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AULA 3 GLOBALIZAÇÃO, INDÚSTRIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Prof. Miguel Arantes Normanha Filho 2 INTRODUÇÃO Desejamos contribuir para o aprimoramento de seu aprendizado com qualidade, de forma crítica e, sobretudo, respondendo às suas necessidades. Os conteúdos desta etapa de estudos estão divididos, para uma ampla compreensão, nos seguintes tópicos: • Dimensões da globalização. • Dimensão econômica da globalização. • Globalização como um processo de encolhimento do globo. • Globalização como um processo de compressão do espaço-tempo. • Globalização como síndrome de processos materiais e seus resultados. No âmbito da gestão, é relevante, em nosso estudo, um entendimento diferenciado da globalização, em suas dimensões: econômica, política, social, ambiental e cultural. Os conteúdos desenvolvidos proporcionarão aplicação prática para a atuação em processos de gestão que englobem temáticas relevantes sobre globalização, indústria e desenvolvimento sustentável. Por último, é importante frisar que as competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) desenvolvidas serão muito importantes para aquele que deseja atuar em área estratégica, que contemple globalização, indústria e desenvolvimento sustentável. TEMA 1 – DIMENSÕES DA GLOBALIZAÇÃO Deve-se ter a compreensão de que a globalização é, geralmente, associada a processos econômicos, bem como ao fluxo internacional de capitais, à ampliação do comércio global e mesmo à integração produtiva, em escala global. Entretanto, ela descreve também fenômenos do âmbito social, como a criação e a expansão de instituições supranacionais, a universalização de padrões culturais, as tentativas de equacionamento de questões concernentes ao meio ambiente, ao desarmamento nuclear, ao crescimento populacional, aos direitos humanos, entre outros temas. Nesse contexto, o termo designa a crescente transnacionalização das relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ocorrem no mundo, com especial ênfase, nas últimas duas décadas (Vieira, 2002). 3 Crédito: Loc Thanh Pham/Shutterstock. Para Furmann (2011), temos que o processo de globalização é polifacético, com ampliadas dimensões, como econômicas, sociais, políticas, culturais, até religiosas e jurídicas, que são combinadas das formas mais complexas, Además, debido a su complejidad, variedad y amplitud, el proceso de globalización está conectado a otras transformaciones en el sistema mundial que sin embargo no son reducibles a él, tales como la creciente desigualdad a nivel mundial, la explosión demográfica, la catástrofe ambiental, la proliferación de armas de destrucción masiva, la democracia formal como condición de asistencia internacional a países periféricos y semiperiféricos etc. (Santos, 1998, p. 39)1 Temos, assim, que a globalização aparece nas mais diversas dimensões, porém, para análise, é preciso delimitá-las. Logo, uma classificação operativa dessas dimensões contempla estas cinco dimensões da globalização (Vieira, 2002): 1. Econômica; 2. Política; 3. Social; 4. Ambiental; 5. Cultural. 1 “Além disso, pela sua complexidade, variedade e amplitude, o processo de globalização está ligado a outras transformações do sistema mundial que não lhe são, no entanto, redutíveis, como a crescente desigualdade mundial, a explosão demográfica, a catástrofe ambiental, a proliferação de armas de destruição em massa, a democracia formal como condição da assistência internacional aos países periféricos e semiperiféricos etc.” (Santos, 1998, p. 39, tradução nossa). https://www.shutterstock.com/g/Loc+Thanh+Pham 4 Basicamente, deve ser compreendido que essa classificação, que não se concebe como inesgotável, contempla o papel da economia e da cultura no contexto da globalização. 1.1 Dimensão econômica É de conhecimento amplo que a globalização é identificada como um fenômeno econômico, uma vez que sua ênfase está relacionada à autonomia contemplada pela economia em relação à política, nos últimos tempos (Faria, 2004), em face da internacionalização do capital. Existe o entendimento oficial de que a política econômica direciona os interesses públicos, no sentido de o Estado alcançar sua participação na produção global de bens. Assim sendo, os países devem se adequar às demandas do mercado, como também dos investimentos globais. Portanto, a abertura econômica é fundamental na participação no desenvolvimento social oriundo das conquistas do capitalismo. 1.2 Dimensão política No que tange ao âmbito político, o termo globalização encaminha a ideia de crise do Estado nacional. Nesse contexto, a figura do Estado-nação teria perdido suas condições elementares em favor de novas condições de poder, ou seja, teria perdido sua capacidade de gestão pública: A nova divisão internacional do trabalho, contribui para o esforço desde poder, eis que o processo de produção sendo realizado em vários países, em certa medida, torna obsoletas as fronteiras dos Estados, mitigando cada vez mais o poder dos mesmos e consolidando de forma crescente o poder das empresas transnacionais [...]. (Lima, 2002, p. 151- 152) Podemos considerar que a China, hipoteticamente, seja um exemplo extremo disso, uma vez que os antigos meios de controle não mais funcionam e já não podem ser aplicados senão com impunidade, uma vez que, se aplicados em larga escala, eles simplesmente espantarão a economia global e a participação ativa daquele país nessa economia, condição que é essencial para o desenvolvimento nacional em um mundo sem fronteiras (Ohmae, 1996). 5 1.3 Dimensão social No que tange à globalização no campo social, aponta-se a ação prejudicial que a entrada de grandes capitais teve em países periféricos. Assim, crises econômicas têm impactado enormemente a população desses países, em virtude da sua dependência em relação à produção de multinacionais. O empobrecimento, em países periféricos, está ao lado do desemprego e da marginalização de certas populações, ocasionados por períodos de queda de consumo que demonstram a desigualdade social do processo de globalização (Vieira, 2002). Para grande parte da humanidade, a globalização está se impondo como aquilo que se pode chamar de fábrica de perversidades. Assim sendo, o desemprego crescente torna-se crônico, a pobreza aumenta, as classes médias perdem qualidade de vida e o salário médio tende a ser cada vez mais reduzido. Temos, nesse contexto, que a fome e o desabrigo se generalizam em todo o mundo. Novas enfermidades se instalam e velhas doenças, que deveriam estar eliminadas, fazem seu retorno com grande força. A mortalidade infantil, lamentavelmente, permanece, a despeito dos progressos médicos, farmacêuticos e informacionais. Uma educação de qualidade é cada vez mais inacessível (Santos, 2006). 1.4 Dimensão ambiental A globalização é também contemplada como uma questão ambiental, quando se propõe a questão da industrialização descontrolada e da expansão do mercado. Essa dimensão é continuidade da dimensão social. O meio ambiente é uma questão global e só pode ser preservado com ações globais. Entende-se, assim, que os principais problemas ambientais enfrentados no mundo atual não podem ser combatidos apenas localmente (Furmann, 2011). 1.5 Dimensão cultural Deve-se considerar que a última dimensão fundamental da globalização é a dimensão cultural, pela qual se enfatiza, em geral, a padronização global do consumo. No processo histórico recente, a ampliação do desenvolvimento tecnológico tem facilitado o contato cultural entre diversos povos, em parte em face do desenvolvimento dos meios de comunicação, que modificou a forma de 6 as pessoas observarem o mundo. Temos, assim, que a mídia propicia que pessoas das mais diversas culturas e formações educacionaisusufruam de uma experiência de conhecimento padronizada. Entretanto, é necessário compreender que a dimensão cultural da globalização é complexa e abarca não só homogeneizações, mas também resistências e hibridismos (Canclini, 2000). TEMA 2 – DIMENSÃO ECONÔMICA DA GLOBALIZAÇÃO O que acha do seguinte questionamento: por que o processo de globalização objetiva a abertura e ampliação das economias nacionais? Para essa questão, a maioria das pessoas terá como resposta que somente dessa forma é possível o desenvolvimento, mesmo em situações em que ele possa não ocorrer. Todavia, com a abertura dos mercados, as grandes organizações de negócios passaram a interferir, conduzir e determinar o mercado dos países menos desenvolvidos, mais fracos. Tendo a economia conduzida e controlada por um poder exógeno, o país, assim, não consegue definir seus próprios caminhos. No passado, por meio do olhar de Karl Polanyi (1988, citado por Santos, 2007), observamos que a civilização do século XIX teve sua sustentação em quatro instituições: 1. Sistema de equilíbrio de poder. 2. Padrão-ouro internacional. 3. Mercado autorregulável. 4. Estado liberal. Duas dessas instituições são políticas e duas são econômicas; duas instituições são internacionais e duas são nacionais (Santos, 2007). 7 Crédito: Alazur/Shutterstock. Entre si, essas instituições determinam os contornos característicos da história de nossa civilização. Karl Polanyi (1988, citado por Santos, 2007) apregoava que a origem ou a fonte do sistema foi o mercado autorregulável, sendo o padrão-ouro um esforço para ampliar o sistema interno de mercado para o campo internacional. Assim, o sistema de equilíbrio de poder foi uma enorme estrutura erigida sobre o padrão-ouro e, nele, parcialmente fundamentada. Portanto, o Estado liberal foi uma criação do mercado autorregulável. Tem-se, assim, que a chave para o sistema institucional do século XIX está nas leis que governam a economia de mercado. É natural, portanto, que o sistema de equilíbrio de poder, operante no século XIX, não iria assegurar a paz, caso a economia mundial viesse a fracassar. Mas a ruptura ocorreu assim que a economia entrou em colapso. Ainda que a séria crise, pela qual a civilização vivenciou, tivesse sido regulada pelo fracasso da economia mundial, ela não foi, entretanto, sua causa. Indicadores levam à convulsão tecnológica e social, no início do século XIX, a partir da qual emergiu, na Europa, a ideia do mercado autorregulável, origem das principais crises, com o colapso do padrão-ouro internacional, que foi o elo invisível entre a desintegração da economia mundial na passagem do século e a transformação ocorrida na década de 1930, que se deu de forma bastante rápida. Entende-se, com isso, que os cenários da Primeira Guerra Mundial e das revoluções que ocorreram no pós-guerra faziam parte do século XIX. Mas a https://www.shutterstock.com/g/alazur 8 Segunda Guerra Mundial é sua extensão. A quebra do padrão-ouro ocasionou a destruição de importantes instituições da sociedade do século XIX. O governo liberal foi substituído por ditaduras totalitárias e o livre mercado foi substituído por uma nova forma de economia (Santos, 2007). 2.1 Internacionalização do capital e da produção Pode-se contemplar que a internacionalização do capital e da produção de bens é o ponto central do conceito de globalização, em termos econômicos. Essa dimensão contemplou, conforme Hobsbawm (2009, citado por Furmann, 2011): • a liberalização dos mercados de capitais, permitindo que os capitais migrassem para locais que gerassem maiores rendimentos; • a eliminação de barreiras comerciais entre os Estados; • a realização da produção independentemente das fronteiras nacionais e continentais. Portanto, o alcance incessante de um lucro diferenciado e crescente gera uma produção compartilhada internacionalmente, situação favorecida pelo desenvolvimento de melhores técnicas de comunicação e logística (Santos, 2006). No âmbito histórico, o processo de globalização não pode ser enquadrado fora do capitalismo, e é próprio do capitalismo ele se internacionalizar: A burguesia, através da exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita para produção e o consumo em todos os países [...] no lugar da antiga reclusão e autossuficiência local e nacional, temos conexões em todas as direções, uma interdependência universal das nações. (Marx; Engels, 1998, p. 14-15) O que demonstra as diferenças da internacionalização do capitalismo no período da globalização é a intensificação das relações econômicas. Essas situações surgem no pós-guerra, o que pode ser simbolicamente demarcado com o Consenso de Washington. Mas é só a partir da década de 1970 que se assiste à mudança de paradigma econômico, passando-se da concepção de “industrialização substitutiva de importações” para a de “industrialização orientada para a exportação” (Ianni, 2006, p. 61). Observe-se esse fenômeno nas palavras do historiador Eric Hobsbawn (2003, p. 271-272): [...] os EUA, que tinham sido em grande parte autossuficientes antes da Segunda Guerra Mundial, quadruplicaram suas exportações para o resto do mundo entre 1950 e 1970, mas também se tornaram um maciço 9 importador de bens de consumo a partir do final da década de 1950. Em fins da década de 1960, começaram até a importar automóveis. Contudo, embora as economias industriais comprassem e vendessem cada vez mais suas respectivas produções, o grosso de suas atividades econômicas continuou centrado no mercado interno. No auge da Era de Ouro, os EUA exportaram apenas pouco menos de 8% de seu PIB, e, mais surpreendentemente, o Japão, tão voltado para a exportação, só um pouco mais. Sabe-se, também, que, entre 1965 e 1990, o produto mundial destinado às exportações duplicou (Furmann, 2011). Temos, assim, três aspectos dessa transnacionalização (Hobsbawm, 2003): 1. as organizações de negócios transnacionais; 2. a nova divisão internacional do trabalho; 3. o crescimento do financiamento offshore, uma das formas que demonstraram mais vividamente a maneira como a economia capitalista escapara do controle nacional. 2.2 Globalização econômica A globalização econômica, que pode ser constatada por qualquer um que verifique as origens nacionais dos produtos vendidos em um centro comercial norte-americano, desenvolveu-se lentamente na década de 1960 e acelerou de modo impressionante durante as décadas de perturbações econômicas mundiais após 1973. A rapidez com que avançou pode ser ilustrada mais uma vez pela Coreia do Sul, que, no fim da década de 1950, ainda tinha quase 80% de sua população trabalhadora na agricultura, da qual extraía quase três quartos da renda nacional, e inaugurou o primeiro de seus planos quinquenais de desenvolvimento em 1962. Em fins da década de 1980, o país já extraía apenas 10% de seu produto interno bruto (PIB) da agricultura e tornara-se a oitava economia industrial do mundo não comunista (Hobsbawm, 2003, p. 354). TEMA 3 – GLOBALIZAÇÃO COMO UM PROCESSO DE ENCOLHIMENTO DO GLOBO Além das considerações econômicas, estatais e culturais do fenômeno da globalização, é fundamental que se defina a globalização e a sua origem, uma vez que muitos pesquisadores e estudiosos a apresentam como uma novidade do século XX, mas outros, de períodos anteriores (Alves; Maia, 2013). 10 Crédito: Alphavector/Shutterstock. Algumas situações de períodos anteriores, como os processos de troca comercial global, na época do Império Romano, e de busca por novos mercados, na época da Revolução Industrial, no século XIX, devem ser compreendidas como um marco em direção à globalização (Alves; Maia, 2013). Wanderley (2009, p. 85, citado por Alves; Maia, 2013) contempla que vários pesquisadores e estudiosos já publicaram sobre as mudanças globais e seus temas,como: • George Lichtheim (1964): sociedade pós-burguesa. • Herman Kahn e Anthony Wiener (1968): sociedade pós-econômica. • Daniel Bell (1974): sociedade pós-industrial. • Peter Drucker (1999): sociedade do conhecimento. • Alvin Toffler (1981): terceira onda. • Zigmunt Bauman (2001): modernidade líquida. • Ulrich Beck (2011): segunda modernidade. Assim, esse mito, atualmente, está nas palavras do político, do empresário, do empregado e do desempregado, em todo o globo (Alves; Maia, 2013). Held e MacGrew (2001, p. 11, citado por Alves; Maia, 2013) ponderam que não ocorre uma definição única e universalmente aceita para a globalização. Como ocorre com todos os conceitos nucleares das ciências, portanto, seu sentido concreto é https://www.shutterstock.com/g/Alphavector 11 contestável. Desse modo, a globalização tem sido, de forma diversa, concebida como: • como ação a distância; • como compreensão espaçotemporal; • como interdependência acelerada; • como um mundo em processo de encolhimento • como integração global, reordenação das relações de poder inter-regionais, consciência da situação global e intensificação da interligação inter- regional. Alves e Maia (2013) conceituam as bases da globalização advogando que, atualmente, esse processo tem um aspecto inegavelmente material. 3.1 Considerações contemporâneas da globalização Entretanto, deve-se considerar que a globalização não ocorre somente pelos fluxos de comércio, uma vez que os processos sociais, políticos e culturais atuais estão mais evidentes e perceptíveis ao cidadão. Os cidadãos do mundo, aqueles que transcendem as fronteiras geográficas e, por suas ocupações ou atividades pessoais, não se compreendem mais cidadãos de um único país, mas sim do mundo, concebem que a globalização não se consolida com decretos, com fluxos materiais. Ela deixou os limites territoriais mesclados e indefinidos, carregando consigo a organização social, a economia e o poder. Existe a percepção de que estamos a caminho de uma organização cósmica que supera os limites geográficos territoriais (Alves; Maia, 2013). De acordo com Castells (1999, citado por Alves; Maia, 2013), as relações de tempo e espaço foram auxiliadas pela revolução tecnológica que propiciou essas trocas. Assim sendo, indaga-se: o que é globalização? Ela perpassa um processo pelo qual as atividades decisivas, num âmbito de ação determinado, operam como unidade, em tempo real, no conjunto global, um processo historicamente novo porque somente na última década se constituiu um sistema tecnológico, que envolve telecomunicações, sistemas de informação interativos, meios de transporte de alta velocidade, em um âmbito mundial, usufruído pelas pessoas e para a circulação de mercadorias, que faz possível essa globalização. A informacionalização da sociedade, que ocorreu a partir da revolução 12 tecnológica, consistiu num novo paradigma operante desde a década de 1970, sendo a base da globalização da economia. Habermas (2001, citado por Alves; Maia, 2013) possui concordância com Castells contemplando, também, que a globalização é um processo, mas não um estado final que intensifica as relações de troca, de comunicação e de trânsito entre países, criando, com o auxílio da tecnologia da informação e comunicação, as mais amplas redes possíveis. 3.2 O local e o global Temos, portanto, na globalização, a questão do sentimento de lugar. Com as facilidades tecnológicas que compartilhamos, torna-se cada vez mais desafiador dar conta da fisionomia do lugar onde vivemos. Assim sendo, o sujeito que habita as grandes cidades parece diluir-se em presença de múltiplas manifestações comunicativas que simulam o seu sentimento de pertencimento ao mundo. Portanto, ao trafegar pelas ruas, pode-se ouvir rádio, passar por outdoors, falar ao celular. Em um restaurante ou em uma residência, pode-se sentar, assistir à TV, conectar-se ao mundo pelo computador. Hoje, a cidade está ligada, na maior parte do tempo, ao campo das informações midiáticas. Mas uma pergunta bastante intrigante hoje é: em que tempo estamos? E mesmo: em que espaço habitamos? Vivemos sob um regime de rápido e intenso cotidiano de atividades, de deslocamentos espaçotemporais cada vez mais reduzidos pelos meios tecnológicos de comunicação, como se nossos corpos passeassem por mundos e tempos sem o sentimento de uma cultura local, de uma experiência de lugar (Oliveira, 2009) Featherstone (1995, citado por Oliveira, 2009), ao discutir sobre o local e o global em nossa cultura ocidental, destaca a importância de elementos como: • a intensificação da compressão global, temporal-espacial, por meio dos processos universalizantes das novas tecnologias da comunicação; • o poder dos fluxos de informação; • o poder das finanças e das mercadorias. Isso significa que as culturas locais têm de ceder a esse fluxo. Nossa vivência e meios de orientação tornam-se necessariamente separados das locações físicas em que vivemos e trabalhamos. Mas, ao passo que temos acesso ao mundo – no sentido global –, da nossa própria casa, a noção de lugar vai se 13 distanciando da nossa realidade. Portanto, as experiências globais ganham força por meio de hábitos compartilhados em espaços que não existem fisicamente, como: • internet; • TV; • transmissões via satélite • outros aparatos do viver globalmente, que vão diminuindo de forma intensa o senso de pertencimento a um local. TEMA 4 – GLOBALIZAÇÃO COMO UM PROCESSO DE COMPRESSÃO DO ESPAÇO-TEMPO Existe, no âmbito da globalização, a ideia de compressão do espaço- tempo, uma teoria do britânico David Harvey (1992) ligada ao processo de aceleração dos acontecimentos globais, que nos leva à percepção de que o mundo é menor e as suas distâncias, mais curtas. Crédito: Vit-Mar/Shutterstock. Assim, vivenciar a experiência de sensações como as de aceleração do tempo ou de eliminação do espaço ficou comum na vida moderna, cada vez mais organizada segundo o ritmo do tempo real, em especial aquele instituído pelas mídias digitais. Com o conceito de compressão espaço-tempo, de Harvey https://www.shutterstock.com/g/Romanchenko+Vitalii 14 (1992), nós nos deparamos com perspectivas situadas nas correntes do determinismo tecnológico, junto com outras que defendem a existência de uma relação dialógica entre tecnologia e sociedade, como as noções de desterritorialização e destemporalização, que propiciam compreender o surgimento de um espaço de dados fragmentado e intemporal, correspondendo a uma nova geografia, na qual já não é possível estabelecer uma fronteira clara entre o mundo físico e o digital (Santos; Azevedo, 2019). 4.1 Flâneur ciberespacial Temos, assim, o suporte teórico do conceito de flâneur ciberespacial, explorando as semelhanças com o flâneur novecentista. A análise de um conjunto de ações artísticas e experimentais centradas em questões como a hiperlocalização ou a ubiquidade e a pervasividade permite recorrer a essa figura do flâneur ciberespacial em um duplo sentido, isto é, como sinal da tendência à aceleração técnica, mas também como símbolo da força de resistência a essa mesma aceleração. Desse modo, pode-se concluir que a evolução exponencial e a crescente naturalização do uso massivo da tecnologia nos obrigam a considerar o seu papel como determinante das dinâmicas sociais, designadamente a partir da transformação da nossa relação com as dimensões do espaço e do tempo (Santos; Azevedo, 2019). Ao se falar da figura do flâneur – analisada por Baudelaire (1996, citado por Santos; Azevedo, 2019) e Benjamin (2000, citado por Santos; Azevedo, 2019), no contexto da modernização e do desenvolvimento das cidades associados à industrialização, e retomada por pesquisadores e estudiosos como Lemos (2009, citado por Santos; Azevedo, 2019) ou Kramer e Short (2011, citadospor Santos; Azevedo, 2019) –, da evolução tecnológica e da globalização, identificam-se aspectos desse novo contexto que associamos a uma certa flânerie ciberespacial. Na medida em que essa expressão remete a um contexto que favorece a definição de itinerários pessoais e a manutenção de relações fluidas com os diferentes contextos espaçotemporais percorridos pelos cidadãos, ela dá origem a movimentos de resistência à modernidade, agora encarnada na monitorização e no controle permitidos pelo próprio desenvolvimento tecnológico associado à globalização. 15 4.2 Compressão do espaço-tempo e evolução tecnológica Temos que a relação entre a evolução tecnológica e a nossa percepção e vivência do espaço-tempo tem sido ponto de leituras bastante contrastantes. Innis (1950, citado por Santos; Azevedo, 2019) é uma referência particularmente relevante na corrente que identifica uma tendência unívoca à aceleração associada ao desenvolvimento tecnológico. Por meio dos seus estudos de economia política, o autor identificou o papel relevante dos meios de transporte na evolução histórica, com implicações aprofundadas na forma com que as sociedades se estruturam e organizam (Subtil, 2014, citado por Santos; Azevedo, 2019). Assim sendo, as tecnologias seriam meios pelos quais as civilizações se expandem e estabelecem relações. Em cada período histórico, o indivíduo é contemplado por um tipo de média dominante e, portanto, essa dominância resulta em uma orientação para o tempo ou para o espaço (Subtil, 2014, citado por Santos; Azevedo, 2019). Disso resulta que, nas sociedades orientadas para o tempo, predominariam meios pesados, difíceis de transportar, como também de destruir e, portanto, temporalmente duráveis. Assim, as tradições orais e as pinturas rupestres podem ser consideradas como exemplos dessa orientação, sendo meios adaptados à limitada capacidade humana de memorização, propiciando a preservação do conhecimento ao longo do tempo. As sociedades que Innis (1950, citado por Santos; Azevedo, 2019) identifica como tendo viés para o espaço são direcionadas fundamentalmente para o futuro, preferem meios leves e perecíveis e com enorme capacidade de armazenamento de informação. As sociedades modernas ocidentais são moldadas principalmente por desvios espaciais e estariam orientadas para a comunicação a distância (Santos; Azevedo, 2019). Autores como Virilio (2000, citado por Santos; Azevedo, 2019), Giddens (2008, citado por Santos; Azevedo, 2019) e Castells (2010, citado por Santos; Azevedo, 2019) ponderam sobre o papel das tecnologias de transporte e de comunicação como indutoras de velocidade, física e informacional, na mudança da nossa percepção do tempo e do espaço. McLuhan (1969, citado por Santos; Azevedo, 2019) revê a si mesmo, nessa perspectiva, dado que defendia que cada novo meio introduz uma mudança de escala, ritmo ou padrão na atividade humana. Para Virilio (2000, citado por Santos; Azevedo, 2019), grandes revoluções históricas são revoluções da velocidade. Ao propiciar maior 16 velocidade, cada novo veículo cria igualmente novas formas de comunicação e de circulação, correspondendo cada uma delas a uma revolução dromocrática. Defende-se que a parte mais relevante da Revolução Industrial, propiciada pelo surgimento da máquina a vapor, consistiu na revolução dos transportes – uma revolução do espaço-tempo. Contempla-se ainda que houve outra revolução transformadora no século XIX: o surgimento da estética do desaparecimento, que sucede a estética do aparecimento, representada pela pintura e pela escultura. Em tal perspectiva, a velocidade de captação da imagem na fotografia instantânea e a velocidade de projeção de imagens no filme, fundada na persistência retiniana, permitiram passar da persistência de um substrato material – o mármore ou a tela do pintor – à persistência cognitiva da visão. Em face de tal situação, o cinema mostra-se “[...] capaz de fornecer aos espectadores, em cada fração de segundo, essa sensação desconhecida de ubiquidade, numa quarta dimensão, suprimindo o espaço e o tempo” (Virilio, 1989, citado por Santos; Azevedo, 2019, p. 6). Virilio (1989, citado por Santos; Azevedo, 2019) se preocupa com a ubiquidade e a instantaneidade proporcionadas pelos meios digitais. Tendo em vista que toda a história ocorre em um tempo local, a aplicação do tempo real, do ritmo da imediatez de resposta possibilitada pela tecnologia digital não possui relação com o tempo histórico. Assim sendo, a experiência cotidiana ficaria reduzida ao imediatismo do presente contínuo (Virilio, 2000). Tudo isso pode ser relacionado com o conceito de compressão do espaço-tempo, formulado por David Harvey (1992). TEMA 5 – GLOBALIZAÇÃO COMO SÍNDROME DE PROCESSOS MATERIAIS E SEUS RESULTADOS No que tange ao termo síndrome, este remete a um conjunto de características que, quando juntadas a situações críticas, podem gerar insegurança ou medo. A globalização não é um fenômeno de fácil explicação, permitindo-se a uma multiplicidade de conceitos e de pontos de vista diferentes (Furmann, 2011). 17 Crédito: Iconic Bestiary/Shutterstock. Giddens (2008, p. 61), de forma objetiva, afirma que a globalização é a “[...] intensificação das relações sociais em escala mundial”. Ideia simples, que nos remete à perspectiva de “[...] uma crescente interconexão em vários níveis da vida cotidiana a diversos lugares longínquos no mundo” (Lima, 2002, p. 125). Existe, assim, o empenho de pesquisadores e estudiosos em desvendar “[...] os nexos políticos, econômicos, geoeconômicos, geopolíticos, culturais, religiosos, linguísticos, étnicos, racionais e todos os que articulam e tencionam as sociedades nacionais, em âmbito internacional, regional, multinacional, transnacional ou mundial” (Ianni, 2006, p. 30). 5.1 Ação internacional Ocorre que outro instrumento de ação internacional foi igualmente protegido contra a atuação de Estados-nações e suas democracias: a autoridade dos organismos financeiros globais estabelecidos depois da Segunda Guerra Mundial, com especial destaque o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Apoiados sobretudo pelos grandes países capitalistas, identificados como Grupo dos Sete, esses organismos se tornaram cada vez mais poderosos a partir da década de 1970, com crescente autoridade durante as décadas de crise, à medida que as incontroláveis incertezas das trocas globais, a crise da dívida do Terceiro Mundo e, após 1989, o colapso das economias do bloco soviético geraram um maior número de países dependentes da disposição dos https://www.shutterstock.com/g/IconicBestiary 18 países ricos de conceder-lhes recursos financeiros (Furmann, 2011), mediante empréstimos cada vez mais condicionados à busca local de políticas favoráveis às autoridades bancárias globais. O triunfo da condição neoliberal, na década de 1980, traduziu-se em políticas de privatização sistemática e capitalismo de livre mercado impostas a governos falidos, fossem elas imediatamente relevantes para seus problemas econômicos ou não (Hobsbawm, 2003). Diversos Estados nacionais, em crise, perdem assim condição de gerir suas economias pela sua própria vontade política, Deixando, assim, de serem entes soberanos para serem entes subordinados à vontade internacional. Nesse contexto, justificam-se as privatizações de organizações públicas, com a transferência de seus ativos para o capital privado, aparecerem como ações inevitáveis, numa sociedade globalizada. Com a abertura à especulação internacional, tal condição demonstraria a fragilidade estatal em termos de gestão e controle econômico (Furmann, 2011). Tem-se, assim, que a política agora é feita no âmbito do mercado, um mercado global, que não existe como ator, mas como ideologia. Os atores são as organizações de negócios globais,sem preocupações éticas. Assim, no mundo da competitividade, ou se é mais individualista, ou se desaparece. Portanto, a própria lógica de sobrevivência da organização global contempla que ela funcione sem nenhum altruísmo. Ocorre que, se o Estado não pode ser solidário e a organização de negócios não pode ser altruísta, a sociedade como um todo não tem quem por ela zele. Fala-se muito num terceiro setor, em que as organizações privadas assumiriam um trabalho de assistência social antes de responsabilidade do Poder Público. Dessa forma, cabe escolher quais os beneficiários, privilegiando uma parcela da sociedade e deixando a maior parte de fora. Frações do território e da sociedade podem assim ser deixadas por conta, desde que não convenham ao cálculo das organizações de negócios. Assim sendo, a “[...] política das empresas equivale à decretação de morte da Política” (Santos, 2006, p. 67). Portanto, a fragilidade do poder político na sociedade decorre da fragmentação das demandas sociais (Bauman, 2000). Grandes projetos de sociedade estão limitados pela visão fragmentada de sociedade, em que o poder é multifacetado e a ação política, ineficiente. A limitação da ação política tradicional e de grandes projetos de sociedade, em parte devido à desilusão com as alternativas socialistas, formula uma certa obstrução do Estado como espaço de ação coletiva, ao menos como projeto total de sociedade. Tem-se, assim, em 19 um espaço desabitado, a instalação de poderosos lobbys econômicos (Furmann, 2011). Reabrem-se, no final do século XX, espaços e fronteiras inesperados ou recriados, disponíveis ou forçados, juntamente com a desagregação do bloco soviético, e ampliam-se políticas de desestatização, desregulação, privatização, abertura de mercados, fluxo cada vez mais livre das forças produtivas, modernização das normas jurídico-políticas e das instituições que organizam as relações de produção, universalizando de forma acentuada o modo capitalista de produção como hegemônico processo civilizatório (Ianni, 2006). 5.2 Crise do Estado-nação Um sinal que parecia apontar para a crise do Estado-nação é a formação de blocos econômicos. Em destaque, a formação de blocos de países com objetivo de fortalecer a economia, organizar vantagens tributárias e estreitar laços políticos, tendo como resultante o enfraquecimento dos Estados nacionais (Furmann, 2011). Diversos pesquisadores e estudiosos já apontaram que a globalização não pode ser entendida como algo de uma inevitabilidade natural, mas pensada como construção política em que o Estado tem papel estratégico: A interdependência econômica de forma alguma é fenômeno natural, mas sim provocado por uma política deliberada, consciente de suas metas. Cada acordo, cada lei, foi aprovado por governos e seus parlamentos, cujas deliberações removeram barreiras alfandegárias, permitindo o livre trânsito de capital e mercadorias, por cima das fronteiras nacionais. (Martin; Schumann, 1997, p. 17) Com a crise do sistema financeiro de 2008-2009, ressaltou-se a ideia de crise do Estado nacional. Assim, o conflito entre tendências liberais e intervencionistas constatou-se ainda mais acirrado. Do ocorrido, parece que ficou a ideia de que o Estado nacional não está em declínio, mas em fase de mutação (Furmann, 2011). 20 REFERÊNCIAS ALVES, P. R.; MAIA, T. Globalização: considerações contemporâneas. Revista Diálogos Interdisciplinares, v. 2, n. 2, 2013. Disponível em: <https://revistas.brazcubas.br/index.php/dialogos/article/view/30/40>. Acesso em: 16 fev. 2023. BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. _____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011. BELL, D. O advento da sociedade pós-industrial. São Paulo: Cultrix, 1974. CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000. DRUCKER, P. F. Sociedade pós-capitalista. 7. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999. FARIA, J. E. 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