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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE DIREITO WELINGTON GABRIEL DOS SANTOS DAMASCENO RESENHA DO LIVRO - A QUESTÃO CRIMINAL São luís 2024 1. RESENHA O texto discute a questão criminal e sua abordagem em diferentes contextos, desde o acadêmico até o midiático, passando pela perspectiva dos mortos, representados pelos casos não resolvidos e vítimas de crimes. O autor critica a tendência de tratar a criminalidade como um problema local, quando na verdade é global e complexo, afetando o destino da humanidade, ele destaca a importância de transcender as fronteiras acadêmicas e comunicar os conhecimentos produzidos sobre o tema de forma acessível ao público em geral, evitando a alienação e a centralização do debate em esferas especializadas. A linguagem acadêmica, embora rica em conhecimento, muitas vezes se torna inacessível para o público em geral, além disso, o autor ressalta a necessidade de prudência no uso do poder repressivo, reconhecendo as limitações e falhas tanto da academia quanto dos meios de comunicação na compreensão e abordagem do problema criminal, propõe uma reflexão sobre a realidade da criminalidade, representada pela presença dos mortos, cujas vozes muitas vezes são ignoradas. O texto também aborda as dinâmicas internas do mundo acadêmico, destacando as divisões e disputas entre diferentes correntes de pensamento, mas ressaltando a importância do debate apaixonado e intenso, menciona ainda a arte como uma ferramenta para desfazer estereótipos e comunicações mais eficazes sobre a questão criminal. Essencialmente, o autor busca contextualizar a questão criminal em um panorama mais amplo, integrando diferentes perspectivas e reconhecendo a complexidade do problema, enquanto enfatiza a importância da comunicação eficaz e da prudência no enfrentamento desse desafio global. Na primeira discute a distinção entre duas disciplinas relacionadas ao estudo do crime: direito penal e criminologia, começando com uma análise sobre o papel do penalista, o autor destaca que o estudo do direito penal se concentra na interpretação das leis penais, visando garantir uma aplicação consistente e ordenada pelos tribunais. O trabalho do penalista envolve a aplicação da dogmática jurídica, um método complexo de interpretação legal, que busca garantir uma abordagem racional e previsível na resolução de casos criminais, é destacada a influência da tradição jurídica alemã na construção da doutrina jurídico-penal em todo o mundo, e como os penalistas alemães desenvolveram uma teoria geral do delito, que estabelece critérios conceituais para determinar se uma conduta é considerada um crime, essa teoria enfatiza que um ato criminoso deve ser típico, antijurídico e culpável. Por outro lado, critica a desconexão entre os estudos do direito penal e a realidade social do crime, enquanto os penalistas se concentram na interpretação das leis, sua compreensão da realidade do crime muitas vezes é limitada ao que é divulgado pelos meios de comunicação, essa lacuna entre a teoria legal e a prática social é destacada como uma limitação significativa na compreensão do fenômeno criminal. Além disso, o texto aborda a ascensão da criminologia como uma disciplina que busca entender não apenas as causas do crime, mas também o funcionamento do poder punitivo, a criminologia, ao contrário do direito penal, abrange uma variedade de disciplinas, como sociologia, psicologia, antropologia e história, para examinar questões mais amplas relacionadas à violência, poder punitivo e suas implicações sociais. Essa parte do texto fornece uma visão crítica das abordagens tradicionais do direito penal, destacando a necessidade de uma análise mais ampla e interdisciplinar do crime e do sistema de justiça criminal, onde enfatiza a importância de considerar não apenas as leis, mas também os contextos sociais e institucionais que moldam o comportamento criminoso e a resposta do Estado ao crime. Torna-se evidente uma análise profunda sobre a origem e o papel do poder punitivo nas sociedades humanas, comparando-o com outras formas de coerção e explorando sua relação com a verticalização hierárquica e a colonização. O poder punitivo é comparado a uma instituição que parece sempre ter existido, mas na verdade é uma construção social que surgiu muito mais tarde do que outras formas de coerção, enquanto formas de coerção direta e reparadora têm como objetivo evitar ou remediar danos imediatos, o poder punitivo entra em cena quando alguém que detém autoridade substitui a vítima no processo de aplicação de punição, confiscando sua voz e agindo em nome da sociedade. Zaffaroni argumenta que o poder punitivo não resolve conflitos, mas os suspende, deixando a vítima marginalizada e não resolvendo suas necessidades, embora modelos não punitivos, como reparação, terapia e conciliação, podem coexistir e resolver conflitos de maneira mais eficaz, o poder punitivo é exclusivo e reforça uma estrutura hierárquica na sociedade. Essa verticalização hierárquica, segundo o autor, é um fenômeno histórico que ocorreu em sociedades como a Roma antiga e a Europa medieval. A ascensão do poder punitivo foi um instrumento desse processo, permitindo a conquista e colonização de territórios. Na Europa, o poder punitivo ajudou a consolidar a estrutura corporativa da sociedade, facilitando a expansão imperial. Ainda é debatida a influência do direito romano na formação do sistema jurídico penal europeu, destacando como a ciência jurídico-penal se desenvolveu a partir da interpretação do Digesto de Justiniano, a importação dessas leis ajudou a legitimar o poder punitivo, embora as justificativas fornecidas para as punições fossem muitas vezes baseadas em argumentos fáticos e criminológicos. Aponta-se como a história repetiu o processo romano, com sociedades como a Espanha perdendo sua hegemonia devido à rigidez de suas estruturas verticais. No entanto, o poder punitivo persistiu, embora agora focado principalmente em questões internas da sociedade, o texto oferece uma visão detalhada sobre a origem, evolução e impacto do poder punitivo nas sociedades humanas, argumentando que sua função principal tem sido a de reforçar estruturas de poder verticalizadas e facilitar processos de colonização e controle social. Em um segundo momento é apresentada uma análise crítica sobre o discurso demonológico e inquisitorial ao longo da história, destacando sua persistência e adaptabilidade através dos séculos, ele argumenta que esses discursos, embora tenham mudado de conteúdo ao longo do tempo, mantiveram uma estrutura fundamental, agindo como um programa que pode ser alimentado com diferentes informações, mas que serve sempre aos mesmos propósitos de justificar o poder punitivo sem limites. A narrativa destaca como ao longo dos séculos, emergências foram fabricadas para justificar a expansão do poder punitivo, muitas vezes resultando em massacres e injustiças, apesar das mudanças nas crenças e percepções sociais, o poder punitivo nunca eliminou efetivamente os perigos que alegava combater, e muitas vezes contribuiu para criar novos problemas. O texto menciona especificamente o "Malleus Maleficarum" ou "Martelo das Bruxas", de 1484, como uma obra que representa a consagração da criminologia autônoma em relação ao direito penal, apresentando uma teoria completa sobre a origem do crime, especialmente em relação à bruxaria. Essa obra, juntamente com outras contribuições dos demonólogos e inquisidores ao longo da história, é vista como parte de um legado sombrio que continua a influenciar o pensamento e as práticas sociais até os dias atuais. O texto sugere que reconhecer e entender esse legado é fundamental para evitar que o poder punitivo continue sendo usado de forma injusta e desproporcional. A passagem discorre sobre a evolução do poder punitivo ao longo da história,focando especialmente na Inquisição e no tratamento dado às chamadas bruxas, destaca a transição do controle exercido pela Igreja para o poder dos Estados nacionais, onde juízes estatais passaram a executar sentenças, muitas vezes queimando mulheres acusadas de bruxaria. A obra "Malleus Maleficarum" é mencionada como um marco nesse contexto, sendo escrita por Heinrich Krämer e Jakob Sprenger, essa obra se tornou um best-seller durante duzentos anos, abordando temas relacionados à criminologia, direito penal e processo penal. Apesar de sua leitura entediante, ela oferece insights sobre a mentalidade da época. Os autores do "Malleus Maleficarum" enfatizam a gravidade dos crimes atribuídos às bruxas, exaltando a necessidade de combatê-los como uma guerra, aqueles que duvidam da emergência são vistos como inimigos do poder punitivo, sujeitos a punições severas. O texto aponta vinte núcleos estruturais do poder punitivo ilimitado, destacando a ênfase na gravidade do crime, a linguagem bélica utilizada para combatê-lo e a negação de qualquer fonte de autoridade que contradiga a narrativa oficial. Outrossim, discute-se a misoginia presente na época, onde as mulheres eram consideradas biologicamente inferiores e propensas à bruxaria, a manipulação do poder punitivo pelos médicos, que propunham medidas de segurança em vez de penas tradicionais, ameaçando o controle exercido pelos soberanos, autores como Thomas Hobbes e Jean Bodin reagiram contra essa ameaça, defendendo a manutenção do poder punitivo sob controle dos soberanos, mesmo o rei Jaime I da Inglaterra escreveu uma "Demonologia" em resposta às propostas médicas, evidenciando a preocupação geral com a preservação do poder de punir. No século XVI, a atenção dos inquisidores eclesiásticos em relação às bruxas diminuiu drasticamente devido a uma mudança na dinâmica do poder eclesiástico. Um cardeal, enviado pelo Papa à Espanha, testemunhou a eficácia da Inquisição espanhola como um instrumento de controle a serviço do rei, principalmente contra os dissidentes perigosos para a Coroa, como os hereges das Igrejas reformadas, quando esse cardeal eventualmente se tornou Papa, ele reformulou a Inquisição romana, transferindo sua condução para os jesuítas e adaptando suas práticas à perseguição dos reformados. Friedrich Spee, um jesuíta, rebelou-se contra as práticas inquisitoriais e publicou anonimamente "Cautio criminalis" em 1631, criticando a injustiça da perseguição às bruxas. Spee testemunhou os horrores infligidos às mulheres acusadas de bruxaria e defendeu que qualquer pessoa poderia ser condenada injustamente sob o sistema inquisitorial. Ele argumentou que o poder punitivo deveria ser questionado por sua ineficácia e pelas injustiças que perpetrava. Spee atribuiu a responsabilidade pela perseguição às bruxas à ignorância da população, à manipulação da Igreja e à cumplicidade dos príncipes, que se beneficiavam politicamente da caça às bruxas. Ele denunciou a prática de cobrar por cada execução de bruxa como uma forma de lucro para os inquisidores, destacando a corrupção dentro do sistema. O livro de Spee, embora tenha incomodado as autoridades eclesiásticas e políticas da época, não teve um impacto imediato significativo, mas estabeleceu um discurso crítico que ressoa até os dias atuais. Sua obra abordou temas como a manipulação dos meios de comunicação, a legitimação teórica das práticas punitivas e a corrupção institucional. Setenta anos depois, o filósofo Christian Thomasius retomou os argumentos de Spee, desacreditando o Malleus e defendendo uma distinção entre moral e direito. Sua tese marcou o início do Iluminismo e contribuiu para o declínio do Malleus como autoridade na justiça penal. Embora as obras de Spee e Thomasius tenham sido pouco conhecidas por séculos, recentemente têm sido reconhecidas como importantes marcos na história do direito penal e da criminologia, destacando a necessidade de questionar o poder punitivo e combater a injustiça institucionalizada.Entre os séculos XVII e XVIII, ocorreu um fenômeno significativo: o surgimento do sujeito público. Enquanto no Estado absoluto o poder se concentrava na capacidade de punir, principalmente através da pena de morte, uma mudança ocorreu com a ascensão do sujeito público, levando o Estado a regular não apenas a vida individual, mas a vida pública como um todo. Isso resultou na formação de corporações especializadas, cada uma com seu próprio saber e linguagem, que monopolizavam o discurso e competiam entre si pelo domínio do conhecimento. O discurso penal e criminológico não escapou dessa dinâmica, com diferentes correntes de pensamento surgindo, como o utilitarismo disciplinador de Bentham. Bentham propôs um sistema onde o delito era visto como resultado da desordem pessoal do infrator, buscando corrigi-lo através do disciplinamento, simbolizado pelo panóptico, uma estrutura prisional onde os presos seriam constantemente observados. Sua abordagem buscava maximizar a felicidade coletiva, considerando que a punição deveria ser proporcional ao dano causado pelo delito. Mesmo que Bentham tenha rejeitado a ideia de direitos naturais pré-sociais, sua abordagem influenciou o desenvolvimento do pensamento criminológico e foi reconhecida pelos revolucionários franceses como um avanço na mitigação do poder punitivo excessivo de sua época. O texto ainda discute diferentes concepções contratualistas, focando na relação entre poder, criminologia e Estado ao longo da história. Começa destacando como os contratualistas se preocupavam em projetar o Estado, centrando-se na questão criminal como central para sua concepção de poder. Aponta que, no século XIX, a criminologia se distanciou do poder e do Estado, tornando-se uma disciplina científica separada. Destaca também a variedade de contratualistas, exemplificados pelo contraste entre Hobbes e Locke. Hobbes via a sociedade originando-se de um contrato para escapar do caos, onde o poder absoluto era entregue a um soberano para evitar a guerra de todos contra todos. Em contrapartida, Locke via o contrato como garantia dos direitos naturais pré-existentes, defendendo o direito de resistência contra o opressor. Menciona Kant, que defendia a pena talional para manter o contrato social e evitar o retorno ao estado de natureza. Anselm von Feuerbach, influenciado por Kant e Locke, defendia o direito de resistência à opressão e promoveu a separação entre moral e direito, influenciando o direito penal na Baviera e indiretamente na Argentina. Feuerbach é lembrado pelo seu código penal para a Baviera, adotado por Carlos Tejedor na elaboração do código argentino. O texto destaca aspectos curiosos da vida de Feuerbach, como seu interesse por Kaspar Hauser, um adolescente que cresceu isolado, refletindo seu interesse no estado de natureza pré-contratual. Além disso, o texto menciona o contexto midiático contemporâneo e sua influência na percepção pública sobre o direito e a criminologia, sugerindo um distanciamento da complexidade filosófica inicial em prol de narrativas simplificadas. Em síntese, o texto aborda a evolução das teorias contratualistas, desde Hobbes até Feuerbach, explorando suas contribuições para a compreensão do poder, da lei e da criminologia, contextualizando essas ideias dentro de mudanças históricas e sociais significativas. Ademais, aborda a evolução e aplicação das teorias contratualistas na política e criminologia, destacando figuras como Hobbes, Locke e Marat. Ele discute como essas teorias foram adaptadas e reinterpretadas ao longo da história, desde o despotismo ilustrado até o socialismo. O contratualismo, inicialmente funcional para o despotismo ilustrado e o liberalismo político, eventualmente enfrentou críticas e desafios, especialmente ao ser usado para legitimar programas socialistas. Jean-Paul Marat é mencionado por suas contribuiçõespolíticas e criminológicas, como seu Plano de legislação criminal, que reflete suas ideias sobre justiça penal e desigualdades sociais. Marat, apesar de sua influência, não obteve reconhecimento durante sua vida e seu trabalho foi reeditado posteriormente sem que ele pudesse usufruir dos direitos autorais. O texto explora também a transição do contratualismo para novas abordagens na criminologia, como o hegelianismo penal e criminológico e o positivismo racista. O hegelianismo enfatizava a liberdade como critério central para a aplicação do direito penal, diferenciando os indivíduos entre "livres" e "não livres", sendo estes últimos submetidos a medidas de segurança. Além disso, Hegel é criticado por seu etnocentrismo, que influenciou visões colonialistas e discriminatórias em relação a povos não europeus. Sua concepção de história universal favorecia a Europa como portadora do espírito livre, em detrimento de culturas consideradas inferiores ou atrasadas, como as latino-americanas. O texto conclui observando que, apesar de suas contribuições teóricas, tanto o contratualismo quanto o hegelianismo enfrentaram críticas crescentes à medida que o mundo passava por transformações sociais e políticas rápidas no século XIX. Em resumo, o texto analisa como teorias filosóficas influenciaram a legislação penal e a criminologia ao longo da história, mostrando suas limitações e consequências em um contexto de mudança social e política. No início do século XX, os penalistas europeus começaram a se opor ao estilo inquisitorial da criminologia, que ditava como eles deveriam decidir. Embora não questionassem o potencial genocida do positivismo biológico, não gostavam de estar subordinados aos médicos. Como resultado, os penalistas isolaram os criminólogos, definindo que o delito era de competência dos penalistas, enquanto os criminólogos deviam explicar as causas das condutas identificadas como delitos pelos penalistas. Os criminólogos não foram expulsos das Faculdades de Direito, mas foram relegados a um canto, mantendo seus estudos sobre crânios e restos humanos em formol. A principal justificativa para essa segregação foi baseada no neokantismo, que distinguia entre ciências naturais e culturais, afirmando que o direito, sendo uma ciência cultural, não deveria se misturar com as ciências naturais. Embora houvesse dificuldades, como a criminalização ser uma decisão política que estabelecia limites para uma ciência natural, os penalistas resolveram afirmando que não existia uma ciência natural chamada criminologia. Esta era vista como um conjunto de conhecimentos auxiliares do direito penal, convocados conforme necessário. Assim, a criminologia positivista e biologista passou a ser uma ordem de conhecimentos servis ao direito penal. Com a Inquisição e o positivismo, a criminologia comandava o direito penal; com o neokantismo, o direito penal subordinava-se à criminologia. Contudo, a criminologia isolada continuou sendo a mesma do reducionismo biologicista e tão racista como antes, sem alteração no conteúdo. Isso ficou evidente em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, quando houve um debate entre os professores de Munique e Milão para legitimar as leis penais do nazismo. O grupo de Milão, que seguia o estilo de Ferri, prevaleceu sobre Munique, que tinha um discurso mais incompreensível. Ambos os grupos continuaram suas atividades acadêmicas após a guerra, sendo citados normalmente. Os criminólogos do canto continuaram propondo medidas drásticas, como esterilização e segregação, e investigando gêmeos univitelinos. Franz Exner, em colaboração com o penalista neokantiano Edmund Mezger, elaborou em 1944 um projeto para enviar todos os de "vida ruim" aos campos de concentração. Exner, influenciado por suas experiências nos EUA, onde encontrou racistas americanos, justificou o alto número de afro-americanos nas prisões como resultado das exigências da sociedade americana, que superavam as capacidades biológicas desses indivíduos. Esta criminologia se enriquecia com novidades médicas, principalmente endocrinologia, e tentava curar desvios de conduta com injeções hormonais. A classificação segundo biotipos também impactou a criminologia, correlacionando características físicas com psicológicas, semelhante à frenologia. A classificação mais difundida foi a de Ernst Kretschmer, que estabeleceu cinco biotipos: leptossômico, atlético, pícnico, displásico e misto, correlacionando-os com tendências criminosas. Por exemplo, magros seriam ladrões, atléticos homicidas e gordos farsantes. A endocrinologia também forneceu uma nova base para o racismo, sugerindo que nórdicos, sendo magros, eram pensadores, enquanto alpinos, sendo gordinhos, eram artistas. No período pré-guerra, houve uma variante na tese biologista: a posição genética, assumida pelo nazismo, defendia a eliminação dos inferiores; enquanto a tese lamarckista, aplicada na ditadura franquista por Antonio Vallejo Nágera, defendia que crianças retiradas das famílias republicanas fossem colocadas sob cuidados de famílias saudáveis. Curiosamente, o lamarckismo também foi a ideologia oficial da biologia na URSS, através da escola de Lyssenko. Após a Segunda Guerra Mundial, a criminologia tradicional, que se baseava fortemente em conceitos biológicos e racistas, entrou em crise. O Primeiro Congresso Mundial de Criminologia em Paris, 1950, presidido por Donnedieu de Vabres, sinalizou um afastamento do racismo. Durante o congresso, o racismo foi amplamente rejeitado, pois ninguém queria arcar com as consequências devastadoras que ele havia causado durante a guerra. Antes mesmo da guerra, a ideia do criminoso nato, proposta por Lombroso, já era desacreditada. No entanto, a criminologia tradicional ainda mantinha um interesse pela biologia, explorando temas como debilidades, taras e conformação física. Com o fim da guerra e a rejeição do racismo e do reducionismo biológico, a criminologia começou a perder seu foco na biologia como fator determinante do comportamento criminoso. Assim, a criminologia etiológica (que buscava causas para o crime) perdeu seu objeto de estudo diferenciado e natural. Essa mudança levou ao esvanecimento da criminologia tradicional, que se dissolveu em suas próprias contradições plurifatoriais. Sem os elementos necessários para analisar o poder punitivo e a seletividade do sistema penal, seus praticantes perderam a capacidade de oferecer uma análise eficaz. Contudo, não seria justo rotular todos esses criminologistas como racistas ou biologistas fanáticos. Como em qualquer época, havia vozes mais sensatas e críticas ao paradigma dominante, embora muitas vezes marginalizadas academicamente. Desde o final do século XIX, algumas figuras proeminentes se opuseram ao biologismo, como a criminóloga feminista espanhola Concepción Arenal e os contemporâneos de Lombroso, Turatti e Vaccaro, que rejeitavam o reducionismo biológico. Alfredo Niceforo reconheceu que os supostos signos biológicos eram, na verdade, indicativos de miséria. Willen Bonger, um criminologista marxista holandês, escreveu um ensaio influente sobre criminologia marxista e continuou nessa linha até seu suicídio durante a ocupação nazista da Holanda. Na América Latina, a tradição criminológica pós-guerra também afastou-se das ideias racistas. Criminologistas como o colombiano Luis Carlos Pérez, o brasileiro Roberto Lyra Filho e o mexicano Alfonso Quiroz Cuarón se destacaram por suas críticas ao racismo e ao sistema penal. Na Argentina, Oscar Blarduni foi um importante crítico do reducionismo biológico. Embora esses criminologistas latino-americanos não tivessem o treinamento sociológico para explorar novos horizontes metodológicos, suas contribuições políticas os diferenciavam dos reducionistas biológicos que os precederam. Eles viveram em uma época com limitações científicas e produziram contradições irredutíveisentre suas atitudes políticas e o agonizante marco etiológico. No entanto, essas contradições foram necessárias para a transição para uma nova etapa superadora da criminologia. Com o declínio da criminologia tradicional nas Faculdades de Direito, a hegemonia do discurso criminológico passou dos médicos e advogados para os sociólogos. Nos Estados Unidos, essa transição já estava em andamento, com os sociólogos investigando o crime de uma perspectiva diferente, abrindo caminho para as abordagens criminológicas atuais. A criminologia liberal começou a se destacar nos anos 1950, especialmente com os trabalhos de Edwin Lemert. Lemert introduziu os conceitos de desvio primário e desvio secundário, onde o primeiro é o comportamento que leva à punição, e o segundo é um comportamento mais grave que surge em resposta à intervenção punitiva inicial. Ele argumentou que as reações negativas da sociedade ao desvio primário causam o desvio secundário, influenciando as carreiras criminosas. Essa criminologia está intimamente ligada à sociologia geral, especialmente a duas influências principais: a psicologia social, com o interacionismo simbólico, e a filosofia, com a fenomenologia de Husserl. O interacionismo simbólico, baseado nas ideias de George Mead, propõe que todos possuem um "mim", formado pelas expectativas dos outros, e um "eu", que é a parte pessoal de cada um. Erving Goffman, um importante sociólogo dessa corrente, explicou a sociedade como uma dramaturgia social, onde todos desempenham papéis específicos, e as disrupções ocorrem quando essas expectativas não são atendidas, gerando irritação e desconforto. Goffman também analisou as instituições totais, como prisões e manicômios, onde todos os aspectos da vida dos indivíduos são controlados e unificados. Nessas instituições, os internos perdem a autonomia e sofrem ataques ao "eu", sendo submetidos a uma vigilância constante e a humilhações. Goffman destacou que essas instituições não promovem a ressocialização, mas sim a degradação do indivíduo. Outro sociólogo importante do interacionismo simbólico, Howard Becker, consolidou a teoria do etiquetamento em seu livro "Outsiders" (1963). Becker estudou músicos de jazz usuários de maconha e desenvolveu a teoria de que o desvio é provocado por uma "empresa moral" que cria regras e etiqueta indivíduos como desviantes, impedindo-os de continuar suas vidas normais. Ele argumentou que a rotulação é arbitrária e que as etiquetas são aplicadas de maneira seletiva, não necessariamente refletindo o comportamento real dos indivíduos. Denis Chapman, na Grã-Bretanha, complementou essa abordagem com seu livro "Sociologia e o estereótipo do criminoso" (1968), onde explicou como a criminalização é influenciada por estereótipos que refletem os piores preconceitos da sociedade. Ele destacou que esses estereótipos não se baseiam apenas em questões de classe ou capacidade econômica, mas também em outros preconceitos sociais. Esses estudos e teorias representam uma crítica significativa ao poder punitivo, evidenciando a arbitrariedade e a irracionalidade na aplicação das etiquetas criminais. A criminologia liberal revelou que o sistema punitivo é altamente seletivo e preconceituoso, não respeitando a igualdade e perpetuando estereótipos que condicionam as carreiras criminosas. A crítica ao etiquetamento e à seleção criminalizadora desafia a legitimidade do poder punitivo e expõe as falhas e injustiças do sistema penal. A partir da filosofia de Husserl, a questão da intersubjetividade influenciou a sociologia, especialmente através do sociólogo austríaco Alfred Schutz, que afirmou que a intersubjetividade é uma realidade, não um problema. Essa ideia foi expandida na sociologia do conhecimento por Peter Berger e Thomas Luckmann em "A construção social da realidade" (1966). Embora não se foque diretamente na criminologia, essa obra se tornou fundamental para a compreensão da criminologia midiática. Berger e Luckmann argumentam que a realidade social é uma construção coletiva baseada em conhecimentos de senso comum, que são interpretações compartilhadas. Esses conhecimentos sedimentam-se com o tempo, tornando-se hábitos tipificados e anonimizados, controlados socialmente e legitimados pela linguagem. Quando alguém se desvia desse mundo reificado, é sancionado, como ilustrado pela internação em instituições totais. Esses autores explicam que as interações sociais são baseadas em tipificações e modelos de comportamento estabelecidos, e que a sociedade é a soma total dessas tipificações. A estrutura social, portanto, é essencial para a realidade da vida cotidiana. O pensamento científico, embora transcenda o senso comum, depende dele. Berger e Luckmann observam que os intelectuais geralmente ocupam uma posição marginal na sociedade, questionando o conhecimento verificado e propondo visões alternativas. Essa marginalidade é resultado de uma insatisfação pessoal com a socialização primária e a busca por novas definições através de alternativas e ressocialização, como o processo forçado de etiquetamento. A influência de Heidegger é clara na obra de Berger e Luckmann, onde o ser humano é visto como produto do mundo, não como seu produtor. Isso ajuda a explicar a percepção de fenômenos históricos como a escravidão e o colonialismo. Essas ideias são essenciais para entender a criminologia midiática e desenvolver uma criminologia cautelar. O texto discute a importância e o impacto do feminismo, destacando-o como um movimento teórico e ativista essencial para a transformação social. O feminismo enfrenta o desafio de não ser neutralizado por um pensamento machista e atua nas bases do poder mundial, questionando a hierarquização social construída sobre a subordinação das mulheres. Dois conceitos fundamentais trazidos pelo feminismo são o patriarcado e o gênero. O patriarcado refere-se ao domínio machista e suas implicações, enquanto o conceito de gênero distingue o sexo biológico dos papéis sociais culturalmente atribuídos. A criminologia tradicionalmente focou nos homens, ignorando a vitimização das mulheres, que sofrem não só na delinquência de rua, mas também na violência doméstica e no tráfico de pessoas. O texto também menciona a falta de uma crítica criminológica desenvolvida sobre a questão gay, apesar de algumas contribuições importantes. A vitimologia trouxe à luz os danos ignorados, mas o feminismo enfatizou a metade da população negligenciada pela criminologia. Adicionalmente, o texto destaca a indiferença moral da sociedade em face de danos sociais massivos, como a fome e a miséria, sugerindo que a criminologia deve expandir seu campo para incluir esses danos sociais. Por fim, critica a criminologia por ignorar crimes de massa cometidos por agências estatais, como genocídios e massacres, argumentando que esses crimes devem ser estudados com seriedade dentro da criminologia. O texto aborda a omissão significativa da criminologia acadêmica em relação aos assassinatos estatais em massa, com poucas exceções como os trabalhos de Leo Alexander (1948) e Sheldon Glueck (1944). Recentemente, houve um aumento na produção de estudos sobre o tema, com destaque para o livro de Wayne Morrison, "Criminologia, civilização e a nova ordem mundial" (2006). Morrison critica a separação hobbesiana entre o espaço civilizado e o não civilizado, destacando como o ataque de 11 de setembro de 2001 desfez essa distinção ao atingir o World Trade Center, símbolo da tecnologia e segurança globalizadas. O evento fez os Estados Unidos perceberem o mundo externo de forma abrupta, reforçando um nacionalismo exacerbado pela administração Bush, que usou a retórica da guerra contra o crime para justificar ações militares, apagando as fronteiras entre controle interno e externo. Morrison destaca a emergência de um novo populismo emocional, politização e uma normalização das altas taxasde criminalidade, além de uma nova relação entre crime e mídia de massa. Ele argumenta que a criminologia é um produto de Estados-nação construídos pela violência e genocídio, onde a história é escrita pelos vencedores. Os índices de criminalidade reportados nos países onde houve genocídios não incluem as mortes resultantes desses crimes, criando uma "estatística criminal apartheid". A criminologia, portanto, só coleta dados condicionados pelo poder dos Estados-nação, ignorando crimes de massa cometidos por agências estatais. Morrison apresenta uma lista impressionante de crimes de massa entre 1885 e 1994, questionando se é possível globalizar a estatística criminal e como se poderia criar uma imagem estatística de uma sociedade mundial de risco. Ele também critica a criminologia neocolonialista por não dar atenção aos julgamentos de Nuremberg e Tóquio, argumentando que, se Hitler tivesse cometido seus crimes apenas dentro da Alemanha, os campos de concentração teriam ficado impunes. Morrison rejeita a ideia de que os grandes crimes do século passado são exceções, afirmando que os participantes desses crimes eram pessoas normais. Ele compara execuções públicas exemplares com a secreta fabricação de cadáveres nos campos de extermínio, apontando objetivos diferentes entre reafirmação do poder e a eliminação secreta. Ao final, Morrison observa a relação entre Bush e Bin Laden, onde o terrorismo é tratado como ato de guerra, excluindo os terroristas das garantias penais e das Convenções de Genebra. Ele relaciona essa prática ao equivalente moderno da lei marcial nos regimes coloniais e ao Führerprinzip nazista. A tese central é a constatação de Carl Schmitt sobre a planetarização trágica da doutrina da segurança nacional dos anos 1970 na América do Sul, propondo que esse caminho teórico deve ser reelaborado e aprofundado. Nos Estados Unidos, as características do Estado mudaram radicalmente com a adoção do que é conhecido como New Punitiveness (neopunitivismo). Esta mudança transformou o sistema penal americano, resultando em uma série de práticas e políticas repressivas. Atualmente, um em cada três homens negros entre 20 e 29 anos está criminalizado, um em cada cem americanos está preso, e muitos outros estão sob vigilância com liberdade condicional ou vigiada. Além disso, pessoas condenadas por qualquer delito enfrentam inabilitações permanentes, como a perda do direito ao voto. A política do "three strikes and you're out" impõe penas de confinamento perpétuo para reincidentes, independentemente da gravidade dos crimes, e famílias de condenados são excluídas da convivência social e privadas de benefícios sociais. Trabalhos forçados foram restabelecidos e, desde o fim da moratória da pena de morte nos anos 1970, cerca de 1.300 execuções foram realizadas, incluindo de doentes mentais e menores de idade. Governadores usam execuções como ferramenta de campanha, condenações são frequentemente obtidas sem julgamento justo, e métodos imorais de investigação são utilizados, incentivando denúncias dentro da família. Esta "nova" face do sistema penal americano tem sido descrita como um renascimento do "nazismo penal", oferecido como modelo global. Entre os principais estudiosos deste fenômeno estão David Garland, Loïc Wacquant e Jonathan Simon. David Garland, autor de "A Cultura do Controle" (2001), descreve uma sociedade pós-moderna esquizofrênica, que combina uma criminologia da vida cotidiana, focada em prevenção mecânica e eletrônica do crime, com uma criminologia do "outro", que ressurge com um caráter vingativo, herdeira das versões mais sombrias do positivismo antigo. Garland destaca a contradição de se tratar o crime como algo normal e, ao mesmo tempo, dramatizá-lo ao extremo. Loïc Wacquant, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, aborda o sistema pós-fordista que, segundo ele, precariza o trabalho, intensifica discriminações e segregações raciais e de classe, e relega os mais afetados pelo neoliberalismo a bairros pobres e marginais. Wacquant chama este aparato de Estado penal, que ele também considera um Estado racial devido à continuidade do racismo institucional. Para ele, a criminalização da pobreza e a precarização do trabalho fragmentaram a solidariedade comunitária, substituindo-a por um "supergueto" sem sentimento de comunidade. Jonathan Simon, também professor em Berkeley, publicou "Governing through Crime" (2007), onde analisa como a transformação institucional e social levou ao autoritarismo penal atual. Simon atribui essa mudança à deslegitimação gradual do Estado de bem-estar, iniciada com a campanha de Barry Goldwater em 1964, e intensificada pelas guerras contra o crime e o terrorismo promovidas por presidentes subsequentes. Para Simon, governar tendo o crime como referência transforma o modelo punitivo em uma técnica geral de governo, que permeia todas as esferas sociais, ameaçando a democracia. Simon destaca que a figura da vítima-herói pode representar uma ameaça à democracia, uma vez que a administração dos medos se torna uma forma de governo. Ele observa que, desde a década de 1960, houve uma transição no imaginário coletivo do trabalhador manual para a vítima do crime como modelo do cidadão comum. Esta mudança foi acelerada pelos presidentes que transferiram a política punitiva de suas experiências como governadores para o governo federal, promovendo campanhas vingativas e reformas legislativas que reduziram a autonomia judicial. Essas campanhas políticas usaram o medo para consolidar o poder, justificando medidas autoritárias e punitivas. Simon argumenta que o governo por meio do medo fabrica inimigos para neutralizar qualquer oposição ao poder punitivo ilimitado. Ele ressalta a necessidade de investigações similares à sua em outros países para entender a globalização dessa técnica de governo. Em resumo, a transformação do sistema penal nos Estados Unidos, caracterizada pelo neopunitivismo, reflete uma combinação de mudanças culturais, estruturais e institucionais que resultaram em um modelo de governança autoritário e punitivo, com profundas implicações sociais e democráticas. REFERÊNCIAS ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.