos: trata-se
do divórcio de dois amigos íntimos que se amaram muito e se freqüentaram
muito: não foi uma, mas cem vezes, que Visagier tentou converter seu amigo.
Naquele pequeno mundo dos humanistas lioneses, um rompimento clamo-
roso teria ocorrido entre dois homens em evidência, ambos acompanhados de
amigos e de inimigos: e nada, nenhum eco, nenhum epigrama, nenhuma ten-
tativa de reaproximação? O inexplicável silêncio, para quem conhece esses
homens, sua vaidade, sua ingênua convicção de que esses diferendos são impor-
tantes para o Universo? O ateísmo de Rabelais, que não o chocava em 1537,
repentinamente se revela em 1538 aos olhos abertos do poeta Visagier: e essa
revelação perturbaria apenas a ele? Seu amigo Sussannée, o piedoso Sussannée
que convive longamente com ele em Lyon, imprimiria com serenidade na cole-
tâneadosLudi, precisamente em 1538, a pequena peça conhecida (f" 41) em que
se descreve doente, em Montpellier, e não esperando remédio verdadeiro senão
da visão, da presença de seu caro Rabelais? E em Montpellier, onde Rabelais
ensina de setembro de 1537 a abril de 1538 sob os olhos de todos, com a consi-
deração pública - ninguém tampouco parece notar essa impiedade fanática,
essa fúria de propaganda, essa ignóbil hipocrisia que Visagier estigmatiza no
"Imitador de Luciano"? Na verdade, seria preciso ter fortes razões para poder
concordar com o ponto de vista de Thuasne.
77
v. RABELAIS, RABELLA E CHESNEAU
Mas, dir-se-á, o Luciano francês não é sempre e em toda parte, ritualmente,
Rabelais? - Por certo, aplicou-se de bom grado ao natural de Chinon o nome do
Samósata. Mesmo assim, isso não era um monopólio?
O próprio Calvino o prova, se são necessárias provas. As portas do Inferno
onde ele coloca os lucianistas epicuristas, não as abre ele, em 1550, não apenas
a Rabelais, mas a Des Périers, a Antonio de Gouvea, a muitos anônimos? Ele o
diz expressamente, paucos nomino, mas há outros ... E a Excuse aux Nicodémites
[Desculpa aos nicodemitas] em 1544, bem como, anteriormente, a carta de
Antoine Fumée, fala dos lucianistas no plural. Luciano: isso foi dito de Erasmo;
foi dito de Des Périers; foi dito de todos aqueles que, em dado momento, pen-
savam um pouco fora de série ou davam-se ares disso. É um nome de família.
Não é um prenome.
Para ver em Rabelais o imitador de Luciano, Thuasne fora movido por
outras razões. Em uma coletânea de Inscriptions de Visagier publicada por Coli-
nes, em dezembro de 1538 - ele se deparara, quase no início do livro, com uma
peça intitulada Ad Rabellam (f" 6). Rabella: imagina-se que o coração do erudito
bateu forte quando, no exemplar que consultava (o da Biblioteca Nacional), leu,
traçado por uma mão do século XVI, ao lado do nome latino, o próprio nome de
François Rabelais.
Ora, Visagier, sob o nome de Rabella, descreve-nos um curioso realmente
insuportável por sua curiosidade. Digamos, se se quiser, o rei dos indiscretos e dos
importunos. "Queres tudo saber", censura-o Visagier: "quem eu sou, como vivo,
quem é meu pai, qual é minha terra natal e meu lar. Queres saber meu nome, e o
de minha amiga, e meu estilo de vida, minha mesa e meu serviço, se sou ou se fui
feliz no amor. Queres saber" ... Mas aqui, a musa de Visagier se emancipa demais,
pela duração de um verso, para que a sigamos em francês - e, imediatamente
depois desse desvio, é o remate esperado: "Não há nada que não queiras saber; mas
em tua sanha de tudo saber, Rabella, não é o bastante ou é demasiado o que dese-
jas saber" (non satis et nimium scire, Rabella, cupis).
Rabella, Rabelais ... Eis a imaginação de Thuasne à solta. Que Rabelais tenha
sido curioso, muito curioso, curioso demais: a coisa é possível. É mesmo provável.
Corresponde, em todo caso, à idéia que podemos fazer de sua sede inextinguível
de conhecimento. Mas eis que intervêm, para complicar as coisas, um outro epi-
grama e um outro poeta.
Um pequeno poeta, amigo e quase compatriota de Visagier: o natural de
Rethel Nicolas Chesneau, em latim Querculus, de Tourteron nas Ardennes.
Cliente dos Guises, católico fanático por Contra-Reforma, ele foi deão do capítulo
São Sinforiano de Reims depois de ter publicado várias obras em latim - especial-
mente dois livros de Épigrammes e um de Hendécasyllabes publicados em Paris em
1553, por Richard." Sendo os Hendécasyllabes de Visagier datados de 1538, há
quinze anos entre as duas coletâneas. O afastamento pode não existir, é verdade,
senão entre as datas de publicação? Em todo caso, nos Hendécasyllabes de Chesneau
figura igualmente uma peça In Rabellam. E Thuasne começa a tirar conclusões
imediatamente (sobre quais provas?): "De conluio com Voulté, Chesneau compôs
por sua vez um pequeno poema que é apenas a amplificação do epigrama de
Voulté. A comparação das duas peças parece mostrar que seus autores se haviam
posto previamente de acordo antes de escrever".
Mais prudentemente, digamos que o epigrama de Chesneau parece uma
adaptação do de Visagier, aumentada, amplificada e como que esticada. Quere-
mos saber os rumores da cidade, nos diz o poeta de Rethel: convide-se Rabella para
jantar. Tudo o que se faz em toda parte, na igreja, na praça, nos palácios dos gran-
des - o cardápio do rei, as grandes negociações, as brigas de casal, os adultérios,
os namoricos das moças e os abortos: tudo, saberemos tudo! E que parasita, esse
Rabella! - A partir daqui, tento traduzir literalmente:
Ele almoça, janta e dorme na casa do grande senhor vizinho; adorando os risos de
fazer saltar as panças, este coleciona o maior número de Rabellas que pode - e deixa
esses sedutores brincar com ele, enganá-lo, atormentá-lo: mas não consegue jantar
se não vê à sua mesa, apoiados nos cotovelos, dois ou três Rabellas pelo menos!
E vem a invectiva final:
Rabella! Tu não passas de um tagarela, um palhaço, um patife, o veneno e a peste de
toda boa e casta reputação. Tua língua está toda lambuzada de uma peçonha de
víbora; tua língua é mais perigosa que o mais mortal veneno; tua língua vai rachando
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de alto a baixo os deuses e os homens; tua língua é toda chumbada, negra e sem ver-
gonha, Rabella, acredita-me: não és nada mais que tua língua!
Rabelaisr Observemos algo de bastante perturbado r. Esse parasita dos gran-
des, esse curioso zumbidor, falador e maledicente, essa língua de víbora: mas é
propriamente o Rabelais do furioso Putherbe! Dir-se-ia tratar-se de uma cópia
livre" do epigrama de Visagier(1538) revista e corrigida com a ajuda do Theotimus
(1549). De quando data ela? A asserção de Thuasne é completamente gratuita.
Nada nos permite dizer que Chesneau compôs sua peça" de conluio com Voulté":
sabe-se, ao contrário, com que ciúme os poetas da época defendiam seus bens.
Além disso, ignoramos tudo das relações de Chesneau e de Visagier, tudo das rela-
ções possíveis de Chesneau e de Rabelais. Onde o primeiro teria visto o segundo?
Dir-se-ia de bom grado na casa dos Guises. Daí muitos ciúmes possíveis. Eu me
inclinaria a crer que a peça é posterior à morte de Visagier (1542) e à publicação do
Theotimus (1549): mais ou menos contemporânea da morte de Rabelais (abril de
1554? Os Hendécasyllabes de Chesneau são de 1553). Tanto mais que "o grande
senhor vizinho"? Se se trata do cardeal Du Bellay, notemos que (Romier estabele-
ceu-o) sua desgraça não data,como se disse, da elevação ao trono de Henrique 11,
isto é, de abril de 1547; data da primavera de 1549 e foi apenas a partir dessa época
que os críticos puderam tomar um pouco mais de liberdade em relação ao cardeal.
Como quer que seja, um fato deve ser notado. Como tampouco o de Visagier,
o Rabelais de Chesneau não é um ateu, um ímpio dogmatizante. E então? Rabella,
afirma Thuasne, seguido mais tarde por Abel Lefranc - é o Rabella de Visagier
que é, ele próprio, o Rabella de Chesneau. Seja. Mas por que esse Rabella de Ches-
neau, identificado a Rabelais, deve ser igualmente o Simius Luciani de Visagier?
Aqui, em uma coletânea, três invectivas anônimas contra um lucianista, um ini-
migo do Cristo, um monstro de impiedade. Ali, em uma outra coletânea do
mesmo ano, da mesma lavra, o esboço satírico de um tagarela - esboço retomado
mais tarde por um outro versejador que, desse tagarela, faz um parasita e um calu-
niador; como dizer: aqui e ali, o mesmo homem está em causa, Rabelais - uma
vez que Rabella é Rabelaisr Pois o Rabella de Chesneau, Chesneau o batiza igual-
mente de Rabula:" Dico te rabulam, Rabella, scurram; o Rabella de Chesneau tem
uma língua de víbora: Lingua es vipereo cruenta tabo; mas Rabelais não é Rabie lae-
sus, e o Lucianisectatorde Visagiernão tem uma língua inimiga (inimica lingua)? A
cadeia forja-se assim, acreditou Thuasne; a partir de outros fracos fundamentos
ele construiu seu artigo, sua Note surla rupturede Voultéavec Rabelais [Nota sobre o
rompimento de Voulté com Rabelais]. Ninguém se deu o trabalho de discutir suas
asserções. Sim! Em 1906, houve alguém para formular esta objeção de bom senso:
"Não é certo que as peças de poesia Ad Rabellam, In Rabellam, In quemdam irreligio-
sum Luciani sectatorem, In Luciani simium visam ao mesmo personagem". E esse
alguém é o próprio Abel Lefranc, em seu artigo tão novo sobre os Sainte-Marthe
e o furioso Putherbe. Sem dúvida, estava então no bom caminho - e se tivesse
perseverado, também ele teria concluído que as três peças" antiluciânicas" de Visa-
gier visavam a Étienne Dolet e não a François Rabelais. Ora, se o imitador de
Luciano, se o partidário de Luciano é o impressor do enxó e não Mestre Alcofribas,
o que resta de toda a construção de Thuasne? Ela não apenas desaba, como tam-
bém não se pode mais encontrar, ninguém pode encontrar no epigrama Ad Rabel-
lam de Visagier, no epigrama In Rabellam de Chesneau - a supor que se apliquem
autenticamente a Rabelais - o mais leve pretexto para declarar: Vejam, aos olhos
de Visagier, que o conheceu bem, e de Chesneau, que defendeu sua querela:
"Rabelais, antes de tudo, é o ateu Rabelais".
Tudo se desvanece. Diante de nós ninguém disse de Rabelais o que Visagier
disse tão claramente de Dolet em 1538: "É um inimigo do Cristo. E a revelação cristã,
ele a nega". - Posto isto, não se pode levantar uma questão? Se Thuasne não hou-
vesselançado a legenda de um texto anti-rabelaisiano redigido por Calvino em 1533;
se não houvesse aplicado a Rabelais, taxativamente, os epigramas que Visagier com-
pôs em 1538 para denunciar o ateísmo de Dolet; se não houvesse cometido essas
confusões lamentáveis - quem teria podido ver surgir diante dos olhos a figura-
original, talvez, mas irreal-de um Rabelais propagandista do ateísmo em 1532?
VI. DE RABELLUS A CHARIDEMUS
Já travamos conhecimento com Nicolas Bourbon, abundante declamador de
ninharias. Thuasne descurou - e nós com ele - de examinar suas relações com
François Rabelais.
À primeira vista, elas são raras - e frias. Uma única peça é dedicada ao
médico poeta pelo Apolo de Vandceuvre; ela figura pela primeira vez nas Ninha-
rias de 1538 _44 e ei-la traduzida:
8r
82
É raro agora que eu encontre Ou Costé (Lateranus), Ou Maine e Saint-Gelais; urgen-
tes, graves questões os mantêm ocupados na corte; assim exige o momento. Mas tu,
meu caro Rabelais (miRabelaese),já que minha partida é certa e que vou aonde minha
vontade me chama (mais exatamente, para aonde o Destino me arrasta) - tenha a
bondade de saudá-Ios por mim.
Isso é tudo, e é pouco. Um simples recado de amizade, ou nem isso: de polidez.
Nenhuma palavra de elogio para o intermediário: quem conhece mais ou menos
os costumes daquele tempo acha o bilhete bem seco ... Ora, a Bourbon sem dúvida
não faltaram oportunidades de ver Rabelais. Ele viveu em Lyon por duas vezes e
precisamente em épocas em que o próprio Rabelais encontrava-se ali. Os dois
homens tiveram amizades, ocupações comuns. Ambos se sentaram, em Paris, no
banquete Dolet. É curioso, portanto, que Bourbon não dirija ao médico reno-
mado que era Rabelais nada mais que um cartão de visita versificado. Não haveria
algumas peças dele que visariam ao autor de Pantagrwí. sob um peseudônimo? A
questão se levanta, quando conhecemos um pouco os costumes literários dos
Apolos de Colégio.
Um erudito muito conhecido do Languedoc, o doutor De Santi (nós o reen-
contraremos mais adiante), assinalou desde 1922, em um artigo da Revue des Étu-
des Rabelaisiennes, a existência nas Ninharias de 1533 de uma peça In Rabellum que
é bastante curiosa:"
Que idéia, Rabellus? Tu não deixas de desviar nossos alunos de sua honorável tarefa,
o estudo das letras tanto humanas quanto sacras [...] Então queres que, em teus loda-
çais, em tuas bufonarias envoltas em obscuridade, em tuas patacoadas, em tua litera-
tura alimentar, tua vergonhosa barbárie, tua obscenidade e tua abjeção, eles percam
miseravelmente sua reta juventude? Vamos, acredita-me: deixa-os em boa saúde
moral, nossos escolares - ou então, agitado frenético, teme que, perseguidas por ti,
as próprias Musas te persigam através do Universo, e te tornem, Ó Rabellus, rábico
(ac ne te in rabiem inftrant, Rabelle!).
Não há dúvida, constata o doutor De Santi: trata-se de Rabelais, de sua litera-
tura em língua vulgar, das Grandes et inestimables croniques du grant et énorme géant
Gargantua [Grandes e inestimáveis crônicas do grande e enorme gigante Gargân-
tua] (I' edição conhecida, 1532); dos Horribles et espoventables faictz et prouesses du
três renommé Pantagruel [Horríveis e espantosos feitos e proezas do muito reno-
mado Pantagruel] (1532); talvez também da Pantagruéiine prognostication [Panta-
gruelina prognosticação] (do fim de 1532): todos livros que Bourbon, pedagogo
moralizante, considera perigosos para ajuventude e suscetíveis de perturbá-Ia em
seus estudos ... Vê-se muito bem o piedoso e violento Bourbon, completamente
seduzido pelas idéias de Reforma, indignando-se contra os escritos rabelaisianos
em língua vulgar; vemo-lo igualmente, vates apaixonado por seu grego e seu latim,
recusando-se a admitir este escândalo: um humanista de qualidade, um verda-
deiro sábio, capaz de publicar pela casa Gryphe cartas médicas de Manardi, aforis-
mos de Hipócrates, ou mesmo um testamento de Cuspidius ... - e que subita-
mente tem a idéia, sem o menor temor do julgamento alheio (in mentem tibi quid,
Rabelle, venit [o que te vem à mente, Rabello ]), de publicar por N ourry, notório edi-
tor de parvoíces populares, obras tão desprezíveis, aos olhos de um humanista
mediocremente inteligente, quanto o Pantagruel. Por espírito de ganho, evidente-
mente (libri quaestuosi [livros lucrativos]). Pensemos em tudo que implicam de
incompreensão sobre o verdadeiro sentido, o valor, o alcance e, se assim se pode
dizer, a dignidade da obra rabelaisiana tantas apreciações assombrosas que nos
deixaram os críticos dos séculos XVII, XVIII e XIX - de La Bruyêre a Lamartine: "Não
há mais que poucas pessoas de um gosto esquisito que têm a pretensão de enten-
der e de estimar toda essa obra", escreve Voltaire; "o resto da nação ri das brinca-
deiras de Rabelais e despreza o livro". Quanto ao cantor de Elvire: Rabelais não é
para ele "o cogumelo venenoso e fétido, nascido do estrume do claustro da Idade
Média, o porco dos monges renegados deleitando-se em sua pocilga imunda e
regaladamente fazendo recair os salpicos de sua borra no rosto, nos costumes e na
língua de seu século"? - Esses elegíacos, realmente! ...O poeta Borbonius não
pressentia, em 1538, que teria tão bela posteridade.
Depois disso, se a peça In RabeÍlum visa realmente a Rabelais como é mais que
provável, temos aí, sobre o sucesso de suas publicações em língua vulgar, um tes-
temunho curioso e, além disso, despeitado. Observemos, ademais, esta conexão:
"Rabellus, o rábico" é o remate da peça. Ora, qual é o tema da que Visagier, em
1536, dirigirá a Rabelais, reeditaráem 1537 e que citamos mais acima? "Aquele que
pretendeu, Rabelais, que teu coração estava infectado de raiva, esse aí mentiu" ...
Esse aí? O doutor De Santi diz:]úlio César Scaliger. Voltaremos a isso. Ele, que cha-
Homem de mau exemplo, dizem os registros, e tal que, quando começa um livro,
não continua senão dois ou três capítulos, e então começa um outro, e além disso é
mou a atenção para a peça In Rabellum, não pensou em Bourbon. Aliás, ligado a
Scaliger em 1533.
Agora, como convém, exploremos as coletâneas contemporâneas das cole-
tâneas bourbonianas. Em 1538, em Paris, pelo editor Colines, são publicados Ludi
[jogos] assinados por um nome - Hubert Sussannée ou Sussanneau - com que
já nos deparamos. Um instável, ao que parece, e um violento, esse Hubert, meio-
sábio e meio-pedagogo, de carreira movimentada e mal conhecida. Verno-lo dar
os primeiros passos em 1531, bem estranham ente para um humanista, como turi-
bulário de Pierre Cousturier - Sutor -luminar da Ordem dos Carruxos, um dos
mais agressivos de Nossos Mestres da Sorbonne contra Lurero, Le Pêvre, Erasmo
e seus adeptos." Verno-Io, no ano seguinte, fazer a corte a Beda; depois disso, dois
anos mais tarde, em 1534, ele dedica ao rei Francisco uma edição do Christus de
Pierre Rosset, em um prefácio repleto de citações das Escrituras em que, sucessi-
vamente, são alegados em profusão o Livro dos Reis, os Salmos, são Paulo, são
João, os Provérbios. Mais dois anos e, no prefácio de um Dictionarium Ciceronianum
[Dicionário ciceroniano] com que presenteia Colines em 1536, ele conta uma
parte de sua vida a Philippe de Cossé, bispo de Coutances: como explicou publica-
mente, em Paris, Virgílio e Cícero; e como conheceu o grande Macrin, o Horácio
francês, e através dele o bispo de Coutances; e como se ligou a um gentil-homem
bretão com quem peregrinou no Oeste; depois disso, retomando a Bourges, che-
gando a Lyon, trabalhando com Gryphe como revisor, travou conhecimento com
Dolet. Em seguida, pela região dos alóbrogos, dirigiu-se a Turim para explicar
Cícero, doutrinar um reitor, arengar a juventude em Pavia, fazer uma peregrina-
ção virgiliana a Mântua ... Tudo isso exato, sem dúvida - mas de urna exatidão um
pouco enfeitada. Sussannée não insiste, por exemplo, em sua passagem entre os
alóbrogos; mas sabemos que, assistente do reitor das escolas da cidade, teve de
fugir em agosto de 1536, depois das cenas de violência que eram bem de seu cará-
ter. Pois, quatro anos mais tarde, readmitido pelos habitantes de Grenoble apesar
das lembranças desagradáveis de sua primeira estadia, teve de ser novamente
demitido por eles:
blasfemador de Deus e a maior parte do tempo embriagado, mostrando mau exem-
plo aos escolares usando espadas, lutando com um e outro [...]
- Nada surpreendente, a partir disso, que ele se tenha entendido muito bem com
Júlio César Scaliger - e se tenha tornado o editor (depois de uma conversação
relembrada em seu prefácio) da segunda peroração do violento transalpino con-
tra Erasmo. Terminada de compor em 25 de setembro de 1535, ela foi publicada
por Vidoue, sob os cuidados de Sussannée, no fim de 1536 provavelmente, com a
datação 1537: então Erasmo estava morto; e Sussannée, cujas violências não aban-
donam uma prudência de escrita, consagra-lhe nos Ludi de 1538 um epigrama cal-
culado: "Na terra, uma nuvem te ocultava uma parte do céu; agora tu o descobres
por inteiro, em sua claridade, sem nuvem" (divina in terris per nubem ex parte vide-
bas; omnia nunc dare, nunc sine nube vides).
Eis o homem que, abrigando-se o quanto pode sob a asa tutelar do lugar-
tenente criminal Jean Morin, no entanto comunga em Cícero com Dolet ou
mesmo com Scaliger, invoca piedosamente a Virgem - e presta às virtudes médi-
cas de Rabelais uma homenagem freqüentem ente citada: é a peça Ad Rabelaesum
cum esset in Monte Pessulano. "Hubert", diz ele falando de si próprio, "Hubert des-
falece na eminente cidade dos médicos. Não há drogas que saibam aliviar sua indis-
posição. Somente a ti esse poder, Rabelais - se, como ele pensa, seu único mal é
de não te ver. Teu rosto sereno lhe verterá a calma e, à tua visão, o langor que ele
sente em todos os membros se desvanecerá." Mais que cortês, amável, a peça se lê
à página 41 dos Ludi. Ora, às páginas 8, 8 VO e 29 VO (para não falar da página 37,
onde se lê uma peça In Rabullam) encontram-se três peças In Rubellum ou Ad Rubel-
Ium; e eis, para começar, a última: Occurris nulla non potus luce, Rubelle; qui te non
potum, te bene manevidet! Não procuremos a tradução desse latim: alguém a forne-
ceu, e foi Ronsard em seu famoso Épitaphe de François Rabelais [Epitáfio de Fran-
çois Rabelais], publicado no fim de novembro de 1554:
Jamais o solo viu
Por manhã quefosse, que não tivesse bebido [... ]
Rabelais? A coincidência seria estranha, se o Rubellus beberrão de Sussannée
fosse um outro que não o natural de Chinon? - As duas outras peças, In e.{dRubel-
lum, traduzem sem insultos a desaprovação entristecida de um moralista, deplo-
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rando a conduta de um homem de procedimentos suspeitos: "Sei mais que o bas-
tante, Rubellus, do que perpetraste em tua casa - coisas que é preciso esfregar
com sal preto e lambuzar com tinta de siba ... Eu o sei: mas não sujarei com elas a
brancura do papel". Ou ainda: "O austero Catão, o austero Cipião, companheiros
para ti? Não, Rubellus. Se tens um gosto por Quirinais, procura: é lá que encontra-
rás teus verdadeiros companheiros. Um, dois? Não. Milhares e milhares". Quanto
à peça In Rabulam, é do mesmo gosto:
Se se condenam teus escritos hoje, protestas: apelo, dizes, ao julgamento da posteri-
dade. E acusas teu tempo de falta de eqüidade! Não tinham o mesmo estado de espí-
rito, os Titos e os Virgílios - e o grande Apeles propondo expor ao povo sua pintura.
Recusas, tu. Porque és o único a amar o que fazes"."
Assim, nada de injúrias. O tom entristecido de um homem que, tendo depo-
sitado esperanças em outro, as vê desvanecer-se bruscamente. O tom que adotará
Scaliger em algumas de suas peças In Bibinum [Contra Bibinus]. O tom que o pró-
prio Bourbon adotava em sua peça In Rabellum.
Isso é tudo? Relendo atentamente as Ninharias de Nicolas Bourbon - as
Ninharias de 1538 -, deparei-me com uma peça curiosa (CXXXIl, p. 417). Jamais,
que eu saiba, ela chamou a atenção dos amigos de Rabelais. Visa a um certo Cha-
ridemus: deve-se traduzir Caro à Populaça - ou mesmo, com La Bruyere,
Charme da Canalha? Ei-la, traduzida:
Muitas pessoas que te viram recentemente relataram, Charidemus, que querias
publicar um novo livro. E por que não? Noutros tempos, era teu hábito publicar
livros - e tua reputação é grande. Mas o tema dessa nova obra, ninguém ainda, Cha-
ridemus, que possa dizê-lo. Alguns contam com grandes arcanos sobre o nome de
Jesus, a arte mágica, os maus demônios. Outros crêem em revelações sobre os gênios
das pedras preciosas, os astros, os dias em que convém aproximar-se ou fugir de
Vênus. Estes falam dos cogumelos, da acelga e de suas virtudes; aqueles, das favas e
outros legumes. Alguns pretendem que tratas da lepra ou da asquerosa sarna: duas
doenças que conheces bem. - Acredita-me: tudo é preferível a cantar as guerras hor-
ríficas dos gigantes ou as montanhas empilhadas sobre montanhas. Mas se não se
trata de nada disso - escuta minha conjetura e, rogo-te em teu interesse, deixa-me
confiá-Ia a ti: tratarás dos grous e de como outrora, valentemente, os pigmeus teus
pais souberam apoderar-se deles!"
Os gigantes? Seus combates horríficos? E essa curiosidade sôfrega que vai da
magia à botânica, passando pela astronomia, a medicinae tantos outros arcanos?
- O nome de Rabelais vem aos lábios. Notemos que a peça de Bourbon não se
inclui nas Ninharias de 1533; é provável, portanto, que tenha sido escrita entre 1534
e 1538. Nessa data, Rabelais - que não publicou nada desde Gargâniua, sem
dúvida posto à venda em outubro de 1534 - Rabelais pode estar pensando em um
novo livro?
E além disso, eis outras flechas disparadas contra o "Charrne da Canalha",
para usar essa tradução livre. Ele é helenista. É, ou se gaba de sê-lo, platônico. Pro-
clama-se um novo Hipócrates: três peças, já inseridas nas Ninharias de 1533, nos
informam disso. Uma aconselha: "Charidernus batiza-se de Hipócrates; melhor
faria em se tornar Harpócrates". Harpócrates, um dedo nos lábios, personificava
o silêncio. - A segunda zomba: "Charidernus fez uma gramática grega; elogia-a
em pública, exibe-a a todos, recita trechos dela". - A terceira invectiva: "Filho da
Tolice, personagem sem cultura, descarado: quando estás com gramáticos,
armas-te em filósofo platônico. Traz-se um Platão, voltas a ser gramática". Como
esses textos são desconcertantes! Hipócrates? É Rabelais! - Platão? É Rabelais!-
Mas essa gramática grega? - É verdade. E no entanto, esses gigantes, essas curio-
sidades de magia, essa ciência de botânico ... Vamos, é realmente Rabelais!
Não, não é Rabelais. Pois eis, nas Ninharias de 1538, duas peças que não figu-
ram nas de 1533 . Um sujeito, diz o poeta, queixa-se de ser difamado em nossos ver-
sos - um sujeito cujo nome soa, ou quase, como Charidemus. Se de costumes
como de nome ele se parece com Charidêrne, tanto pior para ele: a culpa disso não
é de Bourbon! - Quem é esse sujeito? A segunda peça o nomeia. Chama-se jean
Chéradame. E desta vez Bourbon o interpela por seu nome: "Os que te disseram
que, sob o nome de Charidême, eu feria tua reputação - se conseguiram fazer-se
acreditar por ti, que posso fazer? Crédulo, por tua credulidade sou então respon-
sávelr"." E as trevas se adensam.
Chéradame, esse nome nos diz alguma coisa? O homem que o usava era um
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normando - um hebraísta com tendências místicas. Ele prendeu a atenção de
Imbart de La Tour em suas Origines de Ia Réforme (m, 289), pois publicou, sob o
título modesto de Alphabet hébreu, um pequeno tratado de mística dionisíaca. À
procura de símbolos, encontrou-os sem grande esforço nas palavras da língua
sacra, e até nas letras que formam essas palavras: tudo tendo um sentido, tal letra
representa o ser de Deus, tal outra o Cristo etc. O personagem prendeu igual-
mente a atenção de Delaruelle, estudando os primeiros passos do helenismo em
Paris, entre 1514 e 1530. É que ele publicou, por Gourmont, em 1521, uma gramá-
tica grega - depois, em 1523, uma pequena edição do léxico grego de Craston. E,
em sua dedicatória a Guillaume Petit, bispo de Troyes e confessor do rei, ele nos
diz que, tendo estudado a medicina antes do hebreu, deve a si próprio a alcunha de
Hipócrates. Assim, inscreve-a no título do léxico, notavelmente aumentado tanto
por gentileza de Guillaume du Maine (Mainus) como deJean Chéradame, Hypo-
crates, Matheseos et Linguae Professor hauâ poenuendus. Acrescentemos que, em
1528, ele publicou a primeira edição francesa de Aristófanes (por Gourmont) e, no
mesmo ano, uma tradução dos Diálogos dos Deuses de Luciano. Antes, em 1527, edi-
tara o Crátilo.
Então, Rabelais-Charidemus? Rabelais- Hipócrates? Rabelais- PIatão? Des-
feitos, desaparecidos, dissipados. Já não há Rabelais, nada além de Chéradame
d' Argentan na diocese de Séez, dotado de relações em Troyes e em Langres que
puderam pô-Ia em conflito com o champanhês Bourbon." Mas e os gigantes?
Desvanecidos também, os gigantes; tem de ser; afinal, a expressão pode não ser
mais que proverbial, fazer pensar simplesmente em Pélion sobre o assa, o que
não tem nada de especificamente gargantuesco ... E, além disso, o fato está aí:Jean
Chéradame não é um mito. Aliás, eis In Cnaridemum, uma peça ainda que o situa
e o põe, vivo, diante de nós (livro VII, CXLVIl, 423). Outrora, quando fazia a corte a
uma elegante donzela, Charidemus, diante dos companheiros, mostrava-se,
fazia-se agradável, espirituoso. Agora, na posse da esposa cobiçada, furta-se a
todos os olhares - de sorte que aos vizinhos que lhe perguntam, segundo o uso,
o que ela faz de seu marido e se ele se comporta valentemente - a pobrezinha
responde: "Não sei! Ele está completamente absorto nos astros!" - Rabelais, esse
neófito da astronomia? Por certo, seus almanaques estão aí, e suas prognostica-
ções ... Mas Charidemus conquistou uma esposa (nunc uxore potitus expedita)
depois de ter sido seu pretendente - e François Rabelais, padre, monge apóstata
de 1527 a 1536, depois (as pesquisas de J. Lesellier o estabeleceram) cônego de
Saint- Maur até o fim de seus dias, podia na verdade procriar filhos naturais; mas
não tinha direito senão a uma concubina - e Deus sabe que nomes seus compa-
nheiros lhe teriam atribuído se o houvessem questionado; ele não tinha nenhum
direito a uma esposa legítima: uxor.51
Estranho andamento das invectivas nesse pequeno mundo fechado dos lati-
nistas: as Ninharias de Bourbon, desde 1533, nos trazem in Charidemum um pri-
meiro lote de maledicências calculadas. Abramos os Épigrammes de Visagier, em
dois livros, que são publicados por Gryphe em 1536: à página 32, deparamo-nos
com uma pequena peça In Cheraâaemum (sic) que parece de antemão conseguir a
síntese dos dois epigramas posteriores de Bourbon: "Sórdido, obsceno, funesto,
vergonhoso e furioso, ignaro e sem valor: sim, mas Cheradaeme está apaixonado.
Provoca riso em toda parte, é a chacota de todos, avilta seu renome na populaça:
sim, mas Cheradaeme está apaixonado" . Era o tempo em que Visagier ainda não
estava rompido com Bourbon.
N o fim das contas, diante dos textos das Ninharias, continuamos pouco satis-
feitos. Chéradame existe. Chéradame fez uma gramática grega. Chéradame teve
curiosidades mágicas. Mas e esses gigantes, essas preocupações de botânico filó-
sofo? E as próprias reticências das negativas opostas ao pobre Chéradame quando
se queixa? Bourbon, por umjogo sutil, teria pretendido matar dois coelhos de
uma só cajadada? Tendo-se divertido em 1533 à custa de Chéradame, teria ele, em
1538, visado a um outro que não ele, sob seu nome, criando para si um álibi de
maledicência?
Em todo caso, notemo-ia: não há nada, nessas peças, que vise mais que a ridí-
culos. Nada que vise a uma atitude religiosa ou irreligiosa. E no entanto, para
Bourbon, simpatizante da Reforma, naturalmente fanático por temperamento e
por gosto, a questão estava posta. Desde 1533 suas Ninharias (Paris, Vascosan, f' C
6 VO) punham em cena um lucianista hipócrita, que tinha o Cristo nos lábios; mas
Luciano, este sim, habitava tanto seu coração como seus lábios. "Sei quem tu és
agora" (nunc, qui sis, scio;ftrs in ore Christum,jérs in pectore et oreLucianum). - Fór-
mula que será retomada pelo plagiário Visagier em seus Épigrammes de 1531: mas
ele a aplica a Lefêvre (r, 70), Quodjértpectore,jértinore: Christum[ ...]-Quemé esse
lucianista? Rabelais? Nada o prova; nada o contradiz. Não há mais nem menos
razão para pensar nele que para evocar dez outros de seus contemporâneos que
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conhecemos - ou a massa dos desconhecidos que podiam "lucianizar" em
segredo. Mas, além disso, "Iucianizar"> O sentido da palavra varia singularmente,
é preciso dizê-Ia, segundo os que a empregam, nesses tempos de controvérsia reli-
giosa. Um cristão como Erasmo "lucianizava", para o duplo horror de um cristão
como Lutero e de um cristão como Beda; e ambos, reconciliados no ódio, lança-
vam, de seus pontos cardeais opostos, anátemas brutais contra o cristão do Enchi-
ridion [Manual], esse breviário de piedade liberal- contra o editor do Novo Tes-
tamento, contra o homem cujo esforço foi todo de tornar mais vivo, mais fecundo
o cristianismo de seu tempo. Mesmo que o lucianista das Ninharias de 1533 fosse,
como o Rabellus da mesma coletânea, nosso amigo François - a imagem tradi-
cional que dele nos deixou, por exemplo, Gebhart,não seria modificada. Pois esse
evangelista jamais pactuou com os fanáticos. Não se arregimentou, atrás de um
FareI, entre os iconoclastas. E, de fato, durante toda a sua vida, sem de modo
algum fazer segredo disso, reivindicou o direito de unir, em uma piedade eras-
miana, o humano, o alto pensamento de um Platão e a espirituosa, a sorridente
brincadeira de um Luciano.
VII. JÚLIO CÉSAR SCALIGER E FRANÇOIS RABELAIS
Há os textos assinalados por Thuasne e retomados por Abel Lefranc. Há
outros. E que levantam dificuldades da mesma ordem. Em dois artigos da Revue
des Études Rabelaisiennes, um erudito já citado aqui, o doutor De Santi, chamou a
atenção para um lote de epigramas (infelizmente não datados) dirigidos pelo
impetuoso Júlio César Scaliger, gladiador de letras, contra um certo Barycenus ou
Barcenus. Encontramo-Ias na volumosa coletânea dosJ.-C. Scaligeri Poemata [Poe-
mas de]. C. Scaliger] que Joseph Scaliger publicou em 1574, após a morte de seu
pai. São numerosas as peças dirigidas contra Dolet nessa miscelânea: quatro na
Farrago [Forragem], quatro no Hipponax [Hipônax]. Épouco em comparação com
as peças referentes a Barycenus ou Barcenus: nove na Farrago, duas no Archilochus
[Arquíloco], sem contar uma tirada no poema Ata. Além disso, um número
impressionante de peças emaranha-se nas precedentes; elas visam (pseudônimo
do mesmo gênero, atrevo-me a dizer) a um certo Bibinus - e contam-se pelo
menos quatro delas na Farrago, três no Archilochus, três no Hipponax. De modo
que, se Bibinus, Barycenus e Barcenus são a mesma pessoa, mais de vinte e cinco
peças, todas de uma violência escaligeriana, parecem dirigidas, sob nomes diver-
sos, contra um mesmo personagem - que teria sido, então, um dos dois ou três
grandes ódios desse grande rancoroso que é Scaliger.
A testemunha não é famosa. Esse pavão vaidoso e barulhento, nascido em
Riva, à margem do lago de Garda, em 27 de abril de 1484, filho de um miniaturista
veronês, Benoit Bordone, que viveu muito tempo em Pádua, depois em Veneza no
bairro della Scala - 52 daí o apelido que servia para designá-Io, e do qual Júlio César
fez o ponto de partida de uma ridícula pretensão, a de descender dos Scaliger de
Verona - esse aventureiro, aliás bastante dotado, fora para a França nas bagagens
de Antonio della Rovere, bispo de Agen. Isso, por volta de 1524, sem dúvida. Um
casamento fixou o italiano às margens do Garonne. E imediatamente (longas via-
gens, maiores mentiras) ele armou-se em personagem, inventou para si um pas-
sado heróico, narrou suas campanhas, suas façanhas em Ravena, onde seu pai e um
de seus irmãos teriam sido mortos; dotou-se de antepassados, de alianças e de bra-
sões, proclamou que Bordone era um nome de feudo do qual fez Burden, ele pró-
prio fabricou, sem dúvida, um diploma de mestre em artes pretensamente
paduano - e finalmente conseguiu obter em 1529, graças às suas falsificações,
cartas de naturalização que o qualificam pomposamente de jules-César de Les-
calle de Bourdonis, doutor em medicina, natural de Verona, habitante de Agen há
quatro anos. 53
Sabe-se como, para tornar-se conhecido, ele criticou Erasmo, tratou-o de
filho de prostituta, de bêbado e outras gentilezas, e consagrou-lhe duas perora-
ções: uma enviada a Paris desde 1529 e impressa por Pierre Vidoue em 1º de
setembro de 1531; a outra terminada em 25 de setembro de 1535 e impressa pelo
mesmo Vidoue, por gentileza de Sussannée, em 1537: quando foi publicada,
Erasmo estava morto. Então, para fazer-se de justo, Scaliger, em seu De comicis
âimensionibus [Dos metros cômicos] de 1539 (p. 55), derramou lágrimas hipócritas
pelo grande desaparecido - e publicou no mesmo ano um dístico assombroso em
seus Heroes (p. 23): "Eis-te então morto, Erasmo ... Assim, tu me abandonas antes de
ter podido te granjear meu amor!" (At quid me linquis, Erasme, -ante meus quam sit
conciluuus amor?) - Ora, basta abrir, nas Amoenitates litterariae [Amenidades lite-
ráriasJ de Schelhorn, o pequeno dossiê de cartas de Júlio César que escaparam à
prudência vigilante de Joseph e foram publicadas pelo erudito alemão. '" para ter
9I
92
de seus procedimentos uma impressão justa. Pois aí se encontram (VI, p. 508) duas
denúncias formais de Erasmo por Scaliger: uma dirigida ao reitor da Universidade
de Paris, a outra (p. 522) a Beda em pessoa: Beda, qualificado de vir doctissimus e
intimado a agir o mais depressa possível contra um descrente que, não contente
em querer extinguir as luzes de nossa religião (religionis nostrae lumina exstinguere),
ainda por cima induzia em tentação de heresia incontáveis simples por ele engana-
dos (ejusfallaciis jam illecti sunt nonnulli qui, quam quod erant, aliud esse mallent).
Atitude sórdida, nem sequer com a desculpa do fanatismo: podia ele apresen-
tar-se como católico intransigente, esse ex-discípulo de Pomponazzi em Pádua?
No dizer de Joseph, seu filho, ele começou realmente, em Bolonha, por Duns Scot
- então pretendia ser franciscano e depois papa (sic)! -, mas em Agen, em 1538,
foi perseguido por heresia e morreu semiluterano: tudo isso o qualificava bem,
como se vê, para fazer-se, contra Erasmo, o provocador paladino do catolicismo
mais ferozmente ortodoxo! - De resto, esse Júlio César, um original, um "tipo"
com qualidades: poliglota como Panúrgio (a crer nele, pelo menos), apaixonado
por plantas raras, mandando trazê-Ias da Provença para as desenhar e pintar exa-
tamente, médico entusiasta de sua arte, propagandista fanático, quérulo despudo-
rado, sempre tenso, sempre agitado, sempre vibrante e sobre o qual Joseph escreve
que era, em Agen, mais temido por todos que amado; mas tinha, esse tonsurado
(ao que parece, apelidavam-no assim em Pádua) - tinha uma presença, uma auto-
ridade, uma majestade e uma figura que infundiam respeito a todos. "Ele era ter-
rível", constata seu filho ingenuamente, "e gritava tanto que todos o temiam!"
Evitemos, fora do tempo, sofrer esse sortilégio, e, sobretudo, não tomemos por
verdades as afirmações desvairadas desse sicofanta veronês."
Ora, de que se trata em seus versos? De um monge ou, antes, de um ex-
monge, trânsfuga de duas ordens pelas quais passou sucessivamente - escritor
e humanista, versificando jambos em resposta aos jambos de Scaliger, calunia-
dor, maledicente, perturbador e ainda por cima, naturalmente, ateu. Bom
beberrão, aliás: seus pseudônimos pareciam indicar isso. É preciso mais para que
um homem de imaginação como o doutor De Santi declare que Barycenus, o
Bêbado, é Rabelais?
À primeira vista, as relações são perturbadoras. O Bêbado, o oiuoôapnt;
[bebum] ou o Barycenus que serve de alvo a Júlio César foi, no começo de sua
carreira, monge e estava morto para o mundo. Como Rabelais. Um daqueles
"ociosos monges" por quem Scaliger, o ameaçado de 1538, nutre um forte ódio:
eles são menos úteis ao mundo que os cadáveres, confia-nos ele; o cadáver pelo
menos fertiliza a terra; o monge a esgota por sua estéril glutonaria (mortuus impin-
KJUlt steriles Iaetamine sulcos; -at monachus, segetum munem rodit, iners). - Ainda
por cima: Baryoenus foi duas vezes monge - como Rabelais. Scaliger nos diz isso
expressamente, com detalhes que De Santi não utilizou, talvez por não ter desco-
berto bem o sentido de um ou dois versos de seu autor. O epigrama v (p. 194), cor-
retamente traduzido, nos fornece, de fato, os seguintes detalhes: "Trânsfuga do
cordão, Barycenus, de castanho vestido, põe-se de negro. O mau homem não
pôde dar um bom franciscano. Ao tornar-se monge negro, mudou ele apenas de
cor? Não. Ele era, continua a ser um homem negro"." Detalhe perturbador: mes-
tre François não usou de início, como franciscano, o cordão dos Filhos de são
Francisco e seu hábito castanho,phaios, depois do que tomou o hábito negro dos
beneditinos? ..
Prossigamos. Esse duas vezes ex-monge tornou-se ateu. E portanto, no con-
vento, estava morto apenas para o mundo; agora, está morto para tudo, total-
mente (At nunc, rum est atheos, jam vero est mortuus orbi - aique orbi, atquc Deo, cor-
poreque atque anima).
Maisadiante, Scaliger resume: bis monachus, tandemque atheos [duas vezes
monje e, enfim, ateu]. E quando redige a oração fúnebre, quando incrimina a nati-
vidade de Barycenus tPoemata, p. 194), faz igualmente alusão ao ateísmo desse mal-
vado. Pois a maldade é seu pior traço. Criança, jovem e velho, ele não apenas não
cessou de freqüentar tabernas e bordéis - como também a raiva é seu sinal distin-
tivo. Ele a expande em versos infamantes, em jambos envenenados, que lança a
tudo e a todos, sem poupar nem Deus nem o diabo (qui mundum atque Deum lace-
ravuvocibus atris, -si bonus est, bonus et Cerberus essepotest). Em suma, um especia-
lista da sátira e da difamação; se lhe dirigem versos mordazes, seu primeiro movi-
mento é de perguntar-se: são meus? O doutor De Santi pensou imediatamente no
epigrama de Visagier de que falávamos mais acima: 'Aquele que pretendeu, Rabe-
lais, que teu coração está infectado de raiva ... esse aí mentiu ...", Nenhuma dúvida.
O Zoilo é Scaliger. E se De Santi tivesse conhecido melhor o pequeno mundo dos
Apolos de Colégio, teria pensado - nós pensamos por ele - em sublinhar que
Nicolas Bourbon se mostra, por volta de 1533-4, muito ligado a Scaliger; que o
enfeita de elogios no início da coletânea dos Épigrammes de Scaliger publicada por
93
94
Vascosan em 1533, que reforça com peças de sua lavra as dedicatórias do "Cladia-
dor" a Ch. Sevin e seus epitáfios de Luísa de Sabóia. - Bourbon, o adversário de
Visagier, seu "plagiado" de 1538: decididamente, nesse pequeno mundo as pes-
soas sempre se encontram ... 57
Notemos que se conclui de um texto irrecusável- a carta dita a Salignac-
que Rabelais conheceu Scaliger," desde antes de 1532. Ora, Scaliger "não tendo
deixado Agende 1524 até 1558, ano de sua morte" -é preciso que Rabelais tenha
passado pela cidade, sem dúvida na época (1527-31) em que, como ele próprio diz
em sua Supplicatio pro Apostasia [Prece pela apostasia] de 1536, "exerceu durante
vários anos, em muitos lugares, a prática médica, sob o hábito de padre secular"
(presbyteri secularis habitu assumpto, medicinae praxim in multis locisper annos muitos
exercuit) CEdoMarty-Laveaux, 11I, 337). Assim, tudo se explica quando se conhece
Scaliger, suas invejas furiosas, seus ataques incessantes contra os médicos da
região e de outras partes - pois "não há reputação médica na França, desde Fer-
nel até os mais obscuros clínicos de Agen, que ele não tenha destroçado".
Rabelais, médico, não escapou ao comum destino de todos os seus colegas
em Hipócrates."
Tudo isso, bem impressionante, reconheceremos. Contudo, algumas dificul-
dades ... A primeira é que, nos dez epigramas In Barycenum citados e estudados por
De Santi, nenhuma palavra indica, salvo erro, que Barycenus era um médico.
Entendo que o erudito acreditou no contrário. Comentando desde seu pri-
meiro artigo um dos epigramas de Scaliger (Archilocus, p. 350), "Rabelais", conclui
ele, "é aí muito manifestamente tratado não mais como homem de letras, mas
como médico, como charlatão." Pois bem, não, eu traduzo:
Barycenus diz: César, sem se preocupar com o ganho, aplica-se às letras. César é
um tolo: negligenciar o ganho para estudar as letras! Mas tirar sangue é tirar
dinheiro, mesmo se o sangue é apenas o acessório - ainda mais se ele é o princi-
pal, ou mesmo o único. No entanto, em seu orgulho, César o negligencia: quem
julgaria são o cérebro desse homem que, por queimar as pestanas, se empobrece?
- Assim, inchando as bochechas, pelas praças e ruas, apregoa Baryeenus, acom-
panhado dos mortícolas Brucus e Syrus em quem tudo, palavras e atos, está à
venda. Baryoenus deblatera e, jovial, enche o fórum com seus risos. Mas quando
vê César não fazer nenhum caso de seu furor de Battale insolente, e receber suas
grosserias com a mesma cara que comumente os louvores - o pobre Baryeenus
morre de despeito!
Por mais que se vire e revire essa peça: nenhuma palavra que diga que Barycenus
era médico. Pode-se passear entre dois mortícolas e não ser da corporação! Nas
outras peças, silêncio total. Monge apóstata, caluniador furioso, ateu: impossível
acrescentar medicastro ou charlatão à litania. Ao menos de maneira segura.
Outra coisa. Dois epigramas, se se trata de Rabelais, são estranhos. Um (Far-
rago, p. 194) nos dá sobre as origens de Barycenus um detalhe imprevisto: o duplo
apóstata era filho de açougueiro (e lanio, inter grunnitusque boumque cruores-
natus). Rabelais, filho de açougueiro? É uma inovação. E eu me lembro aqui (não
sem algum pudor de parecer tão familiarizado com esses pobres escritos) de um
epigrama de Visagier nas Inscriptions por ele publicadas em Paris, em 1538, por
Simon de Colines Cfb6). Ele visa a um médico chamado Rullus: "Teu pai era açou-
gueiro: tu não diferes dele; salvo que ele, no entanto, sacrificava animais e tu,
homens". A pecinha anódina está impressa na coletânea exatamente antes do epi-
grama contra Rabella, o hipercurioso (Scire cupis qui sim).
Não menos singular o fim que Scaliger atribui a seu Barycenus em uma peça
em forma de epitáfio: 'Aqui repousam os ossos de Barycenus de quem as chamas
purificadoras deram cabo. A água não pôde dissolver esse tenebroso velhaco; um
cão teve de tudo devorar avidamente [.. .]". Texto obscuro." De Santi, intrépido,
nos diz que ele mostra" quais legendas correram na provincia depois da morte do
pai de Pantagruel". Na província é um encantador anacronismo! Mas a menor
explicação nos conviria mais. Em Agen, "da qual Scaliger registra os mexericos" ,
contou-se que "Rabelais se afogara, mas que a água, escandalizada, rejeitara seu
cadáver e que, finalmente, um cão o devorara". Sem dúvida, mas gostaríamos de
conhecer os mexericos de Agen de outra maneira que não por um texto que se
pretende explicar por eles ... - Aliás, chegou o momento de apresentar uma
grave objeção.
Por que o doutor De Santi, lendo os fastidiosos poemas de Scaliger, estacou
diante de alguns? Por que os relacionou a Rabelais? Porque traduziu Barycenus por
Saco de Vinho (literalmente, Cheio de Vinho) e, imediatamente, surgiu o Rabelais
95
Quem é Bibinus? Um irmão gêmeo do Pimpinus de quem Antonio de Gou-
vea canta os ternas báquicos em seus Épigrammes de 1539 (n. XLV) - ou então um
personagem real e conhecido? De Santi não hesita. É Rabelais. Novamente ele.
De fato, às páginas 445 e 446 do Hipponax, duas invectivas contra esse deplo-
rável Beberrão parecem estabelecer sua identidade com Barysenus, Corno ele,
Bibinus - Bibinus ille,factiosus et durus - é um monge revoltado que abandonou
o hábito. Scaliger o pinta, no tempo em que era monge, brilhando com esplendor
corno urna chama de lâmpada. Ele apostatou: não é mais que urna luzinha numa
lanterna de chifre (cuculla cum puâore deposita [largado o capuz juntamente com o
pudor]). E, finalmente, ei-lo porco na engorda topimis porcus auctus insacris [porco
da legenda: Jamais o solo viu, por manhã que fosse, que não tivesse bebido ... Mas
e a ortografta?
Até agora, intencionalmente, escrevemos sempre corno De Santi, Baryoenus."
De fato, o que Júlio César imprime é Baryeenus, todas as vezes que a palavra se
encontra em sua escrita. Lemo-Ia assim nos títulos em romano, em que a letra é de
uma clareza perfeita. Lemo-Ia no texto em itálico; e, se se quisesse duvidar disso,
bastaria comparar na linha 11 da página 191 dos Poemata, nas palavras: Male
prenitere... artis et operceo cede prenitere e o rede opera: - ou ainda (p. 194, linha 22)
nos versos: Quem Gangrcenarum fcetida prostibula, o rede gangrrenarum e o cedefcetida.
Mas, então, já não há Saco de Vinho? Pois jamais um nome forjado com a ajuda do
grego, barus e oinos, se tornaria Bary.znus na escrita do helenista Scaliger!
De Santi realmente prestara atenção à palavra. Mas foi para imaginar que
Júlio César, em seu manuscrito, escrevera Rabuxnus e não Barycenus - e que "foi
provavelmente Joseph Scaliger, com a mesma mão que expurgou piedosamente
os escritos de seu pai, que deve ter transformado, de maneira a desviar as suspei-
tas, Rabicmus em Barycenus", Hipótese inteiramentegratuita; por que Rabicenus e
não Rabienus, se se trata de evocar a rabies rabelaisiana?
E no entanto: fit niger ex phaeo Baryrenus transfuga funis [Barieno, o trânsfuga,
de escura torna-se negra corda]: o verso de Júlio César, o presunçoso, não cessa de
nos trotar na memória. Retoma-se o grande in-octavo bojudo dos Poemata, com a
dificuldade de se achar em presença de documentos não datados, entregues de
qualquer maneira para a impressão, tardiamente (1574), por um herdeiro pouco
seguro ... Retoma-se, e descobrem-se as peças In Bibinum.
engordado em fartos santuários]), empanturrado de beneficios, de comida, de
desregramento: lanterna ainda, mas apagada. Mesmo tema mais adiante (p. 455):
o epigrama, aliás, tem um verso em comum com o precedente: diris monota cum
lateretin claustris [como o monge se escondesse nos claustros cruéis]. Scaliger opõe
o religioso que, em seu convento, continha-se, ou melhor, era contido, escutava a
voz dos letrados e suas exortações, abstinha -se de escândalo e de rixas, ao renegado
agora fora do claustro, que não cessa de percorrer as ruelas mal-afamadas, de espo-
jar-se na lama ou de beber como um monge até a embriaguez total. Assim, prova-
velmente é ao mesmo Bibinus que se deve relacionar o epigrama in quendam, à
página 456 do Hipponax. "Tu te espantas" , interroga Scaliger, "de que os doutos,
por quem há pouco eras coberto de flores, te esmaguem agora sob os piores opró-
brios? Mas antigamente, pacífico, sóbrio, piedoso e dócil, atraías todos os corações
para ti; agora [...r .Scaliger nos mostra o infeliz com sua língua impudica, sempre
sedento, sempre esfaimado, mulherengo, jogador de dados, freqüentador de
taberna, faccioso, que mais? "Os que afugentaste, espantas-te por fugirem de ti?
(quos tu fogasti, te fogare miraris?)".
Uma ou duas dessas peças não deixam de ser espirituosas. Eis (Hipp., p. 448)
Bibinus erguendo aos céus dois braços suplicantes: "Fizeste a idade do ouro, a idade
da prata, a idade do bronze, a idade do ferro: quando farás, Senhor, a idade do vinho
puro?". Mas, no mais das vezes, a violência de Scaliger não tem graça. "Bibinus, não
o conheceis? Eis sua identificação: Mentiroso, malvado, impudente, traidor,
bêbado, ímpio. Nega Deus em palavras e mais ainda em atos" (Farrago, p. 211).
Mas não temos aí, exatamente, as características de Baryeenus, e as do Rabelais da
legenda, com o acréscimo da maldade? Aí há mesmo uma singular conexão a ser
feita. Vimos Thuasne aplicar a Rabelais certas peças de Visagier e de Chesneau que
visam a um monstro de curiosidade. Ora, um dos epigramas de Scaliger In Bibinum
intitula-se (Archilochus, p. 356) O Curioso: "Bibinus julga todo o mundo; raros os
que aprova, numerosos os que desonra". E Scaligerpassa a denunciar o vazio de um
homem que, ocupando-se sempre dos outros, não é em seu íntimo mais que um
perpétuo exilado (regnans foris, sic intus est exul sibi). Por outro lado, De Santi desta-
cou, em uma das obras de crítica científica de Scaliger, a Exotericarum exercitatio-
num liber. .. de subtilitate [Livro sobre exercícios exotéricos ... sobre a sutileza], um
ataque contra um charlatão, um meio-monge (quidam semimonachus), que, não
tendo nenhum outro trunfo na manga, lançara mão, contra o Scaliger médico, de
uma calúnia que Scaliger já o ouvira proferir contra ele: tratava-se de um ponto de
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medicina delicado, das virtudes do ouro dado aos doentes sob a forma de eletuá-
rio. E, naturalmente, Scaliger passa a tratar seu colega de histrião e de charlatão,
com sua crueza habitual. Oposição de um médico inovador, sugere o doutor De
Santi, de um médico que se gaba de não fazer parte de nenhuma escola, a um
médico galenista e conservador, Rabelais? Então, se o semimonachus da controvér-
sia com Cardon é Bibinus; se Bibinus é Baryeenus - seria preciso revisar nossa opi-
nião de ainda há pouco: Barysenus seria realmente médico?
Assentado no terreno médico, o doutor De Santi alarga suas vantagens. No
entanto, muitas vezes, poderia fazer mais. Pois eis, no Hipponax (p. 401), duas
invectivas contra galenistas. Um se chama Cossus, o outro, Rubellius. De Rubellio,
altero galenista [Sobre Rubelius, outro galenista], intitula-se a peça. Rubellius,
nome clássico; encontramo-lo emjuvenal (VIII, 39), assim como Cossus (VII, 144),
aliás - e decerto Júlio César devia possuir seu Juvenal. Mas há menos diferença,
afinal, de Rubellius que de Baryamus a Rabelais? Esse Rubellius - que, se Galeno
houvesse dito: "par é ímpar" o teria repetido como palavra de Evangelho, sic aiquc
si Deus mandet - compadecia-se do pobre Scaliger: Foves adhucne barbaros Avicen-
nas [Ainda favoreces bárbaros Avicenas], lhe perguntava ele," et sordidatos atque hir-
tos [maltrapilhos e desgrenhados]? - Quem lesse um pouco depressa esses textos
obscuros poderia mesmo crer que Scaliger censura o galenista por partilhar os er-
ros de Scot, o que se aplicaria bem a um ex-franciscano como Rabelais: nec excidere
mente de tua, durus - fallacia argumenta quae Scotus fuditj -nigris et in recessibus lates
stulte [nem esqueceste, impudente, / os falazes argumentos que Scoto difundiu; /
e, em negros recessos, tolamente os ocultas]. Mas estas palavras, revistos os textos,
devem ser atribuídas ao galenista, e é Júlio César que se vê incriminado de sco-
tismo: os leitores das Scaligerana não ficarão surpresos com isso:'
Então, Rubellius? Rabelais - ou então aquele médico célebre em seu tempo
que Dolet" chama Ruellius e que talvez seja o Rullus de Visagier, Rullus do pai que
foi açougueiro? Aí nos perdemos. De Santi lembrou-se de que, em seus Poemata,
Scaliger representava lindamente um certo Calvus. Acusa-o de tudo e, em pri-
meiro lugar, de impiedade: Tartara dissidiis, coelum impietate lacessit, proclama o
Farrago (156). Ora, nas Scaligerana (1695, p. 364 ),Joseph Scaliger nos informa sobre
esse Calvus. Era Jean Escuron, o "nobre Scurron, médico" do livro IV (XLIII)-
aquele que morreu, em 1556, professor da Universidade de Montpellier depois de
ter cuidado muito tempo de Margarida de Navarra. "Ignarissimus vir" [homem o
mais ignaro], escreve ]oseph, "herdeiro dos ódios paternos, Pharmacotriba, id est
[Farmacotriba, isto é] Pilador de Drogas, verius quam medicus [antes do que
médico]." É que Escuron exercera a medicina em Agen ao mesmo tempo que Sca-
liger. Mantendo escola como ele, escreve De Santi, "tomava-lhe os alunos, ou os
clientes" .65 - Raio de luz! Rabelais fora a Agen; começou por freqüentar Scaliger;
depois o abandonou para ligar-se a seu rival- e quando Escuron passou a ensinar
em Montpel1ier, no fim de 1528, Rabelais seguiu seu mestre: é ainda De Santi que
nos afirma isso. Em 7 de setembro de 1530, Rabelais, matriculando-se, declara
tomar como patrono (egregium dominumJoannem Scurronen, âoctorem regenteque in
hac alma Universitate). Mas, ao mesmo tempo, não nos explicamos esta peça In Bibi-
num (Hipponax, p. 451):
Quando Bibinus freqüentava minha casa, éramos uma única voz, um espírito, um
coração; éramos irmãos em nossos debates de amigos. Desde que a deixou, esse
velhaco, somos mais irmãos ainda, mais filhos de um mesmo pai. Nada de debates
desagradáveis, de discórdias entre nós; ele não quer vir; eu não quero que ele venha [...]
Tudo isso compõe, é preciso reconhecer, um pequeno romance bastante per-
turbador, cheio de episódios plausíveis e de verossimilhanças documentais. Como
ficaríamos felizes se tudo isso fosse verdade! Quero dizer: iluminasse a noite rabe-
laisiana. E De Santi é tão peremptório, está tão convencido que a todo instante nos
sentimos prestes a ser arrastados. Esse médico que abandonou o hábito, esse
meio-monge, esse curioso maledicente, dantes humanista respeitado, agora fre-
qüentador de taberna, mas é Rabelais ... Não pode ser senão Rabelais ... - ]oseph
Scaliger, contudo, não diz nada sobre isso. Ele, que nos dá a chave do pseudônimo
Calvus, cala-se sobre Baryeenus. E então, no Archilochus (p. 356), esta curta peça:
"Por que Bibinus faz boa cara a todas as pessoas más? Simples efeito do acaso? Seu
tio,seus irmãos, seu pai, sua irmã, seus sobrinhos fazem boa cara a todas as más
pessoas, a Tulla, a Cynon, a Fereguinus, a Luscius", - Eis-nos apresentados à famí-
lia Bibinus.] á nos detínhamos, hesitantes, diante do pai açougueiro de Barysenus.
Mas o tio, os irmãos, o pai, a irmã, os sobrinhos de Rabelais, onde e como Scaliger
os teria conhecido? E quem são os ilustres de conhecidos a quem fazem tão boa
cara esses naturais de Chinon - que o humanista italiano, transplantado do lago
de Garda para as margens do Garonne, não devia encontrar todos os dias sob os
99
100
arcos das ruas de Agen? Quantas dificuldades cria esse texto - que De Santi nem
sequer cita?
Enfim, na peça In Bibinum, não há alusões às coisas da medicina como tam-
pouco nas peças In Baryamum. Se o semi-monachus das Exercitationes é Rabelais, há
entre Scaliger e ele diferendos de ordem científica, debates de escola e de dou-
trina. Não há uma única alusão nas peças In Bibinum a essas questões? - Tam-
pouco há alusão, nem nessas peças nem nas peças In Baryamum, aos escritos em
língua vulgar de Rabelais, o Gargântua, o Pantagruel. Bibinus, Baryeenus escre-
vem, e mesmo muito: Uno Baryamus plus diefacit scripti - quam bis trecentis a viris
legipossunt [... ] [Num único dia Barieno faz mais versos/ do que os que por seis-
centos homens podem ser lidos.]. Os três versos seguintes poderiam ser aplicados
à sátira rabelaisiana: nam dictionis jIuctuantis insanae - si membra contempleris
atque suturam -furiosa Orestae somnia esse jurabis [... ] [pois se de seu discurso
insano e flutuante/ examinares os membros e a sutura/ jurarás serem sonhos
ensandecidos de Orestes], mas nos inteiramos, imediatamente depois, de que o
que escreve Baryeenus são versos: Quin, de seipso subdidit sibi versus - nomen suo-
rum inscriptitans amicorum - e é igualmente de versos que fala, no Archilochus
(p. 354), uma outra peça de Baryaenus, De mutuis laudatoribus [Sobre louvadores
recíprocos]. Ora, Rabelais cometeu versos latinos. Sabemos que existia toda uma
coletânea deles em Fontevrault no século XVII. Mas, enfim, não foram eles que
fizeram dele um personagem em evidência?
De fato, não se pode evitar a impressão de que Baryeenus e Bibinus figuram
no círculo imediato de Scaliger. Habitantes de Agen: assim se explicaria o uso do
pseudônimo. Scaliger nomeia com todas as letras os personagens que vivem
longe. Ele diz Erasmo, diz Dolet. Reserva o pseudônimo para os indivíduos que
ele se arrisca a encontrar todo dia ...
Tudo isso sensatamente formulado, sentimo-nos muito infelizes. Seria tão
sedutor preencher uma grande lacuna na biografia de Rabelais utilizando textos
particularmente expressivos e vivos - e dar à legenda rabelaisiana uma origem
plausível num rancor de Scaliger? Mas por enquanto é preciso ficar numa consta-
tação prudente: hipótese sedutora e verdade demonstrada são coisas diferentes.
Que Rabelais tenha ido a Agen, acredito. Que ali tenha conhecido Scaliger, a
famosa carta "a Salignac" o postula." Que sua atitude médica tenha podido desa-
gradar ao Hipócrates de Agen, o contrário surpreenderia. Que, entre os dois
homens, Escuron tenha sido um traço de união e depois de ódio: é possível. Levo
em conta (e voltarei a isso mais adiante) as alusões de Scaliger aos novos Lucianos
e aos Diagoras macarrônicos de seu tempo - alusões assinaladas por De Santi nas
Exercitationes de 1554 e que retomam as expressões de "Putherbe". Levo em conta,
igualmente, as perorações de Scaliger na dedicatória ao conselheiro d' Alesme de
seu Comentário sobre o tratado das insônias: elas visam aos homens que, tendo
nas mãos e no coração apenas as obras de Luciano e de Aristófanes, não as apre-
ciam pela beleza do estilo, mas pela mordacidade das idéias (propter acerbitatem sen-
tentiarum, si modo sententiae eae, ac non venenasintvocanda). E o Nestor de Agen, que
a muito custo acaba de safar-se das garras dos magistrados," passa a exigir para os
ímpios ajusta condenação das leis - ele, cujos pedidos de socorro a Briand de
Vallé são tão deslavados; isso, com frases de Joseph Prudhomme, que se faz parvo
cinicamente (nimis secure vivimus hodie. Hanc vocamus libertateml [vivemos hoje
com bastante segurança. Invocamos esta liberdade!]). - Não esqueço, além disso,
que o próprio Comentário de Scaliger forneceu (Plattard o indica em sua CEuvrede
Rabelais) a matéria do capítulo XIll do livro III sobre a adivinhação por sonhos. Dito
e repetido isso, tropeçamos em epigramas que resistem, em afirmações que seria
preciso justificar, em silêncios que seria preciso interpretar. Ah! Quem pudesse
"demonstrar" realmente que não se trata de Rabelais nesses textos - esse teria
tido, e dado, uma bela lição de prudência critica.
VIII. CONCLUSÃO: SOBRE A LEGENDA RABELAISIANA
Eis-nos no fim de uma longa excursão. Longa demais, talvez; mas, tendo feito
um trabalho fastidioso, desejaríamos que não se sentisse, daqui a muito tempo, a
necessidade de refazê-lo - e como concluir, por outro lado, sem ter esgotado
todas as fontes chegadas ao nosso conhecimento? - Concluir, mas como?
De maneira clara. Os "poetas" de que examinamos minuciosamente os escri-
tos nos deixaram sobre o Rabelais posterior a 1532 alguns testemunhos irrecusá-
veis. São peças dedicadas a Rabelais, com todas as letras, ou consagradas a ele sob
seu verdadeiro nome. Testemunhos todos favoráveis, trate-se, em 1536, da defesa
de Visagier ilibando Rabelais da acusação de raiva; ou do belíssimo elogio de
Macrin em suas odes de 1537; ou da conhecida peça de Dolet sobre as dissecações
rOI
102
públicas de Rabelais em Lyon, de sua menção a Rabelais na lista dos seis maiores
médicos humanistas da época, ou da nota lisonjeira referente a ele na ode, não
menos conhecida, sobre o banquete Dolet. Acrescentemos a essa lista o bilhete
afetuoso de Sussannée sobre o Esculápio de Montpellier, último recurso dos doen-
tes desesperados; o elogio magnífico do Rabelais filósofo por Gilbert Ducher em
1538; e mesmo o bilhete sem calor, mas corretamente familiar de Bourbon nas
Ninharias de 1538. Em nenhuma dessas peças autenticamente consagradas a
Rabelais a questão religiosa é levantada ...
Vários poetas nos confiam, por outro lado, peças que, sob um suposto nome,
podem visar e sem dúvida visam a Rabelais. Tal a peça de Bourbon In Rabeúam; de
1533: ela traduz, talvez, o escândalo de umhumanista contra um colega ilustre que
se esquece de quem é a ponto de escrever em "língua vulgar" romances para os
«pobres idiotas"; ela certamente não traduz a revolta de um crente, de um semilu-
terano contra um incrédulo: Bourbon teria sido o único, em 1533, a recusar-se a
ver no Paniagruet um poderoso auxiliar do Evangelismo anti-sorbonista. Tais
ainda, em 1538, as três peças In Rubellum ou a peça In Rabullam de Sussannée em
seus Ludi. Tal mesmo, nas Inscriptiones de Visagier, em 1538, o retrato do curioso
Rabella: ele quer saber tudo, mas não duvida de nada e não, em todo caso, do cris-
tianismo. Se, em contrapartida, levantamos insolúveis questões a respeito das
peças In Charidemum de Bourbon, em 1533 e sobretudo em 1538; se levantamos
outras a respeito das peças não datadas de Scaliger In Barycenum e In Bibinum -
devemos constatar igualmente que Charidemus não é em nenhum momento acu-
sado por suas opiniões religiosas. E, se Baryoenus e Bibinus são qualificados de
ateus duas ou três vezes: dito maldoso sem outra conseqüência, ou então o troco
por uma peça já publicada?
Restam, não muito numerosos, alguns epigramas que visam (sem que eles
sejam designados senão pelo nome de lucianistas, de partidários de Luciano ou de
ateus) a incrédulos que geralmente são também hipócritas: homens que recorrem ao
Cristo, mas, no íntimo, juram apenas por Luciano. Desde 1533, Bourbon está à
espreita desses monstros. Denuncia-os em termos vagos. Volta a isso nas Ninharias de
1538 e apenas então explicita suas queixas. «Deus não existe, exclamam esses malva-
dos; não existe nada depois da morte" (p. 449); «se houvesse um Deus, como o mal
poderia existir" (p. 303); «não háProvidência, enfim; tudo neste mundo está entregue
aos caprichos do acaso" (p. 477). - Em 1536, por seu lado, Visagier compõe a "home-
nagem" a um ímpio chamado Antoine (I, 24) e interpela um outro - ou dois, se
,....--------------------
Caneus e Canosus, que contestam o Cristo, são dois (I, 46; lI, 159). Enfim, em 1538,
em seus HendécasyUabes, ele lança as três grandes invectivas In quemdam irreligiosum
Luciani sectatorem (FO10); In Luciani simium [Contra um imitador de Luciano] (FO30
v"); In Luciani sectatorem [Contra um seguidor de Luciano ] (PO71 VO).Isso é tudo. Nada
em Dolet. Nada em Ducher. Nada nos Épigrammes de Gouvea em 1539 e 1540. Nada
em Sussannée. Ora, dos poucos textos que possuímos, só os de Visagier nos Hendé-
casyUabessão suscetíveis de receber uma atribuição precisa. E tudo parece indicar que
ao menos um deles (se é que todos não se aplicam ao mesmo indivíduo) visa a Étienne
Dolet, Dolet que Visagier, depois de tê-lo estimado muito, persegue nesse momento
com um ódio vigoroso - um ódio que podia ou abrir-lhe os olhos para o verdadeiro
estado de espírito de seu ex-amigo ou então incitá -10 a lançar contra seu novo inimigo
acusações particularmente graves ... - Podem elas visar a Rabelais? Mas por que visa-
riam a ele? Se ele é o Rabella das Inscriptiones de Visagier, nada revela em Rabella o
ateu, ou o ímpio. Por que ele, preferivelmente a um outro? Por certo, não faltavam
lucianistas, então, nos círculos lioneses! Citemos apenas um deles, e sem insistir nisso,
pois voltaremos ao seu caso mais adiante. Caso bem estranho, o de Bonaventure des
Périers cujo Cymbalum mundi é objeto, no início de 1538, de vivas perseguições: Bona-
venture, envolto num silêncio tão total, tão misterioso, tão verdadeiramente anor-
mal. Falemos apenas de suas relações possíveis com Visagier. Os Comentários de
Dolet, Visagier os mimou, por assim dizer, com sua admiração. Tornou-se seu pane-
girista autorizado. Chega quase ao desatino. Bonaventure trabalha nisso por sua vez
- e nada, nenhum dístico a Bonaventure na obra prolixa de Visagier. - Marot, exi-
lado, encontra em Visagier um ardente advogado. Bonaventure, por seu lado, lança-
se em plena luta por seu mestre, implora ao rei Francisco, roga, intercede, age - e
nada, nenhum distico a Bonaventure na obra tagarela de Visagier. Visagier freqüenta,
como Bonaventure, a casa do livreiro-editor Parmentier, a oficina de Sébastien
Gryphe. Visagier, como Bonaventure, faz tudo pela rainha Margarida e trabalha em
latinizar o Miroir de l'âmepécheresse [Espelho da alma pecadora]. Visagier, como Bona-
venture, relaciona-se com a bela monja Scolastica Bectonia. Visagier ... E nada, nada,
nenhum dístico a Bonaventure, ou contra Bonaventure, na obra oportunista de Visa-
gier. Que estranho silêncio, na verdade! Se é para fazer romances gratuitos, mais vale-
ria (e seria mesmo muito melhor) colocar Bonaventure e não Rabelais atrás de uma
(ou várias) das peças anônimas do Apelo de Vandy Mas a gratuidade seria a mesma."
I03
I04
Agora, quem junta, quem costura uma à outra as peças de Sussannée In
Rubellum ou In Rabulam, o retrato de Rabella por Bourbon e sua cópia diluída por
Chesneau, enfim as peças de Scaliger, reveladas pelo doutor De Santi - esse
obtém uma imagem bastante coerente. A de um monge de vida inicialmente reco-
mendável, de um monge estimado por todos (rara avis) - e que depois se eman-
cipa ao abandonar o hábito, muda de atitudes e de maneiras de ser, entrega-se à
bebedeira e à libertinagem, compõe, em vez de obras dou tas, escritos ... rabelaisia-
nos, e tudo enquanto dá livre curso à sua insaciável curiosidade, abandona-se às
suas paixões rancorosas, à sua maledicência, à sua inveja e à sua raiva maldosa. Em
suma, um Rabelais de chinelos bastante caricatural e que se parece muito com o
Rabelais legendário. Mas, com fotografias de desconhecidos, é legítimo construir
um retrato compósito, depois aproximá-Ia de uma imagem legendária, que ela
própria ...?- Pois, afinal, a legenda de Rabelais, que singular problema de psicolo-
gia retrospectiva!
No fundo, tenhamos a coragem de reconhecer: a despeito de tantos achados,
de hipóteses engenhosas, de trabalhos excelentes - não vemos distintamente
Rabelais nem com os olhos do corpo, nem com os do espírito. Rabelais, a pessoa
física? Pinturas fantasiosas, aliás sem talento. Ou então a imagem triste da Crono-
logia Collée: um velhinho, seco, carrancudo, de olhar vivo, um pouco matreiro.-
Rabelais, a pessoa moral? Uma espécie de Tabarin avant la lettre, um papa-jantares,
pagando a sua parte em farsas ruidosas, além disso embriagando-se à larga e, che-
gada a noite, escrevendo obscenidades. Ou então um douro médico, um sábio
humanista alimentando com belos textos dos antigos e curiosidades ardentes sua
prodigiosa memória; ainda mais, um grande filósofo, celebrado como tal por um
Théodore de Bêze, por um Louis Le Caron: o príncipe dos filósofos no dizer de
Étienne Ducher?
In primis sane Rabelaesum, principem eumdem
Supremum instudiis Diva tuis Sophia [00']*
* "Sem dúvida em primeiro Rabelais, ele mesmo expoente/ Supremo em teus estudos, divina
Sabedoria [00.]"
Nossos antepassados eram mais felizes que nós. Não escolhiam entre as duas
imagens. Acolhiam, ao mesmo tempo, a respeitável e a outra. Tanto mais que não
as aproximavam nem as comparavam.
Quando encontravam entre os d'Estissac ou entre os Ou Bellay, ou então em
Aigues-Mortes, no círculo do rei, esse douto personagem, mestre François Rabe-
Iais, que Claude Chappuys enumera entre os referendários:
ERabelais, a ninguém comparável,
Por seu saber em tudo recomendável,
quando se encontravam em presença, ali e em muitos outros lugares prestigiosos,
de um helenista, de um médico, de um poeta celebrado e glorificado, tanto em verso
como em prosa e em grego como em latim, pelos maiores letrados e eruditos da
época, de Guillaume Budé aJoachim Ou Bellay, passando pelo jovem Théodore de
Bêze, pelo ruidoso Dolet, por outros tantos de igual renome - tiravam seu barrete,
cumprimentavam com reverência o "Senhor Doutor" e ficavam à espera de que de
seus lábios eloqüentes surgissem nobres sentenças. Mas em seguida liam, quando
lhes apetecia, o Gargântua ou o Pantagruel: convidados a rir, riam. Sem malícia, sem
constrangimento, como basbaques na feira capturados por um parlapatão inspi-
rado. Riam, concluíam naturalmente da obra ao homem: esse cantor da Diva Bote-
lha, que prodigioso beberrão! Observemos que, a passar do livro ao autor, o próprio
Rabelais não cessa de convidar seu leitor ingênuo. Não diz ele perpetuamente "Eu"?
Não é o narrador impessoal das façanhas de Panúrgio; é o cúmplice do desfile, o
apresentador dos fenômenos: "Gente de bem, Deus vos salve e guarde! Onde estais?
Não vos posso ver! Esperai, que ponho os óculos ... Ha, ha, bem e bela se vai a Qua-
resma, eu vos vejo!". E então, quando eles fazem de Rabelais um bêbado e um bufão,
não é um engano que cometem. Menos ainda um testemunho autêntico que inse-
rem no dossiê da História. O Rabelais em que pensam - é realmente um bêbado e
um bufão, pois encarna todas as bebedeiras, as graçolas e as facécias do romance
rabelaisiano. O "verdadeiro" Rabelais - seja ele moderado ou excessivo em bebida
e outros sufrágios de volúpia -não existe para eles. O único Rabelais que existe para
eles é o que criam, o que fabricam por nada, à semelhança do livro e de seus heróis.
Rabelais engendra Gargântua e Pantagruel e Panúrgio. Genuit autem Gargantua,
"Cargântua em troca engendra" ... um Rabelais à sua imagem: o único, o verdadeiro,
para esses leitores pouco blasés, essas ingênuas crianças grandes, aliás desprovidas
105
de idéias sobre uma questão, a da criação literária que, para eles, quase não se punha.
Mesmo quando se chamavam Ronsard ou Ou Bellay
106
Pois desses dois temos o testemunho. Nos últimos meses de 1553 ou nos pri-
meiros de 1554, Rabelais morre. Imediatamente, Ronsard lhe dedica um epitáfio:
Ao bom Rabelais que bebeu
Sempre, enquanto viveu.
Em termos truculentos, ele descreveo patusco tombado entre os copos: "E
entre escudelas gordurosas - sem nenhuma vergonha remexendo - ia no vinho
se lambuzando - como uma rã na lama". 69 Descrição um pouco realista, a meu
ver: não esqueçamos que, falando de si próprio, Ronsard, na "Odelette à Corydon"
["Pequena ode a Corydon"] das Meslanges de 1555, mostra-se em postura seme-
lhante, deitado "de costas"
Entre copos e coisas espalhadas pelo chão.
Quanto a Ou Bellay ... Discorrendo, em 1549, sobre os "sábios homens da
França, que não desprezaram sua língua materna" , alguém celebra" aquele que faz
renascer Aristófanes e imita tão bem a zombaria de Luciano". Alguém, com frneza,
opõe ao estilo inimitável desse grande escritor os imitadores de condição inferior
que tentam "furtar sua casca" para recobrir sua madeira toda carunchosa de não se
sabe que faltas de graça "tão pouco divertidas que não seria preciso outra receita
para fazer passar a vontade de rir de Dernócrito". Alguém aproxima do homem
assim louvado estes dois luminares franceses, Guillaume Budé e Lazare De Bayf:
grandes espíritos, grandes personagens também, e de condição social eminente."
Um ano e o mesmo autor, passando em revista a tropa dos "filhos poéticos"
Que em sonetos e cânticos
Que em trágicos soluços
Fazem reviver os antigos
No seio da morte encerrados,
Que tão doutamente escreve
Sendo oprimeiro na França
Contra a circunspecta ignorância
A fazer renascer Demócrito [...]
aí alista obrigatoriamente, em seguida aos três favoritos das Graças, Carle, Héroêt
e Saint-Gelais - o útil-agradável Rabelais, 71 que nada o teria obrigado a citar assim
se ele tivesse sido um bufão devasso, um objeto de desprezo público e de repulsa:
mas louva nele o homem
Nisso, Rabelais morre. E mal está morto, o crítico que o louvava com tanta
fineza, o poeta que lhe rendia tão altas homenagens, pondo-lhe na boca versos
latinos cheios de ironia, o faz dizer: "Pamphagus sou eu, o Comilão; vede-me
jazendo sob a massa esmagadora de uma barriga desmedida [... ] O sono, a gluto-
naria, o vinho, as mulheres e a zombaria: meus deuses, meus únicos deuses
enquanto vivi"."
Eis o espantoso. Eis o prodigioso para nós. Para nós que, não compreen-
dendo mais, vamos imaginando histórias de rancor, de rivalidade - como se se
tratasse não de imagens literárias do Bom Beberrão, descrito com truculência no
exercício de suas funções - mas de uma ficha de polícia sobre os costumes impró-
prios do denominado Rabelais, François, profissão de doutor em medicina. E,
acrescento, como se outro grande ironista de seu tempo, Clément Marot (para
citar apenas ele) não tivesse tido as honras de uma legenda muito semelhante e de
idêntica formação?
Evoquemos diante de nós os contemporâneos de François Rabelais, suas vio-
lências e seus caprichos, sua pouca defesa contra as impressões externas, a extraor-
dinária mobilidade de seu humor, essa espantosa prontidão a irritar-se, a injuriar-
se, a puxar a espada, e depois a abraçar-se e a adular-se: tudo o que nos explica
tantas querelas por nada, acusações atrozes de roubo e de plágio, apelos à justiça
de Deus e dos homens - a que, sem intervalo, seguem-se revoltantes lisonjas e as
mais loucas comparações com Homero, Píndaro, Virgílio e Horácio. Produtos
naturais de uma vida toda de contrastes. E muito mais acentuados do que podería-
mos imaginar. Contrastes do dia e da noite, ignorados por nós em nossas mora-
dias eletrificadas; contrastes do inverno e do verão, abrandados para nós, em
tempo normal, por mil invenções: eles lhes sofriam o rigor e a necessidade, quase
107
!OS
sem atenuação, e durante semanas e meses. Igualdade das condições de vida,
igualdade dos humores: os dois se seguem e se condicionam. Mas, do mesmo
modo, nossos nervos insensibilizaram-se. Comemos frutos demais - desses fru-
tos que nos "buliram com os nervos", como diz a Bíblia. Eles? Não eram nada bla-
sés, claro que não; e, para considerar apenas este exemplo, como eram indefesos
contra o ataque violento e soberano dos sons! Pensemos naquela passagem dos
Contes d'Eutrapel em que Noel Du Pail nos descreve o efeito, nos homens de seu
tempo, do célebre coro descritivo de Clément ]anequin, a Batalha de Marignan.73
Ninguém que escapasse às influências dessa música poderosa e pueril com seus
"ruídos de batalha" em harmonia imitativa, ninguém que, exaltado pelos sons,
"não olhasse se sua espada se mantinha na bainha e não se alçasse na ponta dos pés
para se tornar mais viril e de poderosa estatura".
Pessoas simples, que se entregavam sem controle. Mas nós, nós recalcamos.
E eis os motivos para refletir - no limiar mesmo de um livro que se apresenta
como um estudo de psicologia histórica, pelo menos tanto quanto um trabalho de
história erudita. Eis o que jános adverte de que, entre as maneiras de sentir, de pen-
sar, de falar dos homens do século XVI e as nossas - não há realmente compara-
ção. Nós encadeamos, eles renunciam ao controle. Gerações, desde o século XVII
e Descartes, inventariaram para nós, analisaram, organizaram o espaço. Elas nos
dotaram de um mundo bem estabelecido em que cada coisa e cada ser tem suas
fronteiras perfeitamente delimitadas. Gerações, desde a mesma época, trabalha-
ram em fazer do tempo, cada vez mais precisamente medido, o âmbito rígido de
nossas atividades. Todo esse grande trabalho, no século XVI, mal começava. Con-
seqüentemente, seus resultados ainda não tinham produzido em nós a necessi-
dade imperiosa de uma certa lógica, de uma certa coerência, de uma certa uni-
dade. Isto ou aquilo: mas não isto e aquilo ao mesmo tempo. Aqui ou ali: mas não
aqui e ali a uma só vez. Saibamos encontrar nestas observações um conselho de
prudência para as constatações que nos falta fazer.
2. Teólogos e controversistas
Abandonemos, um pouco decepcionados talvez e com curiosidades mais
despertadas que satisfeitas, o pequeno mundo dos poetas latinos - esses Apolos
de Colégio que mais nos propõem enigmas do que nos fornecem luzes. Batamos
à porta dos teólogos e controversistas. Outros homens, mesmo que aconteça de
alguns deles fazerem versos latinos; outros temperamentos, outros hábitos,
outras precauções a tomar se quisermos compreendê-Ias e criticar devidamente
seus testemunhos. Talvez, ao abordá-Ias, sintamo-nos mais vigilantes contra as
deformações de espírito profissionais? Vamos ver se não conviria lembrar-nos de
que eles são em primeiro lugar, como os poetas seus contemporâneos, homens do
século XVI: de um século bem afastado do nosso a despeito das aparências, bem
afastado sobretudo por sua estrutura mental.
I. UMA CARTA DE CALVINO
No conturbado outono de 1533, começava-se a notar, nos meios parisienses
com um toque de evangelismo, um jovem recém-saído das universidades de
Orléans e de Bourges. Ele se chamava João Calvino, de Noyon, e acabava de assi-
I09
lIO
nar com seu nome latinizado, Caivinus, um comentário do De ciementia [Sobre a
clemência] de Sêneca.
Os tempos não eram mais do irenismo. Contra os que" cheiravam a heresia",
a Sorbonne mobilizava seus sequazes. No bairro das Escolas, respirava-se um ar de
batalha. Em maio, Beda e alguns doutores que partilhavam suas opiniões haviam
sido exilados, por ordem do rei. Calvino freqüentava a casa do rico comerciante
Étienne de La Forge, mais tarde queimado por heresia. Convivia igualmente com os
universitários liberais que se agrupavam em torno de um médico do rei, Guillaume
Cop, de Basiléia: seu filho Nicolas, suspeito de idéias novas, acabava de ser eleito rei-
tor anual da universidade. Envolvido nesses meios ativos e bem informados, Cal-
vino, nos últimos dias de outubro, enviou a seu amigo François Daniel, de Orléans,
uma carta repleta de detalhes: 1 era o relato de uma das memoráveis sessões (a do dia
24) ao longo das quais a universidade, dominada pelo rei, desaprovou asperamente
seus teólogos, culpados, dizia o soberano, de ter inscrito na lista dos livros suspeitos
uma obra que já tinha dois anos, o Míroir de l'Bmepécneresse de Margarida de Navarra,
a própria irmã do rei Francisco.' Ora,foi nessa carta que Thuasne, em termos cate-
góricos, e depois Lefranc, em termos igualmente claros, acreditaram encontrar a
prova de que, desde 1533, o clarividente Calvino, descobrindo os desígnios secretos
de Rabelais, o denunciara sem rodeios como o pior inimigo que teria então o Cristo.
1533: Calvino tem 24 anos. Ainda não rompeu com a Igreja de sua inf'ancia: o
problema não se põe assim. Masjá tem na cabeça, sem dúvida, o discurso que, no
próximo Todos os Santos, seu amigo, o reitor Cop, pronunciará solenemente e
que escandalizará os teólogos, não por suas heresias (ele não as contém), mas por
seus vivos ataques contra os escolásticos. De resto, ao jovem não faltam energia
nem ardor: ter-se-ia até mesmo acrescentado sedução, nos tempos recentes em
que se tomava por autêntica efigie de Calvino jovem o retrato de janota conser-
vado no consistório da igreja valona de Hanau _3 ou mesmo ofamoso esmalte de
Léonard Limousin. Quanto ao correspondente do futuro reformador - François
Daniel, de Orléans-, não é um fanático, um exaltado nem um asceta. Não seguirá
Calvino em sua evolução. Permanecerá em Orléans, católico - e terá como
amigo alguém, um outro François cujo nome não significa tristeza: o próprio
François Rabelais. De modo que se pôde perguntar se, por esse Daniel, Rabelais e
Calvino, desde essa época, não haviam podido, se não se encontrar em Orléans, ao
menos ouvir falar amigavelmente um do outro ...
Sejamquais forem esses detalhes obscuros, Calvino, em outubro de 1533, envia
a Daniel, para ele e seus amigos, uma carta juvenil que cheira a ameaças. Segundo
Thuasne, ela denuncia o Pantagruel como obsceno e ímpio. Equívoco de um erudito
em cujas palavras se acreditou muito apressadamente. De fato, resumindo numa
passagem em estilo indireto a argumentação do cura de Saint-André-des-Arts, Nico-
Ias Le Clerc, adversário intratável das idéias novas e mentor dos intransigentes na
ausência de Noêl Beda - então no exílio desde 18 de maio e que não regressará a
Paris antes do fim de dezembro _4 Calvino o faz dizer que, tendo feito uma lista de
livros perniciosos, considerara como condenados, nessa lista, não decerto a obra
de uma mulher irrepreensível, mas sim todo um lote de livros obscenos; e ele dá seus
títulos: o Pantagruei, a Sylva etc. - sepro damnatis libris habuisse obscaenos illos Panta-
grudem, Sylvam Cunnorum, et ejusdem monetae. - Nesta altura, Calvino: Omnes tamen
fremebant obtendere ignorantiae speciem, o que é preciso traduzir por: "todos ficam
indignados, vendo-o invocar a desculpa de uma fingida ignorância [...J" .
O sentido é claro. Não é Calvino quem questiona Paniagruel, como diz infeliz-
mente, depois de Thuasne, Lefranc.' É Le Clerc, ridicularizado por Calvino. E, por
certo, nada nos autoriza a atribuir ao natural de Noyon uma viva simpatia instintiva
por Alcofribas - embora nessa data muitas ilusões ainda fossem possíveis. Felici-
tando-se por encontrar em tão douto médico, em tão sábio helenista um aliado
para sua campanha contra os abusos da escolástica - é possível que Calvino, se
então leu o Pantagruel, tenha sido tentado por vezes a pronunciar, em seu intimo, o
Dú bist nicht fromm! [Não és piedoso!] de Lutero, avaliando Erasmo por si. Daí a ins-
crevê-lo obrigatoriamente entre os defensores do Le Clerc que ele ataca e entrega,
em sua carta, à indignação dos jovens orleaneses - reconheceremos que há
alguma distância. Tanto mais que o Pantagruel, Le Clerc nem mesmo o atacava
como ímpio - mas como obsceno. Era muito escrúpulo e pudor melindroso para
um homem daquele tempo,' ainda que fosse Sorbonagro. Mas, precisamente, era
sem dúvida sua qualidade de Sorbonagro que tornava tão severo o ardente cura de
Saint-André-des-Arts. Le Clerc não farejava o ateísmo no Pantagruel. Nele sentia
simplesmente, de maneira intensa, o ódio de um temível adversário pelos freqüen-
tadores da Bibilothêque de Saint-Victor - e a simpatia de um espírito livre pelos
evangelistas. Os quais (ainda que jamais tenham passado especialmente por fomen-
tadores de obscenidades) adotam o livro vingador desde que é publicado, o elo-
giam, o recomendam, o colocam e conservam em suas bibliotecas.
lI!
II2
o amigo, o parente de Calvino, o natural de Noyon que vai, em 1535, publicar
em Neuchâtel, por Pierre de Vingle, a primeira versão francesa da Bíblia reformada
- Olivétan, quando morre em 1539, deixa seis obras "em língua vulgar" em sua
biblioteca:' entre as seis, um Pantagruel. Mas, desde agosto de 1533, apareceu "em
Corinto" (e Calvino, quando escreve aos orleaneses em outubro, talvez o tenha
visto, na casa de Étienne de La Forge ou alhures) - um desses pequenos panfletos
anticatólicos que as prensas de Neuchâtel vão multiplicar e que Théophile Dufour
catalogou recentemente em uma renomada Notice. Ele é obra de Antoine Mar-
court, pregador conhecido, autor dos cartazes de 1534, e como se intitula ele? Le
Livre des Marchans,fonutile à toutes gens, nouvellement composé par lesire Pantapole, bon
expert en tel affaire, prochain voysin du Seigneur Paniagruei [O livro dos comerciantes,
muito útil a todas as pessoas, recentemente composto pelo sire Pantapole, bom
conhecedor de tal ocupação, próximo vizinho do Senhor Pantagruel]. 8
"Próximo vizinho do senhor Pantagruel": a fórmula tem algo de simbólico.
Assim, são os reformados, nessa data, os inovadores, os anticatólicos que se sen-
tem e se dizem próximos vizinhos de Rabelais e de seu gigantesco herói. E apesar
dos anátemas posteriores de Calvino, eles não renunciarão facilmente a conside-
rar-se como tais. Em uma nota outrora publicada pela Revue des Études Rabelai-
siennes (IV, 224), Henri Pirenne teve razão em relembrar a voga que tiveram nos
Países Baixos as obras de Rabelais - naquele mundo dos velhacos onde o pai de
Pantagruel ia encontrar mais tarde um imitador, quase um plagiário, em Marnix
de Saint-Aldegonde. Marnix, esse meío-franco-condês, - e relatei alguns fatos
"borgonheses" que se equiparam, mais uma vez, aos fatos do "outro lado". Encon-
trar-se-iam outros, seguindo Marcel Bataillon," na Espanha subversiva de 1550.
Testemunhos que nos apóiam a tese de um Rabelais não anticristão, mas simpá-
tico e proveitoso à Reforma ou, ao menos, ao que a anuncia na França: ao movi-
mento evangélico.
Assim, foi-se muito precipitado. Não há acusação de Calvino contra Rabelais.
Pelo menos em 1533. Há um teólogo sorbonista, nosso mestre Le Clerc que, incri-
minando Rabelais, faz uma confissão pública de estupidez e de hipocrisia: omnes
fremebant eum obtendere ignorantiae suae speciem [todos bradavam que ele encobria
a imagem de sua ignorância]. - Omnes, Calvino inclusive, que de fora "freme".
Só que, descartado esse texto, o mais velho dos testemunhos produzidos para
estabelecer o ateísmo de Rabelais não data senão de 1538. Ora, o que é preciso pro-
var não é que Rabelais foi um racionalista, um propagandista de impiedade, um
mentor de conluio contra o cristianismo. É que ele foi tudo isso desde 1532, por
meio dopantagruel. Textos de 1538 ou posteriores a 1538? Nós os consideraremos,
se houver, mas o mundo caminhou de 1532 a 1538. E muito depressa. Outubro de
1533: o encontro de Marselha. Março de 1534: a excomunhão de Henrique VIII;
outubro: os Cartazes. Janeiro de 1535,: o edito de supressão da imprensa; junho: a
Bíblia de Olivétan. Março de 1536: a publicação, em Basiléia, da Institutio Chris-
tiana;julho: a morte de Erasmo ... Não continuemos. Não cheguemos até a publi-
cação do Cymbalum em Paris, por Morin, emjaneiro ou fevereiro de 1538; ou, no
outro pólo, até a organização por Calvino, em Estrasburgo, no fim do ano, da mãe
das igrejas reformadas francesas. Esses poucos fatos bastam. Eles nos advertem de
que nesses anos conturbados do século XVI, quando os homens viviam dobrado,
quando as idéias eclodiam com uma prontidão desusada - não há razão para mis-
turar os climas.
li. AS IMAGINAÇÕES DE GUILLAUME POSTEL
De 1532 a 1543,já que descartamos a carta de Calvino, silêncio total entre os
teólogos, os filósofos e os controversistas sobrea obra de Rabelais e suas impie-
dades. E, entre parênteses, vê-se que se os versos latinos alegados por Thuasne e
Lefranc visavam realmente a Alcofribas e seus romances - os leigos, os profanos
teriam estado bem adiantados em relação aos doutores e clérigos de qualquer
crença; o que, afinal, poderia surpreender. Os textos de Visagier, de Bourbon, de
Sussannée que discutimos são impressos entre 1536 e 1538. Durante esse período,
calmaria e silêncio entre os doutos. Apenas em 1543, nesse grande ano que vê
serem publicados a uma só vez o De revolutionibus orbium coelestium [Sobre as revo-
luções dos orbes celestes] de Copérnico e o De humani corporis fabrica [Sobre a
estrutura do corpo humano] de Vésale (Andries Van Wesel), um deles toma a
palavra. Guillaume Postel denuncia alguns notórios trânsfugas da Reforma,
transformados há pouco em obstinados ateus. Assim Villanovanus, execrável
autor do execrável tratado dos Trais propnêtes [Três profetas]; assim o autor do
Cymbalum, o do Paniagruei, o das Nouvelles iles [Novas ilhas]; um quarteto de
ímpios e de filhos perdidos. 10
II3
II4
Villanovanus: entendamos Michel de Villeneuve, isto é, Michel Servet, que
acabava precisamente de publicar em Lyon, em 1542, por Hughes de Ia Porte,
uma edição da Bíblia, texto latino de Sanctes Pagníni, com anotações que a fize-
ram ser destruída. Pobre Servet, que se insiste em não reconhecer sob esse nome
ou em confundir com aquele outro Villanovanus, Simon de Neufville, o mestre
de Dolet em Pádua: mas não se sabe nada deste último, e não foi a ele, mas a Ser-
vet que se atribuiu o mítico Traité des trois imposteurs [Tratado dos três imposto-
res]. A Servet e a muitos outros, entenda-se: de Averroes e de Frederico 11 a Gior-
dano Bruno, Campanella e Milton, passando por Boccacio, Maquiavel, Aretino,
Pomponazzi, Ochino, Rabelais - o que perfaz muitos pais para um tratado
mítico. O interessante é que ele foi também atribuído ... a PosteI, 11 que nem des-
confiava disso em 1543 ...
O Cymbalum é conhecido, seu autor também. Quanto ao enigmático tratado
das Nouvelles fles, tratar-se-ia de alguma adaptação francesa (desconhecida) do
Libellus vere aureus de optimo reipublicae statu, deque nova insula Utopia [Tratado
áureo sobre a excelente situação da república e sobre a nova ilha Utopia]? Ou então
seria preciso pensar no Disciple de Pantagruei que, a partir de 1538 pelo menos, é
publicado e republicado com este subtítulo: Le voyage et navigation que[1St panurge,
disciple de Pantagrucl, aux isles incongneues et estranges [A viagem e navegação que
fez Panúrgio, discípulo de Pantagruel, às ilhas desconhecidas e estranhas]? - Mas
não se vê adaptação francesa da Utopie que possa ser levada em conta, e o Disciple
de Pantagruel, essa insípida rapsódia," não tem nada, ao que me parece, que possa
impressionar a paixão de um Postel? Gilbert Chinard, em seu Exotisme américain
au XVI' siecle [Exotismo americano no século XVI], assinala casualmente uma obra
publica da em Paris em 1533 por Colines: Extraict ou tecueii des Isles nouveilement
trouvées en Ia grand mer océane [Excerto ou coletânea das ilhas recém-descobertas
no grande mar Oceano]. É a tradução francesa, por um certo Antoine Fabre, das
três primeiras Décaâes de Pierre Martyr d' Anghera, acompanhadas de um resumo
da quarta e de duas narrativas sobre o México redigidas a partir das cartas de Cor-
tez: tudo dedicado ao duque d' Angoulême e as narrativas, à Mme. Marguerite de
France ... 13 Ora, diversas passagens desse livro prenderam a atenção de Chinard; ele
assinala especialmente uma digressão bastante curiosa sobre os naturais de Hispa-
niola (p. 23), promovidos por Fabre à dignidade de ancestrais de uma longa linha-
gem: a dos 'bons selvagens". Os nativos da grande ilha "têm a idade de ouro". Bons
por si mesmos, ignorando os maus, eles "não cavam fossos nem cercam com bar-
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reiras suas posses". Bem ao contrário, "deixam os pomares abertos sem leis, sem
livros, sem juízes: mas, por sua natureza, seguem o que é justo e consideram mau
e injusto aquele que se deleita em fazer injúria a outrem".
Foi isso que chamou a atenção de Pastel? Em todo caso, poder-se-ia supô-Ia.
Aos seus ataques contra os ímpios, não juntou ele, a duas páginas de distância, no
mesmo capítulo, uma denúncia em regra dos libertinos que se valem do Evange-
lho "com a condição de viver sem ele, em sua total licenciosidade, e de não se pri-
var de nenhuma volúpia"? O que tem em mira, ele o diz com todas as letras, é Thé-
lêrne" (ut interpretatus est Christomastix in Abbadia Theiemeton ludoque pillae
palmariae). Contudo, vê-se mal como a tradução francesa de uma obra do católico
Pierre Martyr teria merecido ser classificada entre os livros de reformados trans-
formados, há pouco, em fomentadores de impiedade? Evidentemente, com Pos-
tel, um espanto a mais não tem importância - e, se se quiser apreciar em seu valor
o texto sublinhado por Abel Lefranc, é absolutamente necessário tornar a mergu-
lhá-lo primeiro em seu meio.
Então, releiamos do começo ao fim a curiosa obra da qual é tirado: oAlcorani
seu legisMahometi et Evangelistarum concordiae liber [Livro da concordância do Alco-
rão ou da lei de Maomé e dos evangelistas], Não é um prazer. O latim de Postel é
dos mais penosos. Desde as primeiras páginas, o orientalista conta que compôs sua
grande obra, o De Orbis concordia [Sobre a concórdia do mundo], no espaço prodi-
giosamente curto de dois meses," durante um inverno tão rigoroso que, se não
tivesse soprado sua respiração a todo instante sobre sua pena, a tinta gelada não lhe
teria permitido escrever. Pobres grandes laboriosos dessa dura época! Mas cremos
sentir que ficaram não poucos pedacinhos de gelo eriçados na prosa do Alcorani
concordia. Ainda por cima, o livro, impresso à custa de Postel por um impressor
secundário, tem aparência medíocre; não há alíneas, não há espaços nessas peque-
nas páginas em itálicos cerrados, não há pontuação, sobretudo. E, no entanto, a
obra é importante. Na história das idéias do século, não se lhe atribuiu a parte que
lhe cabe. Mas hoje quem se interessa por esse pensamento obscuro? Quem tenta
o esforço de ler esse curioso, esse original, esse inteligente Pastel?
Estabelecer a unidade moral do Universo. Levar a sentir-se irmãos, no vasto
seio de uma Igreja plenamente ecumênica, todos os homens de todas as seitas, de
todas as pátrias e de todos os continentes; obter apenas pela força persuasiva, pela
II5
n6
força de evidência da razão _'6 ratione evidenuac, a expressão é de Lutero - obter
que protestantes e católicos, judeus e maometanos, pagãos e idólatras das terras
novas da América, das terras novas da África, dos misteriosos impérios do Oriente
- todos esses homens dotados dos mesmos órgãos comunguem, sem reservas
nem hostilidades, em um catolicismo tão ampliado que se possa confundir com a
religião natural e inata que um Deus justo colocou no coração das criaturas; além
da diversidade contraditória dos dogmas, apelar para esses sentimentos elementa-
res, essas tendências instintivas de todo ser humano: O impulso grato em relação
ao seu Criador; a aspiração, mais forte que a morte, que o faz conceber e desejar,
suprema recompensa, a posse de Deus na imortalidade; não maldizer, enfim, não
excomungar, não repelir ninguém, mas recriar a idade de ouro unindo aos católi-
cos regenerados os protestantes libertos de seus erros, os incrédulos reconduzidos
à crença, aqueles turcos tão caridosos e tão tolerantes, sobretudo aqueles judeus,
de posse de tão vasta parte da lei natural: em suma, reconciliar todas as divergências
sob o reino de uma Razão idêntica à lei do Cristo e que, sucessivamente, inspirou
os fundadores de religiões, os profetas, os magos, os filósofos, todos os séculos da
história, todas as raças da Terra, todas as religiões seculares - tal foi, emanada das
quimeras de um iluminismo cândido, a bela esperança de Guillaume Postel, o Cos-
mopolita, enriquecendo o velho sonho unitário da Idade Média com tudo o que
produziamde pensamentos ousados as descobertas geográficas, o desenvolvi-
mento das missões cristãs e aquela renovação de vida religiosa atestada pela proli-
feração das seitas heréticas.
Assim aspira a essa miragem, na convicção de que um dia, na Síria, no túmulo
de Adão transformado em suporte da Sé Apostólica, não se sentiria bater mais que
um grande coração unânime dos povos, fundidos em uma Igreja e uma nação sob
o reino dejesus, Rei dos Reis - assim se consome em labores, em viagens, em dili-
gências esse filho de camponês, órfão aos doze anos, sucessivamente mestre-
escola e empregado de propriedade rural em Beauce, depois, em 1525, aos quinze
anos, doméstico em Sainte-Barbe; correndo de Francisco I a Ferdinando, de Mar-
garida a Loyola, perseguido aqui, escutado alhures, arrastando por toda parte o
fardo de uma juventude miserável, subalimentado, privado de todo conforto e de
todo sono: não causa espanto, então, um desarranjo nervoso muito natural nesses
infelizes heróis do pensamento solitário ... 17 Em Veneza, absolvido como louco;
em Roma, encarcerado quatro anos pelos inquisidores, perseguido em Lyon a par-
tir da queixa dos ministros - ele se vê, enfim, internado em Paris, pela clemência
simpática dos parlamentares, no priorado de Saint-Martin-des-Champs. Flori-
mond de Raemond, um dos raros escritores daquele tempo que sabia caracterizar
bem um perfil, no-lo mostra nesse cenário, com sua grande barba branca, seu ar
de majestade, seus olhos lançando chamas como rubis e, quando oficiava (pois era
padre), aquela fumaça que saía de sua cabeça encanecida no momento da consa-
gração - "a tal ponto tinha o espírito voltado para esse mistério"."
Um desequilibrado de gênio no total, com partes de iluminado e de delirante
- acreditava-se imortal e professava usualmente que Cristo falava nele -, mas em
seu cérebro fecundo e confuso germinaram antecipadamente não se sabe que
devaneios saint-simonianos, mesclados ao pressentimento obscuro de uma espé-
cie de socialismo cristão. Fizeram-no conhecer o rei Francisco, e graças a ele par-
tiu em 1535 para o Oriente com o embaixador De La Forest, percorreu a Grécia, a
Ásia Menor, parte da Síria, aprendeu o grego vulgar, o turco, o árabe, o copta, o
armênio, e foi, à custa de mil perigos e de mil privações, procurar manuscritos nos
mosteiros. Quando regressou, Francisco Inomeou-o, em 6 de março de 1538, lei-
tor em letras gregas, hebraicas e árabes no Collêge de France. No mesmo ano, ele
publicava, sob a forma de estudo de doze alfabetos, um primeiro ensaio balbu-
ciante de gramática comparada; publicava uma gramática árabe; tornava-se
incontestavelmente o mestre dos estudos de orientalismo, o príncipe dos orienta-
listas parisienses.
Não foi por muito tempo. Desde o seu retorno do Oriente, bem mais que a
lingüística e o orientalismo, os problemas religiosos o atormentavam. Sofria não
apenas, como tantos homens de seu tempo, com a fragmentação do cristianismo
em seitas, a cada dia mais preocupadas em opor-se umas às outras; mas também,
desde que percorrera as rotas do Oriente, sua visão bruscamente ampliada lhe
revelava um mundo dividido entre um cristianismo minoritário e religiões sobre
as quais era preciso realmente se dar conta, por mais desprovido de dados estatís-
ticos que se fosse, de que elas cobriam com muito mais adeptos um campo muito
mais vasto que o campo do Cristo. Então, o problema já não era apenas de conci-
liar em uma unidade rival as confissões que invocavam o Cristo. Era de reconciliar
a humanidade inteira.
Assim, cedo e muito naturalmente, Postelinscreveu-se como precursor entre
aqueles sequiosos do Universal de que Bodin será o protótipo leigo - :. Bodin,
preocupado, no domínio das instituições políticas (veja-se sua République); no
domínio do direito comparado (veja-se suaJuris Universi Distributio); no domínio
II?
n8
da religião (veja-se seu Heptaplomeres) em substituir o catolicismo, que lhe parecia
arruinado, por um universalismo baseado em conhecimentos científicos e em
estudo comparativo dos fatos: digamos, em uma palavra, baseado em humani-
dade, e forjando, assim, os primeiros elos de uma longa corrente que o ligará pri-
meiro a Leibniz, sonhando com uma organização político-religiosa da terra - e
depois, mais além, a Enfantin e aos saint-simonianos, também eles obcecados por
um grande sonho de Oriente. Postel precede a todos eles. Desde 1540, como diz
um belo verso de um soneto medíocre recolhido por Thevet:
Ele meditava a Concórdia do Mundo.
Ora, a Alcorani concordia [A concordância do Alcorão] de 1543 liga-se direta-
mente ao grande desígnio de PosteI. É um vigoroso requisitório contra os Refor-
mados, esses fomentadores de cisão e prenunciadores de incredulidade. Postel, em
seu título, chama-os de Evangelistas e, em seu texto, de Cenevangelistas; ele se
explica sobre isso em sua epístola dedicada ao bispo Claude Dodée: "Evangeiistas,
emprego a palavra à moda da Germânia; a nova seita batiza assim seus pregado-
res. Digo mesmo Cenevangeiistas, e, segundo adoto uma ou outra ortografia, tra-
duzo Cenevangelistas, id estvanos, ou Caenevangelistas, id est novos" .20 Esse duplo jogo
de palavras é bem do gosto pedante dessa época.
A Alcorani concordia devia fazer parte da vasta obra de Postel, a De Orbis con-
corâia - com a qual contava para realizar a primeira parte de seus projetos: a que
ele define na epístola dedicada de seu Cosmographiae disciplinae compendium [Com-
pêndio de cosmografia]. Tratava-se de fornecer uma demonstração racional, per-
feitamente clara e evidente, dos dogmas fundamentais do catolicismo." Depois de
um primeiro livro, consagrado a provar algumas verdades dificeis: a Trindade, a
Criação exnihilo, a ressurreição e a imortalidade das almas; depois de um segundo
livro contendo a refutação sistemática dos erros de Maomé, o mais perigoso dos
adversários do Cristo; depois de um terceiro livro mostrando os princípios
comuns a todos os povos e a todas as religiões - um quarto livro levantava a ques-
tão dos caminhos e meios. Como conduzir à verdade os seguidores empedernidos
do Islã? E também os pagãos, os povos da Índia, os judeus - bem como os cismá-
ticos, essa nova seita cristã dos cenevangelistas, tão temível porque tão próxima do
verdadeiro cristianismo? A Alcorani et Evangelistarum concordia constitui por si só
,........ r' •••.•·." ••.••,.,•.•• -··---',·
essa última parte do quarto livro. E, se Postel a separou de sua obra capital, é que
esta última, tendo sofrido em Paris e por ação da Sorbonne os piores contratem-
pos - ele relata isso detalhadamente às páginas 8-11 de sua obra -, foiJean Opo-
rin que, finalmente, ofereceu-se para editá-Ia. Ora, Postel não podia decente-
mente enviar, ele o observa (p. 12), a um natural de Basiléia reformado um ataque
metódico contra a Reforma. Então, mandou imprimi-Ia em Paris, à sua custa, mas
também por sua conta e risco.
Esses detalhes não têm nada de inútil. Para o conhecimento não apenas de
Pastel, não apenas de Rabelais, mas, ainda por cima, de toda a evolução intelectual
de seu século - é importante saber que a Alcorani concordia não é uma obra diri-
gida contra os "paduanos", como adquirimos o hábito recente de dizê-lo - con-
tra os ateístas vindos de Aristóteles e, muito especialmente, contra esse Pompo-
nazzi e seus adeptos nos quais somos tentados, depois do sucesso de um livro
precioso, a resumir, a absorver todo movimento de pensamento não confessional
naquela época. Desses aristotélicos, Pastel se ocupará mais tarde, e especialmente
em 1552, no Liberde causis... contra Atheos [Livro sobre as causas ... contra os ateus]
e no EversiofalsorumAristotelis dogmatum [Destruição dos falsos dogmas de Aristó-
teles]; mas em 1543, e quando incrimina o Pantagruel, é na Reforma, é, como ele
diz, nos evangelistas - nos cenevangelistas - que ele pensa. O fato merece ser
notado desde agora."
Portanto, Postel tenta primeiro mostrar a maravilhosa concordância que
percebe entre a doutrina do Corão, esse protótipo de todos os livros reprovados-
e a doscenevangelistas. Esses filhos espirituais de Lutero não são, para o orienta-
lista, mais que pequenos bastardos de Maomé; e nos inteiramos, com a ajuda de
muitos textos, de tudo o que aparenta uns aos outros esses descrentes: quid inter
Mahumetanos et Cenevangelistas intersit [qual a diferença entre maometanos e cene-
vangelistas]. Postel fornece uma lista bem desordenada (p. 21) de 28 proposições
extraídas do Corão e que poderiam, todas, ser assinadas pelos cenevangelistas: non
valent aut prosunt ulli aliena opera; patroni et intercessores non vaient apud deum;
Mariam non deberecoli aut honorari [...] [não valem a ninguém nem são úteis as obras
alheias; defensores e intercessores não valem junto a Deus; não se deve cultuar ou
prestar honras a Maria]. Mas há proposições mais interessantes e sobre as quais as
explicações de Postel não são desprovidas de interesse: noto imediatamente a
décima:" nullis miraculis opus esse ad confirmationem religionis [não serem necessá-
rios milagres para a confirmação da religião], e a vigésima sétima: Hominem fre-
II9
quenter destitutum libero arbitrio dicit etfatum non rarofortunamque cum Deo confimdit
[Muhamedes] [... ] [Maomé diz que o homem está freqüentem ente destituído de
livre arbítrio e não raro confunde destino e fortuna com Deus].
Se os cenevangelistas professam, como os muçulmanos, tais impiedades -
compreende-se que seja fácil a passagem de sua doutrina, que declaram cristã, à
mais caracterizada impiedade. Postel denuncia o resvalamento. Os cenevangelis-
tas não fazem apenas profissão de heresia, mas também de impiedade, declara ele:
esse é o título mesmo de sua segunda parte. E é precisamente nessa segunda parte
que, designando o objetivo secreto a que tende a nova seita, acusa Rabelais, ao
mesmo tempo que Villanovanus (Servet), Des Périers e o autor das Novae insulae,
todos reformados de origem e de marca: quorum authores olim erant Cenevangelista-
rum antesignani. Portanto, a impiedade de Rabelais não é, para Postel, algo de ori-
ginal ou de excepcional. Rabelais, nutrido de evangelismo, é simplesmente uma
das testemunhas marcantes de uma evolução, de um resvalamento que ele denun-
cia: do evangelismo à impiedade.
Mas em que consiste, para Postel, a impiedade? A ler sua argumentação, sen-
timos alguma surpresa. Ou melhor, sentiríamos, se tudo ignorássemos da
maneira de pensar e de raciocinar dos homens daquele tempo. Aprendemos,
especialmente," que proclamar com os evangelistas: "O cristão deve crer apenas
no que está contido nas Escrituras canônicas" - ou então zombar com os ateus:
"Não se deve crer no Evangelho" são uma e a mesma coisa. E decerto há enge-
nhosidade, ou mesmo perspicácia, na argumentação de Postel sobre esse ponto;
reproduzamo-la, pois ela própria reproduz, provavelmente, objeções secretas de
libertinos da época: "Tudo que está no Novo Testamento? Seja. Mas nele não se
encontra em parte alguma que o Novo Testamento é o Evangelho, de preferên-
cia a tal outro texto ... Então? Conclusão: crer na Igreja, antes de crer no Evange-
lho" ... Contudo, esse raciocínio mesmo nos incita a pensar que a impiedade do
Pantagruel, denunciada por Postel, é antes uma impiedade deduzida que uma
impiedade flagrante. E deduzida de longe, por homens que se levantam contra a
escolástica, mas que, como se vê, conhecem os recursos da lógica mais sutil- e
servem-se deles habilmente para dar peso às suas intuições. Procedimento cons-
tante em Postel, pois ei-lo mais adiante, prosseguindo em seu requisitório contra
os reformados, a enumerar" as mais gritantes abominações desses êmulos de
120
Maomé: por exemplo, rejeitar as tradições da Igreja; fazer de Deus o autor do
pecado, declarar que há na Igreja coisas a corrigir (a pior das negações de Deus,
observa Postel, pois tudo se encadeia); negar, enfim, o livre-arbítrio, retirar todo
mérito da criatura, desencorajá-la das boas obras: eis algumas das mais atrozes
doutrinas desses verdadeiros Anticristos. Assim, Pantagruet é uma profissão
pública e manifesta de impiedade; mas o De servo arbítrio [Sobre o arbítio escravo]
de Lutero, não menos. E aí está o que sem dúvida restringe o alcance das acusa-
ções de Postel contra Rabelais. Aí está, em todo caso, o que nos afasta da impres-
são de que Rabelais não era um homem como muitos homens de seu tempo -
um homem de espírito ousado, de bom senso robusto, pouco inclinado tanto às
efusões místicas como às sutilezas teológicas; de resto, solidamente apoiado em
um feixe de idéias correntes que criticava e que o ajudavam a criticar as outras.
Um revolucionário passando à frente de todo o seu século nos caminhos da nega-
ção; algo de inaudito no sentido preciso da palavra? Não era isso que em Rabelais,
por mais perspicaz que fosse, via Guillaume Postel. Seus ataques não isolavam
Alcofribas. Colocavam-no na fileira.
Não tenhamos receio de insistir nesse ponto e - já que citamos PosteI como
testemunha no grande processo de anticristianismo militante intentado contra
Rabelais - de esclarecer tanto quanto possível esse testemunho de peso. Postel nos
diz que o autor de Pantagruel apoiou sem reservas o evangelismo e foi um dos che-
fes da seita (antesignani). Isso talvez não seja exato ou, antes, nuançado. Mas a obser-
vação não é feita para sublinhar, ao menos, a tese de um Rabelais ateu desde 1532?
Postel acrescenta que, mesmo no Gargãntua, posterior ao Pantagruei, Rabelais se
"Vale. de E"Van.!se.tb.c - a\.t\.da <\lJ-e. '&e.~at\.e.c.e.'&'&i.\:\.c\.t\.\.e.\:,?\:e.\.i.-\c \\.be.n.\m.e.t\.\.e.. De.
acordo, e é isso que tentaremos estabelecer sob uma forma um pouco diferente.
Postel o acusa, enfim, de professar que a natureza é boa por si mesma e de pregar às
pessoas "livres e bem-nascidas" a escandalosa moral do FAZE O QUE QUISERES.
Entendo que, dessas premissas, podem-se deduzir infinitas conseqüências, e Postel
não as deixa escapar. Mas elas nos autorizam, contudo, a trocar por um Rabelais
livre-pensador e agressivo o Rabelais de Gebhart, que não se vangloriava de ser
revolucionário - ou o Rabelais de Stapfer, que se apresentava como reformado?
Acrescentemos que foi bem tardiamente que Postel percebeu em Rabelais
um perigo. A AZcorani concordia é de 1543. Cinco anos antes, em 1538, dedicando
121
122
ao cardeal Ou Bellay seu De originibus, Postel celebrava a generosidade de seu
me cenas para com todos os nobres espíritos de seu tempo: "Por testemunhas de
tua solicitude", dizia-lhe ele, "vejo apenas os homens mais distintos nos diversos
ramos do saber humano: eles recorreram a ti todas as vezes em que a má sorte os
atormentava ... Para que relembrar aqui essa boa vontade de que obtiveram tantas
marcas efetivas um Paolo Giovio, um Rabelais, um Bigot e muitos outros homens
de uma tão perfeita erudição?". Texto interessante." Ele atesta, no mínimo, que,
em 1538, Rabelais-o Rabelais do Paniagrue! e do Gargântua-não era objeto de
escândalo para Guillaume PosteI. Sem o que o orientalista o teria deixado confun-
dido na massa anônima, com tantos outros clientes dos Ou Bellay. Entre 1538 e
1543, Postel mudou de opinião sobre Rabelais ou, mais exatamente, sobre seus
livros: pois ele não cita o nome de seu autor. Poderíamos descobrir razões pessoais
para a mudança?
No interessantíssimo prefácio da Grammatica arabica que foi publicada em
Paris pelo mesmo editor e, sem dúvida, no mesmo ano que a Alcorani et Evangelis-
tarum concordia, destacamos uma passagem curiosa." PosteI, com essa ousadia de
pensamento que ele parece ter com freqüência e cujo alcance é dificil de avaliar
exatamente, nos mostra a imensa, a "católica" extensão do Islã.
Essa religião, diz ele, difundiu-se tanto no universo que, a considerar as três
partes do mundo, quando muito uma delas lhe escapa. Não ocupa ela toda a
África, salvo a Núbia do Prêtre-Jean; toda a Ásia, de um lado ao outro? E eis que
invade a Europa oriental e mediterrânea: domina já a Grécia. Religião quase uni-
versal; a língua na qual ela se exprime, o árabe, é portanto uma língua universal.
Mas o conhecimento dela não é indispensávelapenas para percorrer tantos países
do globo e conversar com tais massas humanas. Os sábios não podem desinteres-
sar-se de um idioma que lhes dá a chave da ciência oriental. Aos árabes, devemos
tantas coisas! E, em primeiro lugar, a astrologia e a prática médica. - Aqui, Postel
entrega-se a um vivo ataque contra os galenistas." "Zombem quanto quiserem,
esses neoteristas que pretendem, satisfazendo seu prazer de denegrir, granjear o
renome de grandes eruditos: por mim, eu o mantenho, não há um homem de
nosso tempo, preocupado com ciência e aplicação, que, depois de ter ido buscar a
teoria em Galeno, não seja dependente dos árabes quanto à prática." Rabelais
tinha por Galeno, como se sabe, uma viva admiração. E poderíamos nos pergun-
tar se não haveria nessas passagens uma alusão latente a controvérsias," a conver-
sações pelo menos, em Paris ou em Saint- Maur, entre o homem dos Ou Bellay e o
--------------_._. _ ..... -_. _ ..., •......•...... _ .•......... -
protegido do chanceler Poyet - se, por outro lado, não nos lembrássemos de que,
em sua carta a Pantagruel, Gargântua prescreve a seu filho que revisite os médicos
tanto gregos, árabes, quanto latinos; de que o aconselha, numa época em que nino
guém estudava o árabe na França, a aprender, com a língua caldéia, igualmente o
arábico - e de que o próprio Rabelais fala em alguma parte daquele bispo de Cara-
mith "que em Roma foi seu preceptor em língua arábica".
Evitemos, em todo caso, e esta será nossa última observação, reconhecer, no
julgamento de Postel sobre o cristianismo de Rabelais, o veredicto autorizado de
um católico de estrita observância. Não podemos compreender um texto de POSo
tel se não nos colocamos no ponto de vista, muito especial, desse precursor de
Campanella, desse propagandista de uma religião natural abarcando, na unidade
de um cristianismo ampliado, tudo o que há de melhor (e, no fundo, de idêntico)
no judaísmo, no islamismo e no cristianismo. A ironia, o "lucianismo" do Pania-
gruel não podiam deixar de chocar o filósofo com temperamento de profeta e de
apóstolo que era PosteI. Ele reprovava Rabelais, sem dúvida, tanto por empregar
mal as capacidades intelectuais que trazia em si quanto por não consagrar seu
esforço a uma obra positiva de reconstrução religiosa; e sobretudo por ter afian-
çado essa Reforma que Postel, como mais tarde Campanella e muitos outros,
detestava do fundo do coração porque, ao partir o velho mundo cristão em frações
hostis, ela tornara mais dificil a tarefa de unificação a que esse estranho apóstolo
consagrava sua vida. Mas, se ele qualifica Rabelais de Christomastix, deve-se fazer
disso uma tragédia? Lutero era realmente para ele o "Príncipe dos Anticristos"?
Não deduzamos daí, aliás, que os julgamentos de Postel fossem absurdos.
Essa evolução que ele denuncia, esse resvalamento de muitos reformados para
doutrinas cada vez mais liberais, é bem possível que a obra de Calvino no-Ia mas-
care. Mas não foi por isso menos real. E alguém soube disso, alguém a viu como
Postel, alguém a denunciou também, à sua maneira - à sua maneira, que não é a
de Postel, pois bem se imagina que ele não tenha posto em causa a Reforma: e esse
alguém é joão Calvino.
A Excuse aux Nicodémites [Desculpa aos nicodernitasJ sucede, com um ano de
intervalo, à Alcorani et Evangelistarum concordia. Não creio me deixar enganar por
uma ilusão ao pensar que Calvino não ignorou o ataque violento e no fmal das con-
tas perigoso, de Postel contra a Reforma: de Postel, precursor distante, mas direto
123
do cônego Janssen, e sustentando a mesma tese que ele, traço por traço, palavra
por palavra, naquela passagem da Alcorani concordia em que, exaltando a inocên-
cia e a candura germânicas nos tempos que precederam a Reforma, opõe-lhes a
decadência moral, a torrente de vícios e de crimes sem nome que se seguiram: a
transformação patente do lansquenê, outrora honrado e piedoso, em bruto desen-
freado pelas novas doutrinas - 30 pois, com um fino senso das fraquezas do adver-
sário, é na moral dos reformadores que Postel faz recair seu esforço. E no que nos diz
desses cenevangelistas áulicos, que utilizam em proveito de seus vícios a teoria da
Justificação apenas pela Fé, há anotações perspicazes, mescladas a muitas acusa-
ções parciais." Anotações que nos permitem reconstituir, de maneira plausível,
uma evolução religiosa bastante freqüente então e, muito particularmente, revi-
sar a velha teoria de que se passava com facilidade do catolicismo, mas não do evan-
gelismo, a um certo racionalismo de indiferença. Os Aulici Cenevangelistae de Pos-
tel, não posso deixar de pensar que, com um ano de antecipação e traço por traço,
anunciam aqueles "protonotários delicados" que Calvino rechaçará violenta-
mente para longe dele, como maculados de nicodemismo. E para dizer tudo, eu
ficaria bem surpreso se a Alcorani concordia não fosse uma das fontes e, por reação,
uma das causas da Excuse de M.Jean Calvin [Desculpa do sr. João Calvino]. ..32
III. UMA CONDENAÇÃO NA SORBONNE (1543)
124
Se em 1543 Postel e outros com ele se tinham apercebido de que nem Panta-
gruel nem Gargântua eram irrepreensíveis catecismos de perseverança - não
tenhamos a candura de nos surpreender com isso. Uma autoridade célebre encar-
regara-se de ensiná-lo a todos, e era a faculdade de Teologia de Paris. Ora, para
falar apenas de Postel, se ele relata longamente suas desavenças com esse corpo
ilustre em sua Alcorani concordia; se tem contra ele palavras amargas e ousadas,
parece muito preocupado, por outro lado, em alardear, em ostentar seus conví-
vios ortodoxos. Não apenas louva bispos piedosos como Georges de Selve, bispo
de Lavaur, ou Robert Ceneau, bispo de Avranches, sem falar desse Robert Dodée
a quem o livro é dedicado: mas também fala de suas excelentes relações com o
doutor Mallarius (mestre Maillard), com o famoso dominicano Orius (entenda-
se, o inquisidor Mathieu Orry) e com um outro doutor católico conhecido, Godo-
fredus Titelmanus, insigni virpietate ... 33 Suas desavenças mesmas com a Sorbonne
o haviam levado a freqüentar assiduamente os teólogos católicos. E sem dúvida
não foi surpreendido quando viu figurar na lista dos livros perniciosos inspecio-
nados e qualificados pela faculdade, do Natal de 1542 a 2 de março de 1543
(segundo nosso cômputo), o seguinte artigo 64: Grandes Annales três véritables des
gestes merveilleux du Grand Gargantua, et Pantagruel Roy des Dipsodes [Grandes anais
muito verdadeiros dos gestos maravilhosos do grande Gargântua e Pantagruel,
rei dos dipsodos].
Quem havia chamado a atenção da Sorbonne, nessa data, para as obras já
antigas de Rabelaisr Uma hipótese apresenta-se de imediato. No fim de julho, ou
no começo de agosto de 1542, Dolet era preso em Lyon e lançado nas prisões do
arcebispado por ordem do inquisidor. Seu processo era instruído. Em 2 de outu-
bro, ele era condenado à fogueira. Apelo ao Parlamento de Paris; evocação da
causa; cartas de remissão do rei: o humanista impressor foi salvo mediante a abju-
ração de seus erros, e viu queimar os livros perniciosos por ele impressos ou
encontrados em sua posse." De fato, Du Plessis d'Argentré publica, na data de 14
de fevereiro de 1543, um decreto do Parlamento ordenando, em vista do requeri-
mento do inquisidor e do decreto produzido a partir das cartas de remissão, que
onze livros impressos por ele (os nomes deles são dados), mais as Obras de
Melanchthon, urna Bíblia de Genebra e uma Institution de Calvino seriam queima-
dos solenemente no Portal de Notre-Dame."
Entre esses livros não se incluem nem o Gargãntua nem o Pantagruei impres-
sos por Dolet em 1542, e dos quais os inquiridores haviam evidentemente encon-
trado exemplares em Lyon, na rue Mercíêre, com a insígnia do enxó. Mas não foi
o caso Dolet que atraiu a atenção da Sorbonne" para duas obras que o Parlamento
não considerava como perniciosas, mas que, a ela, podiam parecer tais? Em todo
caso, não é nas impressões de Dolet que a Sorbonne baseia sua condenação: o
título dado por d' Argentré oprova; é muito exatamente o da edição, sem nome de
lugar, publicada em Lyon em 1542 e que aparece sob o n. 42, à página 98 da Biblio-
grafia de Plon." Essa edição contém precisamente a Advertência do impressor ao lei-
tor na qual Dolet é tão asperamente criticado. Coisa estranha, que a edição de
Dolet (sobre a qual nos é dito que indignou Rabelais porque Dolet ali reproduzia
um texto não expurgado) não tenha provocado rigores no confisco, e que os juízes
da Sorbonne, ao contrário, tenham baseado sua condenação no texto revisto e ate-
125
nuado (ao que se diz) da edição lionesa de 1542? Por outro lado, por que a Sor-
bonne reedita então uma condenação que, segundo a doutrina reinante hoje, ela
já teria pronunciado em 1533 contra o pantagmel? Confesso, já que a ocasião se
apresenta, que a história dessa condenação de 1533, aceita como certa por Abel
Lefranc, sempre me pareceu suspeita." Que tenha sido decidida na cabeça de Le
Clerc, seja; mas que se tenha tornado real e oficial, por um decreto que ninguém
leu; que um livro assim condenado em 1533 tenha podido reimprimir-se tantas
vezes, em tantos lugares diferentes, sem a menor dificuldade - eis o que me deixa
perplexo. Portanto, eu seguiria de bom grado a opinião de Des Maiseaux em suas
"Observações críticas sobre Bayle" (VO NAVARRE, IV, 961, col. 6). Enviado para ins-
pecionar as livrarias, Le Clerc catalogara os livros novos que encontrara nos depó-
sitos. "Ele estabelecera duas classes deles: uma dos livros maus e a outra dos livros
apenas suspeitos, porque estavam sem nome de autores e impressos sem aprova-
ção da faculdade, a despeito do decreto do Parlamento ... Ele pusera o Miroir em
sua lista, entre os livros dessa segunda classe." Deve-se acrescentar: e o Pantagruá
também, que sem dúvida tirou partido do caso do Miroir?
Última observação: todos os livros incluídos no Catalogue des ouvrages visités
[Catálogo das obras inspecionadas], qualificados pela Sorbonne em 1542, são
livros de autores reformados ou pelo menos simpáticos à Reforma. O Gargântua
e o Pantagruel aí se incluem ao lado de obras de François Lambert d' Avignon, de
Calvino, Erasmo, Marot, CEcolampade, Bucer, Jean Brentz, Bugenhagen, Zwin-
gli, Melanchthon - e de numerosas traduções de livros santos em francês. Mais
uma vez, por gentileza da Sorbonne, Rabelais toma lugar não na coorte dos liber-
tinos, mas no estado-maior da Reforma: cenevangelistarum antesignani [o pelotão
de frente dos cenevangelistas]. E, da mesma maneira, Dolet. Não é um "ateu" que
é perseguido em 1543 - mas, visivelmente, um fomentador da heresia reformada.
126
IV. RABELAIS NICODEMITA?
No entanto, é no ano seguinte, em 1544, que se publica uma obra polêmica
de Calvino: a Excuse àMessieurs les Nicodémites sur Ia complainte qu'ils font de sa trop
grand'rigueur [justificação aos senhores nicodemitas sobre a queixa que fazem de
seu excessivo rigor], na qual Abel Lefranc retoma, para aplicá-la a Rabelais, uma
passagem bem conhecida.
A Excuse (que ocupa quinze páginas do tomo VI das Opera Calvini, col. 600)
consiste essencialmente em uma descrição crítica dos nicodemitas, homens de
pouca fé. Há os que pregam a palavra apenas para pescar em águas turvas alguns
bons beneficios. Há "os protonotários delicados", contentes com discorrer sobre
o Evangelho diante das damas, desde que seu zelo "não os impeça de viver a seu
hei-prazer": eco quase textual, observemos de passagem, da Alcorani concordia e
das vituperações de Postel contra os ímpios; falar do Evangelho com as damas: a
frase não tem um tom "thelernita"? - Há ainda os homens de gabinete, que" em
parte convertem a cristandade em filosofia"; eles esperam, ao pé do fogo, alguma
boa reformação, mas abstêm-se de consagrar-se a ela ativamente." Aqui (col. 602),
brusca explosão de fúria, reveladora dos sentimentos profundos de Calvino: "Esse
bando é quase todo de letrados; não que todos os letrados façam parte dele; pois
eu preferiria que todas as ciências humanas fossem exterminadas da terra se fos-
sem causa de arrefecer assim o zelo dos cristãos e afastá-los de Deus!". Enfim, há
"os comerciantes e o povo comum, que, sentindo-se bem em seus lares, aborre-
cem-se com que se vá perturbá-los". Terminada essa revista dos alistados sob a
bandeira de Nicodemo, Calvino faz uma breve alusão aos "luciânicos ou epicuris-
tas, que simulam aderir à palavra e no interior de seus corações zombam dela e não
a consideram mais que uma fábula" .
Não há dúvida, nos diz Abel Lefranc, quem Calvino tem em mira é Rabelais.
Muitas e muitas vezes não foi ele qualificado de "Luciano francês"? - Talvez.
Mas o que se passa com esses textos calvinistas é o mesmo que, ainda há pouco,
com os epigramas de Visagier. Não façamos do lucianismo um monopólio de
Rabelais. E evitemos escrever, sobretudo, que Calvino "visa claramente" a Rabe-
lais em "toda uma série de passagens" da Excuse. Quais? Ou Calvino pensava em
Rabelais ao falar dos lucianistas e, a partir daí, não há que se pôr em busca de
várias passagens visando ao autor do Pantagruel,já que Calvino só falou dos lucia-
nistas em uma única parte, e para dizer que não falaria mais deles. Ou então Cal-
vino visou a Rabelais em outros lugares de sua Excuse; então é que fazia dele um
nicodemita, não um lucianista? Mais uma vez, não há menção nominal de Rabe-
lais na Excuse. A polêmica calvinista, em 1544, não desce às personalidades. Per-
manece nas generalidades.
Aliás, nossa cantilena é sempre essa. Admitamos que Calvino, em 1544, tenha
pensado em Rabelais ao denunciar os" detratores de Deus", 1544, isto é, doze anos
depois da publicação do Paniagrud, Que um livro editado em 1532 não apareça
I27
Piadista, vivendo de sua língua, parasita, se necessário o suportaríamos; mas que se
condene ao inferno ao mesmo tempo; que todos os dias se embriague e se empanturre;
que tenha costumes gregos; que fareje os odores de todas as cozinhas, imite o macaco
de cauda comprida e, ainda por cima sujando seu papel com infâmias, vomite um
mais, em 1544, sob o mesmo aspecto que no dia de seu lançamento; que uma evo-
lução singularmente importante tenha tido tempo de realizar-se, entre essas duas
datas, no espírito de muitos humanistas; que, prevenido dos progressos rápidos
que o racionalismo anticristão fazia em certos meios, entre aqueles epicuristas
com o lema fácil de "Viver, beber e gozar", sobre os quais não se sabe, como obser-
vava Henri Hauser, se Antoine Fumée," ao tratá-los por navoispvoi, [patifes] que-
ria chamá-I os de celerados ou de Panúrgios - que um Calvino, por tabela, se
tenha comovido com isso e que sua emoção se traduza por julgamentos retrospec-
tivos sobre obras que pudera de início apreciar de outra maneira: nada de imposs-
sívelnisso; todaa questão, precisamente, é de saber se, em 1533 e 1535, Calvinovia
já Pantagruei e Gargântua com seus olhos de 1544, ou de 1550?
V. O RAIVOSO PUTHERBE E O "DE SCANDALIS" (1549)
Cinco anos se passam, entretanto - e, em 1549, é a célebre passagem do
Theotimus. Depois de Postel e da Sorbonne, frei Gabriel de Puy-Herbault acusa
Rabelais de impiedade radical e, ao mesmo tempo, o manda de volta a Genebra,
sua verdadeira pátria, sem se preocupar em saber se mestre João Calvino estava
disposto, ou não, a festejar o retorno ao rebanho de filhos tão pródigos. Mas se
trata de atingir Rabelais, e com todas as armas, ainda que seus golpes devessem
contrariar-se; ateu e luterano: as paixões não hesitavam muito, no século XVI, em
juntar esses dois epítetos contraditórios ao nome de um adversário que convinha
fazer cair em desgraça. O impulsivo religioso de Fontevrault denuncia então, vee-
mentemente, os livros escandalosos do ex-franciscano. Ele não O censura, aliás,
por sua apostasia; incrimina apenas sua filosofia.
"Que Diagoras compreendeu Deus mais às avessas? Que Tímon denigre
mais a humanidade?" Mas Diagoras interessa bem pouco a Putherbe; seu tema
favorito é o da calúnia. Rabelais é um vil panfletário, um difamador de pessoas
honradas; além disso, um cínico.
I28
veneno que ínfectapouco a pouco todas as paragens; que lance a calúnia e a injúria
sobre todas as ordens indistintamente; que ataque as pessoas honradas e os piedosos
estudos e os direitos da honra; que escarneça sem vergonha nem sombra de decência
- suportamo-Io? Fato inaudito, um bispo de nossa religião, o primeiro pela posição e
pela ciência, protege, alimenta, admite à familiaridade de sua mesa e de sua conversa-
ção um tal vivo desafio aos bons costumes e à honradez pública; que digo eu, seu pior
inimigo, o homem impuro e corrupto que possui tanta lábia e tão pouca razão!"
A invectiva impressiona. Mas é contra os costumes de Rabelais e contra sua
impudência de trocista que se volta, antes de tudo, o raivoso Putherbe. A impie-
dade é alegada quase que de passagem; e não é Deus, são as "pessoas honradas"
atacadas sem vergonha pelo satírico que frei Gabriel pretende, antes de tudo, vin-
gar. Mas, precisamente, alguém não se encarregou, ao definir o sentido verdadeiro
do ataque, de diminuir-lhe sensivelmente o alcance? Abel Lefranc não estabeleceu
que o religioso de Fontevrault era o instrumento de rancores privados, os de
Sainte-Marthe, cujo quartel-general era em Fontevrault, sendo Gaucher de
Sainte-Marthe médico da abadia? Sepultado em 1551 no coro da abadia, parece
realmente que, durante sua vida, ódios vigorosos O tenham oposto a Antoine
Rabelais, pai hipotético de François; talvez tenha posado para o retrato do irascí-
vel Picrochole? Em todo caso, O raivoso Putherbe, quando invectiva Rabelais, não
faz figura de historiador das doutrinas. Em todo o seu livro sobre os maus livros,
não nomeou ou, antes, apontou senão um único autor: Rabelais. Que fosse por
razões pessoais, qualquer dúvida quanto a isso é realmente impossível.'!
o texto violento do Theotimus precede por pouco o requisitório, também
veemente, porém mais desinteressado, que nos fornece, em 1550, o De scandalis
[Sobre os escândalos] de Calvino. Desta vez, Rabelais é nomeado com todas as
letras pelo "impostor de Genebra". Ele não é, nos diz este (t. VIII, col. 44), daqueles
empedernidos, um Agrippa, um Simon de Neufville, um Dolet, que sempre orgu-
lhosamente contestaram o Evangelho, lançaram as mais ignóbeis blasfêmias con-
tra o Filho de Deus e professaram que os homens não diferiam em nada dos cães e
dos porcos. Como Des Périers, como Gouvea, Rabelais começou por estimar o
Evangelho. Apenas mais tarde a cegueira o atingiu, a ele e a seus companheiros ...
Foi seu riso sacrílego que os levou ao ateísmo e ao materialismo.
129
13°
Não iremos mais longe. Esse texto é completo. É o texto. Os que se seguirão
não acrescentarão nada a ele. Irão repeti-lo. Não terão mais força concludente:
antes menos. A espécie de eqüidade de Calvino, levando em conta o passado de
Rabelais como homem simpático à Reforma, torna mais temíveis suas acusações
finais. E nestas, que precisão! Rabelais, Gouvea, Des Périers: seu fim é "de abolir
toda reverência a Deus"; eles não hesitam em dizer que "todas as religiões foram
forjadas na cabeça dos homens; que proferimos que existe algum Deus porque nos
agrada crer nisso; que a esperança da vida eterna é para entreter os idiotas; que
tudo que se diz do inferno é para apavorar as criancinhas". O requisitório é com-
pleto, o procurador está convencido dele." Se, mais tarde, forem dois, ou dez, a
repetir as palavras de Calvino, pouco importa; os Estienne, os Castellion e outros
não acrescentarão nada ao que enumera o reformador em 1550, com um vigor,
uma violência, uma certeza sem iguais."
Tudo está dito; mas por quem? Até o momento, tomamos um a um os teste-
munhos alegados. Pesamos-lhes os termos. Informamo-nos sobre as circunstân-
cias de sua publicação, sobre a pessoa e o estado de espírito de seus autores. Alguns
deles, rejeitamos como inoperantes: o de 1533, os de 1538, outros ainda. Com o
"grande texto" de 1550, o que vamos fazer? Observar mais uma vez sua data tar-
dia? Constatar novamente que para Calvino, assim como para Postel, Rabelais
começou por "estimar o Evangelho"? Debate secundário. O texto de Calvino
levanta uma outra questão: de princípio, se se quiser, ou de método.
VI. O QUE VALE A ACUSAÇÃO DE ATEÍSMO NO SÉCULO XVI
Por volta de 1936, em Paris, aquele pequeno-burguês que habitualmente
perora e freqüenta as reuniões políticas: "Um homem perigoso", declaram as
comadres. E, baixando a voz, no mesmo tom com que, em 1900, teriam dito: "um
anarquista", elas proferem: "um comunista, senhor!" - Palavras de nossa época,
preocupada antes de tudo com os problemas sociais. No século XVI, apenas a reli-
gião coloria o Universo. E o homem que pretendesse não pensar sobre tudo abso-
lutamente como todos; o homem de fala ousada, de crítica fácil: "Ímpio, excla-
mava-se, blasfemador - e, para terminar: ateu!".
Então, aí está: um autor, dois autores, dez autores daquele tempo afirmam:
"Fulano? Um ateu! Seu livro? Um manifesto de puro ateísmo!". Vamos nós con-
cluir placidamente: "Eles o dizem. Ora, eles devem saber. Portanto, esse homem
foi ateu".
Escutemos a opinião de um homem sério: Viret, o reformador de Lausanne.
É um pastor prudente, ponderado, e que conservou sempre, no decurso de sua
longa vida, um toque de malícia romanda bastante original. Ora, em 1564, como
tantos de seus colegas, ele se impressiona com os progressos do racionalismo.
Denuncia-os vivamente em uma Épitre à l'Église de Montpellier [Epístola à Igreja de
Montpellier], no início do tomo 11 de sua Instruction Chrestienne [Instrução cristã]. 44
Existem, diz ele, monstros bastante abomináveis para não crer ernjesus e para pro-
fessar que após a morte corporal não há nem vida nem morte eterna. Entre eles,
alguns qualificam-se de deístas. Entendem por isso que não são ateus, pois ateu
quer dizer, pretendem eles, sem Deus - enquanto eles reconhecem um Deus,
criador do céu e da terra; mas ignoram tudo do Cristo e de sua doutrina. Pois bem,
esclarece Viret, essas pessoas enganam-se. São realmente ateus. "Pois quando são
Paulo, na Epístola aos Efésios, chama os pagãos de ateístas, ele declara de fato que
esses não são apenas os sem Deus que negam toda divindade, mas também os que
não conhecem o verdadeiro Deus, mas seguem os deuses estrangeiros em vez
deste.":
Nada de mais claro, nada de mais contundente que esse texto. Traduzamo-
10: ateísta, proclama Viret, é o superlativo de deísta. O que nos importam todas as
declarações desses professores de filosofia humana? Eles têm um Deus e alguns
professam, ao que dizem, "alguma opinião da imortalidade das almas"." Pouco
nos importa. Seu Deus não é o nosso Deus. Eles não são de nossa religião. Aná-
tema sobre eles, e não vãs nuanças: atenhamo-nos ao superlativo, o efeito será
maior: são ateus! - Tal é o raciocínio de todos os controversistas no século XVI -
e mesmo em outros séculos. Digo controversistas: pois, afinal, não raciocinemos
sempre como se os Viret, os Calvino, os Estienne, os Castellion e, no outro campo,
o raivoso Putherbe, todas essas testemunhas de punho estendido, fossem austeros
e escrupulosos historiadores das idéias, tentando definir honestamente as opi-
niões de seus contemporâneos. Propagandistas, todos. Eu ia dizer: pregadores. E
que conhecem seu oficio. Sabem que convém gritar: lobo! bem alto, se se quiser
impressionar seu auditório - mesmo quando o lobo, sobretudo quando o lobo é,
quando muito, um cão sem dono. Ateu: a palavra surtia efeito na metade do século
XVI. Não tinha um sentido estritamente definido. Era empregada no sentido que
bem se lhe queria dar. A Viret, que o diz sem rodeios - chega a declarar, na passa-
131
Ateu é aquele que o costume arrasta
Ora crendo assim, ora de outra sorte;
Crê em Deus aquele que crê não obstante
O homem por isso o vá perseguindo [...]
gem que citávamos mais acima, "que se poderia também chamar os supersticio-
sos e os idólatras de aieistas" - faz eco Ronsard, quando trata os huguenotes de
ateus, ou Antoine de La Roche-Chandieu (A. Zamariel) quando, ao mesmo Ron-
sard, retruca:"
Ou ainda, quando declara, dirigindo-se sempre a Ronsarde pagando-lhe na
mesma moeda:
Ateu é quem, mentindo, defende o Papado
Do qual zomba e vê afalsidade!
Não é muito cômodo definir convenientemente o sentido da palavra ateu
ou, mais precisamente, caracterizar com exatidão o ateísmo. É um tema que ins-
pirou o sábio Bayle, para falar apenas dele - e que o inspirou para nosso prazer,
pois ele raramente é mais malicioso que quando toca com a mão cheia de garras,
apenas recolhidas o bastante para que se lhes adivinhe a ponta, na hierarquia dos
diversos graus do ateísmo "segundo os sábios homens de Hall"," ou no inconve-
niente que existe para a Fé em fazer, com excessivo vigor e convicção, da filoso-
fia e da cultura mestras da incredulidade e as inimigas naturais da religião .. .'9 -
Mas quando ateu não é mais que um palavrão destinado a provocar um calafrio
num auditório de fiéis: sem dúvida há alguma puerilidade em querer definir-lhe
o sentido preciso?
Se não se tomam as coisas assim, como compreender o que quer que seja nas
espantosas contradições dos homens do século xvI? E, para começar, como expli-
car o uso, realmente cômico, que faziam sem pudor, uns contra os outros, da
suprema injúria: "Ateu!".
Ateu, dizeis, Rabelais? Bem. Mas em 1532,50 em Lyon, um francês, um
humanista escreve a Erasmo uma carta célebre. É a famosa carta "a Salignac",
132
cujo verdadeiro destinatário é hoje conhecido sem dúvida possível." O que con-
tém ela, afora as declarações de respeito, de admiração, de filial reconhecimento
que seu autor prodigaliza a Erasmo? Uma curiosa passagem sobre Júlio César
Scaliger. O aventureiro acabava de lançar contra o grande humanista um libelo
violento. Erasmo, que desconhecia seu adversário, tomara seu nome sonoro por
um pseudônimo e considerava Aléandre como o autor do libelo. "Desenganai-
vos", escreve-lhe seu correspondente. "Conheço esse Scaliger. Ele existe real-
mente. Exerce a medicina em Agen. Esse diabo, ixávoç [um diabo], tem, aliás,
má reputação. Não como médico: ele não é inábil; mas como crente: ele é ateu como
ninguém ofoi (á8wç aíç o'ÍlXãÂÂoç :rraí:rrOTaú(jdç)."
O autor dessa carta é Rabelais! Assim, em 1532, o próprio ano do Pantagruel
- Rabelais, cobrindo a face de horror, acusava Scaliger ... de ateísmo! Scaliger, de
resto, não demorou a replicar. E não poupou a imaginação. 52 'Ateu, eu? Não tanto
quanto vós!" Figuras de retórica ciceroniana.
Passemos a Dolet, a esse Dolet que, em 1534, logo após a afixação dos Carta-
zes, vendo "luteranos" serem queimados vivos em Paris, contentava-se com um
dar de ombros desdenhoso: os pobres tolos, e como atribuir tanta importância a
miseráveis querelas religiosas para se deixar matar assim! Mas esse Dolet, tão à
parte, o que reprova ele violentamente, um ano mais tarde, em Erasmo - nesse
Erasmo a quem Rabelais, pouco antes, comunicava escandalizado sua descoberta
de um Scaliger ateu; nesse Erasmo que não devia ignorar o renome de Dolet nem,
talvez, a curiosa carta" que, no fim de 1535, seu secretário Gilbert Cousin, de
Nozeroy, recebeu de um jovem desconhecido, Johannes Angelus Odonus? Pois
bem, Dolet, esse suspeito, esse paduano, "o ateu Dolet", incrimina Erasmo, em
1535, de ateísmo _54 e com que tom escandalizado! "Quanto às suas idéias, de
onde as tirou, se não de Luciano, o autor mais mordaz, o mais impudente de todos,
sem religião, sem Deus, e dado a ridicularizar todas as coisas, tanto religiosas
como profanas?" Não é prodigiosa, essa indignação? É verdade, escrevo: o ateu
Dolet. Não endosso levianamente o epíteto. Refiro-me simplesmente, sem dis-
cuti-Ias, às acusações dos Calvino, dos Estienne, dos Viret, dos Castellion e
outros ... Um nome ainda, para ser breve. Eis Briand de Vallée, esse magistrado de
Saintes e depois de Bordéus, que se inclui, com base em rumores, no catálogo dos
racionalistas militantes do século:" sem dúvida, ele não foi mais que um espírito
liberal, um cristão apaixonado por são Paulo e disposto, como Gargântua, a pro-
teger os "bons pregadores evangélicos"; amigo de Rabelais, em todo caso, que o
I33
cita duas vezes em seu romance. É Briand quem tem a idéia de remeter à arbitra-
gem do rei dos dipsodos a causa espinhosa dos senhores de Baisecul e de Hume-
vesne;" e é ainda ele, "esse tão bom, tão virtuoso, tão dou to e eqüitativo presi-
dente" que, no capítulo XXXVII do livro IV, diagnostica durante uma procissão o
lado, direito ou esquerdo, no qual os corcundas são deformados, tão-só pela con-
tagem das sílabas, pares ou ímpares, de seu nome. O que, entre parênteses, talvez
não seja a maneira mais edificante de associar-se a uma procissão? Ora, esse espí-
rito livre de preconceitos tinha, ao que parece, medo do trovão, medo a ponto de
ir esconder-se em seu porão quando havia tempestade. Seu amigo Antonio de
Gouvea um belo dia teve a idéia de zombar dele por isso: "Troveja; imediatamente
Vallée foge às pressas para o fundo da adega. Nas adegas, pensa ele, nada do bom
Deus!" - O picante do caso é que Gouvea é um dos ateus do De scanâaiis - 57 um
dos que Calvino nomeia com todas as letras, com Rabelais e Des Périers, e que têm
por fim "abolir toda reverência a Deus". Em todo caso, seu dístico não era muito
maldoso. Mas Briand o levou a mal. E de que, de imediato, ele, o descrente e o sus-
peito - de que se apressou em acusar Gouvea? De ateísmo, naturalmente!
"Antoine Gouvea, filho de marrano! Nem no céu nem na adega, não crê, ele, que
se encontre Deus!"
Como se vê: Deus desempenha um papel estranho de gendarme nas prosas
e nos versos desses emancipados. E esses ateus parecem bastante inclinados a
escandalizar-se com O ateísmo de outrem.
134
Seja, dir-se-á. Ateu, no século XVI, nem sempre quer dizer ateu. Significa, pelo
menos, incrédulo. E como pretender que Rabelais, Scaliger, Dolet, Briand de Val-
lée fossem os modelos dos cristãos daquele tempo?
Deixemos Rabelais de lado. E, se se quiser, Dolet. Scaliger? Mas, afinal, os
documentos publicados por Patry no-lo mostram perseguido em Agen, em 1538,
por heresia; ele dera como preceptor de seus filhos, como nos informa Bêze na His-
toire ecclésiastique [História eclesiástica] (I, p. 15), um luterano, Philibert Sarrazin,
que fugiu; Scaliger deveu sua salvação apenas à influência de três conselheiros do
Parlamento de Bordéus, La Chassagne, Arnoud Le Ferron e ... Briand de Vallée; e,
no fim das contas, os testemunhos de joseph, filho piedoso, podem ser invocados:
"Meu pai", escreve ele nas Scaligerana(ed. de 1695, p. 9), "livrou durante as primei-
ras fogueiras os da Religião, da qual tinha conhecimento"; e mais adiante (p. 357):
"Meu pai, quatro anos antes de morrer, era semiluterano; via todos os dias cada
vez mais os abusos". E, naturalmente, "odiava os monges" . Scaliger - mas Briand
de Vallée, anticristão ou ateu que fundava uma cátedra de exegese de são Paulo por
testamento? Mas Castellion? Mas Lutero? E muitos outros dessa envergadura e
dessas opiniões?
Detenhamo-nos um instante no caso de Castellion. É um dos acusadores de
Rabelais. Em 1554, quando se extinguia mestre Alcofribas, pouco depois da tragé-
dia de Champel, ele se erguia contra os que teimavam em fazer de Servet um ateu.
"Essas calúnias", escrevia ele em uma obra que seria publicada apenas em 1614-
o que lhe diminui notavelmente o alcance histórico - "essas calúnias foram tão
habilmente difundidas que muitos cristãos vêem em Servet um outro Rabelais,
um outro Dolet, um outro Neufville, não tendo mais que eles fé em Deus ou em
Cristo." 58 Rabelais, Dolet, Neufville: já nos deparamos com essa tríade simbólica?
Ah, sim, em Guillaume Postel, em 1543 (com exceção de Dolet) e no Calvino do
De scandalis em 1550. Passava-se a lista, de pregador a pregador. Com algumas
variantes, mas tão poucas! O nome de Rabelais atraía o de Bonaventure. Mas Neuf-
ville evocava Dolet, a menos que fosse o contrário. O mestre e o discípulo. Tanto
melhor que Simon de Neufville, Villanovanus (do qual se ignora quase tudo), é
pouco conhecido a não ser por Dolet - que evita qualificá-lo de ateu; conclui-se
do discípulo, do qual se conhecemas opiniões, ao mestre, do qual não se sabe nada
e que se dota generosamente de um credo "racionalista" muito semelhante ao
suposto credo de Dolet." Liberalidades de controversistas: é preciso que nós, his-
toriadores, nos preocupemos com elas?
Então, também Sébastien Castellion faz gravemente de Rabelais um desses
homens que não crêem nem em Deus nem, muito menos, no Cristo (Qui nullum
Deum aut Christum. ... habent). Não seria isso apenas uma reprodução? Abramos,
com efeito, aquele capítulo XIV da Apologie pour Héroâote [Apologia de Heródoto ]
que contém uma fogosa denúncia do novo Luciano, Rabelais." Mais uma. Não nos
limitemos a reler a invectiva de Estienne; acompanhemos seu raciocínio. Ele trata,
nesse texto tardio de 1566, das "blasfêmias e maldições". lncrimina a torto e a
direito (p. 182) tanto os desbocados que praguejam "Renego Deus!" quanto os
polidos demais que dão ao papa um "Santissimo Padre!". Relata, branco de fúria,
as abomináveis piadas daquelas pessoas que exclamam Sursum corda [Corda para
cima] diante de um enforcado, Quia pius est [porque é piedoso] diante de um copo
de piot (vinho t ou, diante de uma garrafa do ano dos vinhos rôtis, Spiritus vitae erat
135
in rotis! [O espírito da vida estava nas rodas!]. Depois do que, introduzindo Rabe-
lais, associa-o, segundo o rito, a Des Périers: dois ímpios, que pretenderam ensinar
os homens a não crer nem em Deus, nem em sua Providência, "assim como neles
não acreditou aquele malvado Lucrécio"; tudo o que é ensinado pela religião é
hipotético; tudo o que se lê da vida eterna, "escrito para distrair e iludir com uma
vã esperança os pobres idiotas"; tudo o que se conta do Inferno e do Juízo Final,
ameaças de lobisomem para as criancinhas ... Em suma, "todas as religiões foram
forjadas nas cabeças dos homens": assim se resumem seus atrozes ensinamentos.
Belo auto de acusação! Contudo, herdeiro dos ódios de seu pai Robert, que,
em 1553, deplorava que não se houvesse lançado Rabelais à fogueira," Henri
Estienne, ao escrever seu requisitório (talvez para mostrar um pouco de zelo), não
desconfiava que ele próprio seria um dia citado perante o consistório por ter
impresso um livro" escandaloso"; e os registros da Companhia dos Pastores, no
dizer de Jean Senebier," nos informam nessa circunstância de "que ele era cha-
mado, na Europa, o Pantagruel de Genebra e o príncipe dos ateistasl". Decidida-
mente, no século XVI é-se sempre o ateu ou o Pantagruel de alguém. Deixemos
isso. O texto de Estienne contém uma frase que Abel Lefranc acreditou poder cor-
tar sem prejuízo: talvez menos negligenciável do que ele pensava. O objetivo dos
Rabelais, Des Périers e dos da sua laia, escreve Estienne, foi, "insinuando-se por
muitas chacotas e zombarias que lançam contra a ignorância de nossos predeces-
sores ... vir depois a também lançar pedras no nosso jardim, [...] isto é, dar alfineta-
das na verdadeira religião cristã". A verdadeira religião cristã, entende-se de sobra,
é a de Henri Estienne.
Essa frase é divertida. Ela trai primeiro a dificuldade sentida por Estienne
para explicar em seu sistema os tão numerosos ataques do Gargãntua e do Panta-
gruel contra os "abusos" dos católicos. E também se desmascara de maneira bem
cômica. Rabelais, de início simpático aos reformados, Rabelais, de quem Béze
(mas ele ainda não era da religião de Genebra) começou por louvar com tanto
vigor convicto os talentos e a filosofia - 64 se se lhes tornou bruscamente antipá-
tico e odioso, foi a partir do dia em que não mais lançou suas pedras apenas no jar-
dimdopapa ...
Ora, o que é que termina, o que é que coroa esse capítulo XIV da Apologie?
Um ataque a fundo contra um outro blasfemador de marca. Que é ... Sébastien
Castellion. Ah, sim, Sébastien Castellion em pessoa, malfadado tradutor da
Bíblia em francês. Ele se atreveu, em sua tradução, a empregar expressões fami-
liares, "expressões de malandro", diz faustosamente Estienne. Malícia, pura
malícia, para fazer rir à custa do texto sacro; malícia de um ímpio "que expressa-
mente procurou tais maneiras de falar para expor à irrisão palavras tão sérias e
sagradas [.. .]". Contudo, Castellion pode considerar-se feliz: Estienne não chega
a tratá-lo de ateu. Mas Conrad Badius não terá essa moderação. Ao sr. de Parvo
Castello, pseudônimo transparente, declarando na Comédie du pape maiaâe
[Comédia do papa doente].
Mas se não sou papista,
Satã replica imediatamente:
Que sois então, ó bom ateísta!
E eis que o sr. de Parvo Castello, o piedoso, o cristão Castellionjunta-se, no
inferno dos ateus, aos Rabelais, aos Dolet, aos Neufville que ele ali enfiava tão deli-
beradamente." - Quanto a Henri Estienne, não se demora mais muito tempo
contra o autor de De haereticis [Sobre os heréticos]. Volta-se bem depressa contra
um outro descrente, ímpio e criminoso em primeiro grau, "um malvado": aquele
Postel que, não contente" em vomitar em particular a uns e outros suas monstruo-
sas blasfêmias, [...] as mandou imprimir!" .66
Ímpios todos, se for preciso acreditar neles - descrentes e, finalmente, ateus,
do pequeno ao grande. Pensa-se na gravura do velho Bruegel, os grandes
comendo os pequenos - séries inteiras de peixes encaixando-se uns nos outros,
por ordem de tamanho, depois de ter sido engolidos. Expediente de advogado ou
de controversista: sem dúvida; outra coisa também, muito negligenciada: maneira
de raciocinar familiar aos homens daquele tempo. E que provava sua cultura. Arti-
fício, sim, quando, por exemplo, um padre Carasse, bem mais tarde, revela a seus
leitores, na Doctrine curieuse des Beaux Esprits [Doutrina curiosa dos pedantes J, que
Lutero atingia" a perfeição do ateísmo" e que esse homem "todo corporal e com-
posto de banha" ensinava "que a imortalidade da alma não é mais que pura qui-
mera"." Carasse, sem dúvida, Garasse de quem Gui Patin afirma que os jesuítas
tinham vergonha, e que, denunciando em Pomponazzi e em Cornelius Agrippa
137
diabos encarnados, acrescenta cinicamente que, de resto, jamais leu uma linha de
seus escritos." - Mas eis o austero cardeal Du Perron, homem de peso, homem
de saber. EDu Perron diz, exatamente como Garasse:" "Lutero negava a imorta-
lidade da alma e dizia que ela morria com o corpo [...] Entre as impiedades da Igreja
Romana, ele coloca essa aí, de que ela crê na imortalidade da alma [.. .]".
Bayle quis tirar isso a limpo. Procurou o pretexto dessas absurdidades. Con-
cluiu que deve ser alguma hesitação de Lutero sobre a controversa questão do
estado das almas depois da morte." Permanecem elas adormecidas até o dia do
Juízo? Lutero, em uma carta, teria parecido não rejeitar totalmente essa opinião-
que foi, aliás, a de vários Pais da Igreja. Adormecidas! Mas almas adormecidas não
vêem Deus? Lutero as priva da presença visível de Deus? É o que basta; Lutero é
um negador, um detrator da imortalidade! - Então Du Perron mentia cinica-
mente? Mas não. Ele raciocinava." E, na sua opinião, corretamente. Deduzia.
Encadeava de maneira regular, portanto legitimamente, uma série de silogismos
que se encaixavam perfeitamente um no outro. Ao fazer isso, ele era de seu tempo
e de sua batina. Fizera seus estudos. Sabia como se discute. E seus contemporâ-
neos o sabiam como ele. Seu espírito não seguia os mesmos passos que o nosso.
Não lhe causava espanto, partindo de uma noção simples, estar subitamente nos
antípodas de seu ponto de partida e, imagino, apoiando-se numa doutrina reli-
giosa de Lutero, formular finalmente contra o próprio Lutero uma acusação de
materialismo ou de impiedade que lhe parecia admissível- já que via por qual
evolução lógica ela era deduzida de premissas opostas. Maneiras de raciocinar que
nos surpreendem; elas nos perturbam" quando se trata de explicar muitas tragé-
dias daquele tempo que permanecem misteriosas para nós. Por exemplo, para
citar apenas uma, a tragédia de Champel.
Ainda há pouco, em 1920, no tomo LXIX do Bulletin de la Société d'Histoire du
Protestantisme Français [Boletim da Sociedade de História do Protestantismo Fran-
cês], HippolyteAubert publicava um texto comovente: uma nota manuscrita de
Guillaume Farel, rabiscada por ele na primeira página de um exemplar do livro de
Servet: De Trinitatis erroribus libri septem [Sete livros sobre os erros da Trindade].
Farel, nessa nota, exprime seu julgamento de conjunto sobre o caso Servet. Signi-
fica dizer que ele vomita uma torrente de insultos contra a infeliz vítima de Cal-
vino. Herético; ofensor da divindade; redator de escritos sacrílegos, que se evadiu
de Lyon com a cumplicidade e a ajuda dos ateus (ope et consilio eorum qui athei sunt:
ficaríamos bem surpresos se os ateus não estivessem metidos nisso); sequaz de
Satã, que foi levado ao desespero pela morte de um servidor tão zeloso (Satanas,
tam selecto se videns prívatum ministro); em suma, todas as amabilidades de escrita
que reencontramos em uma carta conhecida de Farel a Blaurer, de 10 de dezem-
bro de 1553: assombrosa e trágica de inconsciência.
Tantas injúrias, violências, imprecações - e nenhuma dúvida, nenhum
remorso, nenhum arrependimento ... Ora, escutemos H. Aubert, cuja competên-
cia e imparcialidade é inútil atestar: "Quanto à própria doutrina de Servet, hoje ela
nos parece de uma ortodoxia quase timorata [...] Nenhum deles [os teólogos cal-
vinistas] parece tê-Ia realmente compreendido. Servet não se esforçara, no
entanto, em provar a divindade do Cristo e não concluía, a respeito da Trindade,
pela existência de um Deus único em três pessoas? Opinião de uma audácia certa-
mente bem moderada"." Sem dúvida. Mas Farel, mas Calvino não raciocinavam
como nós. Da doutrina de Servet, deduziam mil conseqüências possíveis. Desen-
volviam até o absurdo mil proposições que nos parecem anódinas. E a conclusão
a que foram levados por sua série de raciocínios, identificavam-na muito natural-
mente com seu ponto de partida. Viam Z em A, dado que, de A a Z, haviam assi-
nalado todos os escalões intermediários; e condenavam A em nome de Z sem a
menor hesitação.
Persistência cruel desse espírito de lógica dedutiva, desses jogos a uma só vez
refinados e infantis de terministas para os quais, no começo do século, tantos
humanistas e inovadores não tinham sarcasmos suficientes. Lendo os antigos, eles
haviam admirado outras atitudes intelectuais, mais diretas, mais humanas tam-
bém porque punham face a face não, como recentemente, espíritos esgotando-se
em superar constantemente sua engenhosidade doentia e em revirar as realidades
nas mortais teias de aranha de seus silogismos: mas homens olhando-se bem dire-
tamente nos olhos, consciências confrontando-se, puras e nuas, com desprezo por
todo disfarce e cândido ódio a toda dissimulação. Quantas coisas úteis poderiam
ser ditas sobre o renas cimento do diálogo no século XVI! Essa conversação livre
entre criaturas dotadas não apenas de razão, mas de sensibilidade, e da qual Platão
deixara modelos de uma arte tão natural- toda uma geração deslumbrada esfor-
çou -se por introduzir em sua linguagem sua graça desenvolta, sua requintada poli-
dez, seus passes ora bruscos, ora lemos e suaves? PIa tão, mas também Luciano,
menos artista, portanto mas imitável; Luciano, de quem se conhece a descendên-
cia erasmiana ou rabelaisiana. A própria Reforma, em seus inicios, em sua propa-
ganda para os leigos, não se serviu copiosamente do diálogo liberal e emancipa-
I39
14°
dor, do diálogo caro ao pai de Gargântua e de Pantagruel? Pois as velhas formas de
pensamento, os velhos modos de raciocínio obstinam-se em não morrer. Refugia-
dos em suas cidadelas naturais, as escolas de teologia, todo rumorosas do vão
estardalhaço dos silogismos - os velhos procedimentos de argumentação conti-
nuam a impor-se aos espíritos dos estudantes em busca de graus e de diplomas. E
para responder aos que continuam a usá-los, para segui-Ios em seu próprio ter-
reno, para lutar contra eles com armas iguais - é preciso que os teólogos pelo
menos (mas os outros também) se iniciem na velha mecânica lógica e a utilizem e
dela tirem bom partido ... Destino e conflito trágicos. A cada instante, os mais
emancipados recaem na velha sujeição. A cada instante reaparecem, com todos os
seus excessos, todos os seus abusos milhares de vezes denunciados e repudiados,
os procedimentos ridículos e freqüentem ente odiosos dos "mateólogos" forma-
dos na escola de Thubal Holopherne. Quem não leva em conta esse drama inte-
lectual não compreende realmente os homens daquele tempo. E quando os
chama a depor - quantos erros!
Desconfiemos das palavras de antigamente. Geralmente têm dois valores,
um absoluto, o outro relativo. O primeiro é já, com freqüência, dificil de definir.
Quando se disse que o ateísmo é o fato de negar a divindade, não se disse muita
coisa de preciso. Mas, ainda por cima, o valor relativo da palavra mudou bastante.
Ela implicava no século XVI o mais violento escândalo que se pudesse denunciar.
Verno-lo de maneira bastante geral. Vemos menos quanto as próprias maneiras de
raciocinar se transformaram de geração em geração. Desconfiemos das palavras;
desconfiemos mais ainda dos argumentos e das acusações de outrora.
3. Conclusão
Testemunhos emaneiras de pensar
E agora, ao termo desta longa discussão crítica, tomamos por falsa a opinião
dos que, em Rabelais, e desde 1532, vêem um adversário militante e resoluto do
Cristo, um ateu ou, para evitar essa palavra ambígua e tingida de paixão, um pro-
pagandista dissimulado e fanático do deísmo racionalista, tal como oformulam os
libertinos do século XVII e os filósofos do século XVIII? Não adquirimos esse direito.
Nem tampouco o de dizer o contrário. Não podemos senão concluir: os testemu-
nhos de teólogos ou de controversistas, por nossos antecessores ou por nós reco-
lhidos, não permitem que ninguém diga, com certeza, sim - ou não.
Nenhum desses testemunhos é, na realidade, anterior a 1550. Daqueles que
têm peso, entendo. Nenhum se refere, portanto, ao Rabelais do Pantagrue! à exclu-
são dos Rabelais seguintes. A carta de Calvino a Daniel não tem o sentido que lhe
foi dado. Os textos de]. Visagier em 1538, nada prova que se refiram a Rabelais;
tudo parece provar que digam respeito a Dolet. A passagem alegada da Excuse aux
Nicodémites (1544), se se refere a Rabelais refere-se a muitos outros ao mesmo
tempo e, de resto, visa apenas a uma atitude geral: a do homem que simula aderir
à Palavra, mas zomba dela em segredo: atitude que o torna pouco temível, para
dizer a verdade; pois, afinal, os pobres "idiotas" não verão malícia nos escritos apa-
rentemente respeitadores da Palavra; e os outros, se farejarem o odor suspeito,
não são capazes de defender-se?
141
Postel, em 1543, faz do pantagruel um livro ímpio. Mas sua noção da impie-
dade estende-se a todos os reformados; em seu exército, Rabelais encontra-se em
companhia mais que cristã. Enfim, no Theotimus, Gabriel de Puy-Herbault, por
consenso, sacia rancores privados. Na realidade, o primeiro texto decisivo é o do
De scandalis. Ora, quando um homem lê, em 1550, o livro publicado em 1532 por
um autor que a seguir escreveu muito e viveu muito - é uma questão de saber se
o lê com olhos de 1532 ou de 155o?
Em contrapartida, nenhum dos testemunhos alegados emana de um espírito
livre, fornecendo como historiador um testemunho sem parcialidade. Postel, Cal-
vino, os Estienne, Castellion: todos controversistas, à parte algumas nuanças. Em
que se baseiam seus julgamentos? Em impressões pessoais, com freqüência (se não
sempre) interessadas. Fundamento suficiente para crentes; mas para historiado-
res? Sabemos ao menos se esses homens, que, todos eles, qualificam Paniagruei de
manifesto de ateísmo, o leram? Buisson observou que Castellion falava de Dolet
por ouvir dizer. Por que supor que tenha conhecido melhor Rabelais?
Quanto ao valor exato dessas palavras? Por certo, quem isola e recorta nesses
escritos o que se refere tão-só a Rabelais, tão-só a Dolet, tão-só a Des Périers - esse
pode lavrar um auto de acusação impressionante: "Todos esses testemunhos de
contemporâneos ... Vamos, o processo está julgado!". Isso é desvirtuaro jogo. Pois
o testemunho de Henri Estienne tem peso contra Rabelais? Vá lá. Mas contra Cas-
tellion ou contra PosteI? Este último nos diz que Rabelais é um ex-cenevangelista,
que passou integralmente à mais confessa impiedade: seja, mas ele reedita a
mesma história contra Simon de Neufville, que não se sabia ter favorecido a
Reforma - e a quem, aliás, ele outorga liberalmente (mais um!) a paternidade do
mítico Traité des trois imposteurs. Quando denuncia o ateísmo de Rabelais, acredi-
temos na palavra de Calvino. Admito; e eis a prova de que Rabelais, o malvado,
quis" abolir toda reverência a Deus" e minar toda religião pela base. Calvino o diz;
Calvino sabe, como ousar duvidar disso? Realmente; mas quando Calvino conclui
suas réplicas a Servet, acusando-o formalmente de ter apenas um objetivo: "des-
truir a religião de alto a baixo" (totam religionem everrere),' sua palavra bastará para
que acreditemos nele? Confiança impõe deveres. Quando Calvino tacha Agrippa
de ateísmo notório (o que põe ateus em 1530; e então, onde está a pretensa origi-
nalidade do pantagruel) notificaremos o universo: Agrippa era um ateu? Mas
quando o mesmo Calvino lança contra Castellion uma odiosa acusação de roubei"
Quando, antecipando-se a Henri Estienne, que novamente aqui não faz mais que
142
o repetir, trata o mesmo Castellion de bufão que faz brincadeiras com a religião
(tu, tu, omnia pietatis principia ridendo, suaviter te oblectas)? Pobre Castellion, pobre
cavaleiro da triste figura, tão austero, rígido e mortalmente triste que o filho de
Utenhovius, aluno interno dele, suplicava desesperadamente ao pai que o reti-
rasse da casa de mestre Castalio, um homem tão santo que não ria nunca!'
E por certo, em Calvino, havia animosidade pessoal contra Castellion. Ani-
mosidade, rancores, paixões existiam em todos esses homens erguidos uns contra
os outros, com injúria na boca - ou anátema, à espera de coisa melhor. A animo-
sidade não explica tudo, no entanto. Há outra coisa no fundo dessas querelas.
Que outra coisa? Um vício de pensamento? Longe de nós semelhantes
expressões. Os homens do século XVI sem dúvida as teriam, as usaram ao falar dos
"sofistas" que os haviam precedido, "no tempo dos chapéus altos". Éque eles não
sabiam o que alguns de nós sabem - sem que esse saber se tenha tornado para o
conjunto de nossos contemporâneos, mesmo cultivados (mesmo historiadores),
um verdadeiro alimento. Cada civilização com suas ferramentas mentais; mais
ainda, cada época de uma mesma civilização, cada progresso, seja das técnicas,
seja das ciências, que a caracteriza - com suas ferramentas renovadas, um pouco
mais desenvolvidas para certos empregos, um pouco menos para outros. Ferra-
mentas mentais que essa civilização, que essa época não está segura de poder
transmitir, integralmente, às civilizações, às épocas que lhe vão suceder; elas
poderão passar por mutilações, voltas atrás, deformações importantes. Ou, ao
contrário, por progressos, enriquecimentos, complicações novas. Elas valem
para a civilização que soube forjá-Ias; valem para a época que as utiliza; não va-
lem pela eternidade, nem para a humanidade: nem sequer pelo decurso restrito
de uma evolução interna de civilização ...
Tratando-se dos homens do século XVI, nem suas maneiras de raciocinar nem
suas exigências de prova são as nossas. Elas não são nem sequer as maneiras de
raciocinar, as exigências de prova de seus netos, os contemporâneos de Descartes,
de Pascal, de Huygens, de Newton. Não chegou o momento de tratar, em con-
junto, dessas grandes questões; do estudo a que acabamos de nos entregar parece
resultar, em todo caso, que os homens daquele tempo, em sua maneira de argu-
mentar, não pareciam experimentar nem a necessidade imperiosa de exatidão,
nem a preocupação com objetividade que existe em nós. Uma necessidade, uma
preocupação de que sem dúvida nos libertamos sob o efeito de paixões violentas
- mas desculpando-nos, ao menos, por uma libertação que a nós mesmos se mos-
I43
tra como uma falta. Que uma parte mais ampla seja dada, na especulação dos
homens daquele tempo, a contradições que já não têm lugar em nossos sistemas
lógicos de pensamento: eis, como vimos, o que parece resultar igualmente do
exame crítico dos testemunhos poéticos a que nos consagramos no capítulo ante-
rior. Também eles nos ensinam que o homem não é o homem - mas que os
homens variam, e bem mais do que imaginamos, e em intervalo muito mais curto.
Se se quiser, eles nos ensinam que no tempo de Rabelais -nem (naturalmente) a
grande revolução que levaria a subordinar a lógica e a matemática à experimenta-
ção estava à vista, mesmo de muito longe, nem sequer o grande desenvolvimento
das matemáticas estava começado - aquele de que Descartes tirará as conseqüên-
cias úteis. Como não levar em conta semelhantes condições se queremos utilizar
corretamente testemunhos humanos?
144
Livro segundo:
Escândalos e queixas
1.As infantilidades de Rabelais
Assim, recolhemos sobre Rabelais, sobre seus sentimentos tais como os
interpretavam seus contemporâneos, os testemunhos de todos aqueles - huma-
nistas, controversistas ou polemistas - que nos falaram dele, bem ou mal. Esses
testemunhos, nós os passamos pelo crivo de uma crítica tão cerrada quanto possí-
vel. No caminho, pudemos assinalar erros de interpretação ou de atribuição no
trabalho de nossos antecessores - alguns graves e de tal importância que, do sis-
tema por eles engendrado, na realidade não resta muita coisa de pé.
É chegado o momento de interrogar Rabelais, o próprio Rabelais: queremos
dizer sua obra, o pantagruel e, acessoriamente, o Gargântua. Tarefa simples, pode
parecer: quem quiser conhecer Rabelais, que se dirija a Rabelais. Tarefa delicada,
na realidade - conhecer um homem através de uma obra? O autor não pôs uma
máscara na cara? Os traços dessa máscara, grossos, acentuados, caricaturais -
reproduzem realmente o verdadeiro rosto do satírico? Até que ponto se pode legi-
timamente concluir da obra ao homem? A questão talvez não esteja muito bem
colocada, pois, no fim das contas, não foi o homem que jamais importou aos lei-
tores do Pantagruel; de 1532 a 1926: foi a obra ou, se se quiser, o que o homem pôs
dele nessa obra. Mas praticar essa dosagem, a tarefa é delicada.
A prova, Abel Lefranc no-Ia administra no texto que serviu de ponto de par-
tida a nossas reflexões sobre esses graves problemas. "Que encontramos nós", per-
147
gunta ele,! "desde o limiar da vida? Uma série de declarações bem pouco críveis
[.. .]" Falando do sucesso das Grandes Chroniques Gargantuines [Grandes crônicas
gargantuanas], o autor faz notar que os leitores dessas obras inestimáveis acredi-
taram nelas "como em textos da Bíblia e do Evangelho [...]". Avaliar-se-á sem difi-
culdade toda a audácia de um paralelo tão ofensivo para os livros santos, a despeito
de seu aparente ar de brincadeira. Mais adiante reaparece o mesmo termo de com-
paração, quando o sucesso das Chroniques nos é afirmado nesta linha famosa: "Pois
elas foram mais vendidas pelos impressores em dois meses do que as Bíblias serão
compradas em nove anos" .Alcofribas, segundo uma espécie de crescendo, refere-
se imediatamente, por um ataque direto, ao próprio testemunho de um dos Evan-
gelistas. Pretendendo atestar por um argumento burlesco sua informação e sua
veracidade pessoal, ele diz com tranqüilidade:
Falo como são João do Apocalipse: quod vidimus, testamur [o que vimos, testemunha-
mos]. Quem, em matéria de sátira religiosa, algum dia ultrapassou esse grau de ironia
contundente? Nenhuma dúvida é possível desde o principio; esse riso lucianesco oculta
aqui desígnios estranhos, que ninguém ousara conceber durante longos séculos.
Lemos, relemos essa passagem tão peremptória e tão cheia de paixão e nos
sentimos bastante perturbados: teríamos fechado os olhos à evidência? Retoma-
mos nosso Rabelais com alguma inquietação. Abrimos o Pantagruel. Rimos. Não
pensamos mais no crescendo de impiedade. E quando recolocamos o volume na
prateleira, estamos dispostosa jurar: nada de secreto, nada de temível nem de
sacrílego em tantas brejeirices sem veneno, patranhas ousadas, velhas brincadei-
ras clericais tranqüilas cujo inventor por certo não foi Rabelais, que apanhava seus
bens por toda parte, contentando-se em pôr, em todas as páginas, o toque de seu
gênio. - Com ou sem motivo?
I. ALGUNS GRACEJOS DE HOMENS DE IGREJA
Para resolver a questão, vamos examinar e pesar, um a um, todos os motivos
de escândalo enumerados por Abel Lefrancr Mas - além de o escândalo não afe-
tar o caso, pois outrora as Flores do Mal e mesmo Madame Bovary escandalizaram
fortemente o procurador imperial, o que não bastou para que batizássemos de
pomógrafos seus autores -, o trabalho já foi feito. Em 1910, Plattard estudou com
cuidado, na Revue âesÉtudes Rabelaisiennes, os textos da Escritura santa alegados
por Rabelais. E Étienne Gilson, historiador da filosofia medieval, forneceu por sua
lIeZ à tese defendida por J. Plattard, hostil a toda interpretação romântica das brin-
cadeiras rabelaisianas, um complemento de provas e de argumentos tirados de um
conhecimento notável da escolástíca.' Não poderíamos fazer nada melhor que
remeter o leitor a esses estudos concludentes.
Assim como L. Sainéan - que tomou no debate a mesma posição' -, Plat-
tard viu perfeitamente que as brincadeiras rabelaisianas, de tradição clerical, não
diferiam em nada das que animam aquela literatura dos Sermons joyeux [Sermões
alegres] para a qual Émile Picot há pouco chamou a atenção. 4 Aí se pode fazer vasta
colheita de palavras evangélicas mais ou menos grosseiramente parodiadas; e não
são palavras insignificantes. Tal sermão' toma por texto as próprias palavras da ins-
tituição da Eucaristia: Bebei e eomei ... Eis o que supera em ousadia o Consumatum
est, deve-se dizer de Panúrgio ou, para agradar a Rabelais, de santo Tomás de
Aquino' e o Sitio dos bebedores que choca Abel Lefranc.' Entendamos, dos bebe-
dores de 1542. Pois Plattard observa, precisamente, que a exclamação escandalosa
não figura nas primeiras versões do Pantagruel; Rabelais a introduziu tardiamente
naquela edição de François Juste ... que ele expurgou, ao que se diz, de todas as suas
audácias! Mas a audácia era tão forte assim? Não mais que a de Francisco I, apeli-
dando de Sitio o cardeal Louis de Bourbon, "porque, explica-nos o cura Claude
Haton, o dito senhor tinha vontade de beber seus bons vinhos, ainda que estivesse
saciado às mil maravilhas". E lançaremos o anátema a essa boa gente que, com
toda a inocência, cantava:' Eeee bonum. vinum, -venite potemus?
Quanto a Gilson, assinala a necessidade, para quem estuda a formação do
gênio rabelaisiano, de levar em conta precisamente os anos de convento do "cria-
dor da prosa francesa moderna". Ele não pode ter passado" menos de doze anos
de sua vida - isto é, os anos decisivos de sua juventude - como monge francis-
cano". Daí várias conclusões, uma delas a ser sublinhada desde já: "Como não se
fazia mais que ler os oficios, ou analisar a filosofia de Scot mesmo em um convento
de franciscanos; como ali se conversava de maneira livre ou mesmo alegre em cer-
tas horas, teremos de nos perguntar se nada passou da verve vigorosa e comu-
mente popular dos franciscanos da Idade Média para certos textos nos quais se pro-
curaram, mais tarde, intenções secretas que Rabelais talvez jamais houvesse posto
ali". De fato, Gilson não teve grande dificuldade em descobrir muitas páginas
I49
divertidas de franciscanos não suspeitos de heterodoxia e que soam a um bom riso
rabelaisiano - franco, mas com freqüência escabroso.
É realmente útil dizê-lo? Assim como Plattard, como Gilson, como Sainéan
e muitos outros - não sou capaz de me impressionar com as brincadeiras banais
e as malícias de Igreja que a alguns parecem tão cheias de intenções venenosas e
sub-reptícias. Arriscadas, decerto, se julgamos o risco por nós mesmos. Mas nossa
medida não é a do século XVI. Admitimos isso quando se trata da piedosa e mística
Margarida que fez o Heptaméron. Admitamo-lo quanto ao pai de Gargãraua.
Não me escandalizo, retrospectivamente, com a observação de Rabelais
sobre a baixa venda das Bíblias e a excelente venda das Chroniques Garganiuines.
Pois nada diz que mestre Alcofribas se congratule pela primeira, se se felicita pela
segunda? E eu me pergunto se seu sentimento não é o que o fará observar, alhu-
res, e deplorar,' que, em Paris, um saltimbanco qualquer reúna mais ouvintes na
rua que um bom pregador evangélico numa igreja?
O lamah hazabthani da dama de Paris me chocaria mais" se Masuccio de
Salerno ou Arnaud de Villeneuve não se houvessem servido dele antes de Rabe-
lais. A brincadeira de Gargântua pranteando sua Badebeca no capítulo III de Panta-
gruel: "Ela está bem; está pelo menos no Paraíso, se não estiver melhor?" - uma
dessas ingenuidades trocistas adoradas por nossos camponeses em seus relatos.
Sacrílega, aquela genealogia de Gargântua que, "por dom soberano dos céus nos
foi reservada mais inteira que qualquer outra; de Deus não falo, pois não me per-
tence; também os diabos, que são hipócritas, a isso se opõem [...["." É a imitação
da genealogia do Cristo no início do Evangelho segundo são Mateus? Duvido
disso menos ainda quando Rabelais faz o favor de nos prevenir disso, muito clara-
mente; ele tampouco hesita, no capítulo Ido Pantagruei, em nos informar de que
a genealogia de seu herói lembra as que nos foram transmitidas não apenas pelos
gregos, árabes e pagãos, mas também pelos "autores da Santa Escritura, como o
senhor são Lucas igualmente e são Mateus" .'2 Como se vê, mestre François não se
esconde muito e confessa bem claramente suas intenções paródicas. Mas a paró-
dia ultrapassava os limites, um tanto amplos, que a tradição fixava para os trocis-
tas de antanho? Essa é toda a questão. E se se opina pela afirmativa, por que não
censurar Rabelais por esta escandalosa irreverência: quando Gargântua (cap. XXIII)
vai "para os lugares secretos fazer excreção das digestões naturais", seu preceptor,
15°
que não pretende perder nenhuma "hora do dia", repete-lhe nesse refúgio discreto
"o que fora lido". Ora, o que foi lido é, em voz alta e clara, com a pronúncia devida
à matéria, "alguma página da divina Escritura". Profanação? Ou prática piedosa?
lI. THÉLEME SEM IGREJA?
Mas há Thélême, Thélême que não tem igreja abacial ... Pobre Thélêrne: ali
faltam muitas outras coisas necessárias à vida! Cozinhas, por exemplo, braseiros
aromatizantes e adegas frescas e profundas: o que não deixa de ser bastante sur-
preendente na abadia de frei Jean? Então, tampouco como cozinha, para escândalo
dos materialistas, Rabelais não prevê igreja em Thélême, para consternação dos
idealistas. Mas ali coloca, contígua a cada quarto, uma capela - e o que fazer numa
capela, a menos que ali se ore?
Thélême é o antimosteiro, não nos esqueçamos disso. FreiJean o declara
expressamente (I, LU): é instituída, voluntária e sistematicamente, "ao contrário de
todas as outras religiões": entenda-se, de todas as outras ordens existentes. Nas
outras abadias comanda um abade; em Thélêrne, não: "Como poderia governar
outrem, eu que a mím mesmo não saberia governar?" - Nas outras abadias há
muros, e nelas se murmura (ut): em Thélême, não: as pessoas entram, saem, vão
e vêm livremente. Nas abadias, se alguma recatada mulher penetrou, limpa-se o
lugar por ela maculado. Em Thélêrne, se um monge ou uma monja tem a idéia de
entrar, serão purificados os locais que eles terão profanado. Relembremos, se
necessário, o texto capital (LVII):
"Toda a sua vida era empregada não por leis, estatutos ou regras, mas
segundo sua vontade e livre-arbítrio; levantavam-se da cama quando bem que-
riam, bebiam, comiam, trabalhavam, dormiam quando tinham vontade ... Em sua
regra havia apenas esta cláusula: FAZE O QUE QUISERES [ .. .]" Nas abadias, enfim, vê-
se uma igreja, uma grande abacial; as pessoas para lá se dirigem com hora fixa, ao
som dos sinos implacáveis que recortam a vida em fragmentos. Em Thélêrne, não
há ofícios comuns, nem sinos,nem quadrantes, "a maior ilusão do mundo é gover-
nar-se pelo som de um sino, e não pelo ditado do bom senso e do entendimento
(LV)". Como os thelernitas freqüentariam a igreja com hora fixa, já que se levan-
tam, comem, dormem - acrescentemos "e oram", para ter o pensamento prová-
vel de Rabelais - quando seu desejo, concordando com sua razão, a isso os
impele? Mas orar numa capela privada e nunca ir à missa? Pois, acrescenta-se com
ar escandalizado, os thelemitas jamais ouvem a missa ... 13
Ah, quem lhes diz que os thelemitas não vão à missa? Primeiro, podem assis-
tir a ela na paróquia. Assim como o rei no primeiro castelo de Versalhes, que não
tinha capela. Ou então mandar dizê-Ia em suas capelas. E, enfim, antes de tomar
esse tom escandalizado, reflitamos. Não apenas sobre Rabelais não poder "dizer
tudo" e transformar uma sátira em tediosa tarefa dogmática; mas também, a
missa? Não façamos como se ignorássemos (e não podemos, não devemos igno-
rar) que ela não era, no tempo de Rabelais, aquela missa vilipendiada pelos "heré-
ticos da fé", o que veio a ser para os católicos do tempo de Bérulle e posteriores: o
ato religioso por excelência, a síntese de todo o culto católico - um sacramento,
sem dúvida, mas mais ainda um sacrificio, o sacrificio, parte essencial do culto
público. O grande trabalho efetuado pelo século XVII sobre a missa, seu esforço
para associar cada vez mais, cada vez melhor o fiel aos passos e às palavras do padre
- não estava começado esse trabalho que se ínsere no imenso esforço dos católicos
empenhados, a partir do fim do século XVI, em repensar sua religião em conjunto,
vigorosamente e contra a religião dos reformados. - E talvez os contemporâneos
de mestre Alcofribas, que viam os grandes senhores, em seus testamentos, enco-
mendarmissas às centenas, tivessem algumas razões, que nossos contemporâneos
já não têm, para achar embrutecedoras as longas sessões na igreja, caras aos cole-
cionadores de missas a dormitar durante o oficio. Assim pensava, como eles todos,
Erasmo: não alinhemos citações supérfluas, pensemos apenas em seu trejeito de
desdém quando Gilbert Cousin, seu secretário, o deixa para assumir um canoni-
cato em Nozeroy: 14 cantabit missam! Aliás, os thelemitas honram os domingos e
festas vestindo "traje francês, porque é mais distinto e melhor evoca a pudicícia
matronal". Domíngos e festas? Que festas? As leigas não estavam inventadas em
1532, e é preciso de fato que sejam festas religiosas. Não pressionemos dura-
mente relatos cheios de fantasia e de espírito espontâneo. Não são engrimanços
de teólogos.
Aliás, em 1912, em sua Introduction au Gargantua, Abel Lefranc explicava a
ausência de uma igreja em Thélêrne pelas simpatias "pouco dissimuladas" de
Rabelais pelos inovadores. É mesmo por esse sinal, e por alguns outros, que ele
reconhecia então em Rabelais um crente "procurando demonstrar pela Reforma
uma simpatia atenta e sincera". Talvez o critério não seja perfeito: a "Reforma", ali
onde triunfava em 1532, não reclamava absolutamente a supressão dos grandes
152
edificios cultuais e a substituição do culto público pelo culto privado. Reformados,
os thelemitas se teriam dirigido à sua igreja abacial transformada em templo (se
tivessem tido uma) e ali teriam assistido ao serviço. Dito isso, em 1912 A. Lefranc
formulava esta observação que nos parece inteiramente conforme à realidade: "A
palavra santa, isto é, o Evangelho, tal é o elemento essencial, o fator único da vida
espiritual dos thelemitas", De 1912 a 1923 os textos que ditavam essa frase plena de
sentido desapareceram? Não há igreja em Thélêrne? Não. Mas tampouco há tem-
plo. Consolemo-nos: os thelemitas sem dúvida poderão encontrar um, ou a outra,
na cidade vizinha? - De resto, nem templo nem igreja, portanto é o ateísmo? Mas
o Evangelho, então, e as capelas? - Ora, capelas de precaução ... - É verdade.
Thélêrne precisa de pára-raios. Mas nove mil trezentos e trinta e dois pára-raios em
1532,15 não é um pouco demais?
111. A NATIVIDADE DE GARGÂNTUA
Que mais? Sejamos pesados, mas não deixemos passar nada. Talvez uma
súbita iluminação? A estranha natividade de Gargântua, 16 que vem ao mundo pela
veia cava e a orelha sinistra? Curioso parto, decerto. E Rabelais não acompanha sua
descrição sensacional por uma conversa fiada de sua lavra? "Um homem de bom
senso sempre crê no que lhe dizem e que encontra por escrito (Innocens credit omni
verbo Charitas omnia credit). Os sorbonistas dizem que a Fé é argumento das coisas
de nenhuma aparência [...) A Deus, nada é impossível e, se ele quisesse, de agora
em diante as mulheres teriam seus filhos pela orelha [...r.
"Sem dúvida", escreve Lefranc, "esse desenvolvimento aplica-se ao dogma
cristão do nascimento do Cristo." Nascimento? Mas o Cristo não nasceu pela veia
cava e a orelha sinistra! Formado no seio de uma Virgem por obra do Espírito
Santo, ele vem ao mundo, segundo os antigos pais, Ireneu, Orígenes, Tertuliano,
Atanásio, Epifânio, ]erônimo, ao fim dos nove meses normais de gestação e da
maneira mais fisiologicamente normal. 17 Inúmeros textos, de uma crueza à
antiga, mostram-no nascendo no sangue e nas sujidades. Até que, por santo
Ambrósio, depois por santo Agostinho, difunde-se, a partir do fim do século IV, a
doutrina do parto virginal. O Cristo é aquele que entra no mundo pela porta
fechada, sem romper o fecho ... Assim se elabora a doutrina das Virgindades suces-
sivas de Maria. Virgem, casada com um homem cuja eminente virgindade a Igreja
153
um dia proclamará e que teve por missão preservar a de Maria ao desposá-Ia _ I"
ela concebeu permanecendo virgem; deu à luz permanecendo virgem; mas não
pôs no mundo pela orelha o filho que Lucas nos mostra em estado de embrião em
seu seio, 19 e que tantos painéis de Virgens, nos santuários, representavam assim aos
olhos dos fiéis. Vejo mal, portanto, em que a estranha aventura de Gargântua, pas-
sando da veia cava à orelha sinistra de sua mãe, podia evocar a idéia de um parto da
Virgem, parto que a arte em todas as igrejas de todos os países representava havia
séculos sob as aparências de um parto normal, com a ajuda de muitas parteiras e
de comadres experientes ...20
Ah, se fosse Rabelais que tivesse composto um dos folhetos do Ciclo das
Crônicas Gargantuanas, aquele Vray Gargantua notablement omelyé [Verdadeiro
Gargântua notavelmente homiliado] assinalado por P. P. Planl" Ali se lê no iní-
cio a horrífica história do necromante Merlin, "gerado sem pai humano, pois
sua mãe era monja e concebeu de um espírito fantástico que, à noite, a veio ilu-
dir". A que estranhas suspeitas esse relato singular não poderia levar, por sua
vez, um espírito engenhoso? Concluiremos nós, contudo, que seu autor anô-
nimo executava o desígnio sub-reptício e deliberado de ridicularizar a concep-
ção do Cristo, "também ele gerado sem pai humano" por uma Virgem que um
espírito, que um sopro veio fecundar? Repitamos mais uma vez aqui: nem as
brincadeiras nem os costumes do século XVI eram os nossos. E se fosse preciso
queimar todos os que fizeram à virgindade de Maria alusões atrevidas," os car-
rascos retrospectivos de hoje teriam muito trabalho. Ainda em 1565, em plena
Itália da Contra-Reforma, um católico convicto, o sobrinho de Guicciardini,
Ludovico, o autor da Descrittione delli tutti i Paesi Bassi [Descrição de todos os
Países Baixos], publicava em Veneza um livrinho de historietas obscenas, Hore
di Recreazione [Horas de recreação], que foi muito lido e traduzido em diversas
línguas. Ora, Guicciardini não explica" que é preciso beber antes, durante e
depois das refeições, porque a mãe de Deus foi virgem antes, durante e depois
do nascimento do Senhor? É anódino: de acordo; mas é curioso observar que a
corrente, embora já depurada e retificada, ainda persistia: a corrente das boas e
velhas brincadeiras clericais sobre as coisas da religião, mesmo as mais delica-
das-sobretudo as mais delicadas. Essa corrente, em 1532, estava em toda a sua
força selvagem.
154
IV. CHARITAS OMNIA CREDIT
Mas o próprio Rabelaisassinou sua condenação ... Em 1542, publicando pelo
impressor Juste uma edição revista de suas obras, ele suprimiu suas brincadeiras
escabrosas sobre a fé, "argumento das coisas de nenhuma aparência"? - A obje-
ção seria mais apreciável se Rabelais não houvesse atribuído essa definição da fé,
que é de são Paulo," aos sorbonistas. Ora, parece que os expurgas de 1542 tenham
tido como objetivo sobretudo abrandar, ou suprimir, os ataques diretos contra a
Sorbonne? Quanto haveria a dizer, aliás, sobre esses expurgas! Muitas vezes com-
preendemos-lhes mala interesse. Se Rabelais suprime em 1542 um paralelo entre
Panúrgio e o Cristo, ambos pendurados no ar," introduz em seu texto, na mesma
data, aquele Sitio paródico no qual Plattard (desta vez usando as lentes do século
xx) cometeu o erro de denunciar" a pior das audácias rabelaisianas! Digamos, a
mais gasta das brincadeiras clericais. - "Enfim, Cnatitas omnia credit (A Fé é argu-
mento das coisas de nenhuma aparência). E aquele surpreendente: <Deus pode
tudo o que quer': essas não são palavras de crente humildemente submisso à
Igreja? E se não sentis a ironia!" Desconfio dos que a sentem demais. E a ironia é
filha do tempo. Deus pode tudo o que quer? A fórmula me lembra uma outra. Está
em latim de Erasmo: "Deus sic potens est, ut quidquid velit, nutu valeat efficere" [Deus
é tão poderoso que, tudo que quiser, pode realizar com um aceno].
Assim fala o Barbatius do Colóquio Inquisitio defide [Inquisição sobre a fé].27
Ora, Erasmo teve o cuidado de nos dizer quem era Barbatius: nada menos que
Martinho Lutero - discutindo o mais seriamente possível idéias que não têm
nada de irônico. O tema é em ampla medida o de John Colet no Colóquio Pietas
Puerilis [Piedade infantil]: "Creio em tudo o que está contido nas Escrituras e no
Símbolo. Não perscruto além". Eu não me pergunto com inquietação, declara
Lutero- Barbatius, como é possível que nosso corpo individual, depois de se ter
misturado aos elementos, ressuscita tal como era quando vivíamos ... Confio no
Espírito supremo: "Deus pode tudo o que quer". - E, se ele quisesse, as mulheres
teriam os filhos pela orelha ...
Além disso, quem fala de crente humildemente subrnísso a uma Igreja, em
1532? Noel Beda, sem dúvida, e os mais diligentes dos nossos mestres da Sorbonne.
Afora eles? Não projetemos naqueles tempos distantes o tipo convencional do cató-
lico que serve para realçar, em tantos trabalhos polêmicos, o tipo convencional do
155
"protestante". A Caridade crê em tudo. Com reservas ou, mais exatamente, por um
ato de vontade. O bom senso, menos acolhedor, escolhe. Tem razão de escolher.
Entre não crer em tudo e não crer em nada há diferença. Rabelais, que escarnece da
credulidade dos "pobres idiotas", como se dizia em seu tempo, não nos diz quais
são, a seu ver, os limites da credulidade. Temos o direito de concluir daí que eles se
confundem com os de um anticristianismo radical e de um racionalismo integral?
A Caridade crê em tudo. Isso lhe fica muito bem. Mas não chegamos mais a pensar
que "as pessoas da Idade Média" tenham sido todas, sempre, tão caridosas que
tenham acreditado integralmente em tudo? Pobres "pessoas da Idade Média", que
triste figura fizemos delas durante gerações! Felizmente para elas, não têm existên-
cia! - E não chegamos mais a pensar, tampouco, que a Igreja determina a seus fiéis,
imparcialmente, que creiam integralmente em tudo, ou que reivindicar o uso do
bom senso e da razão seja dela excluir-se imediatamente, de maneira irremediável.
Rabelais não crê em tudo. Como também não acreditavam em tudo os milhares de
fiéis seus contemporâneos que se erguiam todo dia contra os "abusos". Isso signi-
fica dizer que esses homens eram inimigos da religião e do fanatismo? Sua fé, por
ser com freqüência viva, não era necessariamente cega. "Como eu acreditaria",
escreve Farel em 1528, "naquilo que não compreendor?" Cada um deles fazia sua
lista pessoal das "coisas sem nenhuma aparência"; mais ou menos longa, mais ou
menos recheada segundo os homens e os espíritos. Quem nos permite dizer que,
em sua própria lista, Rabelais lançava integralmente todo o conteúdo da fé cristã?
v. AS OUSADIAS DE ORÍGENES
Tenho um pouco de medo, é preciso dizê-lo, de que Abel Lefranc se tenha dei-
xado enganar por uma noção muito sumária do que era um cristão e, pura e sim-
plesmente, do ponto de vista da credulidade, um francês dos anos 1530. Ele dá
grande importância, por exemplo, às brincadeiras de Rabelais sobre o gigante
Hurtalye a arca de N oé." Prodigiosas ousadias, ele tem o ar de dizer-nos; audácias
inauditas para a época ... Mas não. Rabelais e todos os seus contemporâneos que o
desejassem podiam ler todos os dias, se isso lhes desse prazer, e ler em um magní-
fico infolío desprovido de qualquer clandestinidade, textos como este, em que os
relatos do Gênese eram antes desancados:
Qual é o homem de senso que jamais acreditará que, no primeiro, no segundo e no
terceiro dias, a noite e a manhã puderam acontecer sem sol, sem lua e sem estrelas, e
que o dia que é chamado o primeiro tenha podido produzir-se quando o céu ainda
não existia? Quem seria bastante estúpido para imaginar que Deus plantou, à
maneira de um agricultor, um jardim do Éden, em certo país do Oriente, e que colo-
cou ali uma árvore da vida bem visível, tal que aquele que dela provasse com os den-
tes do corpo receberia a vida?
[...] Para que dizer mais quando cada um, se não for desprovido de senso, pode
facilmente assinalar uma multidão de coisas semelhantes que a Escritura conta como
se tivessem realmente acontecido e que, a tomá-Ias textualmente, não tiveram muita
realidader"
Quem é esse racionalista, esse paduano desavergonhado, que se entrega em
seguida a mil brincadeiras sobre a história do dilúvio, sobre a arca contendo, no
espaço de alguns côvados, todos os animais da criação; sobre Sodoma e Gomarra,
sobre Loth e suas filhas - tudo isso com uma liberdade, uma audácia, um cinismo
não superados por Voltaire? Como as zombarias de Rabelais sobre Hurtaly pare-
cem pálidas ao lado desses ataques diretos!
Esses ataques são de Orígenes, simplesmente; de Orígenes, tantas vezes
impresso e reimpresso no tempo da Renascença; de Origenes, que um teólogo de
Paris,Jacques Merlin, traduzira em latim e publicara desde 1512, pelos impresso-
res ]ean Petit e ]osse Bade, em Paris, cumgratia et privilegio regis (com graça e privi-
légio reais), em quatro grandes tomos injolio, com uma eloqüente Apologia do
grande heterodoxo no início do terceiro;" em 1532, o próprio ano do Pantagruel,
essa Apologia reaparecia, sempre no início do tomo I1I, na reedição de toda a tra-
dução que era vendida por]ean Petit,]osse Bade e Conrad Resch; e em 1536, em
Lyon,]acques Giunta reimprimia por sua vez a tradução de Merlin com fragmen-
tos da tradução de Erasmo." Sem falar das outras edições, da Itália, da França, da
Suíça ou da Alemanha? Mas por que falar de Origenes?
A passagem que acabamos de citar, alguém a traduzira literalmente em latim
e sem demora a imprimira em um dos livros mais difundidos daquele tempo.
Abra-se o adágio Sileni Alcibiadis [do sileno Alcibíades] de Erasmo; não se terá
nenhuma dificuldade em encontrar aí, posto em bom latim, esse texto claramente
irreverente. E, sem dúvida, ele vem em apoio de uma clássica distinção entre o
Espírito e a Carne, para justificar o recurso ao método alegórico de interpretação
157
das Escrituras. Mas, como observava]. Denis em sua Philosophie d'Origene (p. 33),
"a exegese alegórica é uma das formas da liberdade de pensar diante de um texto
que se continua a reverenciar e a considerar como depositário da verdade!". Ora,
de todos os que a praticaram, ninguém fez uso dela com mais ousadia que o autor
do Traité des Principes [Tratado dos princípios]. De modo que ele chega com fre-
qüência a estar de acordo com Celso e a justificar de antemão as objeções que os
filósofos do século xvm1evantarão contra a Bíblia. Ora, é de Orígenes que Erasmo,
no De Ratione Studii [Sobre o métodode estudo], escrito em Londres em março de
1506 e posto à venda em Paris em outubro de 1511, não hesitava em escrever: "Em
matéria de teologia, depois das Santas Escrituras, nada melhor do que ler Oríge-
nes" (ex theologia, secundum divinas litteras, nemo melius Origene). Quando conhece-
mos esses textos, hesitamos em considerar Rabelais audacioso. Ficamos bem
perto de julgá-lo tímido.
Bem sei: questão de opinião. Será sempre impossível "demonstrar" que
Rabelais, contando (depois de tantos outros, pois ele não inventa) a escabrosa his-
tória do franciscano que, dizendo sua missa, mostrou aos fiéis uma face insólita,"
não nutria em seu foro íntimo os mais sombrios desígnios contra a religião: os de
um cão, como dizia elegantemente Calvino, que se faz de engraçado para melhor
destruir todo temor a Deus. Mesmo assim? O tempo andou rápido de 1530 a 1550.
Quando foram publicados Gargântua e Pantagruet, entre 1532 e 1535, quem se
escandalizava com brincadeiras logo consideradas impróprias e suspeitas sob a
própria ação dos reformados? Não foi Rabelais quem pôs em seus livros uma malí-
cia que os corifeus da Reforma denunciam ruidosamente por volta de 1545; são os
homens que, por volta de 1545, começam a ver malícia ali onde ninguém via,
pouco antes, mais que brincadeira sem animosidade.
Evolução muito natural das idéias - e dos costumes. Em 1540, no dia 25 de
julho, Charles Hémard de Denonville, bispo de Mâcon (que em 1534 Rabelais
conhecera em Roma, embaixador do rei), morre em Mans, aonde fora comJean
Ou Bellay Enterram-no decentemente. E, em 30 de agosto, para impedir não que
os cães profanem sua tumba: essa preocupação ainda não nasceu, e ninguém se
escandaliza se porventura verdadeiras matilhas percorrem as naves como um
furacão - mas sim, preocupação de economia, para que eles não estraguem as
vestes mortuárias, manda-se fazer, em torno da cova do bispo, na igreja, uma
balaustrada protetora." Alguns anos ainda e os cães, se entram na igreja, causa-
rão escândalo; mas os narradores que, por volta de 1540, mencionaram os costu-
mes complacentes de seu tempo, parecerão, por tabela, brincalhões cínicos - é
o caso de dizer - com suas histórias do tempo em que os gentis-homens, de
gavião em punho,
Entravam como loucos desajeitados
nas igrejas onde, constata o tradutor da Nef des Folz [Nave dos loucos],
Suas aves com sininhos
E seus cãesfazem terrível ruído.
Uma última citação, entre tantas outras que poderiam ser alegadas: ela ter-
minará de nos ambientar à época. Des Périers, em suas Nouvelles récréations [Novas
recreações]," comemora as facécias de Triboulet, bufão notável do rei Francisco.
Uma entre outras. O rei se dirige uma noite à Sainte-Chapelle para ouvir as véspe-
ras. O bispo começa Deus in adjutorium e, na calma da alta nave, eleva-se imediata-
mente o som das vozes; os chantres respondem, o oficio começa. Triboulet, sensí-
vel ao ruído e furioso por ver perturbar o nobre silêncio da chegada, lança-se sobre
o bispo que oficia e o esmurra. Imaginemos o que se passaria hoje, em uma de nos-
sas igrejas, um belo domingo, se semelhante escândalo ... E reportemo-nos ao
texto de Des Périers. Ali vemos o rei que, imperturbável, manda chamar Tribou-
let e "lhe pergunta por que espancava aquele homem de bem?". O que responde o
bufão, ainda na igreja e no meio do oficio, não tem importância. O que importa é
a atitude dos personagens. O clima.
N em a história de Triboulet nem a anedota das vestes mortuárias têm algo de
excepcional. Demonstram simplesmente, como tantas outras, uma atitude que
não compreendemos mais - porque uma grande revolução começou, por volta
de 1560, no comportamento de nossos antepassados em relação às coisas e aos
lugares do culto. No tempo de Pantagruel, a antiga liberdade ainda estava viva.
Não estavam tão distantes os tempos em que um capítulo metropolitano conside-
rável (o de Besançon) punia com multa os seus membros que se recusavam a par-
ticipar da cavalgada da Festa dos Loucos. Épreciso um último texto? Em uma carta
a um monge de Steyn, Religioso PatriNicolao Wernero, Erasmo, em 1497, nos conta
I59
tranqüilamente uma história inesperada." Chove há três meses, continuamente.
O Sena transbordado devasta tudo. Desce-se o relicário de santa Genoveva e
decide-se levá-lo solenemente a Notre-Dame, o bispo à frente com a universidade,
o abade atrás, descalço, com seus religiosos. E o próprio relicário é carregado por
quatro homens inteiramente nus (quatuor, toto corpore nuâi, arcam gestabant). -
Teria sido resultado desse traje de cerimônia? Nunc, conclui devotamente o jovem
Erasmo, nunc, nihil est coelosereniusl
VI. RABELAIS E OS PREGADORES
Mas para que essas anedotas? Abramos simplesmente e releiamos os sermões
dessas testemunhas de marca, os "livres pregadores" da época, Menor, Maillard,
rudes e atrevidos detratores dos vícios daquele tempo. Não nos esqueçamos de
que, em seu convento, frei François pôde lê-los à vontade; não nos esqueçamos de
que, durante sua juventude, ele escutou as prédicas de seus êmulos e nelas pôde
perceber o eco das vozes inspiradas e trocistas daqueles famosos cavaleiros andan-
tes; não nos esqueçamos de que, ele próprio padre e franciscano, Rabelais - quem
sabe? - talvez também tenha pregado - e, se pregou, ele, cuja prosa é uma prosa
de orador, falada, ritmada, e que parece sempre feita para a leitura em voz alta -
pregou sem nenhuma dúvida no estilo de sua ordem, com a jovialidade de um
frandscano sábio e trivial... Releiamos Menot, e Maillard - aí encontraremos a
fonte de muitas brincadeiras, de muitas facédas rabelaisianas; escândalo de nossos
pudores tardios, elas não são de Rabelais, mas de sua batina.
Trata-se de vocabulário, de expressões proverbiais inseridas em um texto?
Que prodigiosa colheita de fórmulas rabelaisianas naqueles que o velho Méray
chama livres pregadores!" "Estar vestido como apanhador de maçãs" (rnalves-
tido), Menot emprega a expressão antes de Rabelais. Estar vestido como incendiá-
rio de casa (vagabundo), Menot conhece primeiro a fórmula. Bem antes que apa-
reça no Pantagruel (XXIV) e no livro IV (XXXVII) o valente capitão Riflandouille,
Menot apostrofa as gordas Riflandouilles (Neve, 96). Panúrgio escarnece do
"Senhor Rei de Três Comilanças" (Pantagruel, XXXI), Menot se ri do abade de Três
Comilanças. "Quando Oportetvem à praça, não há nada que não se faça": é Menot.
"Quando Oportet vem à praça, convém que assim se faça": é do livro III (XLI). Ao:
"Cum venit mors [Quando chega a morte], a farsa foi representada, o jogo está ter-
r60
minado", de Menot, faz eco a expressão atribuída a Rabelais: "Cerrei a cortina, a
farsa foi representada". Da mesma maneira, ao canto dos condenados de Menot
com suas seis notas lastimosas - scilicet, dó, ré, mi, fá, sol, lá - corresponde o
canto de Anarche tornado vendedor de tempero verde e cantando, por ordem de
Panúrgio, em sol, ré, dó (n, XXXI). Mesmo o procedimento rabelaisiano das enume-
rações, essa abracadabrante precisão da cifra: isso é Maillard. Pois Maillard sabe o
número das gotas do divino sangue que caíram na terra: 47 mil, precisamente.
Maillard sabe o número das chagas que cobriram o corpo do Homem-Deus: 5475,
com um erro de uma. Maillard sabe que, na via-sacra, o Senhor deu 1300 passos e
que ao Calvário subiram 190 mil pessoas." Quanto às brincadeiras satíricas ...
Eis que desfilam, em Menot, os abades comendatários (commendatarii et
potius comedatarii, quia omnia comedunt) (Neve, p. 344); eis os asnos mitrados (p.
343); eis as ruas de inferno pavimentadas de coroas de padres (p. 354); eis os falsos
devotos caros a Pantagruel, cajjardi, e os mendicantes portadores de relíquias e
indulgências (isti latores rogationum). Panúrgio zomba dos perdões? Ele jamais
disse tanto deles quanto Menot (Neve, p. 258), ardente na perseguição dos hipócri-
tas que enganam o pOVo'9ou dos espertalhões que, tendo perdido suas relíquias
. nas tabernas, as substituem por um toco de lenha apanhado na estufa e procla-
mam: Vejam, vejam, um pedaço de lenha da fogueirade são Lourenço! - Panúr-
gio jamais disse tanto quanto Gilles Pépin estigmatizando os que vendem o
Paraíso a preço combinado e vão gritando:"'" "Ofereço uma mercadoria preciosa!"
"Qual?" "O reino dos Céus!" "Quanto?" ou quanto o mesmo Pépin denunciando
os rufiões que puxam sobre cavalos ou carroças as sacrossantas relíquias dos san-
tos para enganar os simples com suas trapaças. Estilo de pregador, mais uma vez,
e de homem de Igreja. O amigo de Rabelais, frei Antoine du Saix, um daqueles
"coletores de presuntos" da ordem de santo Antônio que Rabelais nos mostra (I,
XVII) "fazendo sua coleta porcina", não está para meias medidas, tampouco, em
seu Esperon de Discipline [Espora de disciplina] (1532) quando se trata de denegrir
os monges, "esses cruzados hipócritas, esses almocreves de relíquias e indulgên-
cias e outros comuns semeadores de mentiras que, para jogar o laço de apanhar
imbecis, adotam em sua depredação (digo: pregação) temas estranhos, despropo-
sitados e inconvenientes" - ou ainda: "Senhores grosseiros pilhantes - digo, pila-
res, e prelados eclesiásticos", rivais em avareza de "Mestre Simon, o Mágico, cor-
retor de beneficios, negociante de prelaturas e arrombador de dignidades, que
com eles jurou pela burguesia" (Neve, p. 229). - Em que Pantagrud, em que Gar-
161
gântua se distinguem, por seu tom e seu espírito, desses textos eclesiásticos? Sim-
plesmente por serem escritos por um grande escritor.
Assim, as piadas "sacrílegas" de Rabelais, sentimo-nos de bom grado inclina-
dos a achá-las sem veneno. E mesmo de muito bom gosto, quando pensamos na
apóstrofe de Martinho Lutero (esse anticristão ...), interpelando Karlstadt em seu
Panfleto contra os profetas celestes: "Pensas, aparentemente, que o bêbado Cristo,
tendo bebido demais na ceia, atordoa seus discípulos com palavras inúteis!".
Quanto ao resto, por pouco que se tenha freqüentado familiarmente algumas reu-
niões de eclesiásticos, perfeitamente respeitáveis em sua vida e dignos de suas fun-
ções- por pouco que se tenha assistido a alguns "jantares de cura" na velha França
- percebe-se bem depressa que o espírito do monge Rabelais, do cura Rabelais, é
em grande parte um espírito profissional: um espírito de um homem católico, que
não toma o riso por um pecado e que, falando das coisas do culto livre e familiar-
mente, ignora certos pudores circunspectos, certas atitudes timoratas que são
próprias do reformado - ou do descrente.
Digamo-lo bem depressa: no que Abel Lefranc destaca na acusação de um
Rabelais secretamente anticristão, nem tudo incide nesta argumentação. Dois dos
textos assinalados como tendenciosos merecem que os examinemos de perto. Um,
a carta solene de Gargântua a Pantagruel, levanta, no capítulo VIII do livro 11, a ques-
tão, tão controversa por volta de 1530, da alma e da imortalidade. O outro, o relato
da ressurreição de Epistemon por Panúrgio, põe a questão do Milagre. Vejamos
tanto o que diz Rabelais quanto o que, de seus ditos, conclui Abel Lefranc.
162
2. A carta de Gargântua e a
imortalidade da alma
Sabe-se o que é a carta de Gargântua a Pantagruel- esse magnífico mani-
festo de uma Renascença inebriando-se com os esplendores que produz. Não há
texto mais justamente célebre em toda a obra rabelaisiana.
Seu início é preenchido porum grande desenvolvimento filosófico e moral, um
pouco longo, se se considera a epístola gargantuana em seu conjunto, mas soberbo
em efeito e expressão. Só Deus sabe o que os críticos, sem dúvida ofuscados pelo bri-
lho da prosa rabelaisiana, viram e puseram de coisas discordantes nesse documento!
Thuasne, em um artigo intitulado La lettre de Garganiua àPantagruel [A carta de Car-
gântua a Pantagruel], 1 nos ensina que "essa primeira parte, de um caráter essencial-
mente religioso e filosófico, relaciona-se, de um lado, ao dogma cristão e também à
doutrina protestante da justificação pela fé; do outro, às teorias platônicas da trans-
mutação a que Platão alude em vários de seus escritos". O dogma cristão; ajustifica-
ção pela fé; as teorias platônicas da transmutação; que mais? Nesse texto ilustre, pro-
curemos, pura e simplesmente, o que ali se encontra.
1. o SENTIDO DE UM TEXTO CÉLEBRE
Para isso, comecemos por traduzi-lo. Ele está em francês, sem dúvida, em
magnífico francês; ponhamo-lo em bem menos bela linguagem, mas mais irnedia-
tamente acessível a nossos espíritos. Excelente exercício, entre parênteses: jamais
se deveria deixar de recorrer a ele quando se trata de interpretar um documento já
antigo e de entendimento difícil. 2
Gargântua, tendo enviado seu querido filho Pantagruel às escolas, exorta-o
a "aproveitar bem". Parainflamá-lo de zelo estudioso, para tornar seu espírito infa-
tigável e penetrante entre os livros como um fogo entre galhos - ele faz apelo aos
sentimentos mais profundos de um coração generoso: aos sentimentos de amor e
de reconhecimento que deve inspirar nesse filho bem-nascido um pai excelente.
Uma vez que Gargântua sofre a sorte comum dos homens: uma vez que, filho de
Adão, miseravelmente perdeu por culpa de seu primeiro pai aquele privilégio de
imortalidade que Deus, ao criá-lo, entendera conceder ao homem, ele deve mor-
rer; a morte é o castigo da culpa de Adão e de Bva.' Duro castigo, por certo. Que
Pantagruel, em toda a medida possível, abrande a amargura de seu pai. E, uma vez
que o Criador em sua bondade outorgou às criaturas decaídas que privava da vida
o gozo dessa espécie de imortalidade bem relativa, mas ainda assim invejável, que
assegura aos pais a procriação de filhos à sua semelhança: que, à hora em que sua
alma deixar seu habitáculo humano, Pantagruel não se limite a dar a seu pai a ilu-
são de uma sobrevivência corporal e fisica; que se esforce, além disso, em fazer de
sua consciência o reflexo, a "resplandecência" da alma paterna: assim Gargântua
sentirá acalmar-se o horror natural da morte; assim poderá acalentar-se desse pen-
samento consolador de que um segundo ele próprio o perpetua na terra ...
Tal é a intenção de um Criador severamente justo, mas bom. Foi para abran-
dar os rigores desse castigo, a Morte, que ele quis esse jogo das gerações que pro-
longa, através dos séculos, a vida dos avós na dos netos. Jogo que terá fim no dia
do Juízo. Então, será a purificação do mundo por um fogo devorador dos corpos
corruptíveis e dos germes do pecado. Então a morte, conseqüência e castigo do
pecado, cessará. Então, a reprodução, conseqüência e paliativo da morte, terá fim. 4
Não mais transmutações dos elementos uns nos outros: elas tinham por objeto
apenas esse encadeamento das gerações e das corrupções de que Ronsard, depois
de Rabelais - e precisamente em seu epitáfio de Rabelais -,' nos relembra a
íntima necessidade:
Se de um morto que apodrecido repousa
A natureza gera alguma cousa
E se a geração
Sefaz da corrupção:
Uma vinha será herança
Do estômago e da pança
Do bom Rabelais, que bebeu
Sempre enquanto viveu [...]
A guerra dos elementos terá fim. E a paz reinará, consumada e perfeita, no
Universo que Jesus, o Redentor, entregará a Deus, o Pai. - Tais são as idéias claras
que, em linguagem magnífica, são expressas pela primeira parte da carta a Panta-
gruel. De onde provêm elas e qual é o espírito que anima essas páginas?
Essas gerações nascendo de corrupções, essas transmutações de elementos
em elementos, esse ciclo enorme de causas e de efeitos: o que há de surpreendente
se, ao terminar de ler essa passagem misteriosa e sedutora do Pantagruei, centenas
de leitores e de comentaristas pronunciaram a mesma palavra? Grande espírito
iluminando a noite dos destinos, Rabelais, aqui, traduz em magnífica linguagem
"uma concepção geral da filosofia científica". 6
Pois bem, não, e a demonstração já não está por fazer: Gilson mostrou bem
que, nessa ampla página, não se devem procurar as idéias originais de um grande
médico, investigador e apaixonado adorador da Natureza - de um homem que
imaginou, ao longo de suas meditações solitárias e de suas experiências, uma filo-
sofia natural de nobre ambição. A passagemmais prestigiosa desse texto difícil
ilustra simplesmente com suntuosidade "uma concepção especificamente teoló-
gica ou medieval: a do estado do mundo depois do juizo". E no conjunto, a pri-
meira parte da carta encerra apenas uma série de idéias familiares a todos os teó-
logos - e ainda por cima, a todos os fiéis: por assim dizer, a todos os franceses da
geração de 1530.
Essas expressões, que nos parecem tão ricas, tão cheias de meditação cientí-
fica, reencontramo-Ias todas nos textos de santo Tomás e de são Boaventura que E.
Gilson inseriu nos debates. No entanto, ele cita doutores, grandes doutores ...7 Que
a mim se me permita citar vendedores ambulantes ... Eis um desses folhetos popu-
lares que vendiam as livrarias de encruzilhadas, os mascates e os ambulantes no seu
comércio errante: um desses folhetos que os editores lioneses imprimiam às cente-
nas todo ano. Vejo assinalada por Baudrieruma edição de 1533, publicada por um
r65
dos dois grandes editores lioneses de livros "em língua vulgar", Olivier Arnoullet
(o outro era Claude Nourry, o editor do Pantagruel); um exemplar, com data de
impressão de abril de 1537 e publicado igualmente por Arnoullet, é conservado na
Bibliothêque National (Rés. o. 80054). Leia-se o título, amplo e explicito: La prog-
nostication du Ciécle advenir, contenant troys petits traictez. Le premier détermine com-
ment Iamort entra premiéremeni au monde. La seconde parle des âmesdes trespassez. Et de
Ia dilférence des Paradis. Le tiers de Iaderniére tribuiation. Et de Iarésurrection des corpz et
quelle temps du jugement, et lejour nul homme ne le sçait [A prognosticação da vida
futura, contendo três pequenos tratados. O primeiro determina como a morte
entrou primeiramente no mundo. O segundo fala das almas dos mortos. E da dife-
rença dos Paraísos. O terceiro, do derradeiro tormento. E da ressurreição dos cor-
pos e qual o tempo do ]uízo, e o dia nenhum homem sabe]. 8 Eis precisamente o ciclo
das preocupações em que se move o início da carta de Gargântua. E quem porven-
tura tivesse tido a idéia de folhear seu Baudrier, essa mina inesgostável de documen-
tos entregues a granel às prospecções - que precioso comentário do texto rabelai-
siano não teria encontrado" no humilde folheto de Benoit Gillebaud?
-
Como a morte entrou primeiramente no mundo, em conseqüência do
pecado de Adão e segundo o ensina o texto célebre da Epístola aos romanos (v, 12);
como o homem, "se não tivesse querido pecar, jamais teria morrido", mas "teria
seguido a imortalidade e a abençoada eternidade dos anjos"; como, quando o
]uízo for consumado, Aquele que teremos visto" em forma de humanidade, nós o
veremos em divindade"; como ele oferecerá" o reino a Deus, o Pai"; por qual con-
flagração, enfim, por qual prodigioso e sobrenatural calor este mundo será quei-
mado: esses são precisamente todos os problemas a que faz alusão em sua carta o
magnânimo pai de Pantagruel. 10
De resto, há no romance rabelaisiano uma outra belíssima página que per-
mite, por comparação, avaliar a importância e o número dos elementos de teologia
cristã e tradicional contidos em uma passagem tão discutida. Rabelais retomou, no
capítulo VIII do livro IlI, o tema da imortalidade da espécie garantida pela procriação.
'Vede", diz Panúrgio, "como a Natureza, querendo as plantas, árvores, arbustos,
ervas e zoófitos, uma vez por ela criados, perpetuar e fazer durar em toda a sucessão
do tempo, sem jamais perecerem as espécies ainda que os indivíduos pereçam, curiosa-
mente armou seus germes e suas sementes nos quais consiste essa perpetuidade." O
r66
homem, fraco e nu, não tem a sorte das plantas. Precisou proteger-se por armas for-
jadas. Por onde começou essa obra de proteção, o próprio título do capítulo nos faz
supor: "Como a braguilha é a primeira peça da armadura entre os guerreiros". Rabe-
lais o demonstra com uma crueza toda médica: é que "ali reside", esclarece ele,
"como em um sagrado repositório, o germe conservador da humana linhagem".
Nada de tão instrutivo como a comparação desse texto de 1546 com o texto
do Paniagruet de 1532. Que derrocada, se não nos enganamos totalmente, da tese
de Abel Lefranc sobre o ateísmo precoce de Rabelais! A idéia fundamental é seme-
lhante aqui e ali: certamente. Mas, em 1546, Rabelais não expõe um lugar-comum
de teologia cristã. Ele transpõe uma passagem célebre de um autor caro aos racio-
nalistas: Plínio, o Velho. "Transpõe" é a palavra justa, uma vez que o otimismo
rabelaisiano vem tomar o lugar, no livro I1I, do pessimismo de Plínio." E, sob a ins-
piração de seu modelo, ele funde, por assim dizer, o homem na Natureza. Com-
para-o às plantas, aos zoófitos; recoloca-o em sua posição na série geral das criatu-
ras; o Cristo desaparece, Deus se apaga, o homem individual cede lugar à humana
linhagem; não se trata mais da dádiva do Criador abrandando penas privadas. Esta-
mos realmente em presença, desta vez, de uma" concepção de filosofia científica
de ordem geral". E o espírito de 1532 já não anima essas páginas - espírito todo
imbuído de tradicionalismo religioso e de ortodoxia no mínimo literal. 12
Assim, não há dúvida sobre o sentido de que se reveste o início dificil da epís-
tola gargantuana. Mas quem ousaria pretender que, para interpretar correta-
mente os detalhes obscuros de um texto litigioso, é indiferente saber se esse texto
exprime uma convicção filosófica e científica toda profana e leiga ou uma dou-
trina autenticamente cristã>" De fato, se Abel Lefranc tivesse conhecido os textos
inseridos no debate por Gilson, talvez houvesse hesitado em descobrir na carta de
Gargântua uma prova peremptória: a de que Rabelais não era mais cristão em
1532, visto que rejeitava" o dogma cristão da imortalidade".
n. UMA NEGAÇÃO DA VIDA ETERNA
Vejam, nos diz (Introdução, p. XLIV) o erudito exegeta da obra rabelaisiana,
vejam: menos explícito que o autor da Prognostication du Ciecle advenir, Rabelais
nada escreveu sobre o destino" das almas dos mortos" ...
r67
Toda noção da imortalidade da alma está ausente dessa longa exposição. A própria
alusão feita ao Juízo Final parecerá estranha, por pouco que a examinemos. Ela não
implica, com efeito, nenhuma idéia de recompensas nem de castigos eternos [...]
Basta pesar as palavras, e a convicção de que Rabelais não aderia ao dogma cristão da
vida eterna logo se imporá ao espírito. A única imortalidade certa imaginada por
Rabelais é aquela, muito relativa, que decorre da propagação seminal.
É realmente verdade que Rabelais, na passagem visada, tenha banido toda
noção da imortalidade da alma? Essa não é a opinião de Gilson." É verdade,
observa ele, que a idéia de uma sobrevivência da alma não é expressa em parte
alguma em termos positivos e dogmáticos,
e que se pode supor, por conseguinte, que Rabelais a exclui; mas, então, é preciso
explicar: primeiro o que é umJuízo Final sem ressurreição; segundo o que bem pode
ser esse mundo que Jesus Cristo apresenta a seu Pai e no qual as almas não são imor-
tais; terceiro o que pode significar ainda a cessação das gerações se o homem então
não se tornou incorruptível, dado que, é o próprio Rabelais que o relembra, a gera-
ção não tem outra razão de ser que não a de compensar a morte. A interpretação
mais simples do silêncio de Rabelais sobre a imortalidade da alma é, portanto, que ela
está implícita em cada linha do texto - a menos que se prefira admitir que seu texto
não apresenta aqui nenhum sentido.
Essa argumentação fala por si. Mas o problema levantado é tão importante; a solu-
ção proposta tão cheia de conseqüências - que não é supérfluo confirmar a
demonstração, se possível, pelo concurso de provas complementares. Não defen-
demos uma tese; desejaríamos lançar um pouco de clareza sobre questões obscu-
ras. Quais são, então, os argumentos mais perturbadores? Eles se dividem em duas
categorias. Ora Abel Lefranc incrimina, por aquilo que ele não diz, um Rabelais
que se cala. E ora, por aquilo que ele diz, um Rabelais que fala.
Rabelais se cala. Rabelais não tem o cuidadode gritar, pela voz de Gargântua,
em 1532: "Creio na imortalidade da alma". Mas, se ele a gritou, em 1535, e por sua
própria voz? Se escreveu nessa data, dois anos depois de ter composto o Pantagruel,
toda uma página precisa e clara sobre a imortalidade pessoal? Essa página está em
toda parte, com todas as letras, tanto nas edições antigamente difundidas quanto
nas edições Janet, Marty-Laveaux, Moland ou Clouzot." Ela provém de um Alma-
168
nach pour l'an 1535, caicul« sur Ia noble cité de Lyon, parmaistre Francoys Rabelais, doe-
.teur en médicine et médicin ãugrand hospital dudict Lyon [Almanaque de 1535, calcu-
lado na nobre cidade de Lyon, por mestre François Rabelais, doutor em medicina e
médico do grande hospital da dita Lyon]. Perdeu-se o almanaque. Mas Antoine Le
Roy, em sua vida manuscrita de Rabelais, conservou-nos dele um curioso trecho.
O autor do Pantagruel começa por relembrar a seus leitores uma das provas
da imortalidade alegadas por Aristóteles em sua Metafisica: "Todos os humanos
naturalmente desejam saber". Ora, seu desejo não pode ser satisfeito nesta vida
transitória, pois (Rabelais cita o Eclesiastes) "o entendimento jamais se farta de
entender, assim como o olho jamais deixa de desejar ver, nem o ouvido de ouvir".
Mas a Natureza jamais "fez nada sem causa nem deu apetite ou desejo de coisas
que não podemos às vezes obter" . Por conseguinte, necessariamente, "uma outra
vida existe depois desta, na qual esse desejo será satisfeito" .16 Naturalmente, Rabe-
lais não enuncia de maneira doutoral: "Boa gente, esta prova é peremptória; ela
tira todas as dúvidas, conquista todas as convicções" .Mas quem o teria dito em seu
lugar? Alguma vez houve um filósofo que pensasse, e declarasse, que as "provas"
da imortalidade da alma comportavam uma perfeita certeza - falo de uma cer-
teza intelectual e não da que pode ser dada pela fé? Além disso, observemos duas
coisas: "Digo estas palavras", acrescenta Rabelais,
dado que vos vejo expectantes, atentos e desejosos de escutar de mim presentemente
o estado e disposição desse ano 1535. Se a esse ardente desejo quereis satisfazer intei-
ramente, vos convém almejar (como são Paulo dizia, Filipenses, I: Cupio dissolvi et esse
cum Christo) que vossas almas tenham abandonado essa prisão tenebrosa do corpo
terreno e se tenham reunido ajesus, o Cristo. Então, cessarão todas as paixões, afei-
ções e imperfeições humanas, pois, no gozo Dele, terão plenitude de todo bem, de
todo saber e perfeição, como cantava outrora o Rei Davi, Salmo XVI: Tunc satiabor,
cum apparuerit gloria tua. Predizê-lo de outra maneira seria leviandade minha, como
ingenuidade vossa dar-lhe crédito!
Texto muito importante: o que ele diz da imortalidade, Rabelais o liga, assim, a
uma teoria que lhe é particularmente cara, que, entre 1532 e 1535, ele formulou
muitas vezes sob muitas formas diferentes, tanto em seu romance quanto em seus
Almanaoues. Essa teoria é a da imprevisibilidade dos fatos futuros: especialmente
pelos métodos astrológicos. A atitude de Rabelais em relação à astrologia é das
mais firmes e das mais refletidas. Mestre François explicou-se sobre isso muitas
vezes, com uma força e uma sinceridade absolutas." Que a essas afirmações sobre
um assunto que trata com tanta convicção ele junte uma argumentação sobre a
imortalidade: presunção de seriedade evidente em favor dessa argumentação.
Seguramente, toda palavra humana pode ser acusada de prudência, ou de men-
tira, mas esse texto de 1535 apresentado por Rabelais sob seu nome; esse texto
vindo em apoio a uma tese particularmente cara a Rabelais; esse texto que não se
poderia suspeitar, em razão de sua data, ter sido composto astuciosamente para
responder a acusações formuladas muito mais tarde - esse texto no mínimo nos
impede de concluir, de um pretenso silêncio refletido de Rabelais sobre a sobrevi-
vência das almas, por aquela conseqüência já tirada por Henri Estienne: de que, na
opinião do pai de Panúrgio, «tudo o que lemos da vida eterna foi escrito apenas
para divertir e iludir com uma vã esperança os pobres idiotas". Mais escrupulosa-
mente ainda, não falemos da «opinião" de Rabelais; que ele tenha guardado silên-
cio em seus escritos sobre essa grave questão da imortalidade - é simplesmente
uma inexatidão.
E, aliás, é surpreendente ver Rabelais, no Almanaque de 1535, referir-se à prova
psicológica da imortalidade? - Todas essas interrogações que ela supõe nos afas-
tam tanto assim de suas preocupações habituais? - O homem é feito unicamente
para a vida terrestre? Sua constituição não dá provas, por si mesma, de um destino
superior? Ao vê-lo viver, não se percebe que ele foi criado, como dirá Pascal, para
a infinidade? A tudo que faz, a tudo que sente, a tudo que sonha, não junta ele uma
idéia de eternidade? Mas então, por que asas a quem nunca voará em pleno céu, a
quem nunca seguirá até o firmamento constelado de estrelas,
Donec eo ventum est, ubi coe/um pingitur astris, *
estabelecendo-se a filosofia de corpo emplumado acima das nuvens carregadas de
água, nas alturas" de onde o Árbitro etéreo contempla os mares cobertos de velas
e as terras estendidas e o domínio dos manes? É Gilbert Ducher quem, antes de
1538, em uma peça precisamente dedicada a Rabelais (Ad Philosophiam, de Fran-
* ''Até que se tenha chegado ali onde o céu é ornado pelos astros."
170
cisco Rabelaeso), evoca assim a especulação filosófica a arrastar seus fiéis através do
éter; na primeira fila, Rabelais."
In primis sane Rabeuiesum, principem eumdem
Supremum in studiis diva tuis sophia [...J*
De fato, não faltam textos, na obra de Rabelais, que se podem agrupar em
torno da página de 1535. E mesmo textos muito posteriores a 1535, textos dos
livros III e IV, datados de uma época em que Rabelais, a fiar-se no consenso univer-
sal dos exegetas, estava mais distante que em sua estréia das soluções tradicionais
da Igreja. Relembre-se a bela passagem do livro III (cap. XIII) sobre a alma que está
em vigília no corpo adormecido (p. 68). Como lê-Ia sem pensar em Da Vinci, 20 evo-
cando o desejo que não cessa de habitar o homem - o desejo de reencontrar sua
pátria verdadeira (ripatriarsi) e de voltar a seu primeiro estado.
É o vôo de uma borboleta para a luz; e o homem que, com um perpétuo desejo,
com uma alegre impaciência, sempre esperando a nova primavera, sempre o novo
verão, sempre e sempre os novos meses e os novos anos, acha lentas demais a che-
gar as coisas cobiçadas - o homem não se apercebe de que deseja assim sua pró-
pria morte; mas esse desejo é o espírito dos elementos, a quintessência encerrada
na alma humana e que sempre aspira a retornar do corpo do Homem para Aquele
que ali a pôs.
Assim, Leonardo; mas Rabelais? O corpo adormecido, "a concocção sob todos os
aspectos completada", a alma encontra-se como que dispensada, "nada mais
sendo necessário até o despertar". Imediatamente, "ela se vai e revê sua pátria que
é o céu; de lá, recebe participação insigne de sua pura e divina origem e, em con-
templação dessa infinita e intelectual esfera, cujo centro está em cada lugar do
Universo, a circunferência em nenhum ... , nota não apenas as coisas passadas ...
mas também as futuras [...r- As palavras não são as mesmas. As formações inte-
lectuais tampouco, a do artista-filósofo florentino e a do monge-médico de Tou-
raine; mas o tom não é consonante? E com que direito ver, nessas passagens céle-
* "Sem dúvida em primeiro Rabelais, ele mesmo o expoente/ Supremo em teus estudos, divina
sabedoria [...]"
bres de Rabelais (mas não nos textos de Leonardo), apenas hipócrita prudência
ou vil tartufice? Para o grande italiano assim como para o grande francês, o ver-
dadeiro fim do homem é o pensamento - o libertador, que nos livra da ilusão do
prazer grosseiro e corresponde plenamente à nobreza fundamental de nossa
natureza. Tão forte em Da Vinci, esse sentimento o seria menos nesse Rabelais
que tantas vezes descreve as alegrias extáticas do estudo - 21 esse Rabelais que,
em uma curiosa conversação filosóficarelatada por Charondas le Charron, e
posta em evidência precisamente por Abel Lefranc," professa uma tão elevada
doutrina sobre o Soberano Bem, identificado com a satisfação desse ardente
desejo de conhecer, tormento e grandeza do homem? Mas relembremos tam-
bém, no mesmo livro III (cap. XXI), como morre o velho poeta francês, Ramina-
grobis, de olhos fixos no ideal cuja beleza serena nenhuma baixeza importuna o
impedirá de contemplar:
Ide, filhos, com a guarda do grande Deus dos céus [...] Hoje, que é o último dia de
maio e de mim, para fora de minha casa [...] expulsei um bando de vis bestas [...], as
quais me tiravam do doce pensamento a que me entregava, contemplando, e vendo,
e j á tocando e gozando o bem e a felicidade que o bom Deus preparou para seus fiéis
e eleitos na outra vida e estado de imortalidade [.. .].
Se não há em tal texto a mais precisa referência à doutrina da imortalidade
pessoal da alma; se não há, na boca de Pantagruel, na de Raminagrobis, na de Gar-
gântua, como vimos e, acrescento, na do próprio doutor Rabelais em 1535, a afir-
mação clara de uma sobrevivência da alma, gozando as alegrias que Deus prepa-
rou para seus eleitos "na outra vida e estado de imortalidade" - na verdade, é que
o francês de Rabelais é singularmente dificil de compreender?
nr. PSICOLOGIA DO SÉCULO XVI: A ALMA
Assim, talvez Rabelais não se cale tão exatamente quanto se disse sobre o ter-
rível problema da imortalidade. - Em todo caso, ele fala, e fala mesmo muito:
neste texto, cheio de silêncios tão intencionais, não introduziu ele duas palavras
que dizem tudo? Releiamos: "Quando pela vontade Daquele que tudo rege e
modera, minha alma deixar esta habitação humana, não me reputarei [se tu, meu
172
filho, te pareceres comigo tanto moral quanto fisicamente] totalmente morto,
mas antes transmigrando de um lugar a outro," visto que em ti e por ti permaneço
em minha imagem visível neste mundo". Totalmente morto: assim esse" cão" o
confessa, o homem morre por inteiro. Que confissão!
Confissão, que seja: mas de quê? Antes de nos perguntarmos isso, não será inú-
til levantar uma questão prévia. O que é que Rabelais, em 1532, o que é que todos os
seus contemporâneos, a despeito de suas divergências de escola, de sentimento e de
doutrina, geralmente estavam de acordo em pensar da alma humana? Não digo de
seu destino depois da morte - mas primeiro de sua natureza e de sua composição?
Evidentemente, o que pensava da alma, Rabelais não o disse dogmatica-
mente. Mas, em muitas passagens, referiu-se a uma concepção da alma bastante
conhecida para que, com a ajuda dos marcos fincados, pudéssemos facilmente
reconstituir a pista tradicional de seus raciocínios. Concepção sem originalidade
nem mistério: simplesmente a que, com a ajuda dos antigos - Aristóteles e
Galeno, sobretudo - haviam produzido para seu uso comum os médicos da
época. Com efeito, sabe-se como, naquele tempo, medicina era doutrina e não
experimentação em primeiro lugar: ela se baseava na filosofia. Essa concepção,
sem ir mais longe, é aquela mesma que o grande clássico da medicina de então,
Jean Fernel, de Montdidier, um contemporâneo de Rabelais.vpropagou através de
seu século e, mais além, através de todo o século seguinte.
Abra-se o livro III nos capítulos XIII e XXXI. Aí se encontrará a evocação mais
clara dessa teoria dos espíritos adotada, depois de Galeno, pela unanimidade dos
sábios da Renascença. E, naturalmente, por Fernel em sua Phisiologie. Z5 Eis a hie-
rarquia das três espécies de espíritos vagantes que estão ligados às diversas partes
do corpo: espíritos naturais, elaborados pelo figa do e circulando nas veias; espíritos
vitais ou espíritos naturais sublimados pelo calor do coração e circulando nas arté-
rias; espíritos animais, enfim, ou espíritos vitais transformados em contato com o
ar, após passagem pela rede admirável do cérebro: eles circulam nos nervos." - A
essa classificação corresponde (tão universalmente aceita no século XVI quanto a
dos espíritos) a distinção de três espécies de almas. Sendo a alma antes de tudo prin-
cípio de vida, princípio e causa das funções do corpo vivo, como relembra (depois
de muitos outros) Fernel- todos os corpos, todos os seres vivos têm uma alma
ajustada às suas necessidades específicas. Os vegetais possuem uma alma natural;
173
os animais, uma alma sensitiva; o homem acumula essas almas inferiores com
uma alma de essência superior, a sua especificamente: a alma intelectiva." Fernel
no-Ias mostra aparecendo, uma após a outra, no homem: com o feto, a alma natu-
ral; com a criança, a alma sensitiva que retém a alma natural e se apropria dela;
com o adulto, enfim, a alma inteligente e racional que, por sua vez, absorve a sen-
sitiva que contém, ela própria, a natural: toda uma hierarquia de almas que, par-
tindo da Natureza e das mais humildes funções naturais, elevam-se até Deus e a
contemplação divina. Mas toda vez que um grau é transposto, uma espécie de
absorção e de assimilação se produz. '8 Da mesma maneira que a alma dos animais,
a sensitiva, preside a uma só vez as funções que esses seres partilham com os vege-
tais e todas as de sua vida especificamente animal- no grau superior, a alma inte-
lectiva dos homens manifesta simultaneamente sua energia segundo os modos
natural, sensitivo e intelectual, ..
O que se passa na morte? A alma vegetativa das plantas, a alma sensitiva dos
animais nascem e morrem ao mesmo tempo que essas plantas e esses animais de
que causam os fenômenos vitais. "Sínteses abstratas das funções e das proprieda-
des de seres materiais e perecíveis", elas são materiais e perecíveis como eles." O
que é feito delas no homem? Tomamos como guiaJean Fernel; sigamo-Io até o
fim; é um guia cristão e plenamente ortodoxo, de uma ortodoxia que jamais foi
contestada por ninguém ... Ora, ei-lo na encruzilhada em que hesitam, por um
tempo, todos os seus contemporâneos. Na morte, ou a alma humana se divide,
seguindo cada uma de suas partes seu destino: encerrando a alma natural, a alma
sensitiva perece, uma vez que depende do corpo diretamente e que, localmente
residente nesse corpo e coextensiva à sua matéria que ela anima, faz parte inte-
grande dele. A alma intelectual, em compensação, não perece; é que ela vem de
fora. Nos corpos que habita, ela vive como o piloto na nave ou, para observar as
nuanças de pensamento de Fernel, como o operário no aposento em que traba-
lha." Mas como é dificil conceber uma alma metade perecível, metade imortal!
Como é imprudente concebê-Ia dupla, ao passo que sua unidade implicaria neces-
sariamente sua imortalidade, não podendo uma substância simples perecer nem
por dissolução nem por aniquilamento! Como é ilusório, enfim, conceder ao
homem a imortalidade de um intelecto ativo, "impessoal, absoluto, separado dos
indivíduos, partilhado pelos indivíduos", enquanto se condena à morte todo o
resto, tudo o que permite que o homem diga: "Eu" e distinga esse eu do eu dos
outros homens! - Então, salvaguardar antes de tudo o princípio tutelar da uni-
174
--'
da de da alma: e Fernel empenha-se nisso com toda a sua engenhosidade. Para ele,
a inteligência absorve realmente as almas inferiores. Estas não são mais, no
homem, almas distintas e autônomas; são faculdades que a alma intelectiva, alma
única e verdadeira do homem, utiliza como intermediários entre ela própria e o
corpo. Essas faculdades não são a alma, mas instrumentos da alma; elas não são o
corpo, mas motores do corpo; elas permitem que Fernel mantenha a unidade e a
simplicidade da alma humana: inteligência essencialmente, e, não tendo necessi-
dade do corpo para elevar-se à intuição e à contemplação das verdades eternas, ela
escapa à sorte fatal das almas inferiores; não perece."
Quem não vê o artificio, o pobre artificio dessas faculdades meio animais,
meio imateriais" e que antecipadamente desempenham o papel do famoso "me-
diador plástico" de nossos antepassados? Mas todos os contemporâneos de Rabe-
lais, e o próprio Rabelais, às voltas com esse dilema terrível, nãosouberam sair dele.
Exceção feita, contudo, aos comentaristas alexandristas ou averroístas de Aristóte-
les; tomando alegremente o partido de um aniquilamento total da alma pessoal, eles
não reclamavam o beneficio de uma persistência ilusória senão para um intelecto
ativo situado, por alguns, fora do homem, em Deus mesmo: não sendo a imortali-
dade da alma outra coisa que a eternidade de Deus ... Quanto a sair pela outra porta
e a proclamar a imortalidade integral da alma em todas as suas partes constitutivas,
impossível pensá-lo: "conceber o espírito do homem como um ser que se separa
localmente do corpo no momento em que o homem expira [...] era naquele século
a opinião universal dos teólogos e dos filósofos": extraímos esse julgamento da
página muito curiosa de seu Dictionnaire,33 na qual Bayle nos mostra Margarida de
Navarra aguardando o último suspiro de uma de suas camareiras para ver se a saída
de sua alma seria acompanhada ou não de algum ruído ou assobio.
De fato, seguimos Fernel. Teríamos podido seguir igualmente qualquer
outro de seus contemporâneos e nele teríamos reencontrado a noção, herdada, de
uma alma em dois graus, desigualmente imortal. Ela está em toda parte. Mesmo
nos palcos do teatro, na boca dos atores de tragédia.
Três naturezas em nós, e todas mutuamente se sustêm,
Estimulam nossa vida e viva a mantêm:
O Espírito, a Alma, oÂnimo. E quem uma suprimisse,
Súbito toda a vida junto partiria [...J34
175
Assim Ch. Toutain em La tragédie d'Agamem.non [A tragédia de Agamenon]
(1557), p. 31 VO). Ânimo: palavra forjada; aquela mesma que emprega um pensa-
dor original, um daqueles (como vimos) que acusam Rabelais de impiedade: Guil-
laume Postel. Ora, talvez um pouco mais complicada, sua doutrina não é diferente
da doutrina de Fernel. Encontramo-Ia resumida comodamente no início" de suas
Três merveilleuses victoires desftmmes du Nouveau Monde [Muito maravilhosas vitó-
rias das mulheres do Novo Mundo] (1553). Háem toda criatura humana, além do
corpo, duas partes: uma superior, Animus, em francês Anime [Ânimo J; a outra infe-
rior, Anima, em francês Âme [Alma]. Por isso
o exterior a nós chega a nosso ânimo, alma e corpo, o Espírito e a Mente, que ilumi-
nam, um, o ânimo, o outro, a alma: assim põe o filósofo o intelecto agente e o possí-
vel, um que imprime em nós o conhecimento da verdade, como faz a luz no olho,
representando as coisas visíveis; o outro que a conserva quando ela é impressa, como
faz o ar representando as coisas pela luz demonstradas [...].
Ora, a alma" depende do corpo e é constituída no interior do Sangue. O Ânimo é
imortal, divinamente criado e unido em uma natureza com a alma, como o ele-
mento da terra com a água. A Mente, ou a virtude superior, ou o intelecto agente,
corresponde ao fogo e se une ao Ânimo. O Espírito, correspondente ao ar, se une
à alma como o ar com a Terra" .
Sistema mais complicado e que traz, se se quiser, a marca das singularidades de
Postel; mas, precisamente, não é impressionante que reencontremos nele, assim
como no clássico Fernel, tanto a noção de uma alma humana formada de elemen-
tos quase heterogêneos - tão realmente distintos que, para designá-Ias, Postel não
hesita em forjar palavras; quanto essa singular mescla de corporalidade e de imate-
rialidade, de mortalidade e de imortalidade que tanto desnorteia nossos hábitos de
pensamento? Nossos hábitos pós-cartesianos, seria preciso dizer; pois Bayle o
observa e tem razão de o observar:" ainda em seu tempo, teólogos e filósofos pen-
savam todos como a rainha de Navarra; todos tomavam a alma por um ser que se
separa localmente do corpo no momento em que o homem expira - todos, exceto
os que eram cartesianos. Rabelais não era cartesiano, por motivos evidentes. Consi-
derava, como todo mundo, que a intenção do "fundador" desse microcosmo que é
o homem era" de nele manter a alma, que aí foi posta como hóspede, e a vida. A vida
consiste em sangue. Sangue é a sede da alma". Nada mais natural, a partir daí, que
176
considerar essa alma como perecível: quero dizer, o que nessa alma corresponde à
alma natural e à alma sensitiva, e preside não apenas as funções vegetativas, mas
também o exercício da sensibilidade e dessa razão que trabalha com a ajuda de dados
fornecidos pelos sentidos ou de imagens que relembram esses dados.
Em suma, perece a contribuição dos sentidos, tanto dos cinco sentidos externos
quanto dos quatro sentidos internos reconhecidos por Rabelais, fiel ao ensinamento
de santo Tomás:" o senso comum; a imaginação e apreensão; a razão e resolução; a
memória e recordação." Não é pouca coisa, pois, afmal, essa alma sensitiva, ou essa
parte sensitiva da alma, que perece, governa quase tudo o que torna a pessoa viva, sen-
sória, ativa nesta terra ... - O que resta para sobreviver? A alma intelectiva, ou a parte
intelectiva da alma. Sua imortalidade, Rabelais a proclama em termos explícitos: abra-
se o livro IV na famosa passagem em que Pantagruel, evocando os sinais "que os céus
benévolos, como que alegres com a nova recepção dessas almas beatas", manifestam
à véspera da morte dos heróis, exclama: "Creio que todas as almas intelectivas estão
isentas da tesoura de Átropos; todas são imortais, anjos, demônios e humanos [...r.39
Anjos e demônios - pois não esqueçamos que (e teremos de voltar a isso)
para os homens daquele tempo e não apenas para Rabelais, unus ex multis, a Filo-
sofia - Ronsard no-lo ensina muitas vezes,
Conhece dos anjos as essências,
A hierarquia e todas as potências
Desses Demônios que habitam o lugar
Doar[ ...]
os Demônios pelos quais se formam os sonhos; os Demônios, mensageiros da
divindade,
Anunciadores divinos, divinos anunciadores de Deus
Que seus segredos velozmente nos trazem. 40
IV. "MORRER TOTALMENTE"
Relembrado isto, voltemos ao texto rabelaisiano. Tentemos esclarecer-lhe
todas as obscuridades. Elas são duas ou, mais exatamente, há duas expressões que
177
permitem que Abel Lefranc formule uma mesma objeção: transmigrar ou passar
de um lugar a outro; e, mais ainda, morrer totalmente. 41
Gargântua, como nos lembramos, afirma que, à hora de sua morte, sua
alma "deixará esta habitação humana"." Por que esse abandono? Evidente-
mente, porque o corpo do bom gigante vai perecer, e a alma não deve perecer
com ele. - Mas, objetar-se-à, isso não é completamente evidente? Rabelais se
cala; por que fazê-lo falar? Ele quis, precisamente, fazer pairar uma ambigüidade
quanto à sorte dessa alma, sobre a qual escreve, sem dúvida, que ela abandona a
morada terrestre dos homens, portanto, o corpo de Gargântua; mas deixar o
corpo não significa sobreviver. O passageiro que abandona o barco na hora do
naufrágio não é salvo por isso; nada impede que seja engolido pelo mar, ao lado
do navio, mas ao mesmo tempo que ele. - Velha comparação, e venerável por
sua antigüidade: santo Tomás já zomba dela. Em todo caso, comparar não é pro-
var; tentemos raciocinar apenas. Gargântua começa por nos falar de Deus. É por
ele, o grande regulador de todas as coisas, que será fixada a hora de sua morte; é
por um ato de sua vontade absoluta, é por seu "bel-prazer" que sua alma deixará
sua "habitação". A partir daí, encontrar-se-á um leitor de bom senso que imagine
que esse árbitro todo-poderoso do mundo, se intervém tão diretamente afim de
separar um corpo e uma alma associados por responsabilidade sua, é simples-
mente pelo prazer de aniquilar fora desse corpo essa alma que ele poderia facil-
mente deixar aniquilar-se no corpo e com ele? Prazer tanto mais singular quanto
esse Deus é o Deus do juízo; e, se começasse por aniquilá-Ias, que almas julgaria
ele? Não, podemos traduzir sem engano: Gargântua começa por proclamar que,
à hora de sua morte, sua alma, separando-se de seu invólucro terrestre, sobrevi-
verá a um corpo condenado à destruição.
Mas o que acrescenta ele? Que apenas a existência de Pantagruel o fará acre-
ditar, nesse instante supremo, que passa de um lugar a outro e que não morre total-
mente. Eis o que parece bastante suspeito. Pois, se a almade Gargântua não segue
o destino do corpo; se se desprendeu dele a fim de sobreviver-lhe, o velho rei
gigante não tem necessidade de ter um filho para que possa dizer a si mesmo:
"Passo de um lugar a outro" e "não morro totalmente". Não é a existência de Pan-
tagruel ou, em outros termos, é (se ele é cristão) a existência de sua alma imortal
que lhe deve permitir dizer-se com confiança: "Minha morte não será aniquila-
mento completo. Não morrerei totalmente. Minha alma não morrerá. E, se deixo
de existir neste mundo como pessoa material, será para continuar a viver em um
outro mundo como ser espiritual". Não creio trair, creio, ao contrário, esclarecer
nos termos e, a partir daí, reforçar as duas observações fundamentais sobre as
quais Abel Lefranc se apóia para nos dizer: 'Apertem o pensamento de Rabelais.
Deixem de lado as declarações fingidas. Vão ao fundo. Aí encontrarão essa dupla
e mortal ambigüidade que denuncio pela primeira vez" .
Mas não, não concordo! Argumentar assim é desnaturar o sentido preciso
de certas palavras rabelaisianas - quero dizer, de certas palavras da língua do
século XVI. Morrer é uma delas. Pode parecer paradoxal que a palavra que
designa uma realidade sempre idêntica a si mesma tenha mudado sensivelmente
de acepção no curto espaço de três séculos." E no entanto ... O homem, dizemos
nós, quando professamos opiniões espiritualistas - o homem não morre intei-
ramente. Maneira de falar, e perfeitamente legítima dado que a existência é defi-
nida como "o que se apresenta ao pensamento", e que se chamam existentes as
coisas materiais, uma vez que estão no pensamento - mas dado também que se
considera como mais real ainda esse próprio pensamento, que dá existência a
todo o resto. De modo que, hoje, nos é cômoda a passagem da fórmula: "Não
morro inteiramente" - à fórmula: "O homem não morre inteiramente". Mas e
Rabelais e seus contemporâneos?
Eles viviam antes de Descartes e se alimentavam de escolástica e de teologia.
Basta dizer que o homem, para eles, não era um pensamento que se pensa. Era a
união de dois elementos, de origem, de natureza, de destino dessemelhantes: um
corpo material e, nesse corpo, "como hóspede", uma alma compósita, mais que
semimaterial, localmente presente nesse corpo e coextensiva a ele. PosteI o diz
muito bem, com a ajuda de uma fórmula clássica (De rationibus Spiritus Sancti
[Sobre as doutrinas do Espírito Santo], p. 1543): 'l\. alma não é o homem. O corpo
não é o homem. O corpo e a alma unidos e durante o tempo da união, eis o
homem". 44 - A morte, a partir daí, é a ruptura dessa união. Um fenômeno "natu-
ral", não. Uma operação de Deus. Uma divisão.
Em outros termos, o corpo, no momento fixado pela sabedoria do Todo-
Poderoso, sofre um aniquilamento completo. Os homens daquele tempo ainda
não têm a idéia que será expressa por Voltaire duzentos anos mais tarde no texto
do Micromégas, que marca o advento de nossa concepção moderna, científica e
natural da morte: "Devolver o corpo aos elementos e reanimar a natureza sob
uma outra forma", é isso, diz ele, "que se chama morrer"." Para os contemporâ-
neos de Rabelais, que não sabiam apoiar-se em um conjunto constituído de dou-
I79
trinas químicas, o corpo era concebido como aniquilando-se:' Sua destruição
libertava a alma. Mais exatamente, ela obrigava a ir-se a parte mais sutil e, por
assim dizer, a essência espiritual da alma, cujas outras partes seguiam o destino do
corpo. E isso era a morte: dissolução de um composto, o homem. E uma tal morte
não podia ser senão "total".
A corrente elétrica que decompõe a água de nada serve para destruir o hidro-
gênio por ela liberado: não importa! A água não está por isso menos "totalmente
morta", em razão da separação de seus dois componentes. De maneira seme-
lhante, o homem, nas idéias ortodoxas do século XVI, o homem morre no instante
mesmo em que se produz o divórcio da alma e do corpo no qual Deus a alojou.
Que essa alma não sofra integralmente o aniquilamento que atinge o corpo,
pouco importa. A partir do momento em que ela deixou seu habitáculo terrestre
momentâneo, o homem está "totalmente morto". Esse é o castigo exigido por
Deus como expiação do pecado original. E depende de Deus, de sua justiça e de
sua bondade, que essa morte seja eterna - ou que uma vida nova, a vida eterna,
suceda a ela, pela nova união da alma sobrevivente e da carne ressuscitando sem
corrupção ... Assim, pela misericórdia divina, os eleitos estarão novamente, após a
provação da morte terrestre, na posse daquela "imortalidade e abençoada eterni-
dade" que Deus destinara ao homem, assim como aos anjos, e da qual o pecado
despojou tanto os anjos rebeldes quanto a totalidade dos homens. 47 Assim, no sen-
tido preciso da palavra, a morte é, não para todos os homens, mas para os justos, a
verdadeira porta da vida. O homem morre totalmente. Não morre irrevogavel-
mente. Ao abandonar a vida precária e breve deste mundo, ele sabe que renascerá,
se Deus quiser, para a vida verdadeira, para a vida eterna:" magnifica esperança,
recompensa de sua fé, e que abranda o rigor do castigo divino: a Morte."
Então, e Gargântua? Ele bem sabe que a parte espiritual de sua alma não
seguirá a sorte de seu corpo, e que Deus a chamará de volta a ele. Está descansado
quanto a isso. E como tem fé, tem a esperança de ser justificado e promovido à vida
eterna. Mas o que o aflige, apesar de tudo, é a idéia de abandonar este mundo fami-
liar, de renunciar às suas afeições presentes, de romper tantos laços tão doces que
o ligam nesta terra aos homens e às coisas. Fraqueza, mas bem humana. Não nos
apressemos em dizer, com a magnifica intransigência dos descrentes intimando os
crentes (em virtude de seus princípios) a ser sobre-humanos - não nos apresse-
mos em dizer que isso é pouco cristão. O cristão é um homem. Um pobre homem.
E que sofra com a morte, assim Deus o quis. Se ele não sofresse, seria ela um cas-
180
j
•
tigo? A esperança de uma recompensa celeste abranda-lhe a amargura, para os
bons; mas ela não deixa por isso de ser uma provação ... Ora, o pesar sentido por
Gargântua não poderia ser remediado pela sobrevivência da alma intelectiva. A
sobrevivência de seu filho sim, um tanto. De seu filho, herdeiro de seus gostos, de
seus pensamentos, de suas afeições, capaz de continuar sua obra e de prolongá-Ia
entre os homens. E aí está o sentido destas frases da carta:
Vou morrer. O ser humano, a pessoa humana que vou deixar de ser, a que viveu neste
mundo, sentiu e agiu; a que meus amigos conheceram e amaram sob meu nome vai
morrer, e morrer inteiramente, para sempre [...] Pois bem, não. Ela não morrerá pro-
priamente falando. Eunão morro. Simplesmente mudo de lugar. Se se quiser, minha
alma sensitiva muda de invólucro material. Estou ainda em mim, Gargântua. Ama-
nhã, será como se estivesse em ti, Pantagruel, meu filho [...].
Não. Gargântua não é um ímpio quando escreve "morrer totalmente". Ou,
se é, alguns o são com ele, no século XVI e no século XVII ainda. É preciso citar um
deles? O que dizer do descrente que um dia teve a idéia de pronunciar estas pala-
vras audaciosas: "A carne mudará de natureza, o corpo tomará um outro nome;
mesmo o de cadáver não lhe restará por muito tempo; ele se tornará", diz Tertu-
liano, "um não sei quê que já não tem nome em nenhuma língua: tanto assim que
tudo morre nele, até mesmo esses termos fúnebres pelos quais se exprimiam seus
miseráveis restos [...r.
Que eco magnífico ao Morrer Totalmente de Gargântua! ... - Mas já, nesse
novo ímpio, todos nós reconhecemos Bossuet."
V. O ERRO DE RABELAIS
Assim, acabamos de vê-lo mais uma vez: não se trata de ler um texto do
século XVI com olhos de homem do século xx e de lançar gritos de assombro, decla-
rando que esse texto é escandaloso - enquanto uma só coisa é escandalosa, o
esquecimento do pequeno fato de que a mesma proposição, articulada por um
homem de 1538 e depois por um homem de 1938, não produz o mesmo som. E de
que todo um trabalho deve ser feito, um trabalho considerável e dos mais delica-
dos,