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H 5 c offfl ^ Benedict Anderson
NAÇÃO
E CONSCIÊNCIA
NACIONAL
Tradução de
Lólio Lourenço de Oliveira
He regards it as his task to brush history against the grain*
Walter Benjamin, fí/uminations
Thus from a Mixture of ali kinds began,
That Hefrogeneous Thing, An Englishman:
In eager Rapes, and furious Lust begot,
Betwixt a Painted Britton and a Scot.
Whose gend'ring Offspring quickly learnt to bow,
And yoke their Heifers to the Roman Plough:
From whence a Mongrel half-bred Race there carne, •
With neither Name nor Nation, Speech or Fame.
In whose hot Veins new Mixtures quickly ran,
!nfus'd betwixt a Saxon and a Dane.
While their Rank Daughters, to their Parents just,
Rece'iv'd ali Nations with Promiscuous Lust.
This Nauseous Brood directly did contaín
The well-extracted Blood of Engfíshmen...*"
Excerto de Daniel Defoe, The True-Bom Englishman
SUMÁRIO
l Encara como tarefa sua contrariar o sentido da história.
' Assim da uma mistura de todos os tipos começou
£ssa coisa heterogénea, um inglês;
Gerado em estupros ardentes e arrebatada luxúria
Entre um bretso sardento e um escocês'.
' Cuja prole procriadora logo aprendeu a curvar-se,
E jungiu suas novilhas ao arado romano:
.E dal uma raça mestiça impura se originou,
Sem nome nem nação, sem fala ou fama.
Em cujas vaias ardentes novas mesclas logo se fundiram.
Infundidas entre um saxão e um dinamarquês.
Enquanto suas filhas nobres, exatamente como os pais.
Receberam todas as nações com promíscua luxúria.
Essa raça repulsiva continha do fato diretamente
O sangue de boa extração dos ingleses...
1. Introdução •
2. Raízes culturais
3. As origens da consciência nacional',,
4. Antigos impérios, novas nações
5. Antigas línguas, novos modelos
6. Nacionalismo oficial e imperialismo
7. A última onda _____________
8. Patriotismo e racismo
9. O anjo da história
Bibliografia __
índice alfabético
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l
INTRODUÇÃO
Talvez não se tenha ainda percebido que está ocor-
J rendo uma transformação fundamental na história do
marxismo e dos movimentos marxistas. Seus sinais mais
perceptíveis são as recentes guerras entre o Vietnã, o Cam-
boja e a China. Essas guerras são de importância históri-
ca mundial, por serem as primeiras a ocorrer entre regi-
mes cuja independência e credenciais revolucionárias são
( inegáveis, e porque nenhum dos beligerantes procurou, se-
não perfunctoriamente, justificar o derramamento de san-
gue em termos de uma perspectiva teórica marxista aceitá-
vel. Embora fosse ainda perfeitamente possível interpre-
tar os conflitos fronteiriços de 1969 entre a China e a
União Soviética, as intervenções militares soviéticas na
Alemanha (1953), na Hungria (1956), na Checoslováquia
(1968) e no Afeganistão (1980), em termos de — confor-
me o gosto — "imperialismo social", "defesa do socialis-
í mo", etc., ninguém, penso eu, acreditará seriamente que
esse tipo de vocabulário tenha muito a ver com o que ocor-
reu na Indochina.
Se a invasão e a ocupação vietnamitas do Camboja,
em dezembro de 1978 e janeiro de 1979, representaram a
primeira guerra convencional em grande escala empreen-
t dida por um regime marxista revolucionário contra ou-
iro. ' o ataque da China ao Vietnã, em fevereiro, confir-
as;/ rapidamente o precedente. Apenas os mais confiantes
-•leriam apostar que, nos anos finais deste século, qual-
quer deflagração importante de hostilidades entre Estados
encontrará a União Soviética e a China Popular — para
não falar nos Estados socialistas menores — apoiando ou
combatendo do mesmo lado. Quem pode estar seguro de
que a lugoslávia e a Albânia não irão entrar em choque al-
gum dia? Os variados grupos que pedem a retirada do Exér-
cito Vermelho de seus acampamentos na Europa Oriental
devem recordar o quanto a presença dominante dessas for-
ças tem evitado, desde 1945, conflitos armados entre os re-
gimes marxistas da região.
Essas considerações são úteis para salientar o fato de
que, desde a Segunda Grande Guerra, cada uma das revolu-
ções vitoriosas tem-se definido em termos nacionais — a Re-
pública Popular da China, a República Socialista do Vietnã,
e assim por diante — e, ao f aze-Io, basearam-se firmemente
em um espaço territorial e social herdado do passado pré-re-
voliicionário. Ao contrário, o f ato de a União Soviética com-
partilhar com o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do
Norte o mérito incomum de não incluir a nacionalidade em
sua denominação indica que ela tanto é a legatária dos Esta-r
dos dinásticos pré-nacionais do século XIX, quanto a precur-
sora de uma ordem internacionalista do século XXI. 2
Eric Hobsbawm está perfeitamente correto ao afirmar
que "os movimentos e Estados marxistas tenderam a tor-
1 Exprimimo-nos dessa maneira apenas para enfatizar a escala e o estilo da luta, e não
como censura. Para evitar possíveis mal-entendidos, é preciso dizer que a invasão
de dezembro de 1978 originou-se de choques armados, possivelmente desde 1971,
entre guerrilheiros dos dois movimentos revolucionários. Depois de abri! de 1977, ata-
ques fronteiriços, iniciados pelos cambojanos, mas logo imitados pelos vietnamitas,
aumentaram em grandeza e alcance, culminando na incursão vietnamita mais impor-
tante de dezembro de 1977, Nenhum desses ataques, porém, visava à derrubada do
regime do inimigo, ou ã ocupação de granda extensão de território, bem como o nú-
mero de soldados envolvidos n5o ers comparável ao que se deslocou om dezembro
de 1978. A controvérsia a respeito das causas da guerra 6 investigada ponderadarnen-
te em Stepnen P. Hader, "The Kampuchean-Vietnamese Confliet", in David W. P. El-
liott, org., The Ttârd Indochina Confíict, p. 21-67; Anthony Batnett, "Inter-Commu-
nist Conflicts and Vietnam", Bvllstin of Concerned Asían Scbolars, 11:4 (outubro-de-
zembro de 1979), p, 2-9; e Laura Summers, "In Matters of War and Sccialism An-
thony Barnett would Shsme and Honour Kampuchsa Too Much", ibid., p. 10-8.
3 Se alguém duvidar de que o Reino Unido merece asso tipo de paridade com a URSS,
devaié Indagar-se que nacionalidade sã denota por oste nome: grâo-breto-irlandês?
11
nar-se nacionais não apenas na forma, mas também na subs-
tância, isto é, nacionalistas. Nada indica que essa tendên-
cia não persistirá". 3 E essa tendência não se limita ao
mundo, socialista. Quase todos, os anos, as Nações Unidas
admitem novos membros. E muitas das "velhas nações",
antes consideradas plenamente Consolidadas, vêem-se amea-
çadas por "sub"-nacionalismoâ no interior de suas frontei-
ras — nacipnalismos que, naturalmente, sonham com li-
vrar-se algum dia dessa condição de "sub". A realidade é
muito clara: o "fim dos tempos do nacionalismo", há tan-
to tempo profetizado, não está à vista, nem de longe. De
fato, a nation-ness * constitui o valor mais universalmente
legítimo na vida política de nossa era.
Porém, se os fatos são evidentes, sua explicação conti-
nua sendo .tema de uma disputa há muito existente. Nação,
nacionalidade, nacionalismo — todos têm-se demonstrado
difíceis de definir, quanto mais de analisar. Em contraposi-
ção à enorme influência que o nacionalismo tem exercido
no mundo moderno, é notoriamente escassa a teoria plausí-
vel a respeito de.le. Hugh Seton-Watson, autor do indubita-
velmente melhor e mais abrangente texto em língua ingle-
sa a respeito do nacionalismo, e herdeiro de vasta tradição
da historiografia e da ciência social liberais, observa pesaro-
samente: "Desse modo, sou levado à conclusão de que não
se pode estabelecer nenhuma 'definição científica1 de nação;
contudo, o fenómeno tem existido e continua a existir". 4
Tom Nairn, autor da obra pioneira The Break-up of Bri-
tam, e herdeiro da não menos vasta tradição da historiogra-
fia e da ciência social marxistas, observa francamente: "A
teoria do nacionalismo representa o grande fracasso histó-
rico do marxismo", s Até mesmo essa confissão, porém,
é algo enganadora, na medida em que se possa considerar
3 Eric Hobsbawm, "Some Rofloctions on 'The Braak-up o.f Britain' ". tJeitr Lelt Review*
105 (setambro-outubrode 1977). p, 13.
" O autor emprega diversas vezes a palavra nation-ness, por ele cunhada, em lugar de
' natlonalíly !cf. p, 12). Impossível criar um correspondente português; por isso, manti-
ve em Inglês todas as vezes (MT).
4 Ver seu Nations and States, p. 5. Grifo nosso.
5 Ver seu "The Modern Jsnus", New Left Review, 94 Inovembro-dszembro do 1975),
p. 3. Este ensaio foi incluído sem alterações como capitulo 9 do The Break-up of Brí-
tsin (p. 329-63I.
12
que implica no resultado lastimável de uma busca prolonga-
da e deliberada de clareza teórica. Seria mais exato dizer
que o nacionalismo tem se revelado uma incómoda anoma-
lia para a teoria marxista e, exatarnente por essa razão, tem
sido amplamente evitado, mais do que enfrentado. Como
explicar de outro modo a falha do próprio Marx para ex-
plicar o pronome crucial em sua memorável formulação
de 1848: "O proletariado de cada país deve, naturalmente,
antes de mais nada, ajustar contas com sua própria burgue-
sia"? 6 Como justificar doutro modo o emprego, por mais
de um século, do conceito de "burguesia nacional", sem
qualquer tentativa séria de justificar teoricamente a impor-
tância do adjetivo? Por que esta segmentação da burguesia
— uma classe mundial, visto que se define em termos das
relações de produção — é teoricamente importante?
O que este livro pretende é oferecer algumas sugestões
exploratórias para uma ínterpretaçãp mais aceitável da "a-
nomalia" do nacionalismo. Minha impressão é que, quan-
to a esse tema, tanto a teoria marxista quanto a liberal têm-
se debilitado em um tardio esforço ptolomaico para "sal-
var o fenómeno"; e que se requer, com urgência, uma reo-
rientação de perspectiva num espírito por assim dizer co-
pernicano. Parto de que a nacionalidade, ou, como talvez
se prefira dizer, devido às múltiplas significações dessa pa-
lavra, naíion-ness, bem como o nacionalismo, são artefa-
tos culturais de um tipo peculiar. Para compreendê-los ade-
quadamente é preciso que consideremos com cuidado co-
mo se tornaram entidades históricas, de que modo seus sig-
nificados se alteraram no correr do tempo, e por que, ho-
je em dia, inspiram uma legitimidade emocional tão profun-
da. Tentarei demonstrar que a criação desses artefatos, por
volta dos fins do século XVIII,7 foi a destilação espontâ-
6Karl Marx e Friedrich Engels, The Comrminist Manifesto, in Setscted Works, l, p. 46.
Grifo nosso. Em qualquer exegese teórica, a palavra "naturalmente" seria um sina)
de alerta para o leitor entusiasmado,
' Como observa Aíra Kemilãlnen, a dupla de "pais" do estudo académico sobre o nacio-
nalismo, Hans Kohn e Carlaton Haves, argumentava persuasivamente em favor des-
sa datação, Creio que suas conclusões não foram seriamente contestadas, a não ser
por ideólogos nacionalistas em determinados países. Kemilâinen observa também que
a palavra "nacionalismo" sá passou a ser amplamente empregada em fins do século
XIX. Ela não aparece, por exemplo, em muitos dicionários correntes do século XIX.
Quando Adam Srnith invoca a riqueza das "nações", não se refere com essa palavra
senão a "sociedades" ou "Estados". Aira Kemilãinen, Nationalism, p. 10, 33 e 48-9-
nea de um "cruzamento" complexo de forcas históricas;
mas que, uma vez criados, tornaram-se "modulares", pas-
síveis de serem transplantados, com graus diversos de cons-
ciência e a grande variedade de terrenos sociais, para se in-
corporarem à variedade igualmente grande de constelações
políticas e ideológicas. Procurarei também demonstrar por
que esses artefatos culturais peculiares têm suscitado afetos
tão profundos.
Conceitos e definições
Antes de tratarmos das questões acima propostas, pa-
rece aconselhável considerar sumariamente o conceito de
"nação" e oferecer uma definição viável. Os teóricos do
nacionalismo têm, muitas vezes, ficado perplexos, para não
dizer irritados, com estes três paradoxos: 1. A modernida-
de objetiva das nações aos olhos do historiador vs. sua an-
tiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas. 2. A uni-
versalidade formal da nacionalidade como conceito socio-
cultural — no mundo moderno, todo mundo pode e deve
"ter", e "terá" uma nacionalidade, tanto quanto terá um
sexo — vs. a particularidade irremediável de suas manifes-
tações concretas, tal que, por definição, a nacionalidade
"grega" é sui generis. 3. O poder "político" dos naciona-
lismos vs. sua pobreza, e até mesmo incoerência, filosófi-
ca. Em outras palavras, diversamente da maioria dos ou-
tros "ismos", o nacionalismo jamais produziu grandes pen-
sadores próprios:-nem Hobbes, nem Tocquevilles, nem
Marxs, nem Webers. Facilmente, esse "vazio" desperta, en-
tre intelectuais cosmopolitas e poliglotas, um certo ar de su-
perioridade. Do mesmo modo que Gertrude Stein diante
de Oakland, poder-se-ia sem dúvida concluir rapidamente
que "lá não existe lá nenhum". É típico que até mesmo
um estudioso tão solidário com o nacionalismo quanto-Tom
Nairn tenha no entanto podido escrever que: "o 'naciona-
lismo' é a patologia da moderna história do desenvolvimen-
to, tão inevitável quanto a 'neurose' no indivíduo, trazen-
do consigo muito da mesma ambiguidade essencial, uma ca-
pacidade implícita semelhante para degenerar em demência,
nos dilemas do desamparo imposto à maior par-
;í do mundo (o equivalente do infantilismo, para as socie-
dades), e em grande medida incurável". 8
Parte da dificuldade é que as pessoas tendem incons-
cientemente a hipostasiar a existência do Nacionalismo-
com-N-grande — como se poderia fazer com Idade-com-I-
maiúsculo — e, a seguir, a classificá-"lo" como uma ideo-
logia. (Observe-se que, se todo mundo tem uma idade, a
Idade não passa de uma expressão analítica.) Creio que as
coisas ficariam mais fáceis, se ele fosse tratado como asso-
ciado a "parentesco" e "religião", mais do que com "libe-
ralismo" ou "fascismo".
Dentro de um espírito antropológico, proponho, en-
tão, a seguinte definição para nação: ela é uma comunida-
de política imaginada — e imaginada como implicitamen-
te limitada e soberana.
Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das
menores nações jamais conhecerão a maioria de seus com-
patriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar
deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem
de sua comunhão. 9 Renan referiu-se a esse ato de imagi-
nar, à sua maneira suavemente sarcástica, quando escreveu
que "Or l'essence d'une nation est que tous lês individus
aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous
aient oublié bien dês choses". 10 Algo ferozmente; Geílner
insiste de maneira semelhante quando estabelece que "o na-
cionalismo não é o despertar das nações para a autocons-
ciência: ele inventa nações onde elas não existem". u O in-
conveniente dessa formulação, contudo, é que Geílner es-
8 The Bre&k-up aí Britam, p. 3S9.
8 Cf. Seton-Watson, Nations antí States, p. 5: "O qua posso dizer é que uma naçSo
existe guando um número significativo de pessoas da uma comunidade considera
que constituem uma nação, ou se comportam como se constituíssem uma nação".
Podemos traduzir "considera" por "Imagina".
10 Ernest Renan, "Qu'éít-ce qu'une nation?" in Oeuvres Completes, \. p. 892. Acres-
centa ele: "tout citoyen [rançais doit avoir oublié Ia SBint-Barthélemy, lês massacres
du Midi au XVIils siècle. II n'y a pás en France dix familles qui puissent fournlr Ia preu-
ve d'une origine franqua..." (no texto: "... a essência de uma nação é que os indiví-
duos tenham muitas coisas em comum e, também, que todos tenham esquecido
muitas coisas" — na nora: "todo cidadão francês deve ter esquecido a noite do S3o
Bartolomeu, os massacres do Sul, no século XVIII. Nio na dez famílias na Franca
qua possam apresentar provas de origem franca...")
11 Emest Gollnor, Thought and Change, p. 169. Grifo nosso.
15
tá tão ansioso em demonstrar que o nacionalismo se dissi-
mula sob falsas aparências, que assimila "invenção" a "con-
trafação" e "falsidade", ao invés de assimilá-la a "imagi-
nação" e "criação". Desse modo, insinua que existem co-
munidades "verdadeiras" quese podem sobrepor vantajo-
samente às nações. De fato, todas as comunidades maiores
do que as primitivas aldeias de contato face a face (e, tal-
vez, até mesmo estas) são imaginadas. As comunidades
não devem ser distinguidas por sua falsidade/autenticida-
de, mas pelo estilo em que são imaginadas. Os aldeões ja-
vaneses sempre souberam que estavam ligados a pessoas
que jamais haviam visto, mas tais vínculos eram outrora
imaginados de maneira particuiarista — como malhas inde-
finidamente extensas de parentesco e de dependência. Até
muito recentemente, a língua javanesa não possuía uma pa-
lavra para significar a abstração "sociedade". Hoje pode-
mos pensar na aristocracia francesa do ancien regime co-
mo uma classe; mas certamente ela só foi imaginada desse
modo muito tardiamente. 12 À pergunta "Quem é o Con-
de X?", a resposta normal teria sido, não "um membro
da aristocracia", mas "o senhor de X", "o tio da Barone-
sa de Y", ou "um vassalo do Duque de Z".
A nação é imaginada como limitada, porque até mes-
mo a maior delas, que abarca talvez um bilhão de seres hu-
manos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para
além das quais encontram-se outras nações. Nenhuma na-
ção se imagina coextensiva com a humanidade. Nem os na-
cionalistas mais messiânicos sonham com um dia em que
todos os membros da raça humana se juntem a sua nação,
do mesmo modo como foi possível que em certas épocas
os cristãos, digamos, sonhassem com um planeta inteira-
mente cristão.
É imaginada como soberana, porque o conceito nas-
ceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução esta-
vam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárqui-
co, divinamente instituído. Atingindo a maturidade numa
12 Hobsbawm, por exemplo, "fixa" isso ao dizer que, em 1789, ela montava a 400.000
pessoas, numa população de 23.000.000 (ver seu The Age of Rcvolution, p. 78).
Mas essa descrição estatística da nobreza poderia ser pensada ao tampo do ancien régimoj
16
etapa da história humana em que até mesmo os mais devo-
tos adeptos de qualquer das religiões universais se defronta-
vam inevitavelmente com o pluralismo vivo de tais religiões,
e com o alomorfismo entre os reclamos ontológicos de ca-
da fé e o território ocupado por ela, as nações sonham
em ser livres e, se sob as ordens de Deus, que seja direta-
mente. O penhor e o símbolo dessa liberdade é o Estado so-
berano.
Finalmente, a nação é imaginada como comunidade
porque, sem considerar a desigualdade e expioração que
atualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempre
concebida como um companheirismo profundo e horizon-
tal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possí-
vel, no correr dos últimos dois séculos, que tantos milhões
de pessoas, não só matem, mas morram voluntariamente
por imaginações tão limitadas.
Essas mortes lançam-nos abruptamente cara a cara
com o problema fundamental proposto pelo nacionalismo:
o que faz com que as minguadas imaginações da história
recente (pouco mais de dois séculos) dêem origem a sacrifí-
cios tão colossais? Creio que as origens de uma resposta en-
contram-se nas raízes culturais do nacionalismo.
RAÍZES CULTURAIS
Não há símbolo mais impressionante da moderna cultu-
ra do nacionalismo do que os cenotáfios e os túmulos de Sol-
dados Desconhecidos. A reverência pública ritual outorgada
a tais monumentos, precisamente porque estão deliberada-
mente vazios, ou ninguém sabe quem jaz dentro deles, não
encontra precedentes em épocas passadas. ' Para que se sin-
ta a força dessa inovação, basta imaginar a reação geral a al-
gum intrometido que "descobrisse" o nome do Soldado Des-
conhecido, ou insistisse em introduzir dentro do cenotáfio al-
guns ossos de verdade. Seria um sacrilégio de estranha espé-
cie, contemporânea! Por mais que esses túmulos estejam va-
zios de quaisquer restos mortais identificáveis, ou almas imor-
tais, eles estão, porém, saturados de fantasmagóricas imagina-
ções nacionais.2 (Razão por que nações as mais diversas pôs-
1 Os antigos gregos tinham cenotáfios, porém para indivíduos determinados, conheci-
dos, cujos corpos, por uma ou outra razão, não pudessem ser recuperados para um
enterro normal. Devo essa informação a minha colega bizantinísta, Judith Herrin.
2 Considerem-se, por exemplo, estes notáveis tropos: 1. "A longa linha cinzenta jamais
nos -faltou. Se vocês fossem fazê-lo, um milhão de lantesmas em verda-oliva. em ca-
qui, em azul e em cinzento se ergueriam de sob suas cruzes brancas, bradando estas
palavras mágicas: dever, honra, pátria." í, "Minha avaliação Ido soldado norte-ame-
ricano] formou-se no campo do batalha, muitos anos atrás, a jamais se alterou. Eu o
via então, como o vejo agora, como uma das mais nobres figures do mundo; não sã
como e que possui es características militares mais perfeitas, mas também corno das
mais Imaculadas [sicl... Ele pertence á história como aquele que oferece um dos maio-
res exemplos de patriotismo bem-sucedido Isicl. Ele pertence à posteridade como o
mentor das futuras gerações nos princípios da independência e da liberdade. Ele pgr-
tance ao presente, a nós, por suas virtudes e por r MJ g s realizações." Douglas MacAr-
thur, "Duty, Honour. Country", discurso perante' ^Academia Militar dos EUA, West
Point, 12 da maio de 1962, em seu A Soldier Sp. is, p. 354 a 357.
18
suem esse tipo de túmulos, sem sentir qualquer necessidade
de especificar a nacionalidade de seus ocupantes ausentes.
Que mais poderiam eles ser senão alemães, ou norté-america-
nos, ou argentinos,... ?)
O significado cultural de tais monumentos torna-se
ainda mais claro, se se procura imaginar, digamos, um Tú-
mulo do Marxista Desconhecido, ou um cenotáfio para os
Liberais mortos. Não se poderia evitar um sentimento de
absurdo. Â razão disso é que nem o marxismo, nem o libe-
ralismo, se preocupam muito com a morte e corn a imorta-
lidade. Se a imaginação nacionalista se preocupa tanto, is-
to indica forte afinidade com as imaginações religiosas. Co-
mo essa afinidade não é absolutamente fortuita, será conve-
niente iniciar pela morte o exame das raízes culturais do na-
cionalismo, por ser ela a última de toda uma escala de fata-
lidades.
Se habitualmente parece arbitrária a maneira como
um homem morre, sua mortalidade é inevitável. A vida
humana é cheia desse tipo de associação entre necessida-
de e acaso. Estamos todos cientes da contingência e inevi-
tabilidade de nossa herança genética particular, de nosso
sexo, da época em que vivemos, de nosso potencial físi-
co, de nossa língua maternaj e assim por diante. O gran-
de mérito das visões de mundo das religiões tradicionais
(que, naturalmente, deve distinguir-se de seu papel na le-
gitimação de sistemas específicos de dominação e de ex-
ploração) tem sido sua preocupação com o homem-no-
cosmos, o homem como ser específico, e a contingência
da vida. A extraordinária sobrevivência, por milhares de
anos, do budismo, do cristianismo ou do islamismo, em
dezenas de formações sociais diversas, atesta sua respos-
ta imaginativa à esmagadora carga de sofrimento huma-
no — doença, mutilação, pesar, idade e morte. Por que
nasci cego? Por que meu melhor amigo ficou paralítico?
Por que minha filha é retardada? As religiões procuram
explicar. A grande fraqueza de todos os estilos evolucio-
nários/progressistas de pensamento, sem exclusão do
marxismo, é que tais perguntas são respondidas com um
19
silêncio intolerante. 3 Ao mesmo tempo, e 6e diferentes
modos, o pensamento religioso reage também aos obscu-
ros sinais de imortalidade, em geral transformando a fata-
lidade em continuidade (karma, pecado original, etc,).
Desse modo, ele se ocupa dos vínculos entre os mortos e
os nascituros, o mistério da reencarnação. Quem vivência
a concepção e o nascimento do próprio filho sem ter a in--
definida sensação de uma mistura de conexão, casualida-
de e fatalidade em uma linguagem de "continuidade"?
(Também aqui a desvantagem do pensamento evolucioná-
rio/progressista é uma hostilidade quase heraclitiana a
qualquer ideia de continuidade.)
Trago àbaila essas observações talvez simplórias,
primordialmente porque, na Europa ocidental, o século
XVIII assinala não apenas o raiar da era do nacionalis-
mo, mas também o crepúsculo das modalidades religiosas
de pensamento. O século do Iluminismo, da secularidade
racionalista, trouxe consigo suas peculiares trevas moder-
nas. Com o refluxo da fé religiosa, não desapareceu o só-'
frimento que a fé em parte mitigava. Desintegração do pa-
raíso: nada torna a fatalidade mais arbitrária. Absurdo
da salvação: nada torna mais necessário um outro estilo
de continuidade. O que se.demandava, então, era uma
transformação secular da fatalidade em continuidade, da
contingência em significado. Como veremos, poucas coi-
sas se adaptavam (se adaptam) melhor a essa finalidade
do que uma ideia de nação. Se é amplamente reconheci-
do que os Estados-nação são "novos" e "históricos",
3 Cf. Régis Debray, "Marxism and the National Question", Wew Lett Ftevien, 105 (se-
tombro-outubro de 1977), p, 29. No correr de uma pesquisa de campo na Indonésia,
na década de 1960, chocou-me a deliberada recusa do muitos muçulmanos o m acoi-
tar as ideias de Oarwin. De início, interpretei essa recusa como obscurantismo. Pos-
teriormente, vim a compreender que 03 trata de unia louvável tentativa de ser coe-
rente: simplesmente a doutrina da evolução ara incompatível com os ensinamentos
do Islã, Que devemos nos fazer com um materialismo cientifico que formalmente ad-
mita as descobertas da física sobre a matéria e, contudo, esforça-se tão pouco pá*
rã ligar essas descobertas à luta de classes, a revolução, ou ao que quer que seja?
O abismo entre os pró tons e o proletariado não ocultaria uma nfio admitida concep-
ção metafísica do homem? Veja porém os interessantes textos de Sebastiano Ttmpa-
naro, On Materielisiw and The Freudian Sfíp: e a ponderada réplica de Ravmond Wil-
liams, "Timpanaro's Materialíst Chatlenge", A/etv Lett flewsw, 109 Imaio-junho de
1978), p. 3-17.
20 21
as nações a que eles dão expressão política assomam de
um passado imemorial, 4 e, ainda mais importante, desli-
zam para um futuro ilimitado. A mágica do nacionalis-
mo consiste em transformar o acaso em destino. Pode-
mos dizer, com Debray, "Sim, é inteiramente acidental
que eu tenha nascido francês; mas, afinal de contas, a
França é eterna".
Não é preciso dizer que não estou declarando que o
aparecimento do nacionalismo em fins do século XVIII
foi "produzido" pela erosão das certezas religiosas, ou
que essa erosão não exija, ela mesma, uma explicação com-
plexa. Como também não estou sugerindo que de algu-
ma forma o nacionalismo "suplanta" historicamente a re-
ligião. O que proponho é que o nacionalismo deve ser
compreendido pondo-o lado a lado, não com ideologias
políticas abraçadas conscientemente, mas com os sistemas
culturais amplos que o precederam, a partir dos quais
— bem como contra os quais — passaram a existir.
Para nossos objetivos, os dois sistemas culturais rele-
vantes são a comunidade religiosa e o reino dinástico.
Pois ambos, em seu apogeu, eram aceitos como verdadei-
ros quadros de referência, tanto quanto é, hoje em dia,
a nacionalidade. É essencial, por isso, considerar o que
dava a esses sistemas culturais sua manifesta plausibilida-
de e, ao mesmo tempo, salientar determinados elementos-
chave de sua decomposição.
4 O falecido presidente Sukarno sempre falou com inteira sinceridade sobre os trezen-
tas e cinquenta anos de colonialismo suportados por sua "Indonésia", embora o pró-
prio conceito de "Indonésia" seja ume invenção do século XX, e a maior parte da In*
donásia de hoje tenha sido conquistada pelos holandeses entre 1850 e 1910. Entre
os heróis nacionais da indonésia contemporânea tem primazia o príncipe javanês do
início do século XIX, Oíponegoro, muito embora as próprias memórias desse prfnci-
pe mostrem que ele, antes, pretendia "conquistar InSo ItbertarlJ Java". do que ex-
pulsar "os holandeses". De fato, é evidente que ele não tinha um conceito de "ho-
landeses" como uma coletividade. Var Harry J. Bonda e John A. Larkin, orgs., The
WbfltiofSoulheastAsia, p, 158: e Ann Kumar, "Dtponegoro 117787-1855)", Indoné-
sia, 13 (abril de 1972), p. 103. Grifo nosso. Analogamente, K em ai Ataturk deu a
um de seus bancos estatais o nome de Eti Banka (Banco Hitita) s a outro. Banco Su-
meriano (Seton-Watson, Natlons and States, p. 259). Esses bancos são prósperos
hoje em dia e não há razão pare duvidar-se de que muitos turcos, possivelmente sem
excluir o próprio Kemal, viarn e vêem, seriamente, nos hititas e nos sumerianos,
seus ancestrais turcos. Antes de começar a rir, devemos lembrar de Artur e Boadi-
céia. e refletir sobre o êxito comercial das mitografias de Tolkien.
A comunidade religiosa
Poucas coisas causam maior impressão do que a enor-
me extensão territorial da Ummah Islam, do Marrocos ao
Arquipélago Sulu; da cristandade, do Paraguai ao Japão; e
do mundo budista, do Sri Lanka à península coreana. As
grandes culturas, sagradas (e, para nossos fins, é permissível
que incluamos o "confucionismo") incorporaram concep-
ções de comunidades imensas. Porém, a cristandade, a Um-
mah Islam, e até mesmo o Império do Centro — o qual, em-
bora hoje pensemos nele como chinês, não se imaginava co-
mo chinês, mas sim como central — eram imagináveis em
grande parte mediante uma linguagem sagrada e um texto es-
crito. Basta tomar o exemplo do Islam: se maguindanaos e
berberes se encontram em Meca, embora nada conheçam
da língua um do outro e sejam incapazes de se comunicar
oralmente, compreendem no entanto os ideogramas uns dos
outros, porque os textos sagrados que compartilham só exis-
tem em árabe clássico. Nesse sentido, o árabe escrito funcio-
nou como os caracteres chineses para criar uma comunida-
de a partir dos signos, e não a partir dos sons. (Assim, ho-
je em dia, a linguagem matemática continua uma velha tra-
dição. Os romenos não têm a menor ideia de como o sinal
" + '' é chamado pelos tai, e vice-versa, mas uns e outros
compreendem o símbolo.) Todas as grandes comunidades clás-
sicas concebiám-se como cosmicamente centrais, mediante
uma linguagem sagrada vinculada a uma ordem de poder su-
praterrestre. Conseq-iientemente, o alcance do latim, do páli,
do árabe, ou do chinês escritos era, teoricamente, ilimitado.
(Na verdade, quanto mais morta a lingua escrita — quanto
mais distante estivesse da fala — melhor: em princípio, to-
do mundo tem acesso a um mundo abstrato de signos.)
Contudo, tais comunidades clássicas vinculadas por
línguas sagradas tinham caráter distinto das comunidades
imaginadas das nações modernas. Diferença essencial era
a segurança das antigas comunidades quanto à sacralida-
de singular de suas línguas e, daí, suas ideias a respeito
da admissão de novos membros. Os mandarins chineses en-
caravam com aprovação os bárbaros que penosamente
aprendiam a desenhar os ideogramas do Império do Centro.
22
Tais bárbaros já estavam a meio caminho da absorção com-
pleta. 5 Ser meio-civilizado era muitíssimo melhor do que
ser 'bárbaro. Essa atitude não era por certo peculiar aos
chineses, nem limitada à antiguidade. Observem, por exem-
plo, a seguinte "política relativa aos bárbaros" formula-
da em princípios do século XIX pelo liberal colombiano
Pedro Fermín de Vargas:
Para expandir nossa agricultura seria necessário hispanizar
nossos índios. Sua preguiça, sua estupidez e sua indiferen-
ça em relação aos empreendimentos humanos normais le-
vam a pensar que provêm de uma raça degenerada que
se deteriora à medida que se distancia de suas origens...
seria muito desejável que os índios fossem extintos, pela
miscigenação com os brancos, sendo declarados livres de .
impostos e outros encargos, e sendo-lhes atribuída a pro-
priedade privada da terra. 6
Como é admirável que esse liberal ainda proponha "extin-
guir" seus índios em parte "declarando-os livres de impos-
tos" e "atribuindo-lhes a propriedade privada da terra", è"
não exterminando-os pelas armas e pelos micróbios, como
seus sucessores no Brasil, na Argentina enos Estados Uni-
dos começariam a fazer logo depois. Observe-se, também,
paralelamente à condescendente crueldade, o enorme otimis-
mo: em última análise, o índio pode ser redimido — median-
te fecundação com o sémen branco, "civilizado", e o rece-
bimento de propriedade privada, como qualquer outra pes-
soa. (Quão diferente é a atitude de Fermín da preferência
dos imperialistas europeus posteriores por "autênticos" ma-
laios, gurcas e haussas a "mestiços", "nativos semi-instruí-
dos", "wogs", e coisas assim.)
Contudo, se as mudas línguas sagradas eram o meio
pelo qual as grandes comunidades globais do passado eram
imaginadas, a realidade de tais aparições dependia de uma
ideia em grande medida estranha ao pensamento ocidental
contemporâneo: a não-arbitrariedade do signo. Os ideogra-
mas da língua chinesa, latina ou árabe eram emanações da
s Dal a equanimidade com que mongóis e manchus achinesados eram aceitos como
Filhos do Céu,
6 John Lynch, Tfte Spanish-American Revoltitians, 1803-1826. p. 260. Grifos nossos.
23
realidade e não representações suas, aleatoriamente fabrica-
das. Todos conhecemos bem a longa disputa a respeito da
língua adequada para as massas (latim ou língua vulgar").
Na tradição islâmica, até muito recentemente, o Corão era
literalmente intraduzível (e, por isso, não era traduzido),
porque a verdade de Alá somente era acessível mediante
os insubstituíveis signos verdadeiros da língua árabe escri- '
ta. Não existe, neste caso, nenhuma ideia de .um mundo tão
desligado da língua que todas as línguas constituíssem pa-
ra ele signos equidistantes (e, portanto, intercambiáveis).
De fato, a realidade ontológica somente é apreensível por
meio de um sistema único e privilegiado de re-[a]presenta-
ção: a língua-verdade do latim da Igreja, do árabe do Cõ-
rão, ou o chinês dos exames. 7 E, como línguas-verdade, im-
pregnadas de um impulso em grande medida estranho ao
nacionalismo, o impulso para a conversão. Por conversão,'
não quero tanto dizer a aceitação de dogmas religiosos par-
' ticulares, mas uma absorção alquímica. Os bárbaros torna-
ram-se "Império do Centro", os rif, maometanos, os ilon-
go, cristãos. A natureza toda do ser. humano é maleável
do ponto de vista sagrado. (Contraste o prestígio dessas an-
tigas línguas mundiais, pairando muito acima de todas as
línguas vulgares, com o esperanto ou o volapúk, que jazem
ignorados entre aquelas e estas.) Afinal de contas, foi essa
possibilidade de conversão pela língua sagrada que tornou
possível que um "inglês" se tornasse Papa 8, e um "man-
chu", Filho do Céu.
Mas muito embora as línguas sagradas tornassem ima-
gináveis comunidades como a cristandade, o verdadeiro al-
cance e plausibilidade dessas comunidades não podem ser
explicados apenas pelo texto sagrado: afinal,"seus leitores
eram pequeninos recifes letrados por sobre enormes ocea-
"Llngua vulgar" foi a tradução que adotamos para vsrnacular, que o autor empre-
ga para referir-se à língua utilizada pelo comum das pessoas, G "n oposição Ss "lín-
guas sagradas" (NT).
' A Igreja grega pareço n3o ter atingido o status de uma Kngua-vardade. As razões
desse "fracasso" s3o divorsns, mus um fator-ciiavo (01 corlamontu o falo do quo n
Hngua grega continuou sendo uma fala vulgar viva (diferentemente do laiiml em gran-
de parte do império Oriental. Devo esse insight a Judith Herrin.
8 Michelas Brakespear assumiu o posto de pontífice entra 1154 e 1159, com o nome
de Adriano IV.
24
nos analfabetos. 9 Uma explicação mais completa exige que
se aluda à relação entre os homens de letras e suas socieda-
des, Seria enganoso encarar aqueles como uma espécie de
tecnocracia teológica. As línguas que eles sustinham, ain-
da que obscuras, nada tinham da obscuridade preparada
dos jargões dos advogados ou dos economistas, à margem
da ideia que a sociedade tem da realidade. Ao invés disso,
os homens de letras eram iniciados, estratos estratégicos
em uma hierarquia cosmológica cujo ápice era divino. 10
As concepções básicas a respeito de "grupos sociais" eram
centrípetas e hierárquicas, e não norteadas por fronteiras e
horizontais. O espantoso poder do papado, em seu esplen-
dor, só é compreensível em termos de uma classe transeuro-
péia de letrados em escrita latina e de uma concepção do
mundo compartilhada virtualmente por todos, da qual a in-
telligenísia bilíngue, mediando entre a língua vulgar e o la-
tim, servia de mediador entre a terra e o céu. (O aterrador
da excomunhão reflete essa cosmologia.)
Apesar de toda a grandeza e poder das grandes comu^
nidades imaginadas religiosamente, sua coerência não deli-
berada desvaneceu-se rapidamente depois do final da Ida-
de Média. Dentre as razões dessa decadência, desejo desta-
car apenas as duas que se relacionam diretamente com a sa-
cralidade singular dessas comunidades.
Em primeiro lugar, havia o efeito, na Europa, das
descobertas do mundo não-europeu, que, de modo prepon-
derante, mas de modo algum exclusivamente, "alargaram
abruptamente o horizonte cultural e geográfico e, com is-
so, também a concepção dos homens sobre as formas pos-
síveis de vida humana". " O processo já aparecia claramen-
te no maior de todos os livros de viagem europeus. Obser-
9 Marc Bloch lembra-nos que "a maioria dos senhores e muitos grandes barões (dos
tempos medievais] eram administradores incapazes de examinar pessoalmente um
relatório ou uma conta". Feudal Society, l, p. 81.
10 Isso nlo quer dizer que os analfabetos não liam. O que liam. porém, não eram pala-
vras, mas o mundo observável. "Aos olhos de todos os que eram capazes de refle
xão, o mundo material era pouco mais do que uma espécie de máscara, por detrás
da qual tinham lugar todas as coisas realmente importamas;'e!e lhes parecia tam-
bém uma língua, destinada a expressar por meio de símbolos uma realidade mais
profunda." Bloch, p, 83.
Erich Auerbach, Mimesis, p. 282.
25
vê a seguinte descrição reverente de Kublai Khan, feita pe-
lo bom veneziano cristão Marco Polo, em fins do século XIII:12
O grande cã, após obter essa memorável vitória, retornou
em grande pompa e triunfo à capital de Kanbalu. Isso teve
lugar no mês de novembro, e ali continuava a residir nos
meses de fevereiro e março; no último dos quais era nos-
sa festa da Páscoa. Ciente de que essa era uma de nossas
principais comemorações, ordenou que todos os cristãos
fossem até ele, trazendo consigo seu Livro, que contém
os quatro evangelhos. Após fazer com que ele fosse repeti-
das vezes perfumado com incenso, de maneira solene, bei-
jou-o com devoção e determinou que o mesmo fizessem to-
dos os seus nobres ali presentes. Esse era seu rnodo habi-
tual de agir em cada uma das festas cristãs mais importan-
tes, como a Páscoa e o Natal; e agia semelhantemente nas
festas dos sarracenos, dos judeus e dos idólatras, Quando
lhe foi perguntado o motivo dessa conduta, disse ele: "Há
quatro grandes profetas que são reverenciados e venerados
pelas diversas classes de humanidade. Os cristãos encaram
Jesus Cristo como sua divindade; os sarracenos, Maomé;
os judeus, Moisés; e os idólatras, Sogomombar-kan, o mais
eminente de todos os seus ídolos. Reverencio e mostro res-
peito a todos os quatro, e invoco para mim a ajuda de se-
ja qual for demre eles que é verdadeiramente o supremo
no céu". Porém, pela maneira pela qual sua majestade agia
diante deles, é evidente que encarava a fé dos cristãos co-
mo a mais verdadeira e a melhor.,.
O que há de mais notável nessa passagem não é tanto
o tranquilo relativismo religioso (ainda que um relativismo
religioso) do grande -governante mongol, como a atitude e
a linguagem de Marco Polo. Jamais lhe ocorre, embora es-
crevendo para cristãos europeus seus iguais, qualificar Ku-
blai de hipócrita ou idólatra. (Sem dúvida, em parte, por-
que "quanto ao número de súditos, à extensão do território
e ao montante da receita, ele supera qualquer soberano que
haja existido ou que agora exista no mundo".) n E na utili-
zação inconsciente de "nosso" (que se torna "seu") e na re-
1J Marco Polo, The Traveis of MarcoPolo, p. 158-3. Grifos nossos. Observe-se que,
embora beijado, o Evangelho não é lido,
'3|bid., p. 152.
26
ferência à fé dos cristãos como "mais verdadeira", em vez
de "verdadeira", podem-se descobrir as sementes de uma
tcrritorializacão das fés, que faz antever a linguagem de
muitos nacionalistas ("nossa" nação é "a melhor" — em
um campo comparativo, competitivo).
Que contraste revelador oferece o começo da carta es-
crita pelo viajante persa "Rica" a seu amigo "Ibben", de
Paris, em "1712'Vi. 14
O Papa é o chefe dos cristãos; é um ídolo antigo, agora re-
verenciado por hábito. Outrora, ele amedrontava até mes-
mo os príncipes, pois podia depô-los tão facilmente quan-
to nossos magníficos sultãos depõem os reis da Iremécia
ou da Geórgia. Agora, porém, ninguém mais o teme. Ele
proclama ser o herdeiro de urn dos antigos cristãos, chama-
do São Pedro, e essa é por certo uma rica herança, pois
seu tesouro é imenso e eie tem um grande país sob seu
controle.
As deliberadas e elaboradas invencionices do católico
do século XVIII reproduzem o realismo ingénuo de seu pre-
decessor do século XIII, mas agora a "relativizacão" e a
"territorializacão" são perfeitamente conscientes, e coro in-
tenção política. Não seria razoável que urna elaboração pa-
radoxal dessa tradição, na identificação do Grande Satã fei-
ta pelo Ayaíollah Ruhollah Khomeini, fosse vista'não co-
mo uma heresia, nem mesmo como um personagem demo-
níaco (o pequenino Cárter dificilmente preencheria os requi-
sitos), mas como uma nação!
Em segundo lugar, foi uma deterioração gradual da
própria língua sagrada. Escrevendo a respeito da Europa
ocidental medieval, Bloch observou que "o latim não era
apenas a língua em que se ministrava o ensino, ele era a
única língua ensinada", l5 (Este "única" demonstra muito
claramente a sacralidade do latim — nenhuma outra língua
era considerada digna de ser ensinada.) Mas no século XVI
tudo isso já se estava alterando rapidamente. As razões des-
sa mudança não devem demorar-nos aqui: a importância
central do capitalismo editorial (print-capitalism) será discu-
tida mais adiante. Basta que nos lembremos de sua dimen-
são e ritmo. Febvre e Martin calculam que 77% dos livros im-
pressos antes de 1500 ainda eram em latim (o que significa,
no entanto, que 23% já eram em línguas vulgares). lfi Se das
oitenta e oito edições impressas em Paris, em 1501, apenas
•oito não eram em latim, depois de 1575 a maioria era sem-
pre em francês. n Apesar de uma reaparição temporária du-
rante a Contra-Reforma, a hegemonia do latim tinha seu
destino marcado. E não falamos apenas da popularidade
geral. Pouco depois, mas em velocidade não menos vertigi-
nosa, o latim deixou de ser a língua da alta intelligenísia
pan-européia. No século XVII, Hobbes (1588-1678) foi
uma figura de renome continental por escrever na língua-
da-verdade. Shakespeare (1564-1616), por outro lado, com-
pondo suas obras em língua vulgar, era virtualmente desco-
nhecido do outro lado do Canal da Mancha. 1B E se o in-
glês não se tivesse tornado, duzentos anos mais tarde, a lín-
gua mais importante mundialmente, não teria ele conserva-
do, em grande medida, sua obscuridade insular do início?
Enquanto isso, os quase contemporâneos destes homens
do outro lado do Canal da Mancha, Descartes (1596-1650)
e Pascal (1623-1662), mantinham a maior parte de sua cor-
respondência em latim; mas virtualmente toda a de Voltai-
re (1694-1778) era em língua vulgar. lô "Após 1640, com ca-
da vez menos livros saindo em latim, e cada vez mais nas
línguas vulgares, a atividade editorial foi deixando de ser
. um empreendimento internacional [sic]." 20 Em suma, a de-
cadência do latim exemplifica um vasto processo em que
as comunidades sagradas, integradas pelas antigas línguas
sagradas, gradualmente se fragmentavam, pluralizavam e
territorializavam.
14 Henti de Montesquieu, Persian Leners, p, 81. As Lettres Persanes foram publicadas
• pela primeira vez em 1721.
16 Bloch, Feudal Society, l, p. 77. Grifo nosso.
16 Lucien Febvre a Henri-Jean Martin, The Corning of the Book, p. 248-49.
17 Ibid., p. 321.
« Ibid., p. 330.
13 Ibid., p. 331-32.
20 Ibid., p. 232-3. O original francês é mais modesto e historicamente exato: "landis
que ]'on edite de mói n s en mgins cfouvrages en lati n, et une proportion toujours
plus grande de taxtes an langue nationale, Ia commerca dia livre se morcelle en Euro-
pé". L'Apparítiofi tíu Livre, p. 356. ("Uma vez que sã publicam cada vez menos
obras em latim e uma proporção sempre maior de textos em língua nacional, o co-
mércio do livro segmentou-se na Europa.")
28
O reino dinástico
Talvez seja difícil, hoje em dia, que alguém se coloque
empaticamente dentro de um mundo em que o reino dinásti-
co era visto pela maioria dos homens corno o único siste-
ma "político" imaginável. Pois, de várias maneiras essen-
ciais, a monarquia "autêntica" é transversal a todas as con-
cepções modernas de vida política. O governo do rei organi-
za tudo em torno de um centro elevado. Sua legitimidade
deriva da divindade, e não das populações, que, afinal de
contas, são súditos, não cidadãos. Na concepção moderna,
a soberania do Estado é plena, categórica e uniformemente
atuante sobre cada centímetro quadrado de um território le-
galmente demarcado. No imaginar de antigamente, porém,
onde os Estados se definiam por centros, as fronteiras eram
porosas e indistintas, e as soberanias fundiam-se impercepti-
velmente umas nas outras. 21 Daí, bastante paradoxalmente,
a facilidade com que os impérios e reinos pré-modernos
eram capazes de manter seu comando sobre populações enor-
memente heterogéneas, e muitas vezes sequer contíguas, por
longos períodos de tempo. 22
Deve-se recordar, também, que esses antigos Estados
monárquicos expandiam-se não só por meio da guerra, mas
também por uma política sexual — de espécie muito diver-
sa da que hoje se pratica. Pelo princípio geral da verticali-
dade, os casamentos'dinásticos reuniam populações diver-
sas sob novos dirigentes. Quanto a isso, a Casa dos Habs-
51 Observe-se 3 substituição na nomenclatura dos governantes, que corresponde a es-
sa transformação. Os escolares lembram-sa dos monarcas por seus primeiros no-
mes (qual era o sobrenome da Guilherme, o Conquistador?), e dos presidentes pe-
lo seu último nome (qual era o nome de batismo de Ebert?!. Num mundo de cida-
dãos, todos eles teoricamente elegíveis para a presidência, o número limitado de no-
mes "de batismo" torna-os inadequados como denominadores específicos. Nas mo-
narquias, porém, onde o poder está restrito a um único sobrenome, são necessaria-
mente os nomes "ds batismo". acompanhados de números ou alcunhas, que propi-
ciam as distinções necessárias.
23 Registramos aqui, de passagem, que Nairn certamente está certo ao descrever a
Lei de 1707, de União entre a Inglaterra e a Escócia, como um "arranjo entre no-
bres", no sentido do que os arquitetos da união (oram políticos aristocratas. (Ver
sua lúcida exposição em The Break-up of Brítain, p. 136 et seqs.) Ainda assim, é di-
fícil imaginar um arranjo dessa tipo sendo realizado entre as aristocracias de duas
repúblicas. A concepção de um Reino Unido foi por certo o elemento mediador cru-
cial que tornou poss-Vel esse entendimento.
burgos foi paradigmática. Como dizia o ditado, Bella ge-
rant alH f u fel ix Áustria nube! A seguir, de modo algo resu-
mido, a titulação dos últimos dinastas: 23
Imperador da Áustria; Rei da Hungria, da Boémia, da Dalmá-
cia, Croácia, Eslavônia, Gallcia, Lodomeria e Híria; Rei de Je-
rusalém, etc.; Arquiduque da Áustria [slcj; Grão-duque da
Toscana e da Cracóvia; Duque de Lotaríngia, de Salzburgo,
Estíria, Caríntia, Carniola e Bukovina; Grão-duque da Transil-
vânia, Margrave da Morávia; Duque da Alta e Baixa Siiésia,
de Módena, Parma, Piacenza e Guastella, de Auschwitz e
Sator, de Teschen, Friaui, Ragusa e Zara; Conde Principes-
co de Habsburgo e Tirol, de Kyburg, Gõrz e Gradisca; Du-
que de Triento e Brizen; Margrave da Alta e Baixa Lausitz e
da Istria; Conde de Hohenembs,Feldkirch, Bregenz, Son-
nenberg, etc.; Senhor de Trieste, de Cartaro, e acima da
Windish Mark; Grande Voivoda da Voivodina, Servia... etc.
Isso, observa Jászi com justeza, era, "não sem um
certo aspecto cómico... o registro dos inúmeros casamen-
tos, negociatas e pilhagens dos Habsburgos".
Nos reinos em que a poligínia era sancionada pela re-
ligião, sistemas complexos de concubinato ordenado eram
essenciais para a integração do reino. De fato, as linha-
gens reais muitas vezes derivavam seu prestígio, à parte
qualquer aura de divindade, da miscigenação, poderíamos
dizer. MJPois tais misturas eram símbolos de um staíus su-
perior. É típico que não tenha havido uma dinastia "ingle-
sa" governando em Londres desde o século XI (se tanto);
e que "nacionalidade" devemos atribuir aos Bourbons? 25
23 Oscar Jâszi, The Dissolution of Habsburg Monarchy, p. 34.
24 De maneira a mais notável na Ásia pre-moderna. O mesmo principio, porém, ara
atuante na Europa crista monogamica. Em 1910, um certo Otto Forst publicou seu
Ahnentafet Seiner Kaiserlichen una KõnigKchen Hoheft dês durchlauchíígsten Herrn
Erzherzogs Fram Ferdiriend, que relacionava 2.047 dos ancestrais do arquiducue
prestes a ser assassinado, dentre os quais 1.486 alemães, 124 franceses, 196 ita-
lianos, 89 espanhóis, 52 poloneses, 47 dinamarqueses, 20 Ingleses, bom como qua-
tro outras nacionalidades. Esse "curioso documento" está citado em ibid., p. 136,
n. 1. Não posso deixar da citar aqui a admirável reacão do Franz Joseph à noticia
do assassinato da seu excêntrico herdeiro necessário: "Dessa maneira, um poder
superior restaurou aquela ordem que eu, infelizmente, estava Incapaz de manter"
(ibid., p. 125).
55 Gstlnar salienta o caráter tipicamente estrangeiro das dinastias, mas Interpreta o fe-
nómeno de maneira muito estreita: os aristocratas locais preferem um monarca de
fora,, porque ale não tomará partido em relação a suas rivalidades internas. Ttiought
snd Change, p. 136.
30
Contudo, durante o século XVII — por razões de
que não nos ocuparemos agora — a legitimidade automáti-
ca da monarquia sagrada começou sua lenta decadência
na Europa ocidental. Em 1649, Carlos Stuart foi decapita-
do na primeira das revoluções do mundo moderno e, no
correr da década de 1650, um dos Estados mais importan-
tes da Europa foi governado por um Protetor plebeu, em
vez de um rei. Contudo, mesmo ao tempo de Pope e Addi-
son, Ana Stuart ainda estava curando os doentes pela su-
perposição das mãos reais, curas executadas também pelos
Bourbons, Luís XV e XVI, na França do Iluminismo, até
o fim do ancien regime. 26 Depois de 1789, porém, o prin-
cípio da Legitimidade tinha de ser defendido em alta voz
e deliberadamente e, com o tempo, a "monarquia" tornou-
se um modelo semipadronizado. Tennõ e Filho do Céu tor-
naram-se "Imperadores". No longínquo Sião, Rama V
(Chulalongkorn) enviou seus filhos e sobrinhos para as
cortes de São Petersburgo, Londres e Berlim para aprende-
rem as complexidades do modelo universal. Em 1887, ins-.,
tituiu o princípio indispensável da sucessão pela primoge-
nitura legal, desse modo "alinhando o Sião com as monar-
quias 'civilizadas' da Europa", 27 O novo sistema condu-
ziu ao trono, em 1910, um homossexual caprichoso que
certamente teria sido ignorado em outros tempos. Contu-
do, a aprovação intermonárquica de sua ascensão ao tro-
no como Rama VI foi ratificada pelo comparecimento a
sua coroação de príncipes vindos da Grã-Bretanha, Rússia,
Grécia, Suécia, Dinamarca — e Japão! 28
Ainda em 1914, os Estados dinásticos constituíam a
maioria dos componentes do sistema político mundial,
mas, corno assinalaremos pormenorizadamente mais adian-
te, muitos dinastas já vinham há algum tempo adquirin-
do um cunho "nacional", à medida que o antigo princípio
da Legitimidade fenecia silenciosamente. Enquanto os exér-
citos de Frederico, o Grande (r. 1740-1786), eram em gran-
26 Marc Bloch, Lês fíois Thaumarurges, p. 390 e 398-9.
" Noel A, Battye, "The Militarv. Government and Society in Siam, 1868-1910", Te-
se de Doutoramento IPhD), Cornell, 1974, p. 270.
18St9phan Green, "Trai Governmsnt and Admiriistraticn in the Reign of Rama VI
(1910-1925)", Tese de Doutoramento fPhDS, Universidade de Londres, 1971, p. 92.
31
de parte formados por "estrangeiros", os de seu sobrinho-
neto Frederico Guilherme III (r. 1797-1840) já eram, em
consequência das espetaculares reformas de Scharnhorst,
Gneisenau e Clausewitz, exclusivamente "nacionais-prussia-
nos".29
Concepções do tempo
' Seria uma visão acanhada, porém, pensar que as co-
munidades imaginadas das nações simplesmente tenham
brotado das comunidades religiosas e dos reinos dinásticos
e tomado seu lugar. Por trás da decadência das comunida-
des, línguas e linhagens sagradas, tinha lugar uma mudan-
ça fundamental nos modos de apreender o mundo, que,
mais do que qualquer outra coisa, tornou possível "pen-
sar" a nação..
Para uma primeira impressão dessa mudança, pode-
mo-nos voltar para as representações visuais das comunida-
des sagradas, tais como os relevos e os vitrais das igrejas
medievais, ou as pinturas dos primeiros mestres italianos
e flamengos. Traço característico dessas representações é
algo enganosamente análogo à "aparência moderna". Os
pastores que haviam acompanhado a estrela até a manje-
doura' em que Cristo nasceu têm feições de camponeses
da Borgonha. A Virgem Maria é representada como filha
de um mercador toscano. Em muitos quadros, o cliente
que encomendou a obra, vestido como burguês ou em tra-
jes de nobre, aparece ajoelhado em adoração ao lado dos
pastores. O que hoje parece incongruente obviamente pare-
cia inteiramente natural aos olhos dos devotos medievais.
Estamos diante de um mundo em que a representação da
realidade imaginada era irresistivelmente visual e auditiva.
A cristandade assume sua forma universal mediante uma
29 Mais de mi! dos sete a oito mil homens do exército prussiano, em 1806, eram estran-
geiros. "Os prussianos de classe média aram superados pelos estrangeiros am seu
próprio exército; isso dava colorido ao dito de que a Prússia não era um pais que ti-
nha um exército, mas um exército que tinha um pais." Em 1798, os reformadores
prussianos exigiram "redução è metade do número de estrangeiros que ainda repre-
sentavamcercade 50% dos praças..."AlfredVagts,/Wsroryo/M/ffíansm, p. 64 e 85.
32
infinidade de especifi cidades e de particularidades: este re-
levo, aquele vitral, este sermão, aquela fábula, aquela pe-
ça moral, aquela relíquia. Embora a classe letrada transeu-
ropéia que lia era latim fosse um elemento essencial na es-
truturação da imaginação cristã, a mediação de suas con-
cepções para as massas iletradas, por meio de criações vi^
suais e auditivas, sempre pessoais e particulares, não era
menos essencial. O humilde pároco cujos antepassados e
cujas fraquezas eram conhecidos por todos os que assis-
tiam a suas celebrações ainda assim era o intermediário di-
reío entre seus paroquianos e o divino. Essa justaposição
do universal-cósmico e do particular-mundano significa
que por maior que pudesse ser a cristandade, e sabia-se
que era, ela se manifestava de maneira diversa a comunida-
des particulares, suábias ou andaluzas, como réplicas de-
las mesmas. Representar a Virgem Maria com traços "se-
mitas" ou vestimentas do "primeiro século", dentro do es-
pírito de restauração do museu moderno, era algo inimagi-
nável, porque o pensamento cristão medieval não possuía
uma concepção de história como infindável corrente de
causa e efeito ou de separação radical entre passado e pre-
sente. 30 Bloch observa que o povo pensava que devia es-
tar próximo o final dos tempos, no sentido de que a segun-
da vinda de Cristo poderia ocorrer a qualquer momento:
São Paulo dissera que "o dia do Senhor chega como um
ladrão no meio da noite". Era pois natural que o grande
cronista do século XII, bispo Oito de Freising, se referis-
se seguidamente a "nós, que fomos colocados no final
dos tempos". Bloch conclui.que tão logo os homens me-
dievais "entregavam-seà meditação, nada estava mais dis-
tante de seus pensamentos do que a perspectiva de um lon-
go futuro para uma raça humana jovem e vigorosa". 3I
Auerbach oferece-nos um inesquecível esboço dessa
forma de consciência: 32
30 Para nos, a ideia de "trajes modernos", maneira metafórica de fazer equivaler pas-
sado e presente, é um reconhecimento iridireto de sua irrevogável distinção.
31 Bloah, Feudal Society, l, p. 84-6.
32 Auerbach, Mimeste, p. 64. Grifo nosso. Confronte a descrição do Velho Testamen-
to, por Santo Agostinho, como "a sombra do [isto é, modalado da trás para dían-
le pelo] futuro". Citado em Bloch, Feudal Society, l, p. 90.
Se um evento como o sacrifício de Isaac é interpretado co-
mo a prefiguração do sacrifício de Cristo, de modo que,
no primeiro, encontra-se o último como foi anunciado e
prometido, e o último "cumpre"... o primeiro, estabelece-
se então uma conexão entre dois eventos que não se vin-
culam temporalmente, nem oausalmente — conexão im-
possível de ser estabelecida pela razão na. dimensão hori-
zontal... Ela só pode ser estabelecida se ambas as ocorrên-
cias estiverem verticalmente vinculadas à Divina Providên-
cia, a única capaz de traçar um plano de história como es-
se e fornecer a chave para sua compreensão... o aqui e
agora não é mais um simples vinculo em uma corrente ter-
rena de eventos, ele é simultaneamente algo que sempre
existiu, e que será cumprido no futuro; e estritamente, aos
olhos de Deus, é algo eterno, algo onítemporal, algo já
consumado na esfera do evento terreno fragmentário.
Ele está certo em acentuar que tal ideia de simultaneidade
é inteiramente estranha a nós mesmos. Ela encara o tem-
po como algo próximo do que Benjamin chama de tempo
messiânico, uma simultaneidade de passado e futuro em
um presente momentâneo. " Dentro desse modo de ver as
coisas, a expressão "enquanto isso" não pode ter significa-
ção real.
Nossa própria concepção de simultaneidade tem esta-
do em elaboração por muito tempo e sua emergência liga-
se certamente, de modos que precisam ainda ser bem estu-
dados, ao desenvolvimento das ciências seculares. Mas é
uma concepção de importância tão fundamental que, se
não a levarmos plenamente em conta, acharemos difícil in-
vestigar a génese obscura do nacionalismo. O que veio to-
mar o lugar da concepção medieval de simultaneidade lon-
gitudinal ao tempo é, valendo-nos novamente de Benja-
min, uma ideia de "tempo homogéneo e vazio", no qual
a simultaneidade é como se fosse transversal ao tempo,
marcada não pela prefiguração e cumprimento, mas por
coincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calen-
dário. 34
33 WaltBr Banjarnin, llíaminsíions, p. 265,
34 Ibid., p. 263. Essa nova ideia está tão arraigada que se poderia e f Irma r que todo con-
ceito fundamental moderno baseia-se num conceito de "enquanto isso".
35
Pode-se perceber bem melhor por que essa transforma-
ção seria tão importante para o nascimento da comunidade
imaginada da nação se considerarmos a estrutura básica de
duas formas de imaginar que pela primeira vez floresceram
na Europa, no século XVIII: o romance e o jornal. 35 Pois
essas formas ofereceram os recursos técnicos para "re-[a}pre-
sentar" a espécie de comunidade imaginada que é a nação.
Considere-se primeiro a estrutura do romance à mo-
da antiga, estrutura típica não só das obras-primas de Bal-
zac, mas também de qualquer romanceco contemporâneo.
Ela é evidentemente um instrumento para a apresentação
da simultaneidade em um "tempo homogéneo e vazio",
ou um comentário complexo sobre a expressão "enquanto
isso". Tomemos, para fins de ilustração, um segmento de.
urh enredo simples de romance, no qual um homem (A)
possui uma esposa (B) e uma amante (C) que, por sua vez,
tem um namorado (D). Podemos imaginar uma espécie de
esquema temporal para esse segmento, da seguinte maneira:
NI
D beba em urn bar
A janta em casa com S
C tem um sonho sinistro
Observe-se que, no correr dessa sequência, A e D jamais
se encontram, e podem na verdade não ter sequer conheci-
mento da existência um do outro, se C tiver agido inteligen-
temente. 3S Então, o que é que realmente liga A a D? Duas
concepções complementares: primeiro, que eles estão encra-
vados em "sociedades" (Wessex, Líibeck, Los Angeles). Es-
sas sociedades são entidades sociológicas de uma realida-
de tão firme e estável, que seus membros (A e D) podem
até mesmo ser descritos como passando um pelo outro na
rua sem jamais se relacionarem e, ainda assim, estarem li-
Tempo:
Eventos;
1
A discute com B
C a D fazem amor
II
A lelsfona a C
ã vai és compras
D joga sinuca
15 Embora a Príncesse tíe CIÊves já tivesse sido publicada sm 1678, a época ds Richard-
son, Detoe e Fielding é o inicio do século XVIII. As origens do jornal moderno encon*
tram-sa nas gazetas do final do século XVII; porém, o jornal só se torna uma catego-
ria geral de material impresso após 1700. Febvre e Martin, The Corning ofthe Book,
p. 197,
M De fato, a compreensão do enredo pode depender, nos Tampos l, II e llt, da que A,
B. C e O não saibam o que se passa com os outras.
gados. 37 Segundo, que A e D estão encravados nas mentes
dos leitores oniscientes. Apenas eles percebem os vínculos.
Apenas'eíes, como Deus, observam A telefonando a C, B
fazendo compras e D jogando sinuca, tudo ao mesmo tem-
po. O fato de que todos esses atos são desempenhados no
mesmo tempo, medido pelo relógio e pelo calendário, mas
por atores que podem estar em grande medida despercebi-
dos uns em relação aos outros, demonstra a novidade des-
se mundo imaginado evocado pelo autor nas mentes de
seus leitores. 38
A ideia de um organismo sociológico que se move pe-
lo calendário através do tempo homogéneo e vazio apresen-
ta uma analogia precisa corn a ideia de nação, que também
é concebida como uma comunidade compacta que s'e mo-
ve firmemente através da história. 39 Um norte-ámericano
jamais encontrará, nem mesmo saberá como se chama,
mais do que um pequeno número de seus 240.000.000 de
compatriotas. Não tem ideia alguma sobre o que estão fa-
zendo em qualquer tempo. Mas está absolutamente segu-
ro de sua atividade constante, anónima e simultânea.
Talvez a perspectiva que estou sugerindo pareça menos-
abstrata se nos dedicarmos a examinar rapidamente quatro
obras de ficção de diferentes culturas, e de diferentes épocas,
todas menos uma, no entanto, indissoluvelmente ligadas a
movimentos nacionalistas. Em 1887, o "Pai do Nacionalis-
mo Filipino", José Rizal, escreveu ò romance NoliMe Tange-
ré, hoje considerado o melhor produto da literatura filipina
moderna. Foi, também, quase o primeiro romance escrito
por um "índio". * Eis a maneira admirável como começa:4l
37 Essa potifona distingue decisivamente o romance moderno até mesmo de um precur-
sor tSo brilhante quanto o Satyrícon. de Petrônio. A narrativa deste dessnróla-se li-
nearmente. Enquanto Encolpius lamenta a infidelidade de seu jovem amante, não te-
rnos conhecimento simultaneamente de Gito na cama corn Ascyltus.
38 Nesse contexto, é recompensadora a comparação, de qualquer romance histórico,
com documentos ou relatos da época transformada em ficção.
39 Nada demonstra melhor a Imersão do romance em um tempo homogéneo e vazio
do que a ausSnela daquelas genealogias preliminares, chegando multas veres até à
origem do homem, traço tão carsctarístieodas antigas crónicas, lendas e livros sagrados.
40 ftizel escreveu esse romance na língua colonial (o espanhol), que era, no época, a lín-
gua franca das elites euraslanas, emlcamonte diversificadas, e da elite nativa. Ao
mesmo tempo que o romance, surgia também, pela primeira vez, uma imprensa "na-
cionalista", não apenas em espanhol, mas em línguas "aborígenes", como o tagato
a o ilocano. Var Leopoldo Y, Yabes, "The Modern literature of the Philippinss", p.
287-302, in Pierre-Bernard Lafcnt e Denys tombará (orgs.), Littératures contempo-
raines de l'Asíe du Sud-Est.
41 José Hizal, The Lost Éden, Noli Ma Tengere, p, 1.
Don Santiago de los Santos oferecia um jantar festivo
numa noite de finsde outubro da década de 1880. Embora,
contrariando seu costume, só cr tenha anunciado na tarde
do mesmo dia, logo se tornou o tema das conversas em Bí-
nondo, onde ele morava, em outros distritos de Manila, e
até mesmo na cidadela espanhola de Intramuros. Don San-
tiago era mais conhecido como Capitão Tiago — a patente
não era militar mas política, e indicava que ele havia sido ou-
trora o prefeito nativo de uma pequena cidade. Naquele tem-
po, ele tinha reputação de pródigo. Todos sabiam que sua
casa, como seu país, jamais fechava suas portas — exceto,
é claro, ao comércio e a qualquer ideia que fosse nova ou
ousada.
De modo que a notícia de seu jantar correu como um
choque elétrico por toda a comunidade de filantes, parasitas
e penetras, os quais Deus, em Sua infinita sabedoria, havia
criado e generosamente multiplicado em Manila, Alguns de-
les puseram-se em busca de polimento para suas botas; ou-
tros, de botões de colarinho e gravatas; mas cada um deles
dedicou o melhor de seu pensamento à maneira como pode-
riam saudar seu anfitrião com a fingida intimidade de,velha
amizade, ou, se houvesse ocasião, desculpar-se polidamen-
te por não haver chegado mais cedo onde presumivelmen-
te sua presença era tão ansiosamente esperada.
O jantar foi oferecido em uma casa na Rua Anloague,
que ainda pode ser reconhecida, a menos que tenha vindo
abaixo com algum terremoto. Certamente não terá sido de-
molida por seu proprietário; nas Filipinas, isso se deixa em
geral para Deus e a Natureza. Na verdade, às vezes se con-
sidera que eles estão contratados pelo governo exatamente
para esse fim...
Certamente não é necessário um longo comentário. Basta
que se observe que, logo de início, a imagem (inteiramente
nova na literatura filipina) de um jantar que é discutido por
centenas de pessoas anónimas, que não se conhecem entre
si, em diferentes bairros de Manila, num determinado mês
de uma determinada década, evoca imediatamente a comuni-
dade imaginada. E na frase "uma casa na Rua Anloague,
que ainda pode ser reconhecida...", quem reconhece somos
nós-os-leitores-fílipinos. A passagem natural dessa casa, do
tempo "interior" do romance, para o tempo "exterior" da
vida quotidiana do leitor de Manila oferece uma confirma-
ção hipnótica da solidez de uma comunidade singular, abran-
37
gendo personagens, autor e leitores, que se movem para dian-
te pelo tempo do calendário. Observe-se também o tom. Em-
bora Rizal não tenha a menor ideia da identidade de cada
um de seus leitores, escreve para eles com uma intimidade
irónica, como se seu relacionamento com eles não fosse nem
um pouco problemático.42
Não há o que ofereça maior sentimento foucaultiano
das abruptas descontinuidades da consciência do que compa-
rar Noli com a mais célebre obra literária anterior de um "ín-
dio", a Pmagdaanang Buhay nl Florante at w Loura sã Ca-
hariang Albânia [A história de Florante e Laura no Reino
da Albânia], cuja primeira edição impressa data de 1861, em-
bora talvez já tivesse sido escrita em 1838. 43 Pois embora
Baltazar ainda fosse vivo quando nasceu Rizal, o mundo
de sua obra-prima é, quanto a tudo o que tem de básico, es-
tranho ao de Noli, Seu cenário — uma Albânia medieval fic-
tícia — é completamente distante no tempo e no espaço da
Binondo da década de 1880. Seus heróis — Florante, um no-
bre albanês cristão, e seu amigo íntimo Aladin, aristocrata
persa muçulmano ("mouro") — só nos lembram as Filipi-
nas pela ligação cristão-mouro. Enquanto Rizal salpica deli-
beradamente sua prosa espanhola com palavras de tagalo pa-
ra obter efeitos "realistas", satíricos ou nacionalistas, Balta-
zar, não intencionalmente, mistura expressões espanholas
em seus quartetos em tagalo, apenas para aumentar a gran-
diosidade e a sonoridade de sua linguagem poética. Noli foi
feito para ser lido, enquanto Florante at Laura, para ser de-
clamado em voz alta. O mais chocante é o manuseio do tem-
po por Baltazar. Como observa Lumbera, "o desenrolar
do enredo não segue uma ordem cronológica. A história co-
meça In medias rés, de tal modo que a história completa só
nos chega mediante uma série de falas que servem como/fos/i-
backs". ** Quase metade dos 399 quartetos são relatos da in-
fância de Fiorante, de seus anos de estudo em Atenas e de
4Í O reverso da obscuridade anónima dos leitores foi/é B celebridade Imediata do autor.
Como varemos, esse obscuridade/celebridade tem tudo a ver com B disseminação
do capitalismo editorial. Já em 1593, dominicanos ativos haviam publicado em Mani-
la a Doctrina CMstiana. A partir de então, porém, B por séculos, a imprensa foi man-
tida sob estrito controla eclesiástico. A liberalização só teve Inicio na década de
1860. Ver Blenvenido L. Lumbera, "Tradition and Influer.ces in tha Development of
Tagatog Postry. 1570 a 1898", p. 35, 143 e 235.
*Mbid., p. metseqs,
44 Ibid., p. 205-6.
suas subsequentes proezas militares, fornecidos pelo herói
em conversa com Aladin. 4S O "flashback falado" foi, pa-
ra Baltazar, a única alternativa de uma narrativa direta, li-
near. Se ficamos sabendo dos passados "simultâneos" de
Florante e Aladin, sua ligação apenas se dá pelas vozes em
conversa, e não pela estrutura do poema. Quão distante es-
tá essa técnica da do romance: "Naquela mesma primavera,
enquanto Florante ainda estudava em Atenas, Aladin era ex-
pulso da corte de seu soberano...". De fato, nunca ocorre
a Baltazar "situar" seus protagonistas na "sociedade", ou
discuti-los com seu público. Como também não há muito
de "filipino" nesse texto, a não ser pelo fluxo melífluo dos
polissílabos em tagalo. ^
Em 1816, setenta anos antes de Noli ser escrito, José
Joaquín Fernandez de Lizardi escreveu um romance chama-
do El periquillo sarmento [O papagaio sarnentoj, evidente-
mente a primeira obra latino-americana desse género. Nas
palavras de um crítico, e'sse texto é "uma feroz acusação à
administração espanhola no México: ignorância, superstição
e corrupção são vistas como suas mais notáveis característi-
cas". A forma essencial desse romance "nacionalista" es-
tá na seguinte descrição de seu conteúdo: 4S
Desde o inicio, [o herói, o papagaio sarnemo) é exposto a •
más influências — criadas ignorantes incutem superstições,
sua mãe satisfaz seus caprichos, seus professores ou não ti-
nham vocação, ou não tinham capacidade para discipliná-
lo. E embora seu pai seja um homem inteligente que quer
que o filho se dedique a uma profissão útil, ao invés de ir en-
grossar as fileiras dos advogados e parasitas, é a supermãe
de Periquillo que ganha a parada, manda o filho para a uni-
versidade e assegura assim que ele irá aprender apenas dis-
parates supersticiosos... Periquillo continua incorrigivelmente
45 A técnica é semelhante à da Homaro, tão competentemente exposta por Auerbach,
Mimesis. cap. 1 ("Odysseus1 Scar").
46 "Paalam Albaniang pinamamayanam/ ng casama, %.lupit, bangis caliluhan,/ acong
tangulan mo, i, cusa mang pinatay/ sã iyo, i, malaquf ang panghihinavang."/
"Adeus, Albânia, agora reino/ do mal, da crueldade, brutalidade e decepção!/ Eu,
seu defensor, que agora tu assassinas/ lamento, porém, o destino que te coube."
Essa famosa estrofe tem sido às vezes interpretada corno uma vetada afirmação de
patriotismo filipino. mas Lumbera demonstra, de maneira convincente, que tal inter-
pretação ô anacrónica. "Tradition and Influenoes", p. 214-15. A tradução para o in-
glês é da Lumbera. Alterei ligeiramente o texto em tagalo apresentada por ele, para
ajustá-lo a uma edição da 1973 do poema, baseada na impressão de 1861.
47 Jean Franco, An tntroifuction to Spsnish-Arnerícsn Literature, p. 34.
ÍB Ibid., p, 35-6', Grifos nossos.
ignorante, muito embora depare com muita gente boa e sá-
bia. Não tem disposição para trabalhar, nem para levar na-
da a sério, e se torna, sucessivamente, padre, jogador, la-
drão, aprendiz de farmácia, médico, funcionário numa cida-
de do interior... Esses episódios permitem que o autor des-
creva hospitais, prisões, aldeias longínquas, monastérios, en-
quanto, ao mesmo tempo, martela num ponto importante— que o governo espanhol e o sistema de educação estimu-
la m o parasitismo e a preguiça... As aventuras de Periquillo
levam-no diversas vezes a estar entre índios e negros...
Vemos aqui novamente a "imaginação nacional" funcionan-
do nas andanças de um herói solitário por uma paisagem so-
ciológica de uma .estabilidade que funde o mundo de dentro
do romance com o mundo de fora. Esse tour d'horison pica-
resco — hospitais, prisões, aldeias longínquas, monastérios,
índios, negros — não é porém um tour du monde. O hori-
zonte é claramente delimitado: é o do México colonial. Na-
da nos assegura mais dessa solidez sociológica do que a su-
cessão de plurais. Pois eles evocam um espaço social cheio
de prisões comparáveis, nenhuma deJas por si só de qual-
quer importância singular, mas todas representativas (em
sua existência simultânea e distinta) da tirania desta coló-
nia.45 (Contraponham-se as prisões da Bíblia. Elas não são
nunca imaginadas como típicas desta ou daquela sociedade.
Cada uma delas, como aquela em que Salomé seduziu-se
por João Batista, está magicamente solitária.)
Finalmente, para afastar a possibilidade de que, por te-
rem Rizal e Lizardi escrito ambos em espanhol, as estrutu-
ras que temos estudado sejam algo "europeias", eis aqui o
início de Semarang Hitaw [O Semarang negro], uma história
escrita pelo malfadado jovem indonésio nacionalista-comu-
nista, Mas Marco Kartodikromo, 50 publicada em folhetim,
em 1924:31
49 Essa deslocamento de um herói solitário por uma paisagem social adamantina é típi-
co de muitos dos antigos romances (antí)coloniais,
50 Após uma carreira curta, meteórica, como jornalista radical. Marco foi internado pe-
las autoridades coloniais holandesas em Boven Digul, um dos mais antigos campos
de concentração do mundo, nos longínquos pântanos interiores do oeste da Nova
Guiné. Al! morreu em 1932, após seis anos de confinamento. Henrl Chambert-Loir,
"Mas Marco Kartodikromo (c. 1890-1932) ou L'&Jucation Politique", p. 203, in Lit-
tératures contemporaines de l'A$ia du Sud-£st.
51 Segundo tradução de Paul Tickell em seu Three Early Indonesian Short Stories t>y
Mas Marco Kartodikromo (s, {890-1932Í, p. 7. Grifos nossos..
40
Eram sete horas, sábado à- noite; os Jovens de Sema-
rang jamais ficavam em casa aos sábados à noite. Nessa
noite, porém, não havia ninguém se mexendo. Pelo fato de
que a pesada chuva durante o dia todo deixara as estradas
encharcadas e muito escorregadias, todos haviam ficado
em casa.
Para os trabalhadores de oficinas e escritórios, a ma-
nha de sábado era um momento de expectativa — expecta-
tiva do lazer e da alegria de circular pela cidade à noite,
mas dessa vez iriam se decepcionar — devido à letargia cau-
sada pelo mautempaeàsestradaspeguentas noskampongs.
As estradas principais habitualmente abarrotadas de toda
sorte de tráfico, as calçadas habitualmente apinhadas de
gente, tudo estava deserto. Vez por outra, o estalo de um
chicote duma charrete, incitando o cavalo a tocar em fren-
te — ou o clip-clop dos cascos dos cavalos puxando as car-
ruagens.
Semarang estava deserta. A luz das fileiras de lâmpa-
das de gás iluminava diretamente a estrada de asfalto brilhan-
te. De vez em quando, a luz clara das lâmpadas de gás se
obscurecia, quando o vento soprava do leste...
Um jovem estava sentado num longo sofá de vime,
lendo um jornal. Estava totalmente absorvido. Às vezes sua
irritação, às vezes seu sorriso eram sinal certo de que esta-
va profundamente interessado no que lia. Virava as páginas
do jornal, esperando talvez encontrar algo que o fizesse pa-
rar de se sentir tão miserável. Repentinamente, deu com
uma notícia intitulada:
PROSPERIDADE
Um miserável vagabundo f içara doente e morrera ao abando-
no à beira da estrada.
O jovem comoveu-se com esse breve relato. Imagina-
va perfeitamente o sofrimento daquela pobre alma quando
jazia moribunda à beira da estrada... Por um momento sentiu
um ódio explosivo bem dentro de si. A seguir sentiu pieda-
de. Em outro momento ainda, seu ódio dirigiu-se ao siste-
ma social que dava origem a tanta pobreza, enquanto torna-
va rico um pequeno grupo de pessoas.
Aqui, como em El periquillo sarmento, estamos num
mundo de plurais: oficinas, escritórios, carruagens, kam-
pongs e lâmpadas de gás. Como no caso de Noli, nós-os-Iei-
tores-indonésios mergulhamos imediatamente num tempo
de calendário e numa paisagem familiar; alguns de nós pode-
41
mós bem ter caminhado por aquelas "peguentas" estradas
de Semarang. Uma vez mais, um herói solitário é sobrepos-
to a uma paisagem social descrita em detalhes cuidadosos e
gerais. Mas há também algo de novo: um herói que nunca
é chamado pelo nome, mas coerentemente mencionado co-
mo "nosso jovem". Exatamente o caráter canhestro e a inge-
nuidade literária do texto confirmam a "sinceridade" não
deliberada desse adjetivo pronominal. Nem Marco,' nem
seus leitores, têm qualquer.dúvida quanto à referenda. Se
na ficção jocosa e elaborada da Europa dos séculos XVIII
e XIX, o tropo "nosso herói" simplesmente ressalta um jo-
go do autor com ura leitor (qualquer), o "nosso jovem" de
Marco, não menos pela inovação, significa um jovem que.
pertence ao corpo coletivo dos leitores do Indonésio, e assim,
implicitamente, uma embrionária "comunidade imaginada"
indonésia. Observe-se que Marco não sente necessidade de
especificar essa comunidade pelo nome: ele já está ali. (Mes-
mo que os censores coloniais holandeses poliglotas se juntem
a seus leitores, eles estão excluídos de participar desse "nos-
so", como se pode ver pelo fato de que o ódio do jovem di-
rige-se "ao", e não "a nosso", sistema social.)
Finalmente, a comunidade imaginada confirma-se pela
réplica de nossa leitura a respeito da leitura de nosso jovem.
Ele não encontra o cadáver do miserável vagabundo à beira
de uma estrada peguenta de Semarang, mas imagina-o a par-
tir do que está impresso num jornal. 52 Ele também não se
importa o mínimo com quem seja, individualmente, o mor-
to: ele pensa no corpo representativo, não na vida pessoal.
É apropriado que, em Semarang Hiíam, apareça um
jornal encravado na ficção, pois, se nos voltarmos agora pa-
ra o jornal como produto cultural, vamos ficar chocados
por seu profundo caráter ficcional. Qual a convenção literá-
ria fundamental do jornal? Se olharmos uma primeira pági-
na típica de, digamos, The New York Times, ali encontrare-
62 Em 1924, um amigo Intimo e aliada político de Marco publicou um romanos intitula-
do Rasa Manlika [Samido llvro/O sentimento da libertada]. Sobre-o herói desse ro-
mance (que ele atribui erradamente a Marco], Chambert-Loir escreva que "não t a m
ideia nenhuma tio sentido da palavra 'socialismo': não obstante, sente um profundo
mal-estar diarvte da organização social que o rodeia e sente necessidade de ampliar
seus horizontes por dois métodos: viagem e leitura", ("Mas Marco", p. 208. Grilo
nosso.) O papagaio sarnento mudou-se para Java e para o século XX.
42
mós reportagens sobre dissidentes soviéticos, fome em Mali,
um horrível assassinato, golpe no Iraque, a descoberta de
um fóssil raro no Zhnbábue, e um discurso de Mitterand.
Por que se justapõem tais eventos? O que os liga uns aos ou-
tros? Não é mero capricho. Contudo, é óbvio que a maioria
deles aconteceu independentemente, sem que seus atores ti-
vessem consciência uns dos outros, ou do que os outros esta-
vam fazehdo. A arbitrariedade de sua inclusão e justaposi-
ção (uma edição posterior substituirá Mitterand pelo resulta1-
do de uni jogo de beisebol) demonstra que a vinculação en-
tre eles é imaginada.
Essa vinculação imaginada provém de duas fontes indi-
retamente relacionadas. A primeira é simplesmente coincidên-
cia no calendário. A data no alto do jornal, a marca pecu-
liar mais importante que ele apresenta, fornece a conexão es-
sencial — a marcação regular da passagem do tempo homo*
gêneo e vazio.53 Dentro daquele tempo, "o mundo" cami-
nha decididamente para a frente. O sinal disso: se Mali desa-
parecer das páginas do The New York Times por meses a fio,
depois dedois dias de reportagens sobre a fome, nem por
um momento os leitores imaginarão que Mali desapareceu,
ou que a fome exterminou todos os seus cidadãos.' O forma-
to de romance que tem o jornal lhes assegura que, em algum
lugar fora dali, o "personagem" Mali se movimenta silencio-
samente, aguardando sua reaparição seguinte no enredo.
A segunda fonte de vinculação imaginada encontra-se
na relação entre o jornal, como uma forma de'livro, e o
mercado. Calcula-se que, no correr dos quarenta anos entre
a publicação da Bíblia de Gutenberg e o final do século
XV, produziram-se ria Europa mais de 20.000.000 de volu-
mes impressos.54 Entre 1500 e 1600, esse número atingira en-
tre 150 e 200 milhões.5Í "Desde então... as oficinas gráficas
mais se assemelhavam a modernas oficinas de trabalho do que
53 Lar um jornal é como ler um romance cujo autor tivesse deixado de lado qualquer
ideia de um enredo coerente.
54 Febvre e Martin, The Coming of lhe Book, p. 186. Isso montava a não menos de
35.000 edições produzidas em nada menos que 236 cidades. Já em 1480. havia grá-
ficas em mais de 110 cidades. 50 das quais na hoje Itália, 30 na Alemanha, 9 na Fran-
ça, na Holanda e na Espanha, 8 em cada uma, na Bélgica e na Suíça, 5 em cada, 4
na Inglaterra, 2 na Boémia e 1 na Polónia, "A partir daquela data, pode-$a dizer qua,
na Europa, o livro Impresso foi de uso universal." (p.182l
86 Ibid., p. 262. Comentam os autores que, no século XVI, os livros estavam pronta-
mente à disposição de qualquer um que soubesse ler.
43
a salas de trabalho monásticas da Idade Média. Em 1455,
Fust e Schoeffer já geriam um negócio, equipado para a
produção padronizada e, vinte anos depois, grandes empre-
sas gráficas funcionavam por toda parte, em toda [sic] a Eu-
ropa." 56 Em sentido muito especial, o livro foi a primeira
mercadoria industrial produzida em série no estilo moder-
no. í7 O sentido que tenho em mente se revela, se compa-
rarmos o livro com outros primeiros produtos industriais,
como tecidos, tijolos, ou açúcar. Pois estas mercadorias são
medidas em quantidades matemáticas (libras, volumes ou
unidades). Uma libra de açúcar^ é simplesmente uma quanti-
dade, um volume conveniente» não um objeto em si mes-
mo. O livro, porém — e, nisso,,ele antecipa os produtos du-
ráveis de nossa época — é um objeto bem definido, auto-su-
ficiente, reproduzido com exatidão em grande escala. 5B
Uma libra de açúcar confunderse com a seguinte; cada livro
possui uma auto-suficiência erèmítica própria. (Não «admi-
ra que bibliotecas, coleções pessoais de mercadorias produ-
zidas em série, já fossem um espetáculo comum, no século
XVI, em centros urbanos como Paris.)59
Desta perspectiva, o jornal não passa de uma "for-
ma extrema" do livro, um livro vendido em escala imensa,
porém de popularidade efémera. 'Poderia dizer-se que são
best-sellers por um só dia. 60 A obsolescência do jornal no
dia seguinte ao de sua impressão — é curioso que uma das
ss A grande editora Plant n, da Antuérpia, controlava, já no século XVI, 24 gráficas com
mais de cem operários em cada uma delas. Ibíd., p. 125.
57 Esse é um ponto bom estabelecido no meio das fantasias de Gutenberg Galaxy, de
Marshall McLuhan (p. 125). Pode-se acrescentar que, se o mercado do livro tornou-
se pequeno diante dcs marcados de outras mercadorias, sau papal estratégico na dis-
seminação da ideias tornou-o, contudo, da importância fundamental para o desen-
volvimento da Europa moderna.
56 Quanto a isto, o principio é mais importante do que a escala de grandeza. Ata o sé-
culo XIX, as Bicões oram ainda relativamente pequenas. Até mesmo a Bíblia de L'j-
toro, extraordinário best-seUet, teve uma primeira edíçflo de apenas 4.000 exempla-
res. A primeira edição excepcionalmente grande da Encyc/opédie de Dlderot n5o foi
além da 4.260 exemplares. A tiragem média no século XIX era inferior a 2.000 exem-
plares. Febvre e Martin, The Corning of lhe Book, p. 218-20. Ao mesmo tempo, o li-
vro sempre se distinguiu dos demais bens duráveis por seu mercado intrinsecamen-
te limitado. Quem quer que tenha dinheiro poda comprar carros checos; apenas
quem lá checo comprará livros em checo. Mais adiante, iremos examinar a importân-
cia ctsssa distinção.
69 Além disso, já em fins do século XV, o editor venaziano Aldus havia sido pioneiro
no lançamento da uma "edição de bolso" portátil.
60 Como demonstra o caso do Semanng W/tam, os dois tipos de bast-sellers costuma-
vam ser méis estreitamente ligados do que hoje. Dickens também publicava como fo-
lhetim em jamais populares seus romances populares.
44
mais antigas mercadorias produzidas em série fizesse ante-
ver assim a obsolescência implícita dos modernos produtos
duráveis — cria, no entanto, exatamente por essa razão, es-
ta extraordinária cerimónia de massa: o consumo ("o ima-
ginar") quase que. exatamente simultâneo do jornal-como-
ficção. Sabemos que determinadas edições matinais e ves-
pertinas serão esmagadoramente consumidas entre tal e tal
hora, apenas neste dia, e não em outro. (Contraponha-se
isso ao açúcar, cujo uso se processa num fluxo contínuo,
não cronometrado; ele pode ficar ruim, mas não fica atra-
sado.) A significação dessa cerimónia de massa — Hegel
observava que os jornais são, para o homem moderno,
um substituto das preces matinais — é paradoxal. Ela se
desenrola em silenciosa intimidade, bem no fundo da cabe-
ça, 61 Contudo, cada um dos comungantes está bem côns-
cio de que a cerimónia que executa está sendo replicada, si-
multaneamente, por milhares (ou milhões) de outros, de cu-
ja existência está seguro, embora sobre cuja identidade não
possua a menor ideia. Mais ainda, essa cerimónia é inter-
minavelmente repetida a intervalos de um dia, ou de meio
dia, ao correr do calendário. Como se poderia representar
ilustração mais vívida para a comunidade imaginada histo-
ricamente cronometrada? 62 Ao mesmo tempo, o leitor de
jornal, vendo réplicas exatas de seu jornal sendo consumi-
das por seus vizinhos do metro, da barbearia ou de sua ca-
sa, sente-se permanentemente tranquilo a respeito de que
o mundo imaginado está visivelmente enraizado na vida
quotidiana. Como em Noli Me Tangere, a ficção desliza si-
lenciosa e continuamente para dentro da realidade, crian-
do aquela notável segurança de comunidade anónima que.
é a marca de garantia das nações modernas.
61 "Material impresso estimulava a adesão silenciosa a causas cujos defensores não po-
diam ser localizados em nenhuma localidade 9 que se dirigiam de longe a um públi-
co invisível." Elizabeth L. Eisenstein, "Some Conjectures about trie Impact of Prirj-
ting on Western Society and Thought", Jautri»! of Modern Hlstary, 40: 1 (março
de 1968), p. 42.
s3 Ao escrever sobre a relação entre a anarquia material da sociedade de classe média
e uma ordem estatal política abstraia, observa Nairn que "o mecanismo representa-
tivo converteu a desigualdade ds ciasse real no igualitartsmo abstraio de cidadãos,
os egoísmos individuais em vontade coletiva impessoal, o que de outro modo seria
o caos dentro de urna nova legitimidade do Estado". The Break-up of Brítain, p. £4.
Sem dúvida. Mas o mecanismo representativo (eleições?) á uma festa rara e móvel.
A geração da vontade impessoal, penso eu, antes só encontra nas regularídadss diá-
rias ds vida da imaginação.
45
Antes de iniciar uma discussão das origens específicas
do nacionalismo, será conveniente recapitular as principais
proposições apresentadas até aqui. Afirmei, fundamental-
mente, que a possibilidade mesma de se imaginar a nação
só surgiu historicamente quando, e onde, três conceitos
culturais básicos, todos extremamente antigos, deixaram
de ter domínio axiomático sobre o pensamento dos ho-
mens. O primeiro deles era a ideia de que uma determina-
da língua escrita oferecia acesso privilegiado à verdade on-
tológica, precisamente por ser parcela inseparável daquela
verdade. Foi essa ideia que permitiu que surgissem as gran-
des congregações transcontinentais da cristandade, do isia-
mismo e as demais. O segundo era a crença de quea socie-
dade era organizada de maneira natural em torno de e sob
centros elevados — monarcas que eram pessoas distintas
dos outros seres humanos e que governavam por alguma
forma de disposição cosmoiógica (divina). As lealdades hu-
manas eram necessariamente hierárquicas e centrípetas,
porque o governante, como a escrita sagrada, era um pon-
to central de acesso à existência e a ela inerente. Em tercei-
ro lugar, a concepção de temporalidade, em que a cosmolo-
gia e a história não se distinguiam, sendo essencialmente
idênticas as origens do mundo e dos homens. Essas ideias,
associadas, enraizavam firmemente as vidas humanas na
própria natureza das coisas, conferindo determinado senti-
do às fatalidades diárias da existência (sobretudo à morte,
à privação e à escravidão) e propiciando vários modos de
libertar-se delas.
Ajiecadência lenta e irregular dessas certezas encadea-
das, primeiro na Europa ocidental e, depois, por toda par-
te, sob o impacto da mudança económica, das "descober-
tas" (sociais e científicas), e do desenvolvimento cada vez
mais rápido das comunicações, cravou uma firme cunha en-
tre a cosmologia e a história. Não é pois surpresa que a
busca se processasse, por assim dizer, no sentido de um no-
vo modo de tornar a vincular fraternidade, poder e tempo
de uma maneira significativa. Talvez nada acelerasse mais
essa busca, nem a tornasse mais frutífera, do que o capita-
lismo editorial, que tornou possível, a um número cada
vez maior de pessoas, pensarem sobre si mesmas, e se rela-
cionarem com outras, de maneira profundamente renovada.
AS ORIGENS DA
CONSCIÊNCIA NACIONAL
Se o desenvolvimento da imprensa-como-mercadoria
é a chave da geração de ideias inteiramente novas de simul-
taneidade, ainda assim estamos simplesmente no ponto
em que se tornam possíveis comunidades do tipo "horizon-
tai-secular, transversal ao tempo". Por que, dentro desse
tipo, a nação se tornou tão popular? Os fatores envolvidos
são obviamente complexos e variados. Pode-se, porém, de-
fender com'vigor a primazia do capitalismo.
Como já foi assinalado, pelo menos 20 milhões de li-
vros já haviam sido impressos em 1500, ' indicando o sur-
gimento da "era da reprodução mecânica" de Benjamin.
Se o conhecimento manuscrito era um saber escasso e mis-
terioso, o conhecimento impresso vivia da reprodutibilida-
de e da disseminação. 2 Se, como crêem Febvre e Martin,
é possível que 200 milhões de volumes já tivessem sido ma-
nufaturados por volta de 1600, não é de admirar que Fran-
cis Bacon julgasse que a imprensa havia alterado "a apa-
rência e o estado do mundo". 3
1 A população da Europa em QU9 a imprensa era então conhecida era du cerca de
100.000.000. Febvre e Martin. The Corning of Ifie Book, p. 248-9.
2 Característico disso é o livro das viagens de Marco Polo, que permaneceu em gran-
de medida desconhecido até sua primeira impressão em 1559. Polo, Travsls, p. XIII.
3 Citado em Eisansteín, "Some Conjectures", p. 56.
47
Sendo uma das mais antigas formas de empresa capita-
lista, a edição de livros era afetada por toda a busca inces-
sante de mercados do capitalismo. As primeiras gráficas
instalaram filiais por toda a Europa: "desse modo, criou-
se-uma verdadeira 'internacional' de editoras, que ignora-
va fronteiras nacionais [sic]". 4 E cbmo os anos de 1500-1550
foram um período de prosperidade excepcional na Europa,,
a atividade editorial participou da expansão geral. "Mais
do que em qualquer outro tempo" ela foi "uma grande in-
dústria sob o controle de abastados capitalistas". 5 Natu-
ralmente, os "livreiros preocupavam-se primordialmente
em conseguir lucro e em vender seiis produtos e, conseqúen-
temente, buscavam primeiramente aquelas obras que fossem
de interesse para o maior número possível de seus contem-
porâneos". 6
O mercado inicial foi a Europa letrada, ampla mas té-
nue camada de leitores do latim. A saturação desse merca-
do levou cerca de 150 anos. O fato decisivo quanto ao latim
— fora sua sacralídade — é que ele era uma língua de biíín-
gúes. Relativamente poucos haviam nascido para falar em
latim e menor número ainda, imagina-se, sonhava em latim.
No século XVI, a proporção de bilíngues na população to-
tal da Europa era muito pequena; muito provavelmente
não maior do .que a proporção na população mundial de
hoje e — não obstante o internacionalismo proletário —
dos próximos séculos. Naquela época, como hoje, a gran-
de massa da humanidade é de monoglotas. Assim sendo,
a lógica do capitalismo indicava que, uma vez que o merca-
do latino de elite estava saturado, os mercados representa-
dos pelas massas monoglotas, potencialmente enormes, se-
riam o atrativo. É certo que a Contra-Reforma estimulou
um ressurgimento temporário da atividade editorial em la-
tim, mas, em meados do século XVII, o movimento esta-
4 Febvre o Martin. The Corning of the Book, p. 122. (O texto original, porém, fala sim-
plesmente de "par-dessusles frorrtíères" í" por sobre as fronteiras"!. L 'Apparitíon, p. 194.)
6 Ibid., p. 187. O 1axtt> original fala ao capitalistas "puissants" (poderosos; a nlo "a-
bastados". L'Apparitiorr, p. 281,
6 "Daf ter sido a introdução da imprensa, quanto a isso, uma atapa no caminho para
nassa atuo soc-iedsde de consuma da massa e de padronização." Ibid., p. 259-60.
(O textc original diz "une civilisation da masse et de standardisation", pue melhor
se traduziria por "civilização padronizada, de massa". L'AppBrition, p. 394.5
48
vá em decadência, e saturadas as bibliotecas ardorosamen-
te católicas. Nesse meio tempo, uma escassez de dinheiro
por toda a Europa levou as gráficas a pensar cada vez
mais em vender edições baratas nas línguas vulgares. 7
O impulso revolucionário do capitalismo no sentido
da utilização das línguas vulgares recebeu um ímpeto adi-
cional de três fatores externos, dois dos quais contribuíram
diretamente para o surgimento da consciência nacional. O
primeiro deles, e em última análise o menos importante,
foi uma alteração no caráter da própria língua latina. Gra-
ças ao labor dos humanistas, fazendo renascer a enorme li-
teratura da antiguidade pré-cristã e disseminando-a por
meio do mercado editorial, tornou-se patente, no seio da//l-
telUgentsia transeuropéia, uma nova forma de apreciar os
elaborados resultados estilísticos dos antigos. O latim que
agora se pretendia escrever tornava-se cada vez mais cicero-
niano e, como prova disso, cada vez mais afastado da vi-
da eclesiástica e da vida quotidiana. Dessa maneira, ele ad-
quiriu uma característica esotérica, muito diversa da do la-
tim da Igreja da época medieval. Pois o antigo-latim não
era obscuro devido a seu conteúdo ou a seu estilo, mas ape-
nas por ser inteiramente escrito, isto é, devido a seu status
como texto. Agora, tornava-se obscuro devido ao que era
escrito, devido à linguagem em si mesma.
Em segundo lugar, foi o impacto da Reforma que,
ao mesmo tempo, deveu muito de seu êxito ao capitalis-
mo editorial. Antes da era da imprensa, Roma ganhava fa-
cilmente todas as guerras contra a heresia na Europa oci-
dental, porque sempre teve linhas internas de comunicação
melhores que seus desafiantes. Quando, porém, em 1517,
Martinho Lutero afixou suas teses na porta da capela em
Wittenberg, elas foram impressas em tradução para o ale-
mão e, "no espaço de quinze dias [haviam sido] conheci-
das em todos os cantos do país". 8 Nas duas décadas de
1520-1540, foram editados três vezes mais livros na Alema-
nha do que no período de 1500-1520, transformação espan-
tosa, para a qual Lutero foi absolutamente fundamental.
7lbid., p, 195.
8 Ibid., p, 289-SO.
49
Suas obras representaram nada menos do que um terço
de iodos os livros em alemão vendidos entre 1518 e 1525.
Entre 1522 e 1546, foram publicadas 430 edições (integrais
ou parciais) de suas traduções da'Bíblia. "Temos aí, pela
primeira vez, uma verdadeira massa de leitores e uma litera-
tura popular ao alcance de todo o mundo." 9 De fato, Lu-
tero tornou-se o primeiro autor de grande vendagem conhe-
cido como ta!. Ou, em outras palavras, o primeiroescritor
que vendia seus Sivros novos com base no próprio nome. 10
Onde Lutero foi o primeiro, outros rapidamente se se-
guiram, dando início à colossal propaganda religiosa que
avassalou a Europa toda no correr do século seguinte. Nes-
sa gigantesca "luta para conquistar o pensamento dos ho-
mens' ', o protestantismo sempre esteve basicamente na ofen-
siva, precisamente porque sabia como utilizar o crescente
mercado da imprensa em língua vulgar que o capitalismo
criava, enquanto que a Contra-Reforma defendia a cidade-
la do latim. Símbolo disso é o índex Llbrorum Prohibito-
rum do Vaticano — que não tinha correspondente no pro-
testantismo —, catálogo singular que se fez necessário devi-
do ao maciço volume de subversão impressa. Nada trans-
mite melhor o sentido' dessa mentalidade de assédio do que
a aterrorizante proibição de Francisco I, em 1535, que ve-
dava a impressão de todo e qualquer livro em seu reino
— sob pena de morte por enforcamento! A razão para es-
sa proibição, e para sua inaplicabilidade, está em que, na
época, as fronteiras orientais de seu reino estavam cerca-
das por Estados e cidades protestantes que produziam uma
torrente maciça de material impresso contrabandeável. Pa-
ra nos atermos à Genebra de Calvino: entre 1533 e 1540,
haviam sido publicadas ali apenas 42 edições, mas esse nú-
mero subiu para 527, entre 1550 e 1564, e nesta última da-
ta não havia menos de quarenta gráficas distintas trabalhan-
do em horas extras. "
s Ibid., p. 291-5.
10 A partir desse ponto, era só um passo pars a situação na França do século XVII, on-
de Corrwllla, Molíèra s La Fomaine •vendiam suas tragédias e comédias manuscritas
diretamente- aos editoras., que as compravam como investimentos excelentes, ten-
do em vista a reputação de seus autores no mercado. Ibid., p. 161.
M Ibid. p. 310-5.
50
A coalizão entre o protestantismo e o capitalismo edi-
torial, que explorava edições populares baratas, criou rapi-
damente grandes públicos leitores novos — inclusive entre
mercadores e mulheres, que tipicamente pouco ou nada. co-
nheciam de latim — e simultaneamente mobilizava-os pa-
ra fins político-religíosos. Inevitavelmente, não era apenas
a Igreja que se abalava em seus fundamentos. O mesmo
terremoto produziu os primeiros Estados europeus não di-
násticos e não cidades-Estado de importância, na Repúbli-
ca da Holanda e na Comunidade dos Puritanos. (O pâni-
co de Francisco I era tão político quanto religioso.)
Em terceiro lugar, havia a disseminação, lenta e geo-
graficamente desigual, de línguas vulgares específicas co-
mo instrumento de centralização administrativa por deter-
minados pseudomonarcas absolutos presuntivos bem posi-
cionados. É conveniente que se lembre, aqui, que a univer-
salidade do latim na Europa ocidental medieval jamais cor-
respondeu a um sistema político universal. -É instrutivo o
contraste com a China Imperial, onde o âmbito da burocra-
cia dos mandarins e a dos caracteres desenhados coincidiam
em grande medida. Com efeito, a fragmentação política
da Europa ocidental, após o colapso do Império do Ociden-
te, significava que nenhum soberano poderia monopolizar
o latim e torná-lo sua língua oficial exclusiva e, desse mo-
do, a autoridade religiosa do latim nunca possuiu um ver-.
dadeiro correspondente político.
O nascimento das línguas vulgares administrativas aã-.
tecedeu tanto a imprensa quanto a revolução religiosa do
século XVI, e deve, por isso, ser encarado (pelo menos ini-
cialmente) como fator independente na erosão da comuni-
dade sagrada imaginada. Ao mesmo tempo, não há nada
que indique que quaisquer impulsos ideológicos, sem falar
em protonacionaís, profundamente arraigados estivessem
subjacentes à utilização de línguas vulgares onde ela ocor-
reu. O caso da "Inglaterra" — na periferia noroeste da Eu-
ropa latina — é especialmente'esclarecedor. Anteriormen-
te à invasão normanda, a língua da corte, literária e admi-
nistrativa, era o anglo-saxão. No correr do século e meio
seguinte, virtualmente todos os documentos reais eram es-
critos em latim. Entre cerca de 1200 e 1350, esse latim ofi-
51
ciai foi substituído pelo francês normando. Enquanto isso,
uma lenta fusão entre essa língua de uma classe dirigente
estrangeira e o anglo-saxão da população submetida deu
origem ao inglês primitivo. Essa fusão tornou possível que
a nova língua, após 1362, viesse a ser a língua da corte
— e para a abertura do parlamento. Veio a seguir, em 1382,
a Bíblia manuscrita em língua vulgar, de Wycliffe. u É fun-
damental que se tenha ern mente que essa sequência consti-
tuía uma série de línguas "de Estado", e não "nacionais";
e que o Estado envolvido abrangia, em épocas diversas,
não apenas a Inglaterra e o País de Gales de hoje, mas tam-
bém partes da Irlanda, da Escócia e da França. Obviamen-
te, enormes parcelas das populações submetidas conheciam
pouco ou nada de latim, francês normando, ou inglês pri-
mitivo. l3 Só depois de quase um século após a entroniza-
ção política do inglês primitivo é que o poder de Londres
foi varrido para fora da "França".
No Sena, teve lugar movimento semelhante, ainda que
em ritmo mais lento. Como diz ironicamente Bloch, "o fran-
cês, vale dizer uma Síngua que, uma vez que era encarada
meramente como forma adulterada do latim, levou diver-
sos séculos para erguer-se à dignidade literária", M apenas
se tornou a língua oficial dos tribunais de justiça em 1539,
quando Francisco I expediu o Edito de Villers-Cotterêts. l5
Em outros reinos dinásticos, o latim sobreviveu por muito
mais tempo — sob os Habsburgos até bem tardiamente no
século XIX. Em outros, ainda, línguas vulgares "estrangei-
'ras" se impuseram: no século XVIII, as línguas da corte
dos Romanovs eram o francês e o alemão. !6
Em todo caso, a "escolha" da língua parece consti-
tuir-se num desenvolvimento gradual, não deliberado, prag-
mático, para não dizer casual. Como tal, era inteiramente
diferente das políticas linguísticas deliberadas perseguidas
pelos dinastas do século XIX, que enfrentavam a ascensão
1S Seton-Walso-ri, Netions and States, p. 28-9; Bloch, Feudal Society, l, p. 75.
w Não se deve supor que a unificação da língua vulgar administrativa tenha sido realiza-
da Imediatamente ou tis maneira completa, É improvável que a Guiana, governada
a partir de Londres, tivesse sido administrada originariamente ern inglês primitivo.
M Bloch, Feudai Sociery, l, p,. 98.
15 Seton-Walsoo, Netfons anrf Slates, p. 48,
'«Ibid., p, 83.
52
de nacionalismos linguísticos populares hostis. (Ver mais
adiante, Cap. 6.) Sinal claro dessa diferença é que as anti-
gas línguas administrativas eram precisamente isto: línguas
utilizadas pelo mundo oficial, por sua própria conveniência
interna. Não havia qualquer ideia de se impor sistematica-
mente a língua às diversas populações submetidas ao dihas-
ta. " 'Não obstante, a promoção dessas línguas vulgares
ao stattts de línguas-do-poder, onde, em certo sentido, eram
concorrentes do latim (o francês, em Paris, o inglês [primi-
tivo], em Londres), contribuiu à sua maneira para a deca-
dência da comunidade imaginada da cristandade.
No fundo, é provável que a esoterização do latim, a
Reforma e o desenvolvimento casual das línguas vulgares ad-
ministrativas sejam significativos, neste contexto, primordial-
mente em sentido negativo — como tendo contribuído pa-
ra o destronamento do latim e para a erosão da comunida-
de sagrada da cristandade. É perfeitamente possível conce-
ber o surgimento das novas comunidades nacionais imagina-
das, sem que algum deles, talvez nenhum deles, estivesse
presente. Num sentido positivo, o que tornou imagináveis
as novas comunidades foi uma interação semifortuita, mas
explosiva, entre um sistema de produção e de relações pro-
dutivas (capitalismo), uma tecnologia de comunicações (a im-
prensa) e a fatalidade da diversidade linguística do homem. IS
O elemento de fatalidade é fundamental. Pois por
mais que o capitalismo fosse capaz de feitos sobre-huma-
nos, ele encontrou na morte e nas línguas dois tenazes ad-versários.19 Determinadas línguas podem morrer ou ser ex-
terminadas, mas não havia, nem há, possibilidade de uma
unificação linguística geral do homem. Contudo, essa in-
compreensibilidade recíproca era historicamente apenas de
17 Confirmação compatível dessa afi/mação ofereça-nos Francisco ! que, como vimos,
proibiu toda e qualquer impressão de livros em 1535 e, quatro anos depois, fé: do
francês a língua de sua cortei
18 Esse não foi a primeiro "acidente" dessa natureza. Febvre e Martin observam que,
embora Já existisse uma burguesia perceptível na Europa, em fins do século XIII, o
papel não tevo uso generalizado antes do -final do século XIV. Somente a superfície
bem lisa do pape! tornou possível a reprodução maciça de textos o figuras — e Isso
não ocorreu senão apôs outros setenta e cinco anos. Mas o papel náo era Invenção
europeia. Chegou ali vindo de uma outra história — a da China - por intermédio do
mundo Islâmico. Tfte Caming of t/ie Book, p. 22, 30 e 45.
15 N5o temos ainda multinacionais gigantes no mundo editorial.
53
ligeira importância, até que o capitalismo e a imprensa crias-
sem os maciços públicos leitores monoglotas.
Embora seja essencial manter em mente uma ideia de
fatalidade, no sentido de condição geral de diversidade lin-
guística irremediável, seria equivocado fazer equivaler es-
sa fatalidade àquele elemento comum às ideologias naciona-
listas, que enfatiza a fatalidade primordial de determina-
das línguas e de sua associação a unidades territoriais deter-
minadas. O essencial é a influência recíproca entre fatalida-
de, tecnologia e capitalismo. >ía Europa pré-imprensa e,
naturalmente, em outras partes do mundo, a diversidade
das línguas faladas, aquelas línguas que, para seus falan-
tes, eram (e são) a trama e a urdidura de suas vidas, era
imensa; tão imensa, de fato, que se o capitalismo editorial
buscasse explorar cada mercado potencial de língua vulgar
oral, teria permanecido um capitalismo de proporções insig-
nificantes. Mas esses idioletos variados eram passíveis de
se agruparem, dentro de limites definidos, em número mui-
to menor de línguas impressas! .A própria arbitrariedade
de qualquer sistema de signos para sons facilitava o proces-
so de agrupamento.20 (Ao mesmo tempo, quanto mais ideo-
gráficos os signos, tanto mais vasta a zona de agrupamen-
to potencial. Quanto a isso, pode-se descobrir uma espécie
de hierarquia descendente partindo da álgebra, passando
pelo chinês e pelo inglês, até os silabários regulares do fran-
cês ou do indonésio.) Nada serviu para "agrupar" línguas
vulgares correíatas mais do que o capitalismo que, dentro
dos limites impostos pelas gramáticas e sintaxes, criou lín-
guas impressas mecanicamente reproduzidas, passíveis de
disseminação pelo mercado. 21
zo Proveitosa exposição sobre essa questão encontra-se em S. H. Steinberg, Five Hun-
dfett V&sra cfPrinting, cap. 5. O fato do o signo, ough ser pronunciado diferentemen-
te nas palavras althaugh, bough. Itxigh. rougfi, cougti e hiccough demonstra tanto
a variedade idiolâtica da qual proveio a ortografia Inglesa, agora padrão, quanto a ca-
racterística ideográfica do produto final.
11 Digo "nada ssrvíu... mais do que o capitalismo" intencionalmente. Tanto Stelnberg
quanto Eisenstein chegam muito perto de teornorf liar "a imprensa" que imprensa co-
mo c gânio da história moderna, Febvre e Martin (amais se esquecem de que, por de-
trás da imprensa, estio 33 gráficas e 35 companhias editoras. Nessa contexto, vale
lembrar que embora a imprensa tivesse sido Inventada primeiro na China, possivel-
rrvante quinhentas anos antes de- seu aparecimento na Europa, nSo teve qualquer im-
pacto de maior importância, rnuito menos revolucionário — precisamente devida â
ausência do capitalismo ia.
54
Essas línguas impressas lançaram as bases para a cons-
ciência nacional de três modos diferentes. Antes de mais
nada, criaram campos unificados de intercâmbio e comuni-
cação abaixo do latim e acima das línguas vulgares faladas.
Os falantes da enorme variedade de línguas francesas, in-
glesas, ou espanholas, que podiam achar difícil, ou até
mesmo impossível, compreender-se reciprocamente em con-
versa, tornaram-se capazes de compreender-se via impren-
sa e papel. No correr do processo, tornaram-se gradativa-
mente conscientes das centenas de milhares, até mesmo mi-
lhões, de pessoas existentes em seu determinado campo lin-
guístico .e, ao mesmo tempo, que apenas essas centenas de
milhares, ou milhões, a ele pertenciam. Esses co-leitores,
a que estavam ligados pela imprensa, formavam, em sua
visível invisibilidade secular e peculiar, o embrião da comu-
nidade nacionalmente imaginada.
Em segundo lugar, o capitalismo editorial atribuiu no-
va fixidez à língua, que, a iongo prazo, ajudou a construir
aquela imagem de antiguidade, tão essencial à ideia subjeti-
va de nação. Como nos fazem lembrar Febvre e Martin,
o livro impresso mantém uma forma permanente, passível
de reprodução virtualmente infinita, temporal e espacial-
mente. Já não estava mais sujeito aos hábitos individualiza-
dores e "inconscientemente modernizadores" dos escribas
monásticos. Desse modo, enquanto o francês do século
XII distinguia-se acentuadamente do francês escrito por
Víllon no século XV, a proporção de mudança diminuiu
decisivamente no século XVI. "No século XVII as línguas
da Europa haviam, de modo geral, assumido suas formas
modernas." 22 Em outras palavras, no decorrer de três sécu-
los, essas línguas impressas estabilizadas foram se sedimen-
tando; as palavras de nossos antepassados do século XVII
nos são acessíveis de um modo que não eram, a Villon,
seus ancestrais do século XII.
Em terceiro lugar, o capitalismo editorial criou Ifaguas-
de-poder de uma espécie diversa da das antigas línguas vul-
gares administrativas. Determinados dialeíos estavam inevita-
velmente "mais próximos" de cada língua impressa e domi-
52 The Corning of the Book, p. 319. Cf. L'Apperition, p. 477: "Au XVII" siècle, lês lan-
gues nationales apparaissant u n peu partout cristallisées". ("No século XVII, as lín-
guas nacionais mostram-se cristalizadas por toda parta."!
55
navam suas formas finais. Suas parentes em desvantagem,
ainda assim assimiláveis à língua impressa que surgia, per-
diam prestígio, antes.de mais nada por não serem bem-suce-
didas (ou serem apenas relativamente bem-sucedidas) ao in-
sistir em suas próprias formas impressas. O "alemão do no-
roeste" tornou-se o Platt Deutsch, largamente falado, e as-
sim um alemão subpadrão, porque era assimilável ao ale-
mão impresso de uma maneira em que não o era o checo fa-
lado da Boémia. O alto alemão, o inglês do rei e, mais tar-
de, o tai central foram consequentemente elevados a uma no-
va proeminência político-cultural.i (Daí as lutas, na Europa
desse fim do século XX, de determinadas "sub "-nacionalida-
des para alterarem seu síaíus subordinado forçando vigoro-
samente a entrada na imprensa -—• e no rádio.)
Resta apenas salientar que, em suas origens, a fixação
das línguas impressas e a diferenciação de status entre elas
foram, em grande medida, processos não. intencionais que
resultaram da interação explosiva entre o capitalismo, a tec-.
nologia e a diversidade Linguística humana. Mas, como tan-
ta coisa mais na história do nacionalismo, uma vez "ali",
elas se tornavam modelos formais a serem imitados e, quan-
do vantajoso, conscientemenle exploradas dentro de um es-
pírito maquiavélico. Hoje em dia, o governo tai desestimu-
la ativamente as tentativas de missionários estrangeiros de
oferecer a suas minorias tribais das montanhas sistemas
próprios de transcrição, e de desenvolver publicações em
suas próprias línguas: esse mesmo governo é em grande me-
dida indiferente ao que essas minorias falam. O destino
dos povos de fala túrquica nas zonas incorporadas à Tur-
quia, Ira, Iraque e URSS atuais é especialmente exemplar.
Família de línguas faladas, outrora agrupável por toda par-
te, e portanto compreensível, dentro de uma ortografia ará-
bica, perdeu aquela unidade em consequênciade manipula-
ções deliberadas. Para exaltar a consciência nacional da
Turquia turca em detrimento de qualquer identificação mu-
çulmana mais ampla, Atatúrk impôs uma romanização com-
pulsória. 23 As autoridades soviéticas, seguiram o exemplo,
primeiro corn uma romanização compulsória antimucul-
23 Hans Korin. The Age of Nationalism. p, 108. É provavelmente apenas justo acrescen-
tar que K-crnal esperava lambam, por ess.e meio, par o nacionalismo turco ern linha
com a c iu Tire cie madeira, ramanítada, da Europa ocidental. •;
56
mana e antipersa e, a seguir, na década stalinista de 1930,
com uma cirilização russificante compulsória. 24
Podemos resumir as conclusões que se podem tirar
da exposição até este ponto, dizendo que a convergência
do capitalismo e da tecnologia da imprensa sobre a diversi-
dade fatal das línguas humanas criou a possibilidade de
uma nova forma de comunidade imaginada que, em sua
morfologia básica, prepara o cenário da nação moderna.
A extensão potencial dessas comunidades era inerentemen-
te limitada e, ao mesmo tempo, não mantinha senão a
mais fortuita relação com as fronteiras políticas existentes
(que eram, em geral, o ponto culminante dos expansionis-
mos dinásticos).
Contudo, é óbvio que, embora hoje em dia quase to-
das as pretensas nações— e também as nações-Estado —
possuam "línguas impressas nacionais", muitas delas pos-
suem essas línguas em comum e, em outras, apenas uma
fração mínima da população "usa" a língua nacional em
conversa ou no papel. Os Estados-nação da América Espa-
nhola, ou os da "família anglo-saxônica" são exemplos no-
táveis do primeiro resultado; muitos ex-Estados coloniais,
particularmente na África, do segundo. Em outras pala-
vras, a formação concreta dos Estados-nação contemporâ-
neos não é de modo algum isomórfica com o alcance esta-
belecido de determinadas línguas impressas. Para explicar-
se a descontinuidade-em-conexão entre línguas impressas,
consciências nacionais e Estados-nação, é necessário voltar-
se para o amplo conjunto das novas entidades políticas
que brotaram no hemisfério ocidental entre 1776 e 1838, to-
das as quais se definiram conscientemente como nações e,
com a curiosa exceção do Brasil, como republicas (não di-
násticas). Pois não apenas eram elas historicamente os pri-
meiros Estados desse tipo a surgir no mundo, e por isso
forneceram inevitavelmente os primeiros modelos reais de
com que deveriam esses Estados "se parecerem", como tam-
bém o número delas e seu aparecimento simultâneo ofere-
cem terreno fértil para um estudo comparativo.
Ji Seton-Watson. Nations and States, p, 317.
ANTIGOS IMPÉRIOS,
NOVAS NAÇÕES
Os novos Estados americanos do final do século XVIII
e início do século XIX são de interesse incomum, por pare-
cer quase impossível explicá-los em termos dos dois fatores
que, provavelmente por poderem ser facilmente deduzidos
a partir dos nacionalismos da Europa de meados do sécu-
lo, têm sido dominantes em muito do pensamento europeu
a respeito do surgimento do nacionalismo.
Em primeiro lugar, quer se pense no Brasil, nos EUA
ou nas antigas colónias da Espanha, a língua não era um
elemento que os diferenciasse de suas respectivas metrópo-
les imperiais. Todos eles, inclusive os EUA, eram Estados
crioulos, constituídos e dirigidos por pessoas que comparti-
lhavam uma língua e uma descendência comuns com aque-
les contra os quais lutavam. ] Na verdade, é justo que se
diga que a língua nunca foi sequer um tema nessas antigas
lutas pela libertação nacional.
Em segundo lugar, há sérias razões para se duvidar
da aplicabilidade, em grande parte do hemisfério ocidental,
da tese de Nairn, em outros casos convincente, e segundo
a qual: 2
1 Crioula — pessoa da descendência europeia pura [pelo menos teoricamente), parem
nascida na América rã, mais tarde, por extensão, srn qualquer lugar fora tia Europa!.
2 77» Brsak-up ofõritein, p. 41.
58
O advento do nacionalismo num sentido distintamente mo-
derno esteve ligado ao batismo político das classes inferio-
res... Ainda que às vezes hostil à democracia, os movimen-
tos nacionalistas têm tido uma perspectiva invariavelmen-
te populista e procurado arregimentar as classes inferiores
para a vida política. Em sua versão mais típica, isto assu
miu a forma de uma ciasse média e de uma liderança inte-
lectual inquietas, que procuram incitar e canalizar as ener-
gias das classes populares para a sustentação dos novos
.Estados.
Pelo menos na América do Sul e na América Central,
as "classes-médias" ao estilo europeu ainda eram insignifi-
cantes no final do século XVIII. Como também não havia
algo semelhante a uma intelligenisia. Pois "naqueles dias
. tranquilos da colónia era pouca a leitura a interromper o
ritmo faustoso e.snob da vida das pessoas". 3 Como vimos,
o primeiro romance hispano-americano só foi publicado
em 1816, bem depois da deflagração das guerras de inde-
pendência. Os indícios .sugerem claramente que a lideran-
ça estava nas mãos de ricos proprietários de terras, em alian-
ça com um número muito menor de comerciantes e de di-
versos tipos de profissionais liberais (advogadas, militares,
funcionários locais e provinciais). 4
Ao contrário de procurar "arregimentar .as classes in-
feriores para a vida política", um fator-chave,que, de iní-
cio, estimulou o impulso para a independência em relação
a Madri, em casos tão importantes como a Venezuela, o
México e o Peru, era o medo de mobilizações políticas da
"classe inferior": a saber, rebeliões de índios ou'de escra-
vos negros. 5 (Esse medo só aumentou quando o "secretá-
rio do Espírito Mundial" de Hegel conquistou a Espanha
em 1808, privando assim os crioulos de apoio militar da pe-
nínsula em caso de emergência.) No Peru, ainda estavam
vivas as lembranças da grande jacquerie liderada por Tu-
3Gerhard Masur, Simon Bolívar, p. 17.
4 Lynch, The Spanish-Amef/can Revo/utíons, p. 14-7 e flnssim, Essas proporções pro-
vem do faio de que as (unções comorciais o sdmirtistraiifas mais importantes oram
em grande medida monopolizadas pelos espanhóis natos, enquanto a propriedade cia
terra era inteiramente aberta aos crioulos.
s Quanto s isto, há analogia evidente com o nacionalismo Bóer de um século mais tarde.
59
pac Amarú (1740-1781). 6 Em 1791, Toussaint L'Ouvertu-
re comandou uma insurreição de escravos negros, que
deu origem, em 1804, à segunda república independente
do hemisfério ocidental — e aterrorizou os grandes fazen-
deiros da Venezuela, donos de escravos. 7 Quando, em
1789, Madri expediu uma-no vá lei, mais humanitária, so-
bre escravidão, especificando pormenorizadamente os di-
reitos e os deveres dos senhores e dos escravos, "os criou-
los repudiaram a intervenção estatal com base em que os
escravos eram propensos ao vício e à independência [!] e
eram fundamentais para a economia. Na Venezuela —'• na
verdade, por todo o Mar das Caraíbas espanhol — os fa-
zendeiros se opuseram à lei e promoveram sua revogação
em 1794". 8 O próprio Libertador Bolívar opinou, certa
vez, que uma revolta de negros era "mil vezes pior que
uma invasão espanhola". * Também não devemos esque-
cer que muitos dos líderes do movimento de independên-
cia das Treze Colónias eram magnatas agrários donos de
escravos. O próprio Thomas Jefferson estava entre os fa-
zendeiros da Virgínia que, na década de 1770, se irritaram
com a proclamação do governador legalista que concedia
Uberdade aos escravos que rompessem com seus senhores
sediciosos. 10 É instrutivo que uma das razões pelas quais
Madri conseguiu retornar com êxito à Venezuela, entre
1814 e 1816, e manter, até 1820, o domínio sobre a longín-
qua Quito, foi ela ter conseguido o apoio dos escravos,
naquela, e dos índios, nesta, em sua luta contra os criou-
los rebeldes, ll Além disso, a prolongada duração da lu-
ta continental contra a Espanha, na época uma potência
europeia de segunda ordem, e que fora, ela mesma, recen-
temente subjugada, indica certa "fragilidade social" des-
ses movimentos de independência latino-americanos.
6 Talvez seja notável qu« Tupac Amarúnão lenha rapudiado completamenta a compro-
misso de fidelidade ao rei espanhol. Ele e seus seguidores (na maior parte índios,
mas também alguns brancos e mestiços) ínsurglram-se contra'a administração de Li-
ma: Masur, Bolívar, p. 24.
7 Seton-Wstson. Noticns and Síntes, p. 201.
11 Lynch, Tho Spanfsli-Amaficori ftovolulions, p. 192.
a l b i d . , p . 224.
10 Edward 5. Morgars, "Trie Haart of Jelferson", The tJsw HM* Review -o/ Books, 17
d« agasto tfe 1&78, p. 2.
11 Masur, Bolívar, p. 207; Lyncri, The Spanfsíi-Americen fíevolutions, p, 237.
Contudo, eles eram movimentos de independência na-
cional. Bolívar mudou de opinião a respeito dos escravos 12
e San Martin, seu companheiro de luta pela libertação, de-
cretou, em 1821, que, "no futuro, os aborígenes não deve-
rão ser chamados de índios, ou de nativos; eles são filhos
e cidadãos do Peru e deverão ser conhecidos como perua-
nos". 13 (Poderíamos acrescentar: a despeito do fato de
que, até então, o capitalismo editorial não havia ainda che-
gado a esses analfabetos.)
Eis então o enigma: por que precisamente as comuni-
dades crioulas é que desenvolveram tão precocemente con-
cepções de sua nation-ness — bem antes da maior parte
da Europa? Por que essas províncias coloniais, abrangen-
do em geral grandes populações oprimidas que não falavam
o espanhol, deram origem a crioulos que, deliberadarnen-
te, redefiniram tais populações como compatriotas? E a Es-
panha, 14 à qual estavam ligados de tantas maneiras, co-
mo inimigo estrangeiro? Por que o Império hispáno-ameri-
cano, que tivera existência tranquila durante três séculos,
fragmentou-se tão subitamente em dezoito Estados distintos?
Os dois fatores mais comumente mencionados como
explicação são o enrijecimento do controle exercido por
Madri e a disseminação das ideias liberalizantes do Ilumi-
nismo, na última metade do século XVIII. Não há dúvida
de que é verdade que as políticas implantadas pelo hábil
"déspota esclarecido" Carlos III (r. 1759-1788) decepciona-
ram, irritaram e alarmaram cada vez mais a classe alta criou-
la. Naquilo que, por vezes, tem sido sardonicamente cha-
mado de segunda conquista das Américas, Madri lançou
12 Não sem algumas idas e vindas. Elo libertou seus escravos pouco depois da declara-
ção de independência da Venezuela, em 1810. Quando fugiu para o Haiti em 1816,
conseguiu ajuda militar do Presidente Alexandre Pétion, em troca da promessa de
terminar com a escravidão em todos os territórios libertados. A promessa foi cumpri-
da em Caracas, em 1818 — mas é preciso lembrar que os êxitos de Madri na Vene-
zuela, entre 1314 e 1316, se deveram em parte è emancipação pela metrópole dos
escravos leais. Quando Bolívar sã tornou presidente da GrS-Colombia (Venezusta, No-
va Granada e Equador), em 1821, solicitou e obteve do Congresso uma lei libertan-
do os filhos de escravos. "Não solicitara ao congresso que abolisse a escravatura,
por não querer atrair sobre si o ressentimento dos grandes proprietários de terra."
Masur, Bolívar, p. 125, 206-7, 329 e 38B.
13 Lynch, The Spanisfi-Amerícan Revolutions, p, 276, Grifos nossos.
14 Anacronismo. No século XVIII, o tarmo comum era ainda Lãs Espartas [As Espinhas]
e não Espana (Espanha). Seton-Watson, Naiions ertd States, p. 53.
61
novos impostos, tornou mais eficiente sua arrecadação, for-
taleceu os monopólios comerciais metropolitanos, restringiu
em benefício próprio o comércio intra-hemisfério, centrali-
zou as hierarquias administrativas e promoveu intensa imi-
gração de peninsulares, 1S O México, por exemplo, no início
do século XVIII, provia a Coroa com uma renda anual de
cerca de 3.000.000 de pesos. No finai do século, porém, es-
sa quantia quase quintuplicara, atingindo 14.000.000, dos
quais apenas 4.000.000 eram utilizados no custeio da admi-
nistração local. 16 Paralelamente à isso, o nível da migração
peninsular na década de 1780-1790 era cinco vezes maior
do que havia sido entre 1710-1730. "
• Não há dúvida, também, de que a melhoria das comu-
nicações através do Atlântico, além do fato de as diversas
Américas compartilharem línguas e culturas com suas res-
pectivas metrópoles, significava transmissão relativamente
rápida e fácil das novas doutrinas económicas e políticas
que se estavam produzindo na Europa ocidental. O êxito
da revolta das Treze Colónias, em fins da década de 1770,
e o começo da Revolução Francesa, em fins da de 1780,
não deixaram de ter uma influência poderosa. Nada me-
lhor para confirmar essa "revolução cultural" do que o re-
publicanismo que impregnou as comunidades recém-inde-
pendentes.18 Em parte alguma houve qualquer tentativa sé:
ria de reinstaurar o princípio dinástico nas Américas, a não
ser no Brasil; mesmo ali, isso provavelmente não teria si-
do possível, não fosse a imigração, em 1808, do próprio di-
nasta português, fugindo de Napoleão. (Ele permaneceu
ali por treze anos e, ao regressar, teve seu filho coroado lo-
calmente como Pedro I do Brasil.)
Contudo, a agressividade de Madri e o espírito do li-
beralismo, ainda que fundamentais para a compreensão
do impulso de resistência na América espanhola, não expli-
15 Essa nova agressividade metropolitana era, em parta, produto das doutrinas do Ilu-
minismo, em parta, de problemas fiscais crónicos a, em parto, após 1779, da guer-
ra com a Inglaterra. Lynch, The Spanísh-American Revotutions, p. 4-17. *
18 Ibid., p. 301. Quatro míriSBS iam para subsidiar a administracío de outras partes
da América, enquanto seis milhões eram de puro lucro.
" Ibid., P. 17.
1B A Constituição da Primeira República Venezuelana t1B11) era, em muitas partes, to-
rrada de emptíslímo, palavra por palavra, da dos Estados Unidos. Masur, Bot/ver, p. 131.
62
cam, por si sós, por que entidades como o Chile, a Vene-
zuela e o México vieram a tornar-se emocionalmente plau-
síveis e politicamente viáveis; l9 nem por que San Martin
devesse decretar que determinados aborígenes fossem iden-
tificados pelo neologismo "peruanos". Nem, afinal de con-
tas, apresentam a razão'dos verdadeiros sacrifícios que fo-
ram feitos. Pois, embora seja certo que as classes altas criou-
las, concebidas como formações sociais históricas, saíram-
se muito bem com a independência ao longo do tempo,
muitos membros concretos dessas classes, que viveram en-
tre 1808 e 1828, ficaram financeiramente arruinados. (Ape-
nas um exemplo: durante a contra-ofensiva de Madri, em
1814-1816, "mais de dois terços das famílias proprietárias
de terras sofreram pesados confiscos''. 20) E outros tantos
deram a vida voluntariamente pela causa. Essa disposição
ao sacrifício por parte de classes em situação confortável
é matéria para reflexão.
E então? O começo de uma resposta encontra-se no
fato notável de que "cada' uma das novas repúblicas sul-
americanas havia sido uma unidade administrativa entre
os séculos XVI e XVIII". 21 Quanto a isso, prenunciaram
os novos Estados da África e de partes da Ásia, em mea-
dos do século XX, e contrastam marcadamente com os no-
vos Estados europeus do final do século XIX e início do sé-
culo XX, A configuração original das unidades administra-
tivas americanas era, em certa medida, arbitrária e fortui-
ta, assinalando os limites espaciais de determinadas conquis-
tas militares. Com o correr do tempo, porém, elas desen-
volveram uma realidade mais estável,1 sob a influência de
fatores geográficos, políticos e económicos. A própria vas-
tidão do Império hispano-americano, 'a* enorme variedade
de seus solos e climas e, sobretudo, a imensa dificuldade
de comunicações numa era pré-industriaí contribuíram pa-
ra dar a essas unidades um caráter de auto-suficiência. (Na
época colonial, a jornada marítima de Buenos Aires a Aca-
19 O mesmo se pode dizer da postura de Londres diante das Treze Colónias, o da ideolo-
gia da Revolução de 1776.
20Lynch, The Spanish-AmericanRevotutíons. p. 20B; cf. Masur, Bolívar, p. S8-9 e 231.
21 Masur, Bolívar, p, 678,
63
pulco levava quatro meses, e a viagem de volta às vezes
mais tempo; a viagem por terra de Buenos Aires a Santia-
godemorava normalmente dois meses, e a Cartagena, no-
ve. 22) Além disso, as políticas comerciais de Madri resulta-
vam em fazer das unidades administrativas zonas económi-
cas separadas. "Toda competição com a mãe-pátria era ve-
dada aos americanos e as distintas partes do continente
não podiam sequer comerciar entre si, As mercadorias ame-
ricanas, em curso de um lado a outro da América, tinham
de fazer uma tortuosa viagem via portos espanhóis, e a na-
vegação espanhola tinha o monopólio do comércio com
as colónias." 23 Essas experiências ajudam à explicar por
que "um dos princípios básicos da revolução americana"
foi o do "utipossidetis, segundo o qual cada nação mante-
ria o status quo territorial de 1810, ano em que se haviam
iniciado os movimentos pela independência''. 24 Sua influên-
cia contribuiu também, sem dúvida, para a desintegração
da efémera Grã-Colômbia de Bolívar e das Províncias Uni-
das do Rio da Prata em seus antigos elementos constituti-
vos (hoje em dia conhecidos como Venezuela-Colômbia-
Equador e Argentina-Uruguai-Paraguai-Bolívia). Não obs-
tante, mercados regionais de caráter "natural"-geográfico
ou político-administrativo, por si sós, não criam lealdades.
Quem estaria disposto a morrer pelo Comecon ou pela CEE?
Para perceber de que modo unidades administrativas
podem, com o correr do tempo, vir a ser concebidas co-
mo pátrias, não só na América como também em outras
partes do mundo, é preciso examinar de que modo organi-
zações administrativas criam significado. O antropólogo
Victor Turner tem escrito de maneira esclarecedora a res-
peito da "jornada", entre tempos, síaíus e lugares, como
uma experiência criadora de significado. 2S Todas essas jor-
42 Lynch, The Spanish-Amerícen Revolutions, p. 25-6,
23 Masur, Bolívar, p. 19. Naturalmente, essas medidas eram apenas em parte executá-
veis e sempre continuou a haver certa porção de contrabando.
**lbid., p. 546.
25Ver.de sua autoria, TheForesíof Symbols, Aspecrsof Ndembít Ritual, especialmen-
te a capítulo "BatwlM and Between: Thn Llminal Period ín ftius de Psssage". Elabo-
ração posterior mais e-nmplsxa ertcontra-s.e ern seu Dramas, Fieids. and Metaphors,
Svmhotic Actron in Hatnan Soci&ty. capítulo 5 ("Pilgiimages as Social Processes")
e S ("Passagas, Margíns, and Pcvarty: Religi-ous Symbols c-f Cornmunitas").
64
nadas exigem interpretação (por exemplo, a jornada do
nascimento à morte deu origem a diversas concepções reli-
giosas). Para nossos fins, a jornada modal é a peregrina-
ção. Não é simplesmente que, na mente dos cristãos, "mu-
çulmanos ou hindus, as cidades de Roma, Meca ou Bena-
res fossem os centros de geografias sagradas, mas sim que
sua centralidade era vivenciada e "realizada" (no sentido
da arte cénica) pelo fluxo constante de peregrinos que se
deslocavam em sua direção, vindos de localidades longín-
quas entre as quais não existia qualquer outra relação. Na
verdade^ em certo sentido, os limites externos das antigas
comunidades religiosas da imaginação eram determinados
pelo tipo de peregrinação que as pessoas faziam. 26 Como
já assinalamos anteriormente, a estranha justaposição físi-
ca de malaios, persas, indianos, berberes e turcos em Me-
ca é algo incompreensível sem uma noção de alguma for-
ma de comunidade entre eles. O berbere que encontra o
malaio diante da caaba deve, por assim dizer, indagar-se:
"Por que esse homem está fazendo o que faço, pronuncian-
do as mesmas palavras que pronuncio e, no entanto, não
podemos falar um com o outro?" Existe uma única respos-
ta, uma vez que se aprenda: "Porque nós.., somos muçul-
manos". Pôr certo, sempre houve ura duplo aspecto da co-
reografia das grandes peregrinações religiosas: vasta multi-
dão de analfabetos, falantes de língua vulgar, forneciam a
densa realidade física da viagem cerimonial; enquanto que
um pequeno segmento de iniciados letrados bilíngues, oriun-
dos 'de cada uma das comunidades de língua vulgar, execu-
tavam os ritos unificadores, interpretando para seus respec-
tivos seguidores o significado de seu movimento coletivo. 27
Numa época pré-imprensa, a realidade da comunidade reli-
giosa imaginada dependia profundamente de inúmeras e
contínuas viagens. Nada é mais impressionante a respeito
™ Ver Bloch, Feudal Society. l, p. 64.
" Existe, neste caso. analogia evidente com os respectivos papéis ctas intetligentsias
bilingues e dos operários a camponeses, na maioria analfabetos, na génese de deter-
minadas movimentos nacionalistas — antes do advento do rádio. Inventado apenas
em 1895, o rádio tornou possível ignorar a irnprensa e dar nascimento a uma repre-
sentação auditiva da comunidade Imaginada, onde a página impressa dificilmente pe-
netrava. Ssu papel nas revoluções vietnamita e indonésia e, em geral, nos nacionalis-
mos da meados do século XX, tem sido muito subestimado e muito mal estudado.
65
da cristandade ocidental em seu auge do que o fluxo espon-
tâneo de fiéis seguidores vindos de toda parte da Europa
para Roma, através dos célebres "centros regionais" de
aprendizado monástico. Essas grandes instituições de fala
latina congregavam o que hoje talvez víssemos como irlan-
deses, dinamarqueses, portugueses, alemães e assim por dian-
te, em comunidades cujo significado sagrado era diariamen-
te revelado a partir da justaposição de seus membros no re-
feitório, justaposição que não se poderia explicar de qual-
quer outra maneira.
Embora as peregrinações religiosas sejam provavelmen-
te as mais tocantes e grandiosas jornadas da imaginação,
elas tinham, e têm, equivalentes seculares mais modestos
e limitados,2S Para nossos fins, as mais importantes foram
as diferentes viagens criadas pelo aparecimento das monar-
quias absolutas e, finalmente, dos impérios mundiais com
centro na Europa. O impulso inerente ao absolutismo era
a criação de um aparato unificado de poder, controlado di-
retamente pelo governante, e leal a ele, em oposição a uma
nobreza feudal particularista e descentralizada. Unificação
significava permutabilidade interna de homens e documen-
tos. A permutabilidade humana era favorecida peia arregi-
mentação — naturalmente de extensão variável — de homi-
nesnovi, os quais, exatamente por essa razão,'não possuíam
poder independente propriamente seu, e, assim, atuavam
como emanações das vontades de seus senhores. 29 Desse
modo, os funcionários dó absolutismo empreendiam jorna-
das que eram fundamentalmente diferentes das dos nobres
feudais. 3° Essa diferença pode ser representada esquemati-
camente da seguinte maneira: na jornada modal feudal, o
herdeiro do Nobre Á, com a morte de seu pai, ascendia
um degrau para ocupar o lugar daquele pai. Essa ascensão
." A "peregrinação secular" não deve ser tonada apenas como um tropo extravagan-
te. Conrad estava sendo iionico, mas também preciso, ao descreve' corno "paregri-
ncs" os agentes espectrais <Je Leopoldo II na profundeza das trevas,
23 Especialmente onde; (a) a monogamia era imposta pela religião B pela lei; (h) a primo-
genitura era a regra; (c) os títulos não-dinâsticcsetam não só hersditárlos como con-
ceptuais e legalmente distintas de postas administrativos: isto é, quando as aristo-
cracias das províncias possuíam poder independente significativo - a Inglaterra,
em oposição ao S ião.
'« Ver Bloch, Feudal Soctety. II, p, 422 st saqs.
66
exigia uma viagem de ida e volta, até o centro para receber
a investidura, e de retorno à casa, para os domínios ances-
trais. Para o novo funcionário, porém, as coisas são mais
complexas. O talento, e não a morte, é que traça sua car-
reira. Vê diante de si um cume e não urn centro. Escala
suas geleiras por uma série de arcos que o circundam, os
quais, espera, se tornarão menores e mais firmes à medi-
da que se aproxime do topo. Enviado para a municipalida-
de A no posto V, pode retornar à capital no posto W; vai,
a seguir, para a província B no posto X; prossegue para o
vice-reino C no posto Y; e termina sua peregrinação na ca-
pital no posto Z. Nessa jornada, não há lugar seguro de re-
pouso; toda pausa é provisória. A últimacoisa que o fun-
cionário quer é regressar à pátria; pois ele não tem pátria
com qualquer valor intrínseco. E mais: em sua rota espiral
de ascensão, depara-se com companheiros de peregrinação
igualmente ansiosos, seus colegas funcionários, oriundos
de lugares e de famílias de que pouco ouviu falar e que es-
pera certamente jamais ter de ver. Porém, com a experiên-
cia de tê-los como companheiros de viagem, emerge uma
consciência de conexão ("Por que estamos nós... aqui...
juntos!"), sobretudo quando todos compartilham de uma
única língua-de-Estado. Então, se o funcionário A, vindo
da província B, administra a província C, enquanto o fun-
cionário D, da província C, administra a província B — si-
tuação que o absolutismo começa a tornar provável — es-
sa experiência de permutabilidade exige uma explicação pró-
pria: a ideologia do absolutismo que, tanto quanto o sobe-
rano, os próprios homens novos elaboram.
A permutabilidade de documentos, que fortalecia a
permutabilidade humana, nutria-se do desenvolvimento
de uma língua-de-Estado padronizada. Como demonstra
a imponente sucessão do anglo-saxão, latim, normando e
inglês primitivo em Londres, do século XI ao XIV, qual-
quer língua escrita pode, em princípio, desempenhar essa
função — desde que se lhe atribuam direitos monopolísti-
cos. (Pode-se, contudo, argumentar que, onde aconteceu
de línguas vulgares, em vez do latim, assumirem o monopó-
lio, obteve-se uma função centralizadora mais profunda,
pela restrição do deslocamento dos funcionários de um so-
67
berano para as máquinas de seus adversários: por assim di-
zer, garantindo, que funcionários-peregrinos de Madri não
fossem permutáveis com os de Paris.)
Em princípio, a expansão extra-européia dos grandes
reinos do início da Europa moderna teria simplesmente am-
pliado o modelo acima ao desenvolver as enormes burocra-
cias transcontinentais. Na verdade, porém, isso não aconte-
ceu. A racionalidade instrumental do aparato absolutista
— sobretudo sua tendência a recrutar e promover com ba-
se no talento e não no nascimento — funcionou apenas in-
termitentemente para além do litoral oriental do Atlântico.31
O padrão é muito evidente na América. Por exemplo,
dos 170 vice-reís da América espanhola antes de 1813, ape-
nas 4 foram crioulos. Esses números são ainda mais impres-
sionantes se observarmos que, em 1800, menos de 5% dos
3.200.000 crioulos "brancos" do Império Ocidental (que
se impunham aos cerca de 13.700.000 indígenas) eram espa-
nhóis nascidos na Espanha. Às vésperas da revolução do
México, só havia um bispo crioulo, embora os crioulos
no vice-reinado superassem os peninsulares na proporção
de 70 para 1. 32 E não é preciso dizer que dificilmente se sa-
bia de algum, crioulo que ascendesse a um posto de impor-
tância oficial na Espanha. 33 Além disso, as peregrinações
de funcionários crioulos não eram barradas apenas vertical-
mente. Se os funcionários peninsulares podiam percorrer
a rota de Saragoça a Cartagena, Madri, Lima e de novo
Madri, o crioulo "mexicano" ou "chileno" típico presta-
31 Evidentemente, não 16 deve exagerar essa racionalidade. O caso do Reino Unido,
em que os católicos foram Impedidos de exercer cargos públicos até 1829, não é
único. Haverá quam duvide que essa prolongada exclusão tenha desempenhado pa-
pel Importante no fonalecirnanto do nacionalismo Irlandês?
11 Lynch, The Spsnísh-Ameiican ftevolaiions, p. 18-9, 293. Descerca de 1 S.000penin-
sulares, melada eram soldados.
13 Na primeira década do século XIX, parece não ter havido em momento algum mais
de 400 sul-amerlcanps residentes na Espanha. Entre eles, o "argentino" San- Martin,
que foi levado para a Espanha quando criança, e ali passou os 27 anos seguintes, in-
gressou na Academia Real para jovens fidalgos/ e desempenhou papel destacado
na luta armada contra Napoleão antas de regressar à terra natal, quando soube ds
sua declaração do Independênciaj e Ba II vá r qua, por al-gtim tempo, foi hóspede em
Madri de Manuel Mello, amante "americano" da rainha Maria Lulsa. Masur conta
que Bolívar pertencia [c. 18051 a "urn grupo de jovens suf-arnaricanos" qua, como
ele, "eram ricos, ociosas s mal vistos na Corte. O rancor e o sentimento de inferiori-
dade d-e muitos crioulos em relação 9 metrópole iam-se tornando neles impulsos revo-
lucionários". Botfver, p, 41-7 e 468-70 (San Marttn).
vá serviços nos territórios do México ou do Chile coloniais;
seu movimento lateral era tão tolhido quanto sua ascensão
vertical. Desse modo, o ápice de sua escalada espiral, o cen-
tro administrativo mais alto para o qual podia ser designa-
do, era a capital da unidade administrativa imperial em
que se encontrava. 34 Contudo, nessa peregrinação limita-
da encontrava companheiros de viagem, os quais acabavam
por perceber que o companheirismo entre eles não se basea-
va apenas naquele determinado .trecho da peregrinação,
mas na fatalidade, que compartilhavam, do nascimento
trans-Atlântico. Ainda que tivesse nascido na primeira se-
mana dep.ois da migração do pai, o acidente do nascimen-
to na América destinava-o à subordinação — ainda que,
em termos de língua,, religião, origem familiar, ou manei-
ras, fosse praticamente indistinguível de um espanhol nasci-
do na Espanha. Não havia nada a fazer quanto a isso: ele
era irremediavelmente um crioulo. Contudo, quão irracio-
nal deve ter parecido sua rejeição! Não obstante, oculta
na irracionalidade estava esta lógica: nascido na'América,
não podia ser um verdadeiro espanhol; ergo, nascido na
Espanha, ò peninsular não podia ser um verdadeiro ameri-
cano. 35
O que fazia com que essa, exclusão parecesse racional
na metrópole? Sem dúvida a confluência de um venerável
34 Com a correr do tempo, as peregrinações militares tornaram-se tSo importantes quan-
to as civis. "A Espanha não possuía nem dinheiro nem efetivos para manter grandes
guarnicães do tropas regulares na América, f) contava principalmente com milícias
coloniais que, a partir de meados do século XVIII, foram ampliadas e reorganizadas,"
(Ibid., p. 10.) Essas milícias eram inteiramente locais, e hio peças intercambiáveis
de um aparato continental de segurança. Da 1760 em diante, desempenharam papel
cada vez mais crítico, à medida que se multiplicavam as incursões britânicas, O pai
de Bolívar fora um aminônte comandante de milícia, defendendo os portos venezuela-
nos contra os invasores. O próprio Bolívar, quando adolescente, servira na antiga
unidade de seu pai. (Masur, Boltvar. p, 30 e 381, Quanto a isso, ele foi típico da mui-
tos da primeira geração de lideras nacionalistas da Argentina: da Venezuela e do Chl-
lê. VerRobert G. Gilmore, CaudiUism antf Militarism ir> Venezuela, J810-J910 capítu-
los 6 ("The Militia"! a 7 ("Thia Mllitary"), •
ís Observe as transformações que a independência trouxe para os-americanos: os Imi-
grantas de primeira geração tornavam-se agora "os mais baixos" ao invés de "os
mais altos", isto é, aqueles mais contaminados por um local ds nascimento inevitá-
vel. Inversões semelhantes ocorrem em reação ao racismo. O '.'sangue negro" — a
nódoa negra — veio a ser visto, sob o imperialismo, iomò irremediavelmente conta-
minadorpara qualquer "branco". Hoje em dia, pelo menos nos Estados Unidos, o "mu-
lato" é peça de museu. O mais ligeiro traço de "sangue negro" torna a pessoa intei-
ramente negra. Compare isso com o programa otimista de miscigenação de Fermín
e sua ausência de preocupação com a cor da descendência esperada.
69
maquiavelismo com o desenvolvimento de concepções de
contaminação biológica e ecológica, que se seguiram à dis-
seminação planetária de europeus e do poder europeu, do
século XVI em diante. Da perspectiva do soberano, os criou-
los americanos, em número cada vez maior e com crescen-
te enraizamento a cada geração que se sucedia, apresenta-
vam um problema político historicamente singular. Pela
primeira vez, as metrópoles tinham que lidar com números
— para aquela época — enormes de "patrícios europeus"
(mais de três milhões na América espanhola, em 1800) re-
motamente afastadosda Europa. Se os indígenas podiam
ser conquistados pelas armas e pelas doenças, e controla-
dos pelos mistérios da cristandade e de uma cultura inteira-
mente estranha (bem como pôr' uma organização política
avançada para a época), o mesmo não se dava em relação
aos crioulos, que tinham, com as armas, as doenças, a cris-
tandade e a cultura europeia, virtualmente a mesma rela- •
cão >que os metropolitanos. Em outras palavras, po:diam,
em princípio, dispor prontamente dos recursos políticos,
culturais e militares para se afirmarem com êxito. Consti- '
tuíam simultaneamente uma comunidade colonial e uma
classe superior. Deviam ser economicamente subjugados e
explorados, mas também eram essenciais à estabilidade do
império. Com isso em mente, pode-se observar certo para-
lelismo entre a posição dos magnatas crioulos e a dos ba-
rões feudais, fundamentais para o poder do soberano, mas
também uma ameaça a ele. Desse modo, os peninsulares en-
viados como vice-reis e bispos desempenhavam as mesmas
funções que os hominesnovi das burocracias proto-absolu-
ttstas. 3S Ainda que o vice-rei fosse uma pessoa eminente
em sua terra andaluza, aqui, distante treze mil quilómetros,
sobreposto aos crioulos, ele era efetivamente um homo no-
vus inteiramente dependente de seu patrão metropolitano.
O equilíbrio tenso entre o funcionário peninsulaj e o mag-
nata crioulo era,, assim, em novo cenário, uma expressão
da velha política do divide et impera.
ís Dada a grande preocupação de Madri com que a administração das colónias estivas-
se em mios confiáveis, "eia axiomático que os sitos postos fossem praenchidos ex-
clusivanrente por eSpanh-Sis naios". Masur. Bolívar, p. 10,
70
Ademais, o crescimento das comunidades crioulas,
principalmente nas Américas, mas também em certas par-
tes da África e da Ásia, levou inevitavelmente ao apareci-
mento de eurasianos, eurafricanos, bem como euramerica-
nos, não como curiosidades casuais, mas como grupos so-
ciais evidentes. Seu surgimento permitiu que prosperasse
um estilo de pensamento que prenuncia o moderno racis-
mo. Portugal, o. mais antigo dos conquistadores planetá-
rios da Europa,' fornece uma ilustração adequada disso.
Na última década do século XV, D. Manuel I pôde ainda
"resolver" sua "questão judaica" pela conversão obrigató-
ria em massa — sendo possivelmente o último governante
europeu a considerar essa solução não só satisfatória co-
mo "natural". 37 Menos de um século depois, porém» en-
contramos Alexandre ^Valignano, o grande reorganizador
da missão jesuíta na Ásia, entre 1574 e 1606, combatendo
veementemente a admissão de indianos e eurindianos ao sa-
cerdócio, nos seguintes termos: 3S
->
Todas essas raças pardas são muito broncas e corrompi-
das e de índole a mais torpe... Quanto aos mestiços e cas-
tiços, devemos aceitar muito pouco deles, ou nenhum; es-
pecialmente com respeito aos mestiços, uma vez que quan-
to mais sangue nativo possuem, mais se assemelham aos
indianos e menos são estimados pelos portugueses.
(No entanto, Valignano estimulou ativamente a admissão de
japoneses, coreanos, chineses e "indochineses" à profissão
sacerdotal — talvez por não haver ainda, nessas regiões,
mestiços em número suficiente?) Analogamente, os francis-
canos portugueses de Goa combateram violentamente a ad-
missão de crioulos na ordem, alegando que "mesmo quan-
do nascidos de pais brancos puros, foram amamentados
por aias indianas na primeira infância e, assim, têm o san-
gue contaminado por toda a vida". 39 Boxer demonstra
que as barreiras e exclusões "raciais" aumentaram notavel-
mente no correr dos séculos XVII e XVIII, em comparação
com a prática anterior. Pesada contribuição para essa
''Charles R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825, p. 286.
3»lbid.. p. 252.
'9lbld., p. 253.
71
perniciosa tendência foi dada pelo renascimento da escravi-
dão em larga escala (pela primeira vez na Europa, desde a
antiguidade), a qual teve o pioneirismo de Portugal a par-
tir de 1510. Já na década de 1550, 10% da população de
Lisboa era de escravos; em 1800, 'havia perto de um milhão
de escravos entre os cerca de 2.500.000 habitantes do Bra-
sil português. 40
Indiretamente, o Iluminismo influenciou também a
cristalização de uma distinção irrevogável entre metropolita-
nos e crioulos. No curso de seus vinte e dois anos no po-
der (1755-1777), o autocrata esclarecido Pombal não só ex-
pulsou os jesuítas dos domínios portugueses, como também
classificou como infração criminosa chamar os súditos "de
cor" por nomes ofensivos, tais como "negro" ou "mesti-
ço" [sic]. Justificou, porém, esse decreto citando antigas
concepções romanas de cidadania imperial, e não as doutri-
nas dos philosophes. 41 Ainda mais tipicamente, as obras
de Rousseau e de Herder, que afirmavam que o clima e a
"ecologia" tinham efeito constitutivo sobre a cultura e o
caráter, exerceram ampla influência. 42 A partir daí, era ex-
tremamente fácil fazer a dedução vulgar e conveniente de
que os crioulos, nascidos em um hemisfério selvagem, eram,
pela própria natureza, diferentes dos metropolitanos e infe-
riores a eles — e, portanto, inadequados para cargos de
maior importância. *3
Até aqui, nossa atenção tem-se concentrado nos inte-
resses dos funcionários na América — importantes, estrate-
gicamente, mas, ainda assim, interesses menores. Além dis-
so, eram interesses que, com seus conflitos entre peninsula-
res e crioulos, antecipavam o aparecimento da consciência
nacional americana dos fins do século XVIII. As peregrina-
ções vice-reais limitadas não tiveram consequências decisi-
vas, até que suas extensões territoriais puderam ser imagi-
*° Rona Fields, The Portuguese Revotution ancf tfis Armed Forces Movement, p. 15.
41 Boser, The Portuguesa Seaborne Èmpirc, p. 257-B.
*2 Kernilàinen. Nationalism. p. 72-3.
<3 Tenho ríslçado aqui as distinções rací-sias entre peninsulares e crioulos, porque o te-
ma principal de que estamos tratando é o surgimento do nacionalismo crioulo. Isso
não deve ser compreendido como minimização da crescimanto paralelo do racismo
crioulo em relação a mestiços, negros e índios; nem a disposição de uma metrópole
n Só emeacada de proteger (-até ce-lo ponto) esses infelizes.
72
nadas como nações, em outras.palavras, até o advento do
capitalismo editorial.
A imprensa chegou cedo à Nova Espanha, mas perma-
neceu durante dois séculos sob o estrito controle da coroa
e da Igreja. Até fins do século XVII, só havia gráficas na
Cidade do México e em Lima, e sua produção era quase
que exclusivamente ligada à Igreja. Na América do Norte
protestante, a imprensa praticamente não existiu nesse sécu-
lo. No correr do século XVIII, porém, teve lugar uma ver-
dadeira revolução. Entre 1691 e 1820, foram editados na-,
da menos de 2.120 "jornais", 461 dos quais duraram por
mais de dez anos. 44
A figura de Benjamin Franklin está indelevelmente as-
sociada ao nacionalismo crioulo na América do Norte. A
importância de seu negócio, porém, pode ser menos eviden-
te. Mais uma vez, Febvre e Martin nos esclarecem. Lem-
bram-nos que "a imprensa de fato não se desenvolveu na
América do Norte durante o século XVIII, até que os im-
pressores descobrissem uma nova fonte de renda — o-jor-
nal". "5 Os gráficos que abriam novas oficinas incluíam sem-
pre um jornal em sua produção, do qual eram comumen-
te o colaborador principal, senão único. Assim, o gráfico-
jornalista foi, de início, um fenómeno essencialmente nor-
te-americano. Uma vez que o principal problema enfrenta-
do pelo gráfico-jornalista era atingir os leitores, desenvol-
veu-se uma associação tão estreita com o agente do correio
que, frequentemente, eles se tornavam um só. Daí ter a
oficina gráfica surgido como o ponto chave das comunica-
ções e da vida intelectual da comunidade nos EUA. Na
América espanhola, ainda que de modo.mais lento e inter-
mitente, processo semelhante deu origem, na segunda meta-
de do século XVIII, às primeiras gráficas locais. 46
Quais eram as características dos primeiros jornais,
norte ou sul-americanos? Eles começavamfundamentalmen-
te como prolongamentos do mercado. Os mais antigos jor-
nais continham — ao lado de notícias sobre a metrópole
"'"'The Cornin9 of the Book'Pi 208"11 •
48 Franco, An Introduction, p. 28.
73
— notícias comerciais (partidas e chegadas de navios, quais
os preços, para que mercadorias, em que portos), bem co-
mo ordenações políticas coloniais, casamentos dos ricos, e
assim por diante. Em outras palavras, o que colocava la-
do a lado, na mesma página, este casamento com aquele
navio, este preço cora aquele bispo, era a própria estrutu-
ra da administração e do sistema de mercado coloniais.
Desse modo, o jornal de Caracas, de maneira muito natu-
ral e até mesmo apolítica, criava uma comunidade imagina-
da entre uma determinada congregação de companheiros-
leitores, à qual pertenciam esses navios, noivas, bispos e
preços. Naturalmente, só se podia esperar que, com o cor-
rer do tempo, aí entrassem elementos políticos.
Um traço criativo desses jornais era sempre seu provin-
cianismo. Um crioulo colonial, se tivesse oportunidade, po-
dia ler um jornal de Madri (o qual, porém, não diria na-
da sobre seu mundo), mas muitos funcionários peninsula-
res, morando na mesma rua, não leriam o que se produzia
em Caracas se pudessem deixar de fazê-lo. Assimetria, es-
ta, que podia repetir-se infinitamente em outras situações
coloniais. Outro traço desse tipo era a pluralidade. Os pe-
riódicos hispano-americanos que se desenvolveram no fi-
nal do século XVIII eram compostos com plena consciên-
cia da existência de provincianos em mundos paralelos ao
seu. -Os leitores de jornal da Cidade do México, de Buenos
Aires e de Bogotá, ainda que não lessem os jornais uns
dos outros, estavam no entanto perfeitamente conscientes
de sua existência. Daí a conhecida duplicidade do naciona-
lismo hispano-arnericano primitivo, a alternância entre seu
extenso âmbito e seu localismo particularista. O fato de
os primeiros nacionalistas mexicanos escreverem, sobre si
mesmos, corno nosotros los americanos e, sobre seu país,
corno nuestra América\m sido interpretado como revela-
dor da vaidade dos crioulos locais que, por ser o México,
de longe, a mais valiosa das possessões da América espa-
nhola, se consideravam o centro do Novo Mundo. 47 De fa-
to, porém, por toda a América espanhola, as pessoas pen-
47 Lvach, The Spsnísk-AmerJcen fievaSulions, p. 33,
74
savam em si mesmas como "americanas", uma vez que es-
sa expressão denotava precisamente a fatalidade do nasci-
mento extra-espanhol que compartilhavam. "8
Ao mesmo tempo, vimos que a própria concepção
do jornal implica na refracão de "eventos mundiais" idên-
ticos em um determinado mundo imaginado de leitores na
língua vulgar; e, também, em quão importante é, para es-
sa comunidade imaginada, uma ideia de simultaneidade fir-
me e sólida através do tempo. A imensa extensão do Impé-
rio hispano-americano e o isolamento de suas partes com-
ponentes tornavam difícil imaginar uma simultaneidade co-
mo essa. *9 Os crioulos mexicanos podiam saber, meses
mais tarde, de acontecimentos ocorridos em Buenos Aires,
mas isso se daria por intermédio dos jornais mexicanos,
não dos do Rio da Prata; e tais acontecimentos antes pare-
ceriam "ser semelhantes aos" acontecimentos ocorridos
no México, do que "fazer parte deles".
Nesse sentido, o "fracasso" da experiência hispano-
americana em gerar um nacionalismo de âmbito hispano-
americano permanente reflete, ao mesmo tempo, o nível ge-
ral de desenvolvimento do capitalismo e da tecnologia em
fins do século XVIII, e o atraso "local" do capitalismo e
da tecnologia na Espanha em relação à extensão adminis-
trativa do império. (A época da história mundial em que
nasce cada nacionalismo tem, provavelmente, um impacto
significativo sobre seu alcance. Não será o nacionalismo in-
diano inseparável da unificação administrativa e de merca-
do da colónia, após a Insurreição, realizada por poderes im-
periais os mais terríveis e avançados?)
Ao norte, os crioulos protestantes de fala inglesa esta-
vam em posição muito mais favorável para concretizar a
ideia de "América" e, na verdade, acabaram por ter êxito
em apropriar-se do título habitual de "americanos". As
Treze Colónias originárias compreendiam uma área menor
49 "Um peão velo queixar-se de que um inspetor espanhol de sua estância havia bati-
do nele. San Martin ficou indignado, mas era antes uma indignação nacionalista do
que socialista. 'Ora, veja sol Depois de três anos de revolução, um maturrango [vulg.,
espanhol peninsular] se atreve a erguer a mão para um americano!'." Ibid., p. 87,
49 Evocação fascinante da lonjura e do isolamento das populações hispano-americanas
á a descrição da fabulosa Macondo, feita por Márquaz em Cem anos de solidão.
.78
do que a Venezuela e equivalente a um terço do tamanho
da Argentina. M Estando todas elas juntas geograficamen-
te, os mercados de Boston, Nova York e Filadélfia eram fa-
cilmente acessíveis uns aos outros e suas populações liga-
das de maneira relativamente firme pela imprensa, tanto
quanto pelo comércio. Os "Estados Unidos" puderam
multiplicar gradativamente seu número no correr dos 183
anos seguintes, à medida que populações antigas e novas
se deslocaram rumo ao oeste a partir do núcleo litorâneo
do leste. Contudo, mesmo no caso dos EUA, há elementos
de "fracasso" ou retração comparáveis — a não incorpora-
ção do Canadá de fala inglesa, a década de soberania inde-
pendente do Texas (1835-1846).'Se, no século XVIII, tives-
se existido uma comunidade de fala inglesa de bom tama-
nho na Califórnia, não seria provável que tivesse surgido
ali um Estado independente, pára atuar como uma Argen-
tina em relação ao Peru das Treze Colónias? Até mesmo
nos EUA, os laços afetivos de nacionalismo foram suficien-
temente elásticos, associados à rápida expansão da frontei-
ra oeste e às contradições geradas entre as economias do
norte e do sul, a ponto de precipitar uma guerra de seces-
são quase um século depois da Declaração da Independên-
cia; e, hoje, essa guerra nos faz lembrar vivamente as que
separaram violentamente a Venezuela e o Equador da Grã-
Colômbia, e o Uruguai e o Paraguai, das Províncias Uni-
das do Rio da Prata. 51
À guisa de conclusão provisória, é conveniente voltar
a acentuar a pretensão limitada e específica da exposição
que fizemos até aqui. O que se pretende é menos explicar
as bases socioeconômicas da resistência antinietropolitana
no hemisfério ocidental entre, digamos, 1760 e 1830, do
que a razão por que a resistência se concebeu sob formas
50 A superfície,total das Tieze ColCnlas era de 835.202 quilómetros quadrados. A da
Venazuala. 311.£3-0; da Argentina, 2.776.439; e da América do Sul hispínica,
8.860,965 dui!õrnetros quadrados.
51 O Paraguai constitui um caso de excepcional interesse. Graças à ditadura relativa-
mente benevolente alt estabelecida pelos jesuítas em princípios do século XVII, os in-
dígenas foram mais bem tratados do que em qualquer outra parte da América espa-
nhola 9 o Guarani alcançou o steíus <Je língua impressa. Com a expulsão dos jesuí-
tas da América espanhola pala Coroa, em 1767, -o território passou para o Rio de Pra-
ia, mas multo tardiamente & por pouco mais de uma geração. VarSaton-Watson, tJa-
liorr$ ancf States, p, 200-1.
76
nacionais "plurais" — e não de outras formas. Os interes-
ses económicos ern jogo são bem conhecidos e, obviamen-
te, de importância fundamental. O liberalismo e o Ihiminis-
mo tiveram evidentemente um efeito muito forte, sobretu-
do propiciando um arsenal de crítica ideológica do regime
imperial e dos anciens regimes. O que estou sugerindo é
que nem o interesse económico, nem o liberalismo, nem o
Iluminismo podiam criar, ou criaram, por si sós, o tipo,
ou a forma, de comunidade imaginada que se protegesse
contra a espoliação daqueles regimes; ern outras palavras,
nenhum deles proporcionou o quadro de uma nova consciên-
cia — a mal percebida periferia de sua visão.— em oposi-.
cão ao que estava no foco central de sua admiração ou de-
sagrado. 52 No cumprimentodesta tarefa específica, os fun-
cionários crioulos peregrinos e os homens de imprensa criou-
los provincianos tiveram o papel histórico decisivo.
54 É ilustrativo que a Declaração da Independência de 1776 fale somente de "o povo",
enquanto a patavra "nação" só aparece pola primeira vez na Constituição de 1789.'
Kcrnílãinen, Netionslism, p. 105.
ANTIGAS LÍNGUAS,
NOVOS MODELOS
O término do período de movimentos de libertação na-
cional bem-sucedidos na América coincidiu quase que exa-
tamente com o início da época do nacionalismo na Euro-
pa. Se considerarmos o caráter desses novos nacionalismos
que, entre 1820 e 1920, alteraram a fisionomia do Velho
Mundo, dois traços notáveis os distinguem de seus precur-
sores. Em primeiro lugar, em quase todos, as "línguas im-
pressas nacionais" foram de fundamental importância ideo-
lógica e política, enquanto que o espanhol e o inglês ja-
mais foram temas na América revolucionária. Em segun-
do lugar, todos tiveram condições de aluar a partir de mo-
delos disponíveis propiciados por seus predecessores remo-
tos e, .após as convulsões da Revolução Francesa, não tão
remotos. A "nação" tornou-se, assim, algo a que se podia
aspirar desde o início, e não que se fosse definindo gradati-
vamente. Na verdade, como veremos, a "nação" mostrou
ser uma invenção que era impossível patentear. Ela se tor-
nou suscetível de plágio por mãos as mais variadas e, por
vezes, imprevistas. Por isso, neste capítulo, o centro de
nossa análise será a língua impressa e o plágio.
Com leviana despreocupação a respeito de alguns fa-
tos evidentes extra-europeus, o grande Johann Gottfried
von Herder (1744-1803) declarou, em fins do século XVIII,
que: "Denn/ecfes Volk i st Volk; es liai seine National Bil-
78
dung wie seine Sprache". ' ["Assim, todo povo é povo;
ele possui sua formação nacional como possui sua língua".]
Essa concepção notavelmente e«£-européia da nation-ness
como algo vinculado a uma língua própria e exclusiva te-
ve ampla influência na Europa do século XIX e, mais limi-
tadamente, nas teorias subsequentes sobre a natureza do
nacionalismo. Quais as origens desse sonho? O mais prová-
vel é que.se encontrem na profunda redução do mundo eu-
ropeu, em tempo e espaço, que teve início já no século XIV,
causado inicialmente pelas escavações dos humanistas e»
posteriormente, de maneira bastante paradoxal, pela expan-
são planetária da Europa.
Como bem o diz Auerbach: 2
Com a primeira alvorada do humanismo, começou a havei1
um sentimento de que os eventos da história e da lenda
clássicas, bem como os da Bíblia, não estavam separados
do presente unicamente por uma extensão de tempo, mas
também por condições completamente diversas de vida.
Com seu programa de restauração das antigas formas de
vida e de expressão, o humanismo cria uma perspectiva
histórica em profundidade tal como nenhuma época ante-
rior de que temos conhecimento jamais possuiu: os huma-
nistas vêem a antiguidade em profundidade histórica e, so-
bre esse pano de fundo, o período intermediário de trevas
da Idade Média... [Isso tornou impossível] restabelecer a
vida autárquica natural da antiga cultura, ou a ingenuida-
de histórica dos séculos Xíl e XIII,
O desenvolvimento do que se pode chamar "história com-
parada" levou, com o tempo, à concepção até então inau-
dita de uma "modernidade" explicitamente justaposta à
"antiguidade", e de modo algum necessariamente em bene-
fício desta última. A questão foi encarniçadamente debati-
da na "Batalha dos Antigos e Modernos" que dominou a
vida intelectual francesa na última quarta parte do século •
XVII. 3 Citando mais uma vez Auerbach, "Na época de
Luís XIV, os franceses tiveram a 'coragem de considerar
1 KemilâMen, Nstionalism. p. 42. Grifos nossos.
2 M/mesis, p. 282. Grifo nosso.
3 A batalha se iniciou em 1639, quando Charles Perra u't, com 69 anos, publicou seu
poema Síécíe de LQUIU lê Grend, que afirmava que as ar.es e as ciências haviam atin-
gido plena prosperidade em seu próprio tempo e lugar.
79
sua própria cultura como um modelo válido em igualdade
de condições com a dos antigos, e impuseram essa opinião
ao resto da Europa".4
No correr do século XVI, a "descoberta" feita pela
Europa das grandiosas civilizações de que até então só se
ouvira falar vagamente — na China, Japão, Sudeste da
Ásia e no subcontinente indiano — ou que eram completa-
mente desconhecidas — o México asteca e o Peru incaico
— sugeria um irremediável pluralismo humano. Em sua
maior parte, essas civilizações haviam-se desenvolvido com-
pletamente isoladas da história conhecida da Europa, da
cristandade, da antiguidade, na verdade do homem: suas
genealogias eram exteriores e inaâsimiláveis ao Éden. (So-
mente o tempo homogéneo e vazio permitiria acomodá-
las.) O impacto das "descobertas" pode ser aferido pelas
geografias peculiares das sociedades imaginárias da época.
A Utopia de Thomas Morus, surgida em 1516, simulava
ser o relato de um marinheiro que o autor encontrou em
Antuérpia, o qual participara da expedição de Américo
Vespúcio à América, em 1497-1498. A Nova Atlântida de
Francis Bacon (1626) foi talvez original sobretudo porque
se localizava no Oceano Pacífico. A majestosa Ilha dos
Houyhnhnms, de Swift (1726), apresentava um mapa fictí-
cio de sua localização no Atlântico Sul. (Ô significado des-
ses cenários fica mais claro se se considerar quão inimagi-
nável seria localizar a República de Platão em qualquer ma-
pa, fictício ou real.) Todas essas utopias enganosas, "mode-
ladas" sobre descobertas reais, são descritas, não como Pa-
raísos perdidos, mas como sociedades contemporâneas. Po-
deria afirmar-se que tinham de ser assim, uma vez que fo-
ram compostas como críticas a sociedades contemporâneas,
e que as descobertas tinham dado fim à necessidade de bus-
car modelos em uma antiguidade desaparecida. 5 Na estei-
ra dos utopistas, vieram os astros do Ilumimsmo, Viço,
Moníesquieu, Voltaire e Rousseau que, cada vez mais, ex-
* Mimesis, p. 343. Observe que Auerbacn diz "cultuis" e não "língua". Deveríamos
também sar parcimoniosos, em atribuir "fisrton-r.esf" a assa "sua própria".
5 Analogamente, há um claro contraste entre os cois famosos mongíis do teatro inglês.
Tamburlaifia r/te Qraat (1587-158.8], da Marlowe, descreve um fabuloso dirtasta mor-
to desde 1407. Aurangieb \fàlfi). de Dtyden, rettala um Imperador contemporâneo
reinante n 358-1707],
80
pioraram uma não-Europa "real" para uma bateria de
obras subversivas dirigidas contra as instituições sociais e
políticas europeias então vigentes. De fato, tornou-se possí-
vel pensar a Europa como apenas uma entre muitas civiliza-
ções, e não necessariamente a Escolhida, ou a melhor. 6
No devido teiripo, as descobertas e conquistas causa-
ram também uma revolução nas ideias europeias a respeito
da língua. Desde os primeiros momentos, marinheiros, mis-
sionários, comerciantes e soldados portugueses, holandeses
e espanhóis, por motivos práticos — navegação, conversão,
comércio e guerra — colecionaram listas de palavras de lín-
guas não-européias, que seriam reunidas em dicionários ele-
mentares. Mas somente em fins do século XVIII é que o es-
tudo comparado de línguas, de caráter científico, realmen-
te se iniciou. Pa conquista inglesa de Bengala se originaram
as investigações pioneiras de William Jones sobre o sânscri-
to (1786), que levou a uma compreensão crescente de que.
a civilização indiana era muito mais antiga do que a da Gré-
cia ou da Judéia. Da expedição de Napoleão ao Egito veio
a decifração dos hieróglifos por Champollion (1835), "que
multiplicou a antiguidade extra-européia. 7 Progressos nos
estudos semíticos abalaram a ideia de que o hebreu fosse
singularmente antigo, ou de proveniência divina. Mais uma
vez, iam-se concebendo genealogias que só poderiam conci-
liar-se em um tempo homogéneo e vazio. "Â língua tornou-
se menos urna continuidade entre um poder exterior e o fa-
lante humano do que um terreno interior criado e realiza-
do, entre eles mesmos, pelos usuários da língua." 8 Dessas
descobertas surgiua filologia, com seus estudos de gramáti-
ca comparada, classificação de línguas em famílias e, por
dedução científica, reconstruções de "protolínguas" tira-
das do esquecimento. Como observa correiamente Hobs-
bawm, ali estava "a primeira ciência a encarar a evolução
comp sua própria essência". 9
0 Assim, enquanto o imperialismo europeu abria vigorosamente seu caminho descuida-
do pelo mundo, outras civilizações se viam traumaticamente confrontadas por pluralis-
mos que aniquilavam suas genealogias sagradas. A marginalizarão do Império do Cen-
tro para o Extremo Oriente é simbólica desse processo.
' Hobsbawm, The Age of Revolution, p. 337,
8 Edward Said, Otientatism, p. 136.
s Hobsbawm, The Age of Revolulion. p. 337.
81
A partir daquele momento, as antigas línguas sagra-
das — o latim, o grego e o hebreu — foram obrigadas a
misturar-se em condições de igualdade ontológica com va-
riegada e plebeia multidão de línguas vulgares rivais, num
movimento que complementava sua .degradação anterior
no mercado pelo capitalismo editorial. Se agora todas as
línguas compartilhavam um status (intra)mundano comum,
então, em princípio, eram todas igualmente dignas de estu-
do e de admiração'. Mas por quem? Logicamente, uma vez
que agora nenhuma delas pertencia a Deus, pôr seusnovps'
donos: os falantes — e leitores — nativos de cada língua.'.
Como nos mostra de maneira muito proveitosa Seton-
Watson, o século XIX foi, na Europa e em sua periferia
imediata, uma idade do ouro para os lexicógrafos, gramáti-
cos, filologistas e literatos das línguas vulgares. '? A vigoro-
sa atividade desses intelectuais profissionais foi fundamen- •
tal na moldagem dos nacionalismos europeus do século
XIX, em total contraste com a situação na América entre
1770 e 1830..Os dicionários raonolíngúes eram enormes
compêndios do tesouro impresso de cada língua, que se po-
diam transportar (ainda que às vezes com dificuldade) da .
oficina para a escola, do. escritório para a casa, Os dicioná-
rios bilíngues tornavam evidente um igualitarismo mais apro-
.ximador entre as línguas — fosse qual fosse a realidade po-
lítica exterior, dentro das capas do dicionário Checo-ale-
mão/Alemão-checo, as línguas, lado alado, possuíam idên-
tico staíus. Os rriourejadores visionários que dedicavam
anos e anos à compilação dos dicionários eram necessaria-
mente levados para as grandes bibliotecas dá Europa, so-
bretudo as das universidades, ou por elas sustentados. E a
maior parte de sua clientela imediata constituía-se, não me-
nos inevitavelmente, de estudantes universitários ou pré-
universitários. A afirmação de Hobsbawm de que "o pro-
gresso das escolas e das universidades dá a medida do nacio-
nalismo, exatamente como as escolas, e particularmente as
10 "Exatsmente porque a historiais língua, hoje em dia, é, em geral', mantida tão rigi-
damente separada da historia política, económica e social convencional, é quçtfné pa-
receu desejável associá-la a estas, ainda que com o risco de menor domínio da área."
Nations and States, p. 11. De lato. um dos aspectos mais valiosos do texto de Se-
ton-Wauon é exatamems a stençáo que dedica à historia da língua — embora se
possa discordai do modo como a utiliza,
82
universidades, se tornaram seus paladinos mais conscien-
tes", certamente está correia em relação à Europa do sécu-
lo XIX, se não para outras épocas e lugares. "
Pode-se, assim, reconstituir essa revolução lexicográfi-
ca como se poderia fazer com o estrondàr de um arsenal
em chamas, quando cada pequena explosão acende outras,
até que a explosão total final transforma a noite em dia.
Em meados do século XVIII, o extraordinário traba-
lho de estudiosos alemães, franceses e ingleses não apenas
havia tornado acessíveis, em formas impressas de fácil ma-
nejo, virtualmente todo o corpus existente dos clássicos gre-
gos, juntamente com os anexos filológicos e lexicográficos
necessários, como também recriavam, em dezenas de livros,
a antiga civilização helénica, fulgurante e firmemente pa-
gã. No último quartel do século, esse "passado" tornou-
se cada vez mais acessível a um pequeno número de jovens
intelectuais cristãos de fala grega, a maioria dos quais ha-
via estudado ou viajado para fora dos limites do Império
Otomano. l2 Entusiasmados pelo filo-helenismo dos cen-
tros da civilização europeia ocidental, empenharam-se em
"desbarbarizar" os gregos modernos, isto é, em transfor-
má-los em seres dignos de Péricles e de Sócrates. 13 Símbo-
lo dessa mudança de consciência são as seguintes palavras
de um desses jovens, Adamantios Koraes (que mais tarde,
se tornou um ardoroso lexícógrafo!), em discurso para
um público francês, em Paris, em 1803: M
Pela primeira vez, a nação reconhece o espetáculc horroro-
so de sua ignorância e estremece ao avaliar a distância
11 The Age a! Revolufion, p. 166. As instituições académicas não tiveram significado
para os nacionalisrnos americanos. O próprio Hobsbawm observa que, embora hou-
vesse 6.000 estudantes universitários em Paris, na época, eles n5o desempenharam
virtualmente pape! algum na Revolução Francesa (p. 167). Ele também nos faj ver,
proveitosamente, que, embora a educação se disseminasse rapidamente na primei-
, rã metade da século XIX, o número de adolescentes nas escolas ainda era mínimo
pelos padrões de hoje: não mais de 19,000 estudantes de lyoée na França, em 1842;
20.000 alunos no secundário, numa população de 68.000,000 da Rússia Imperial,
* em 1850; e um total aproximado da 48.000 estudantes universitários em toda a Eu-
i ropa, em 1848. Nas revoluções deste ano, porém, esse grupo reduzido, mas estraté-
gico, desempenhou papel essencial (p. 166-7).
12 Os primeiros jornais gregos surgiram em 1784, em Viena, Philike Hetairia, a socieda-
• de secreta responsável sm grande medida pelo levante antiotomano de 1821, foi fun-
dada "em Odessa, o grande novo porto russo rfe grãos", em 1814.
13 Ver a introdução de Elíe Kedouríe a Nalionalism ín Ásia en<j África, p. 40.
1-1 Ibid., p. 43-4. Grifo nosso. O texto integrai de Koraes, "The Present State of Cíviliza-
tion In Greece" encontra-se nas p. 157-82. Ele contém uma análise espantosamen-
te moderna das bases sociológicas de nacionalismo grego.
83
que a separa da glória de seus ancestrais. Essa dolorosa
descoberta, porém, não lança os gregos no desespero: so-
mos os descendentes dos gregos, dizem tacitamente a si
mesmos, e, ou devemos tentar tornar-nos novamente dig-
nos desse nome, ou não devemos ostentá-lo.
Analogamente, em fins do século XVIII, apareceram
gramáticas, dicionários e histórias do romeno, seguidos
de um movimento, inicialmente bem-sucedido nos reinos
dos Habsburgos e, posteriormente, nos dos otomanos,
em prol da substituição do alfabeto cirílico pelo alfabeto
romano (distinguindo nitidamente o romeno das vizinhas
línguas eslavas ortodoxas). l5 Entre 1789 e 1794, a Acade-
mia Russa, moldada na Academia Francesa, produziu
um dicionário russo em seis volumes, a que se seguiu,
em 1802, uma gramática oficial. Ambos representaram
uma vitória da língua vulgar sobre a língua eslava da Igre-
ja. Embora, já entrado o século XVIII, o checo fosse ain-
da a língua apenas dos camponeses da Boémia (a nobre-
za e as classes médias ascendentes falavam o alemão), o
padre católico Josef Dobrovsky (1753-1829) escreveu, em
1792, Geschichte der bòhmische Sprache una ãltern Litera-
tur, primeira história sistemática da língua e da literatu-
ra checas. Em 1835-1839, foi publicado o dicionário pio-
neiro checo-alemão, em cinco volumes, de Josef Jung-
mann. 16
Sobre o nascimento do nacionalismo húngaro, escre-
ve Ignotus ser ele um acontecimento "suficientemente re-
cente no tempo: 1772, ano da publicação de algumas obras
ilegíveis do versátil autor húngaro GyÕrgy Bessenyei, na
época morando em Viena e trabalhando na escolta de Ma-
ria Teresa... A magna opera de Bessenyei destinava-se a
provar que a língua húngara adaptava-se ao mais eleva-
do género literário". n Estímulo ulterior foi propiciado
15 Não pretendendo simular qualquer conhecimento especializadosobre a Europa Les-
te e Central, na análise que se segue baseei-me grandemente em Seton-Waison, A
respeito do romeno, ver Narions and States, p. 177,
«> Ibid., p, 150-3,
17 Paul Ignoius, Hungaty, p. 44. "De fato o provou, mas seu ímpeto polémica era mais
convincente do sue o valer estático dos exemplos que criou," Talvez valha a pena
observar que assa passagem sã encontra em uma subsecão Intitulada "The Inven-
ting of trie Hu-ngarian Nation", que se inicia com esta sugestiva frase: "Uma nação
nasce quando algumas pessoas decidem que ata deve existir".
84
pelas inúmeras publicações de Ferenc Kazinczy (1759-1831),
"o pai da literatura húngara", e pela mudança, em 1784,
da pequena cidade provinciana de Trnava para Budapes-
te, do que viria a ser a Universidade de Budapeste. Sua
primeira expressão política foi a reação hostil da nobreza
magiar que falava o latim, na década de 1780, contra a de-
cisão do imperador José II de substituir o latim pelo ale-
mão, como língua principal da administração imperial. 18
No período de 1800-1850, em consequência do trabalho
pioneiro de estudiosos locais, três línguas literárias diferentes
se formaram ao norte dos Bálcãs: o esloveno, o servo-croa-
ta e o búlgaro. Se, na década de 1830, havia sido geral a
ideia de que os "búlgaros" eram da mesma nação dos ser-
vos e dos croatas, e de fato haviam participado do Movimen-
to Ilírico, em 1878 passaria a existir separadamente um Esta-
do nacional búlgaro. No século XVIII, o ucraniano (o pe-
queno russo) era desdenhosamente tolerado como língua de
caipiras. Em 1798, porém, Ivan Kotlarevsky escreveu sunAe-
neid, poema satírico extremamente popular sobre a vida ucra-
niana. Em 1804, foi fundada a Universidade de Karkov, que
se tornou rapidamente o centro de uma explosão da literatu-
ra ucraniana. Em 1819, apareceu a primeira gramática ucra-
niana — apenas 17 anos depois da gramática oficial russa.
E vieram a seguir, na década de 1830, as obras de Taras Shev-
chenko, a cujo respeito observa Seton-Watson que "a forma-
ção de uma língua literária ucraniana aceita deve mais a ele
do que a qualquer outro indivíduo. O uso dessa língua foi
a etapa decisiva na formação de uma consciência nacional
ucraniana". 19 Pouco tempo depois, em 1846, a primeira or-
ganização nacionalista ucraniana foi fundada em Kiev
— por um historiador!
No século XVIII, a língua de Estado na Finlândia
de hoje era o sueco. Após a união do território aos domí-
16 Seton-Watson, Nations and States, p. 1E8-61. A reaçêo foi suficientemente violen-
ta para persuadir seu sucessor, Leopoldo II (r. 1790-1792), a restaurar o latim. Ver
também adiante. Capitulo V). É ilustrativo que Kazinczy tenha apoiado potiticaman-
te José II nessa questão flgnotus, Hungary, p. 48).
'9 Nations and States, p. 137. Não é preciso diíer que o Tzarismo liquidou rapidamen-
te com essas passoas. Shevchenko foi destruído na Sibéria. Os^absburgos, porém,
encorajaram um pouco os nacionalistas ucranianos na Galícia — para contrabalançar
os poloneses.
85
nios do tzar, em 1809, a língua oficial tornou-se o russo.
Mas o "despertar" de um interesse pela língua finlande-
sa e pelo passado finlandês, expresso de início por textos
escritos em latim e em sueco, em fins do século XVIII,
na década de 1820 passou a manifestar-se cada vez mais
na língua vulgar,20 Os líderes do nascente movimento na-
cionalista finlandês eram ''pessoas cuja profissão consis-
tia em grande medida no manejo da língua: escritores,
professores, pastores e advogados. O estudo do folclore
e a redescoberta e reconstituição da poesia épica popular
caminhavam par a par com a publicação de gramáticas e
dicionários e levava ao surgimento de periódicos que eram
úteis para padronizar a língua finlandesa literária [isto é,
impressa], em nome da qual se poderia propor reivindica-
ções políticas mais vigorosas". il No caso da Noruega,
que por muito tempo compartilhara uma língua escrita
com os dinamarqueses, ainda que com pronúncia comple-
tamente diferente, o nacionalismo surgiu com a nova gra-
mática (1848) e o novo dicionário (1850) noruegueses de
Ivar Aasen, textos que eram uma resposta e um estímulo
às reivindicações de uma língua impressa especificamen-
te norueguesa.
Em outra parte, nos anos iniciais do século XIX, en-
contramos o nacionalismo africâner a que deram início os
pastores e literatos bóeres que, na década de 1870, foram
bem-sucedidos em fazer do dialeto holandês local uma lín-
gua literária e denominando-a não mais como europeia.
Os maronitas e os coptas, muitos deles produtos do Ameri-
can College de Beirute (fundado em 1866) e do College Je-
suíta de São José (fundado em 1875) foram os que mais co-
laboraram para o renascimento do árabe clássico e para a
disseminação do nacionalismo árabe, M E as sementes do
nacionalismo turco podem ser facilmente descobertas no
surgimento de uma ativa imprensa em língua vulgar em Is-
tambul, na década de 1870. 23
z°Kemilâinen,/Víf/ona/ís/n, p. 208-15.
21 SetoivWatson, Nations and States, p, 72.
"Ibid., p, 2329261.
23Kohrv, The Age of fjaííana!ism. p. 105-7. Isso significava urna rejaiçSo do "otoma-
no", língua oficial dinástica que misturava B ementas do turco, do persa e do áraba.
Ê típico que Ibrahlm Sinssi, fundador do primeiro jornal desse tipo, houvesse acaba-
do de vohar de cinco anos de estudos na França. Quando ele saiu à frente, outros la-
go o acompanharam. Em 1875, havia sete diários em Ungua turca em Constantinopla.
86
E não se deve esquecer de que essa mesma época assis-
tiu à popularização de outra forma de página impressa: a
partitura. Depois de Dobrovsky veio Smetana, Dvorak e
Janácek; depois de Aasen, Grieg; depois de Kazinczy, Bé-
ía Bártok; e assim por diante pelo nosso século adentro.
Ao mesmo tempo, é patente que todos esses lexicógra-
fos, filólogos, gramáticos, folcloristas, jornalistas e compo-
sitores não desenvolviam suas atividades revolucionárias
no vácuo. Afinal de contas, eles produziam para o merca-
do da imprensa, e se vinculavam, por intermédio desse si-
lencioso bazar, ao público consumidor. Quem eram esses
consumidores? No sentido mais geral: as famílias das clas-
ses leitoras — não apenas o "pai que trabalhava", mas tam-
bém a esposa rodeada de criadas e os filhos em idade esco-
lar. Se observarmos que, ainda em 1840, mesmo na^Grã-
Bretanha e na França, os Estados mais adiantados da Euro-
pa, quase metade da população ainda era analfabeta (e na
atrasada Rússia, quase 98%), "classes leitoras" significa-
va gente de algum poder. Mais concretamente, elas eram,
além das antigas classes dirigentes da nobreza e da peque-
na nobreza fundiária, os cortesãos e membros do clero,
as camadas médias ascendentes de pequenos funcionários
plebeus, os profissionais liberais, e as burguesias comercial
e industrial.
A Europa de meados do século XIX assistiu a um rá-
pido aumento das despesas do Estado e das dimensões das
burocracias estatais (civil e militar), a despeito da inexistên-
cia de qualquer guerra local de maior importância. "Entre
1830 e 1850, a despesa pública per capita aumentou de 25%
na Espanha, 40% na França, 44% na Rússia, 50% na Bél-
gica, 70% na Áustria, 75% nos EUA e mais de 90% nos
Países Baixos". 2* A expansão burocrática, que significou
também especialização burocrática, abriu as portas da no-
meação oficial a números muito maiores e a origens sociais
muito mais variadas do que até então. Veja-se até mesmo
a máquina estatal austro-húngara, decrépita, plena de sine-
curas e dominada pela nobreza: a porcentagem de homens
originários da classe média nos postos mais elevados de
"Hobsbawm, The Age of Revotution, p. 229.
87
sua metade civil subiu de O, em 1804, passando por 27,
em 1829, e 35, em 1859, para 55, em 1878. Nas forças ar-
madas, revelou-se a mesma tendência, ainda que tipicamen-
te em ritmo mais lento e mais tardio: o componente de clas-
se média do corpo de oficiais subiu de 10% para 75%, en-
tre 1859 e 1918. K
Se a expansão das classes médias burocráticas foi um
fenómeno relativamente uniforme, ocorrendo em taxascom-
paráveis tanto nos Estados adiantados quanto atrasados
da Europa, a ascensão das burguesias comercial e industrial
foi, claro, extremamente irregular — maciça e rápida em
alguns lugares, lenta e interrompida em outros. Mas não im-
porta onde tenha ocorrido, essa "ascensão" deve ser com-
preendida em suas relações com o capitalismo editorial
em língua vulgar.
As classes dirigentes pré-burguesas geraram sua pró-
pria coesão em certo sentido independentemente da língua,
ou, pelo menos, da língua impressa. Se o governante do
Sião tomava uma'nobre malaia como concubina, ou se o
Rei da Inglaterra se casava com uma princesa espanhola
— terão eles alguma vez conversado verdadeiramente um
com o outro? As solidariedades eram produto do parentes-
co, da dependência e de lealdades pessoais. Nobres "fran-
ceses" podiamajudar reis "ingleses" contra monarcas "fran-
ceses", não com base na língua ou na cultura que compar-
tilhassem, mas, cálculos maquiavélicos à parte, com base'
em parentescos e amizades comuns. O tamanho relativa-
mente pequeno das aristocracias tradicionais, suas bases po-
líticas estáveis, e a personalização das relações políticas su-
bentendidas nas relações sexuais e na herança, indicam que
sua coesão como classe era tão concreta quanto imagina-
da. Uma nobreza analfabeta ainda podia atuar como no-
breza- Mas e a burguesia? Eis aí uma classe que, falando
figuradamente, só veio a ser uma classe mediante muitas
cópias. Um dono de fábrica em Lille só estava ligado á
um dono de fábrica de Lyon por reverberação. Eles não ti-
nham uma razão necessária para conhecer a existência um
do outro; tipicamente, não se casavam com a filha um do
25petei J. Kateen&tein, DisfainedParfners, Áustria and Germany sints WJ5, p. 74, 112.
88
outro, nem herdavam as propriedades um do outro. Mas
chegavam a visualizar de um modo geral a existência de
milhares e milhares de outros como eles por intermédio
da língua impressa. Pois é difícil imaginar uma burguesia
analfabeta. Assim, em termos de história mundial, as bur-
guesias foram as primeiras classes a consumar solidarieda-
des numa base essencialmente imaginada. Porém, numa Eu-
ropa do. século XIX, em que, há perto de dois séculos, o la-
tim fora vencido pelo capitalismo editorial em, língua vul-
gar, essas solidariedades tinham seu maior alcance limita-
do por legibilidades em língua vulgar. Dizendo doutro mo-
do, pode-se dormir com qualquer pessoa, mas só se pode
ler a escrita de um certo povo.
Membros da nobreza, pequenos nobres fundiários,
profissionais liberais, funcionários e homens do mercado
— eram estes, então, os consumidores potenciais da revolu-
ção filológica. Mas tal clientela não estava plenamente rea-
lizada quase em parte alguma e as combinações dos consu-
midores concretos "variava consideravelmente de região pá-
ra região. Para perceber por que, é preciso que se retorne
ao contraste básico antes traçado entre a Europa e a Amé-
rica. Na América, havia um isomorfismo quase perfeito en-
tre o âmbito dos diversos impérios e o de suas línguas vul-
gares. Na Europa, contudo, esse tipo de coincidência era
raro e os impérios dinásticos intra-europeus possuíam basi-
camente mais de uma língua vulgar em seu território. Em
outras palavras, o poder e a língua impressa mapeavam rei-
nos distintos entre si. *
O crescimento generalizado da alfabetização, do co-
mércio, da indústria, das comunicações e das máquinas es-
tatais, que caracterizou o século XIX, criou novos impul-
sos vigorosos no sentido da unificação das línguas vulgares
dentro de cada reino dinástico. O latim se manteve como
língua de Estado na Áustria-Hungria até inícios da déca-
da de 1840, mas desapareceu quase imediatamente a seguir.
Poderia ser a língua de Estado, mas não poderia, no século
XIX, ser a língua dos negócios, das ciências, da imprensa
ou da literatura, especialmente num mundo em que essas
/línguas se interpenetravam continuamente.
Nesse ínterim, as línguas de Estado vulgares assumiam
cada vez mais poder e status em um processo que, pelo me-
nos de início, era em grande medida não planejado. Assim,
89
a língua inglesa expulsou o gaélico da maior parte dai Irlan-
da, o.francês limitou o âmbito do bretão e o castelhano
compeliu o catalão à marginalidade. Em reinos como a
Grã-Bretanha e a França, onde, por razões absolutamente
externas, ocorreu que houvesse, em meados do século,
uma coincidência relativamente alta entre língua de Esta»
do e língua da população, 26 a interpenetração geral a que
aludimos acima não teve consequências políticas dramáti-
cas. (Esses casos aproximam-se! mais dos da América.)
Em muitos outros reinos, dos quais a Áustria-Hungria é
provavelmente o exemplo extremo, as consequências foram
inevitavelmente explosivas. Em seu vasto domínio desman-
telado, poliglota, mas cada vez mais letrado, a substituição
do latim por qualquer língua vulgar, em meados do sécu-
lo XIX, assegurava vantagens enormes àqueles de seus sú-
ditos que já utilizassem aquela língua impressa, e parecia
ameaçador, na mesma.proporção, aos que não a utilizassem.
Grifei a palavra qualquer, uma vez que, como veremos
adiante mais detalhadamente, a exaltação do alemão no sé-
culo XIX pela corte dos Habsburgos, ela mesma alemã co-
mo alguns podem considerá-la, não tinha nada a ver com
o nacionalismo alemão. (Em tais circunstâncias, seria líci-
to esperar que um nacionalismo cônscio de si mesmo sur-
gisse por último, em cada reino dinástico, entre os naturais
da terra que lessem a língua vulgar oficial. E tal expectati-
va é corroborada.pelos registros históricos.)
Em termos das clientelas de nossos lexicógrafos, não
admira pois que se encontrem conjuntos muito diferentes
de clientes segundo as diferentes condições políticas. Na
Hungria, por exemplo, onde virtualmente não existia uma
burguesia magiar, mas uma de cada 8 pessoas reivindica-
va algum status aristocrático, a preservação do húngaro im-
presso contra a maré montante do alemão era defendida
por segmentos da nobreza menos importante e da peque-
na nobreza fundiária empobrecida, 21 Pode-se dizer o mes-
mo dos leitores poloneses. Mais típica, porém, era a coali-
26 Como vimos, a adoça» de línguas vulgares corno Itnguss de Estado nesses dois rei-
nos estava em andamento desde muito cedo, No casa do Beira Unida, & submissão
militar do Gaeltactrt no início do Século XVIII B a depressão da década de 1B40 foram
poderosos fstores concorrentes, ,
27 Hobsbawm, The Age effíevolutlon, f>. 165. Excelente e pormenorizada exposição en-
contra-se em Ignotus,Hungary. p. 44-55: vertarnbCmJàszi, TheDissolution.p. 224-5.
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zão entre os nobres menores, os académicos, os profissio-
nais liberais e os homens de negócio, na qual, frequente-
mente, os primeiros forneciam os líderes de "reputação",
os segundos e terceiros, mitos, poesia, jornais e formula-
ções ideológicas, e os últimos, dinheiro e facilidades de
mercado, O agradável Koraes oferece-nos uma vinheta pre-
cisa da clientela inicial do nacionalismo grego, em que pre-
dominavam os intelectuais e os empresários: 2S
Nas cidades que eram menos pobres, que possuíam al-
guns habitantes abastados e algumas escolas e, conseqúèn-
temente, alguns indivíduos que podiam pelo menos ler e
compreender os autores antigos, a revolução começou
mais cedo e pôde progredir mais rápida e animadoramen-
te. Em algumas dessas cidades, as escolas já estão sen-
do ampliadas e o estudo de línguas estrangeiras e até mes-
mo das ciências que são ensinadas na Europa [sic] está
sendo introduzido nelas. Os ricos patrocinam a impressão
de livros traduzidos do italiano, do francês, do alemão e
do inglês; enviam para a Europa, a suas expensas, jovens
ávidos de aprender; dão a seus filhos melhor educação,
sem exclusão das meninas...
Coalizões de leitores, com composições que se localizam
de maneira diversa na gama de variação entre a húngara e
a grega, desenvolveram-se de maneira semelhante por to-
da a Europa Leste e Central e, com o avançar do século,
pelo Oriente Médio. 29 Em que medida as massas urbanas
e ruraisparticipavam das novas comunidades linguistica-
mente imaginadas naturalmente também variava muito. Is-
so dependia muito das relações entre essas massas e os mis-
sionários do nacionalismo. Num extremo, talvez, pode-se
indicar a Irlanda, onde um clero oriundo do campesinato,
e próximo dele, desempenhava papel mediador essencial.
Outro extremo é sugerido pelo comentário irónico de Hobs-
bawm de que: "Os camponeses galicianos, em 1846, opuse-
28Kedourie, org., Nationallsm in A$i» and África, p. 170. Grifos nossos. Tudo aqui é
exemplar. Quando Koraes olha para a "Europa", á por sobre o ombro; o que onça-
rã ds frente é Constantinopla. Q otomano nSo 6 contudo uma língua estrangeira, E
. as fuigras esposas som trabalho ingressam no mercado da impransa,
23 Para exemplos, ver Seton-Watson, Nutions and States, p. 72 (Finlândia), 145 (Bulgá-
ria), 153 (Boémia) e 432 (Eslováquia); Kohn, The Age of Nationalism, p. E3 (Egito)
e 103 (Pérsia).
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ram-se aos revolucionários poloneses, ainda que estes hou-
vessem de fato proclamado a abolição da servidão, prefe-
rindo massacrar os cavalheiros e confiar nos funcionários
do Imperador".30 Mas por toda parte, na verdade, à medi-
da que era maior a alfabetização, tornava-se mais fácil con-
seguir o apoio popular, quando o 'povo encontrava um no-
vo motivo de orgulho na exaltação pela imprensa de lín-
guas que haviam falado humildemente por tanto tempo.
Até certo ponto, pois, a impressionante formulação
de Nairn -— "A nova intelligentsia de classe média do na-
cionalismo tinha de convidar as massas a entrar na história;
e o convite tinha de ser escrito numa língua que elas enten-
dessem" 3I — está correta. Mas será difícil perceber por
que o convite parecia tão atraente, e por que alianças tão
diversas eram capazes de emiti-lo (a intelligentsia de classe
média de Nairn não era absolutamente o único anfitrião),
a menos que nos voltemos finalmente para o plágio.
Hobsbawm observa que "A Revolução Francesa não
foi feita nem conduzida por um partido ou movimento or-
ganizado, no sentido moderno, nem por homens que esti-
vessem procurando levar a cabo um programa sistemático.
Ela nem mesmo projetou 'líderes' do tipo a que nos habi-
tuaram as revoluções do século XX, até que surgisse a figu-
ra pós-revolucionária de Napoleão". 3Z Mas uma vez que
ela aconteceu, ingressou na memória acumuladora da im-
prensa, A irresistível e desconcertante concatenação de even-
tos experimentada por seus autores e por suas vítimas tor-
nou-se uma "coisa" — e com um nome próprio: Revolu-
ção Francesa. Do mesmo modo que uma imensa rocha in-
forme se torna um penedo arredondado pela ação de inu-
meráveis gotas de água, aquela experiência foi modelada
por milhões de palavras impressas como um "conceito" so-
bre a página impressa e, no devido tempo, como um mode-
lo. Por que "ela" irrompeu, a que "ela" visava, por que
"ela" foi bem-sucedida ou fracassou, tudo passa a ser te-
ma de polémicas infindáveis por parte de partidários e de ad-
30 TheAgecfRewkttion, p. 169.
3' The Sreak-up ofSrítBrrt. p, 340.
3! The Age of fígvoàittón, p. 80.
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versários: mas de que "ela" foi alguma coisa, seja o que
for, ninguém jamais teve muita dúvida. J3
De modo muito semelhante, assim que se imprimiu
a respeito deles, os movimentos de independência na Amé-
rica se tornaram "conceitos", "modelos" e, de fato, "pro-
jetos". Na "realidade", o medo de Bolívar das insurrei-
ções de negros e a convocação de San Martin de seus indí-
genas à peruanidade chocam-se caoticamente. Mas a pala-
vra impressa eliminou o primeiro quase^.que'imediatamen-
te, de tal modo que, ainda que lembrado, aparece como
uma anomalia inconsequente. Da confusão americana bro-
tam estas realidades imaginadas: Estados-nação, institui-
ções republicanas, cidadania universal, soberania popular,
bandeiras e símbolos nacionais, etc., e a liquidação de
seus contrários: impérios dinásticos, instituições monárqui-
cas, absolutismos, vassalagens, nobrezas hereditárias, ser-
vidões, guetos, e assim por diante. (Nada mais chocante,
nesse contexto, do que a "supressão" generalizada da es-
cravidão maciça dos EUA "modais" do século XIX, e
da língua compartilhada das repúblicas "modais" da Amé-
rica do Sul.) Além disso, a validade e a generalidade do
'projeto se confirmaram indubitavelmente pelo pluralismo
dos Estados independentes.
De fato, na segunda década do século XIX, se não an-
tes, já havia um "modelo" "do" Estado nacional indepen-
dente à disposição para ser plagiado. 34 (Os primeiros gru-
pos a fazê-Io foram as coalizões de pessoas instruídas ba-
seadas em línguas vulgares marginalizadas, que este capítu-
lo focalizou.) Mas exatamente porque era então um mode-
lo conhecido, impunha certos "padrões" em relação aos
quais não se permitiam desvios muito acentuados. Até mes-
mo as pequenas nobrezas húngara e polonesa, atrasadas e
33 Compare-sei "O próprio nome de RsvoluçSo Industrial reflete seu impacto relativa-
mente tardio sobre a Europa. A coisa Isicl existia na Grã-Bretanha antes da palavra.
Não foi senso na década de 1820 que socialistas Ingleses e franceses — eles próprios
um grupo sem precedentes — a inventaram, provavelmente por analogia com a revo-
lução política da França". Ibid., p. 45.
34 Seria, provavelmente, mais preciso dizer que o modelo era uma complexa mistura
da si e mantos franceses e americanos. Mas a "realidade observável" da França, até
depois de 1870, eram monarquias restauradas e o dinasticismo ersatz do sobrinho-
neto de Napoleão.
reacionárías, tiveram grandes dificuldades em não realizar
um espetáculo de "convidar a entrar" (ainda que apenas
até a copa) seus compatriotas oprimidos. Se quiserem, a ló-
gica da peruanização de San Martín estava funcionando.
Se "húngaros" mereciam um Estado nacional, então isso
queria dizer "os húngaros", todos eles; 3i queria dizer um
Estado em que o locus fundamental da soberania tinha
que ser a coletividade dos falantes e leitores húngaros; e,
no devido tempo, a liquidação da servidão, a promoção
da educação popular, a expansão do sufrágio, e assim por
diante. Desse modo, o caráter "populista" dos primeiros
nacionalismos europeus, mesmo quando liderados, demago-
gicamente, pelos grupos sociais mais retrógrados, era mais
profundo do que na América: a servidão tinha que termi-
nar, a escravidão legal era inimaginável — também porque
o modelo conceptual estava colocado num lugar inerradicável.
35 Não que isso fosso uma questão muito definida. Metade dos súdito» do reino da Hun-
gria sra nõo-rnagiar. Ap&nas um terço dns servos falavo magiar. No Início do século
• XIX, a alta aristocracia magiar falava irancâs ou alemão; B nobreza media e infericr
"conversava em um latim vulgar salpicado de expressões do magiar, mas também
0.0 eslovaco, da ESrvio B do romano, bem coma do alemão vulgar.,," Ignoius, Hun-
gtry, p..45-6 e 81.