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III - A NATUREZA DE NOSSA PRISÃO. 
E.M.1 
 
 
Este é o principal momento de todo o processo de aprendizado, a razão 
de sua existência. Tudo o que até agora foi apresentado é conhecido graças a 
outras fontes há muito tempo, fontes diversas das informadas ao leitor neste 
texto. Porém, no momento em que a última peça do quebra-cabeça (que se 
perdoe a ironia) foi descoberta pela atual humanidade, quase tudo pode ser 
exposto. A qualquer momento, qualquer pessoa pode juntar as peças 
descobertas e perceber a verdade. A partir de agora, antigos votos de discrição 
podem ser quebrados. A humanidade conseguiu chegar às portas da verdade por 
si própria, ainda que aos tropeços. 
Imagine o leitor um peixe que sempre esteve em cativeiro, criado para 
o abate. Esse peixe nasceu num tanque e ali viveu toda sua vida. Para ele, o 
tanque é o mundo, o tanque é tudo, e a existência da água é algo que não 
percebe pois foi onde nasceu e sempre esteve imerso. Assim, esse peixe não 
conhece os oceanos e tampouco percebe aqueles que o mantêm no tanque. Se 
não percebe a água e a natureza de sua prisão, como entenderá os seres que 
vivem na superfície e o capturaram? 
Imagine-se ainda que há outro peixe no tanque, um que nasceu livre 
nos oceanos e sabe o caminho para escapar do cativeiro pouco antes do abate. 
O peixe cativo também poderia beneficiar-se desse conhecimento, desde que, 
antes, entendesse que está preso, que nasceu num tanque e que está destinado 
a morrer. 
Mas como o peixe que nasceu livre poderia apresentar ao seu 
companheiro essas coisas? Como explicaria ao seu colega de cativeiro o que é 
água? Como descreveria a natureza do tanque, sua finalidade, e a identidade de 
quem o aprisiona? 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
1	
  Et	
  in	
  Arcadia	
  ego	
  
	
  
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“O ser humano nasce livre, mas por todo o lugar está acorrentado”, 
disse Rousseau, sem suspeitar do significado mais profundo de suas palavras. O 
ser humano está cativo em uma prisão que sequer pode conceber, pois toma o 
cativeiro pelo mundo a seu redor. O prisioneiro ignora o propósito de sua prisão, 
e a natureza de quem o mantém em tal condição, pois é como o peixe que sequer 
reconhece a natureza da água. 
FAMILIARIDADE COM O DESCONHECIDO 
A fábula dos peixes é útil para expor claramente que o desafio é 
de natureza informacional: o peixe cativo não entende o que é água (e assim 
ignora seus captores na superfície) e toma o tanque pelo mundo (e assim ignora 
a prisão e os oceanos). 
Quando se tenta transmitir uma informação fundamentalmente 
contraintuitiva [[Nota do editor: antes da reforma ortográfica da língua 
portuguesa de 1990, havia hífen em contraintuitivo (“contra-intuitivo”). Não há 
mais.]], o destinatário da mensagem não consegue compreendê-la. Sua mente 
não encontra nenhuma referência, em seu universo de vivências, para o que lhe 
foi transmitido. Portanto, ele não sabe como categorizar, e muito menos o que 
fazer com a informação. 
Logo, só é possível superar a barreira pela gradual familiarização com 
o contraintuitivo, usando recursos que associam o desconhecido ao familiar, 
empregando-se metáforas, alegorias, parábolas e símbolos. E como chegamos à 
terceira etapa do processo de aprendizado, a etapa principal e por isso mesmo a 
	
  
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mais difícil, todos os recursos à disposição precisam ser usados para familiarizar 
o ego humano com uma realidade surpreendente. 
Por isso foi um notável caso de sincronicidade o fato de o diretor de 
cinema Darren Aronofsky ter lançado, no exato momento em que se começa esta 
terceira etapa, um filme de título “Mother!”, que atualiza o mito hebraico da 
criação do mundo usando situações e personagens que correspondem a história 
do Jardim do Éden conforme narrada por uma importante heresia judaico-cristã. 
Como será exposto, o mito do Jardim do Éden foi, como tantos outros 
mitos da região da antiga Mesopotâmia, uma das formas de registrar e transmitir 
às gerações futuras um importante evento histórico, ocorrido ao sudeste da atual 
Turquia, há doze mil anos, e que revela a natureza da “prisão” em que agora 
estamos. 
Cartão distribuído a críticos na exibição de “Mother!”: um octógono, o símbolo de Peixes e um ponto 
de exclamação. 
Não se pretende afirmar que o autor do filme, Darren Aronofsky, apesar 
de sua origem judaica (e da influência de mitos bíblicos, da gematria e 
da cabala em seus trabalhos), tentou conscientemente modernizar a história da 
criação segundo uma antiga heresia, a fim de informar ao espectador a natureza 
da prisão cognitiva em que vivemos (embora sua afirmação de que associou a 
arquitetura à forma octogonal por essa forma “ser a perfeita forma para um 
cérebro” seja um indício relevante). Isso pouco importa, e a real intenção de 
Aronofsky é totalmente irrelevante. O fato é que o filme pode ser perfeitamente 
interpretado conforme mitos da região em que há doze mil anos algo importante 
aconteceu, o que convém ao processo de aprendizado. 
	
  
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A QUEDA HUMANA 
Faz parte da loucura ignorar-se o quão louco se é, faz parte da 
estupidez subestimar o quanto se ignora. Qualquer ser racional que observar a 
humanidade a distância concluirá que a raça humana é, a um só tempo, louca e 
estúpida. 
Só a necessidade de dar exemplos desse fato já é um exemplo em si, 
mas outros não faltam. O filme de Aronofsky, Mother!, mostra uma síntese de 
todos os horrores perpetrados pela humanidade circunscritos ao cenário de uma 
casa. Guerras, genocídios, linchamentos, infanticídios, fratricídios, fanatismos, 
degradação ecológica, histeria coletiva, exaltação do terror: basta abrir os livros 
de história ou os jornais do dia para ter-se essas e tantas outras provas de que 
o ser humano não só parece vocacionado à violência e à destruição, mas agride 
e destrói justificando-se em motivações claramente insanas. 
No fundo, todos intuímos isso. No limiar do inconsciente, todos temos 
a impressão de que algo está errado com o ser humano. Intimamente, sem 
conseguir explicar porque, sentimos que algo vai mal com o mundo, e há muito 
tempo. 
Algo está fora dos eixos. Desconfiamos em nosso íntimo que o mundo 
não deveria ser assim, que a humanidade não precisava ser assim, que 
poderíamos viver de outro modo. Suspeitamos que a humanidade como um todo, 
e cada ser humano em particular, tem sido e é mais infeliz nesta vida do que 
precisava ser. 
Porém, a mentalidade que herdamos do século XX refuta essa suspeita, 
e propõe que se trata de uma sensação sem fundamento. Argumenta-se que é 
mera ilusão, decorrência da eterna insatisfação humana com o momento 
	
  
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presente. Mas essa mentalidade reflete um século em que o espírito humano 
perdeu todo seu ânimo ao tentar realizar a utopia através de ideologias políticas, 
encontrando sua primeira mais eloquente voz com o pai da psicologia moderna, 
Sigmund Freud. 
Em 1895, Freud afirmou que a função da terapia deveria ser “a troca 
da miséria neurótica do paciente pela infelicidade comum”, forma “normal e 
adaptada” de vivermos neste mundo. Para ele, a “infelicidade comum”, ordinária, 
era o estado natural do ser humano, o melhor que podemos esperar da vida. Tal 
lógica disseminou-se da psicanálise para todo o espírito do século XX e deixou 
seu legado à geração atual. 
“Ignis natura renovatur integra.” 
 
Mas é fácil demonstrar o quanto a retórica propugnada por Freud e seus 
filhos é equivocada, já que ignora um dos aspectos fundamentais da evolução e 
prende-se à superstição de que a história humana é um caminho de constante 
progresso. Mas nem todos os caminhos da evolução prosperam, e muitos de seus 
caminhos levam a becos sem saída. E a história humana também, guardadas as 
devidasproporções, está sujeita a acidentes e erros irreversíveis, até mesmo 
fatais. 
É o que o arqueólogo Ian Hodder, responsável pelas recentes 
escavações em uma região da Anatólia, expõe ao descrever nosso atual 
enredamento num mundo que criamos após um erro desastroso cometido há 
doze mil anos. 
	
  
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Nossa intuição está certa. Há algo errado com o ser humano. Há algo 
errado com o nosso mundo. Alguma coisa saiu mesmo fora dos eixos em 
determinado momento, desviou-se mesmo de seu devido caminho e nos colocou 
aqui, enredados como um peixe capturado pelas redes do pescador. 
O sofrimento humano além da proporção do que nosso senso comum 
considera minimamente suportável sempre esteve presente em toda nossa 
história registrada e ainda está por toda parte ao nosso redor. Mas esse 
sofrimento não é uma regra, e sim um acidente recente (na história de nossa 
evolução, dez mil anos é um minuto). Por muito tempo, o ser humano está 
enredado em um estado de cegueira involuntária, no qual não pode aspirar a 
nada melhor do que viver alguns anos de “infelicidade comum”, pontuados por 
descansos casuais em felicidades transitórias, até que a morte, sempre 
inexorável, chame seu nome, não sem antes deixar herdeiros para repetir o 
mesmo ciclo. 
Mantida a cegueira involuntária, a melhor opção continua sendo a 
normalização da angústia. Ao menos a prosperidade da indústria 
neurofarmacológica, com seus antidepressivos e ansiolíticos, estará assegurada. 
Mas se houve um erro em nosso passado, se as coisas nem sempre 
foram assim, quando, onde e como ele ocorreu? 
Para compreender como ele ocorreu, pode ser útil o estudo de uma 
antiga interpretação herética sobre o mito bíblico da criação do mundo. 
O MITO 
É provável que um evento ocorrido entre as populações pré-neolíticas 
que viviam na atual Turquia, e que causou tamanho impacto humanidade até os 
dias de hoje, tenha sido de algum modo registrado por quem o vivenciou, e assim 
transmitido às gerações seguintes. 
Em um tempo sem escrita, fatos importantes eram registrados na 
forma de mitos. Assim, é possível que alguns dos mitos da região em que 
localizado o sítio arqueológico de Göbekli Tepe, onde o evento ocorreu, tratem 
do grande desvio de curso da humanidade. E Göbekli Tepe está na borda mais 
noroeste da Mesopotâmia, justo a região de gênese dos primeiros impérios 
registrados na história e das culturas suméria, babilônica, assíria e hebraica. 
	
  
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Mas que tipo de mito? A própria natureza do erro, como se verá, 
recomenda que se pesquise entre os mitos que contam a história da criação do 
mundo, pois o erro está relacionado com aquilo que tomamos, desde então, pelo 
mundo ao nosso redor. 
Portanto, é possível que mitos da região que contam a criação do 
mundo contenham pistas sobre a natureza do grande desvio de curso da 
humanidade. 
De todos os mitos dessas culturas, adota-se o mito do Jardim do Éden 
não só por dispensar a apresentação da lenda ao leitor, mas por ser a variação 
de um mito mais antigo, de origem babilônica. 
Relato babilônico do Jardim do Éden. 
 
Além disso, há uma interpretação da história Jardim do Éden que 
encontra correspondência com a narrativa do filme de Aronofsky e com o assunto 
principal desta etapa. Essa interpretação tem origem em uma heresia que, por 
sua vez, nasceu da lenda sobre quatro sábios que visitaram o Éden muito tempo 
depois de Adão e Eva serem expulsos. 
E o que esses quatro sábios lá viram faz com que repensemos aquilo 
que nossos antepassados chamavam de Paraíso. 
 
O ÉDEN 
	
  
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Diz uma antiga lenda hebraica que apenas quatro sábios visitaram o 
Jardim do Éden. O primeiro olhou o Éden e morreu, o segundo olhou e ficou 
louco, o terceiro olhou e blasfemou, e apenas um olhou e voltou em silêncio. 
É curioso o Éden dessa lenda. Sempre nos foi dito que o Jardim do Éden 
era a glória de Deus manifesta em bosques idílicos, lugar de deleite e santidade, 
em que todos os animais vivem em comunhão. Porém, a lenda dos quatro sábios 
sugere um local bem diferente, capaz de enlouquecer ou matar de parada 
cardíaca mesmo um sábio que apenas ouse olhar ao redor. Da perspectiva dessa 
lenda, o Éden parece menos com um lugar geográfico e mais com uma realidade 
de nível superior, que pode desafiar os limites da compreensão humana até o 
limiar de um colapso. 
Na primeira etapa desse ciclo de aprendizado, expôs-se a maior 
descoberta da história, feita no início do século XX. Essa descoberta é sobre a 
natureza da realidade que está ao nosso redor. 
Apesar de sua importância e de estar devidamente documentada, a 
verdade sobre a realidade é tão contraintuitiva que não a reconhecemos, mesmo 
estando diante de nossos olhos. Foi preciso décadas para que um cientista, Hugh 
Everett III, sugerisse a interpretação mais evidente sobre o cenário que havia se 
descortinado aos olhos dos cientistas em laboratórios por todo o mundo. Bastou 
a Everett não impor uma limitação arbitrária ao modelo matemático de Erwin 
Schrödinger, que descreve com perfeição a descoberta, para que a natureza da 
realidade fosse revelada. 
E o cenário que a ciência descobriu foi que vivemos em um lugar em 
que múltiplas realidades alternativas coexistem e emergem a cada instante 
diante de nossos olhos. Um lugar em que todos os elementos de cada uma dessas 
realidades estão entrelaçados entre si, em uma relação de complementaridade 
fundamental. 
	
  
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Posters de divulgação de “Mother!”. Clique para ampliar. 
 
Por isso não vemos nem percebemos as outras realidades emergentes. 
Elas não estão entrelaçadas com nossos órgãos sensoriais e com nada que 
percebemos ao nosso redor no nível macroscópico, nível em que as realidades 
alternativas são intangíveis umas em relação às outras. Só observando o mundo 
microscópico das partículas subatômicas é que percebemos a existência do 
hipercontexto. 
Este é o universo do lado de fora, despido de todos os seus véus: um 
universo em que tudo o que existe está em contínua emergência diante de novas 
possibilidades de entrelaçamento com tudo a seu redor, criando novas 
configurações de mundos a cada instante. A riqueza de probabilidades 
concretizadas desde o início deste universo é inconcebível pela mente humana. 
Retomando a história dos quatro sábios, Santo Agostinho talvez 
explicasse o fato de que alguns deles entraram em colapso ao visitar o Éden 
atribuindo esse tipo de reação à condenação humana após o Pecado Original. 
Esses sábios seriam filhos de uma época em que o ser humano acostumou-se 
tanto com a lama deste mundo, enredou-se tanto nas armadilhas da condenação 
de Adão e Eva, que um vislumbre do Paraíso pode ser o suficiente para matá-
	
  
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los. Diferente do primeiro casal, as gerações futuras de seres humanos, com a 
expulsão do Éden, seriam como o cão criado toda vida numa cela escura e 
pequena, e que entra em surto quando de súbito se vê a céu aberto, no meio da 
natureza, em um dia ensolarado. 
Se for assim, o problema que pode levar à morte ou à loucura não está 
no Paraíso em si, e sim na mente do ser humano atual, que não suporta sua 
visão por estar habituado à sua prisão. Essa explicação agostiniana, vista dessa 
perspectiva, nos daria uma pista importante não só sobre a natureza do Jardim 
do Éden, mas sobre a natureza da condenação pelo chamado “Pecado Original”. 
No filme de Aronofsky, a residência do casal está no que parece ser 
uma clareira ensolarada e verdejante, cercada por árvores altas e exuberantes. 
O espaço lá fora parece imenso e iluminado. Contudo, toda a história se passa 
dentro da casa, um espaço que parece sempre escuro e claustrofóbico. 
A casa de “Mother!” 
 
Qualquer ocidental conhece a fábula de como o ser humano teria 
sido expulso do Paraíso. Mas uma reflexão mais detida faz saltar aos olhos como 
essa é uma ideia estranha. A própria intuição humana sugere que o Paraíso, 
como manifestação da glóriadivina, deveria ser maior, mais amplo, que o lugar 
miserável em que pecadores são condenados a viver. Além disso, quando alguém 
é condenado, de regra ocorre justo o contrário: não sai de um lugar no qual não 
poderá mais entrar, mas entra em um lugar do qual não poderá sair. 
O fato de raramente nos causar estranheza a noção de que Adão e Eva 
foram expulsos do Paraíso deveria nos dizer alguma coisa. É como se 
estivéssemos aprisionados em algo que consideramos ser “o” mundo, pois nele 
	
  
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nascemos e fomos criados, e nos causa estranheza que alguém possa ser 
condenado a entrar neste mundo. O mito assim relata pois é a única forma de 
explicar o inconcebível: fomos expulsos para a prisão. 
Mas qual é a natureza dessa prisão que, apesar de nos encerrar, 
tratamos como “o lado de fora”? Qual é a natureza da casa no filme de Aronofsky? 
Porque não percebemos que esse lugar é uma prisão? 
A antiga lenda que conta a história do Demiurgo, presente no filme de 
Aronofsky, Mother, tenta dar a resposta com uma linguagem alegórica. 
SOFIA E DEMIURGO 
No filme de Aronofsky, temos dois personagens principais: o poeta e 
sua esposa. O poeta está obcecado com a missão de escrever o poema de sua 
vida, que parece ser inspirado na vida do casal. Mas, paradoxalmente, ele não 
dá suficiente atenção à mulher, e permite que estranhos disponham do seu lar 
até construírem um inferno repleto de dor, crime e destruição – um microcosmo 
que reflete nossa sociedade. O poeta se envaidece facilmente com a admiração 
de estranhos, e usa literalmente a esposa para tentar construir o mundo perfeito, 
que jamais se concretiza. Na verdade, parece haver uma identidade mais 
profunda entre o poema e a própria realidade em que ambos vivem, como a 
leitura dos versos pela esposa revela. 
Já esposa é devota ao marido, e claramente se confunde com a própria 
casa – a casa é também a esposa, o cenário todo ao redor dos personagens é 
criado a partir dela e sustentado por ela. “Ela trouxe vida para toda casa”, o 
poeta afirma, referindo-se à mulher. A esposa diz aos convidados que precisa 
“terminar a casa”. Ao reclamar ao marido que ele não conclui sua poesia, ela 
afirma que construiu a casa inteira, “parede por parede” enquanto ele nada 
escreveu. Em certos momentos, quando conectada com essas mesmas paredes, 
ela consegue sentir o coração pulsante da casa. 
Na verdade, se o filme for interpretado segundo uma antiga heresia 
sobre a criação e o Jardim do Éden, a esposa não é só a casa, mas todo o cenário 
ao redor. 
Essa heresia tem raízes que remontam às origens do Talmude, numa 
polêmica e obscura lenda sobre “Dois Poderes nos Céus”. O primeiro herético 
	
  
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teria sido o personagem dessa lenda, um rabino de nome Elisha ben Abuyah, 
também chamado “Archer” (“o outro”). 
E quem é Archer? Ele é um dos quatro sábios que teriam visitado o 
Jardim do Éden. Mais exatamente, aquele que proferiu uma blasfêmia. 
Segundo a lenda, ao chegar no Jardim do Éden, Archer viu ali não a 
Deus, mas a outra entidade, uma segunda força que ele tomou por uma segunda 
divindade. Assim, Archer teria blasfemado que “há dois poderes no Céu”, e não 
um só. E ao retornar do Jardim do Éden, ele teria começado a defender entre 
que os ensinamentos originais da tradição hebraica eram entendidos da forma 
errada, exortando aos estudantes do Torá que abandonassem seus estudos para 
dedicarem-se a uma atividade prática mais importante. Qualquer que fosse essa 
atividade, não ficou registrada oficialmente para a posteridade. 
Os fatos por trás dessa lenda resultaram no desenvolvimento de um 
conjunto de heresias pré-cristãs que propunham uma releitura da narrativa 
bíblica de criação do mundo. Segundo essa releitura, na criação do mundo 
haveria dois personagens centrais: o Demiurgo e Sophia. 
Sophia era considerada uma espécie de manifestação feminina do 
“Poder Transcendente” de Deus. Devido a um “erro” de Sophia, dela nasceu o 
Demiurgo, uma criatura imperfeita, que se ilude e que acredita ser o próprio 
Deus do Velho Testamento (“Eu sou o que sou”, diz o poeta na cena final do filme 
de Aronofsky). Preso a esse delírio, o Demiurgo usa a própria Sophia para 
construir este mundo em que vivemos, aprisionando em cada ser humano uma 
centelha divina retirada do âmago de Sophia – e, portanto, uma manifestação 
do verdadeiro Deus. 
Portanto, segundo essa antiga tradição, todos nós estamos presos a 
este mundo, condenados por uma potência que se apresenta a nós como se fosse 
o Deus verdadeiro, mas que apenas nos mantém separados do verdadeiro Poder 
Transcendente, do qual somos parte e Sophia é manifestação imediata. 
Nossos antepassados, justo por apresentarem a narrativa de eventos 
históricos com o uso de alegorias, conferiam humanidade aos elementos 
principais de suas histórias. Que alternativa tinham para descrever eventos que 
estavam além de sua compreensão? 
	
  
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O “erro” de Sophia não precisa ser considerado como o engano de uma 
divindade, mas no sentido de um sistema que apresenta uma falha. O 
“Nascimento” do Demiurgo não precisa ser interpretado no sentido humanizado 
de gestação e parto. O sexo de Sophia talvez tenha a ver muito mais com uma 
representação arquetípica profunda que relaciona mulher à espacialidade e à 
matéria (talvez por causa da experiência primordial no útero) do que com 
gêneros biológicos. 
E, mais importante, o “mundo” criado por um Demiurgo não precisa ser 
interpretado no sentido literal do universo físico que conhecemos. Afinal, hoje 
sabemos que “o universo físico que conhecemos” é, na verdade, um mundo 
simulado por nossos cérebros com uma fração dos dados que nossos órgãos 
sensoriais filtram da realidade exterior. 
No filme “Mother”, de Aronofsky, temos também uma mulher que não 
é uma mulher, mas uma outra coisa, que doa a sua própria essência para que se 
construa uma casa que não é uma casa, na qual um poeta, que não é um poeta, 
possa atuar como se fosse Deus, arruinando tudo em virtude de sua delirante 
vaidade diante de uma poesia que não é uma poesia. A única coisa literal neste 
filme é que o resultado disso tudo são as guerras, o fanatismo, os genocídios, a 
degradação ambiental e todo o inferno que nós construímos aqui na Terra. 
Mas o que exatamente seriam Sophia e Demiurgo, o que a esposa e o 
poeta do filme de Aronofsky representam? 
 
	
  
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O TÚNEL DA CONSCIÊNCIA 
Quando o século vinte fez a maior descoberta da humanidade e 
constatou a existência do hipercontexto, o mistério também passou a ser o 
funcionamento da mente humana. Macroscopicamente, não percebemos as 
outras realidades alternativas pois não estão entrelaçadas, e toda e qualquer 
interação entre dois corpos macroscópicos só ocorre se estiverem entrelaçados 
na mesma realidade. É o mesmo fenômeno subjacente à gravidade. 
Mas ainda assim, se vivemos no hipercontexto, então a vida de cada um de nós 
é como uma árvore, que ramifica-se em várias versões desde o momento do 
nascimento, conforme escolhas e acasos fazem emergir novas realidades. 
Mas como não percebemos isso? Como sequer suspeitamos dessa 
ramificação da realidade quando fazemos uma escolha? Como o cérebro e a 
consciência humana lidam com o hipercontexto? É como se a vida fosse um 
labirinto no qual adiante de nós há múltiplos caminhos sinuosos, mas por algum 
motivo quando olhamos para trás vemos só uma estrada reta. 
Após pesquisar dezenas de definições sobre o que é a “consciência”, o 
filósofo Thomas Metzinger surpreendeu-se ao encontrar elementos comuns a 
todas elas, que podem levar a uma definição simples, embora não 
intuitiva: consciência é a aparência de um mundo construída pelo cérebro. 
	
  
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Símbolo de Peixes presente no isqueiro oculto nos posters do filme “Mother!”, com o qual a mulher 
incendeia a casa. 
Mas nossos sentidos são limitados e condicionados por razões 
evolutivas. Portanto, a consciência nãoé tanto uma imagem da realidade quanto 
um “túnel” que nossa mente constrói para que “atravessemos” o mundo real, 
rejeitando a cognição de tudo aquilo que seja desnecessário para nossa 
sobrevivência. 
Há um outro motivo para a consciência construir um modelo de mundo 
o mais simplificado possível. É que esse processo consome energia, pois é preciso 
construir e atualizar dinamicamente, a cada fração de segundo, um modelo de 
mundo tridimensional e detalhado que represente aspectos importantes da 
realidade circundante. E economia de energia é um fator crítico para qualquer 
organismo. Portanto, esse mundo virtual, que representa o universo exterior, 
precisa ser o mais simplificado possível. 
A consciência, portanto, pode ser considerada um sistema de 
informação sofisticado, que tem a função de representar para o organismo um 
modelo de mundo com o qual pode operar, a fim de assegurar sua sobrevivência. 
A consciência desempenha esse papel construindo, com as informações que 
representa, um modelo de mundo coerente, que serve de túnel para o organismo 
operar adequadamente na realidade circundante. Esse modelo omite todos os 
	
  
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aspectos do mundo exterior que não sejam remotamente importantes para a 
sobrevivência do organismo. 
Um conceito importante que o estudo da consciência tomou da 
arquitetura é a “transparência fenomênica”. A transparência fenomênica ocorre, 
por exemplo, quando observamos atentos o vôo de um pássaro através de uma 
janela, e nesse momento a janela desaparece de nosso campo de consciência. 
Algo semelhante ao que ocorre quando assistimos a um filme e deixamos de 
perceber os contornos da tela. 
A consciência constrói uma “aparência de mundo” que tomamos por 
realidade, e os elementos estruturantes dessa construção são “fenomenicamente 
transparentes”. É como esconder nos bastidores, atrás das cortinas do palco, as 
cordas e estruturas que sustentam o cenário de uma peça. Se não houvesse essa 
transparência, não confundiríamos esse modelo tridimensional de mundo 
construído pela consciência com a própria realidade, e tampouco nossos 
antepassados descreveriam um erro nessa consciência como “a criação mítica do 
mundo”. 
A transparência fenomênica, por fim, também é a chave para explicar 
porque o ser humano não percebe a natureza de sua prisão. 
O mundo construído pela consciência, a realidade virtual sofisticada, é 
o mundo que o leitor observa ao seu redor nesse momento. Embora você 
confunda o túnel construído pela sua mente com o mundo real, e seus sentidos 
lhe passem a percepção de que esse “mundo real” é exatamente aquilo que “está 
lá fora” (conferindo-lhe espacialidade, perspectiva, tato, cor, forma e som), na 
verdade o mundo real é uma coisa bem diferente. 
Esse túnel ou construção da aparência de um mundo é representada 
alegoricamente na lenda segundo a qual o Demiurgo fez Sophia construir o 
universo em que vivemos. Essa é a casa que a mulher do filme Mother!, constrói 
e sustenta. 
A figura mítica de Sophia e a personagem da obra de Aronofsky são a 
própria consciência humana, construindo um espaço que será representado para 
o indivíduo como se fosse o próprio mundo, mas que é apenas uma versão 
simplificada de uma realidade infinitamente mais complexa. 
Mas quem é o Demiurgo no mito, quem é o poeta no filme? 
	
  
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UMA VOZ QUE NARRA UMA HISTÓRIA 
O cérebro humano precisa construir, através da consciência, um modelo 
de mundo que seja uma representação de baixa dimensionalidade da realidade 
exterior, como se esse modelo de mundo fosse uma realidade “virtual”. A 
finalidade desse modelo é justamente executar duas tarefas importantes para o 
organismo que o criou. A primeira tarefa é descrever o mundo exterior a fim de 
identificar potenciais fontes de perigo, alimento ou reprodução (função 
cognitiva). A segunda é escolher, entre as ações possíveis do organismo, aquela 
que seja mais adequada ao que está acontecendo no mundo assim descrito 
(função decisória). 
A consciência, portanto, é um sistema cognitivo/decisório. E para 
desempenhar suas atribuições, ela desenvolve, no centro desse modelo de 
mundo, um tipo de identidade, uma imagem que a consciência equipara ao 
próprio organismo a que pertence: é o sujeito de toda a experiência do mundo 
exterior, o protagonista que decide e age. 
Tal sujeito é o ego, e embora Metzinger pareça por vezes confundir a 
consciência com ego (a ponto de utilizar a expressão “túnel do ego”), tratam-se 
de coisas distintas. O ego é algo distinto da consciência, e só é definido como 
“centro da consciência” porque ela própria, a consciência, “escolheu” representar 
o ego como o protagonista que anda por esse “túnel”. Não há, na verdade, 
nenhum sujeito no túnel, pois o ego é apenas uma ilusão da consciência, e uma 
ilusão que está desempenhando uma função que usurpou há doze mil anos atrás. 
No mito gnóstico de Sophia e Demiurgo, atualizado para o imaginário 
contemporâneo na alegoria de Aronofsky, a manifestação feminina do Poder 
Transcendente é a consciência humana. É a mãe/esposa que constrói um mundo 
para um poeta que usurpa um lugar e se declara Deus. Um mundo em que ele 
troca um ambiente vasto e iluminado por um lugar escuro e enclausurado. E isso 
apenas para que possa escrever a si próprio uma narrativa sobre como será 
magnífica a vida que não poderá viver, pois sabota esse projeto de vida, 
enchendo sua consciência de vozes alheias, invasores desconhecidos. O resultado 
disso tudo é ódio, fanatismo, opressão, guerras, crimes e miséria. 
	
  
18	
  
 
A melhor metáfora para o atual ego humano é a de uma voz que conta 
uma história para si mesma, e que continuamente repete a palavra “Eu”. Essa 
voz é como alguém que está em uma biblioteca, consultando um livro, um 
“manual de como interpretar o mundo exterior e reagir ao que acontece”. Esse 
livro é composto de memórias do passado e definições sobre quem se é – uma 
mistura de tudo que o cérebro registrou. Além disso, esse livro possui muitas 
instruções sobre como reagir a um só determinado tipo de situação. O conteúdo 
do livro não obedece qualquer ordem, e apresenta informações e instruções 
contraditórias. 
O ego só existe no instante presente, e está continuamente contando 
uma história para si mesmo sobre quem é e sobre o que está fazendo neste exato 
momento. Para contar essa história, ele faz contínuas consultas àquele livro, e 
as páginas e capítulos que escolhe ler é que definem como deve se sentir e agir 
quando algo ocorre lá fora. A escolha de como faz a consulta é um pouco 
arbitrária, e baseada em hábitos e condicionamentos: as páginas mais marcadas 
pelo uso tendem a ser novamente consultadas e servir de guia para o que sente 
e faz. Mas também é possível que às vezes a escolha do ego seja induzida, ou 
até mesmo que algo altere sua capacidade de focar em determinados conteúdos, 
ou mesmo de conhecer todas as linguagens em que esse livro pode ser escrito. 
O ego em si não é um mal, o ego em si não é o erro: o problema é que 
o ego, conforme a lenda do Demiurgo, acha que é Deus. Decifrado-se o mito 
sobre Sophia e Demiurgo com a desumanização de todos os personagens, parece 
que a lenda descreve que um módulo do sistema informacional da consciência 
acabou alocado para uma posição que não lhe é destinada, sendo-lhe atribuídas 
	
  
19	
  
funções que não tem competência algorítmica para desempenhar. Essa é uma 
primeira percepção mais definida que temos do erro, mas ainda é incompleta. 
 
No segundo texto, veremos o quanto o poema que o personagem do 
filme de Aronofsky escreve é a chave para entendermos o grande erro da história 
humana, e qual a verdadeira natureza do insondável mito do Pecado Original que 
nos “expulsou” do Éden, prendendo-nos em uma prisão que não enxergamos. 
Basta lembrar que, no filme de Aronofsky, só após a pedra (fruto proibido) ser 
“quebrada” pelo casal de visitantes (Adão e Eva)e seus filhos (Caim e Abel) 
participarem de um crime é que o poeta consegue inspiração para escrever sua 
história, não tendo escrito uma só linha até aquele momento. 
Precisamos, antes, fixar alguns pontos sobre o sistema 
Sophia/Consciência e Demiurgo/Ego. 
 
CINCO PONTOS 
Em outras palavras consciência é um sistema informacional 
autoconsciente (como diria Descartes, a consciência não apenas sabe – ela sabe 
que sabe). Esse sistema informacional filtra as informações transmitidas pelos 
órgãos sensoriais e constrói um modelo de mundo que simula o mundo real em 
uma versão de baixa dimensionalidade, com atualização dinâmica e 
transparência fenomênica de sua estrutura. Esse modelo de mundo, ou “túnel”, 
é o que tomamos por realidade, e em seu centro está o ego humano, cujo 
protagonismo é mantido por uma narrativa interna obsessiva e que naturalmente 
resulta em sofrimento e destruição. 
	
  
20	
  
Temos, assim, os elementos principais para prosseguir e compreender 
a origem do maior erro da história humana. E alguns pontos precisam, porém, 
ser fixados sobre as noções apresentadas a seguir. 
O primeiro ponto é que, conforme demonstrado, a consciência é 
responsável pela construção de um modelo de mundo que, tal como um túnel, 
ajuda o organismo a passar pelo hipercontexto sem perceber a contínua 
emergência de novas realidades alternativas. Esse modelo é aquilo que vemos 
ao nosso redor quando estamos despertos. Essa construção é como uma obra de 
engenharia da natureza (espontânea e não intencional como todas as edificações 
da natureza). E obras podem ser executadas de várias maneiras, sendo possível 
construir vários tipos de túneis, adotar estratégias diferentes de design e 
tecnologias diferentes de material de construção. Ou seja, a consciência pode 
construir outros túneis, poderia representar a realidade circundante de outras 
formas além dessa que vemos. No filme de Aronofsky, a esposa sustentava a 
casa com sua própria essência para tentar realizar o mundo que o poeta desejava 
e descrevia em seus versos – em termos literais, a consciência humana está, 
neste momento, aprisionada em determinada representação da realidade 
moldada pelo ego. 
Projeto da casa de “Mother!”. 
 
O segundo ponto é que, tratando-se de uma obra de engenharia 
informacional extremamente complexa, o material de construção desse túnel é 
algo que chamamos de linguagem, entendendo-se como tal não apenas a 
	
  
21	
  
linguagem verbal, mas qualquer sistema de símbolos que possa representar e 
transmitir informação complexa. E há várias linguagens possíveis para a 
construção de um modelo de mundo, sendo a verbal a mais restrita. No filme de 
Aronofsky, o poeta está obcecado em escrever uma narrativa poética que evoca, 
na própria consciência, um projeto de mundo que ele mesmo sabota, conduzindo 
tudo à destruição – e ele precisa sabotar, pois o projeto é inviável. Em termos 
literais, há um erro na estrutura desse sistema representacional, que resulta no 
sofrimento do organismo e numa espiral de destruição retroalimentada que se 
replica também no contexto social em que vivemos. 
O terceiro ponto é que a consciência desenvolveu um determinado 
tipo de protagonista para ser o centro das vivências desse modelo de mundo 
construído pelo cérebro: o ego, que não tem substância, sendo ele próprio uma 
simulação dentro de uma simulação, um protagonista criado pela consciência 
para viver no centro de mundo criado por ela. Tal como Sophia e Demiurgo na 
lenda, poeta e esposa no filme. Porém, o ego humano, tal como o vivenciamos, 
é apenas uma dentre tantas outras formas que a consciência poderia escolher 
para articular a ação do organismo com base no modelo de mundo de baixa 
dimensionalidade que simula. Em outras palavras, não só o mundo construído 
pela consciência poderia ser outro, mas também o protagonista no centro desse 
mundo poderia diferente. No filme de Aronofsky, essa outra possibilidade está 
representada nas diversas formas com as quais a consciência sugere ao ego qual 
caminho deve ser tomado para que o erro seja equacionado e corrigido antes 
que se destrua a própria estrutura da consciência. 
Detalhe do poster do filme “Mother!”, revelando a solução simbólica do erro na consciência, que é 
sabotada pelo poeta. 
	
  
22	
  
 
O modelo de mundo em que cada um de nós vive em sua cabeça é, em 
grande parte, consensual. Como diz Metzinger, é uma realidade virtual que roda 
em tempo real e online, comunicando-se com outras realidades virtuais. Se não 
fosse assim, a sobrevivência da espécie seria comprometida pela dificuldade de 
comunicação entre os membros de um grupo de seres humanos – e, como 
veremos, a formação de redes de transmissão de informação é um padrão básico 
na história da evolução. A consciência, enquanto sistema informacional, existe 
inclusive com a função de tornar mais eficiente a comunicação entre membros 
de uma tribo que busca coletivamente pela sobrevivência, e tem seu 
desenvolvimento retroalimentado pelas soluções encontradas pelo grupo para 
aprimorar essa comunicação. Assim, o erro em um sistema pode rapidamente 
replicar-se em outros sistemas cognitivos pelas vias de comunicação humanas, 
que moldam o mundo consensual, como a cultura e a família. Replicações de erro 
são eventualidades comuns na história da evolução, podendo resultar na extinção 
de espécies. 
O quinto ponto é lembrar que a evolução não segue uma trajetória 
evolutiva em linha reta na direção ao progresso. A trajetória é tortuosa, pois a 
evolução ocorre em passos cegos, sem intencionalidade manifesta, e por vezes 
dá círculos até um ponto sem saída. A natureza ensaia todos os caminhos 
possíveis da evolução num processo de tentativa e erro, e faz frente aos erros 
com a força bruta dos números: quanto mais espécies, quanto mais variabilidade 
de organismos, melhor. Os vestígios de espécies extintas a milhares de anos, 
como os dinossauros, são testemunhas de quantas foram as vítimas dos erros e 
acasos da história evolutiva. Porém, na natureza, alguns erros não são fruto do 
acaso, mas podem ser provocados, induzidos ou facilitados, e até mesmo 
parasitas podem tirar proveito de más escolhas evolutivas. Do ponto de vista dos 
lobos selvagens que a humanidade domesticou e manipulou geneticamente até 
produzir criaturas tão indefesas quanto o chihuahua, tratou-se de um erro 
provocado pelo mero capricho de uma outra espécie. 
O mais importante, o emergencial nesse tipo de situação, não é 
identificar se o erro foi acidental ou provocado, mas reconhecer que se trata de 
um erro que produz muito sofrimento entre nós, e que pode levar à destruição 
	
  
23	
  
da espécie humana. E, a partir disso, tentar identificar qual a natureza do erro 
original, sua origem e como foi replicado. 
Trata-se de uma análise objetiva, que parte de princípios autoevidentes 
e não se apoia apenas no mito do Jardim do Éden. Embora o erro esteja presente 
em mitos de criação do mundo tal como aquele modernizado no filme de 
Aronofsky, ele foi factual, teve data e local para ocorrer. Deixou vestígios 
arqueológicos tão eloquentes quanto sua primeira e maior consequência. 
No mito bíblico, a primeira e maior consequência da Queda do Homem 
foi um crime, um homicídio entre irmãos. A descrição mítica dessa história 
descreve claramente o primeiro grande impacto do erro na vida humana, que se 
reproduz até hoje. 
A REVOLUÇÃO NEOLÍTICA 
No filme de Aronofsky, o mito de Adão e Eva é atualizado para nossos 
tempos, uma forma hábil de sobrepor origem e consequências do Erro Original. 
Não temos o primeiro casal no auge de sua vida de semideuses no Éden, mas 
como casal envelhecido, que precisa confrontar a mortalidade humana. A 
lembrança da morte e da velhice após uma vida de decepções acumuladas está 
sempre presente. Adão está doente, irá enfrentar em breve o fim da vida. O 
terror existencial da finitude humana seinsere na narrativa, para estabelecer 
onde está a fratura original do erro que se perpetuou na consciência. 
Contrasta-se a origem mítica da humanidade com o resultado final da 
queda do homem: tem-se um casal típico de classe média, um tanto ridículo, 
emaranhado em conflitos familiares e tentando buscar alguma transcendência no 
culto ao poeta. Com a chegada do casal de visitantes, também surge o primeiro 
sinal de culto e religiosidade: o casal tem a foto do poeta, ambos tratam seu 
escritório de criação um lugar sagrado, e lá sabem de uma pedra importante, um 
objeto do qual não podem se aproximar. Essa pedra, essa “coisa” é também 
objeto de fetiche e culto pelo próprio poeta. 
A seguir, após a pedra ser quebrada pelo casal, surgem seus filhos. A 
discórdia entre os irmãos se acirra até que um mata o outro, em uma clara 
representação do mito de Caim e Abel. No filme, o irmão homicida parece estar 
excessivamente preocupado com dinheiro de uma herança, evocando novamente 
a relação do ser humano com a riqueza material. 
	
  
24	
  
Na história bíblica, Caim mata Abel por inveja, já que Deus aceitou sua 
oferenda na forma do sacrifício de um animal, rejeitando a oferta de Caim, 
consistente no produto de seu trabalho na agricultura. Como consequência, Caim 
tornou-se o único filho vivo de Adão e Eva, e pode ser considerado como o 
ancestral comum de toda a humanidade [[Segundo a narrativa hebraica, é 
verdade, Adão e Eva tiveram outros filhos e filhas. Porém, essa interpretação do 
mito que o literaliza como uma narrativa sequencial é propriamente do tipo 
religiosa, ou seja, não é a forma adequada de interpretar os mitos, que devem 
ser interpretados como uma forma de linguagem ou ferramenta informacional, 
guardando entre si não uma relação de sequência narrativa, mas de 
correspondência simbólica. Mais sobre isso será exposto no futuro.]]. 
O mistério dessa lenda, a razão pela qual Deus teria rejeitado a 
oferenda de Caim, produto da agricultura, será analisado com maior atenção na 
segunda parte desta etapa. De qualquer modo, estudiosos do Torah também 
sempre discutiram qual a verdadeira natureza do fruto proibido. Tradições mais 
antigas como o Sefer Ha Yetzirah afirmam que o fruto proibido não era a maçã, 
mas o trigo. No Talmude Babilônico, Rabbi Yehuda também menciona uma 
tradição mais antiga segundo a qual o fruto proibido era, na verdade, o trigo. Na 
verdade, em hebraico, a palavra para trigo (יטה tem origem na palavra (ח
“pecado” (חט). 
É uma ideia estranha, que só é compreendida se decifrarmos o mito do 
Jardim do Éden. Temos, de qualquer forma, uma associação entre o erro e o 
trigo, por mais inconsistente que possa parecer neste momento. 
Decifrar o mito de Caim e Abel, e desvendar a associação entre trigo e 
fruto proibido depende de lembrarmos que nossos antepassados viveram 
por centenas de milhares de anos em pequenos grupos nômades. Esses grupos 
obtinham seu sustento da caça de animais e, principalmente, da coleta de 
vegetais que encontravam à livre disposição no meio ambiente. 
Em determinado momento (da perspectiva histórica, da noite para o 
dia), tudo mudou. Foi um evento que ocorreu em vários povos ao redor do 
planeta sem que houvesse contato entre essas populações. E seu impacto na 
história humana foi tão profundo que historiadores e arqueólogos o chamam de 
revolução: a “Revolução Neolítica”. 
	
  
25	
  
Modelo de primeira residência no início da “Revolução Neolítica”. O culto religioso era realizado 
dentro da própria moradia de cada família. 
 
Muitos também chamam a Revolução Neolítica de ” Agrícola” pois sua 
característica mais notável foi a transição do estilo de vida da caça e coleta para 
um estilo de vida baseado no cultivo de trigo. Já foi confirmado por sítios 
arqueológicos como Çatalhöyük que a “domesticação” de trigo selvagem pela 
agricultura foi a primeira etapa dessa revolução. A transição da caça de animais 
para a criação e abate de rebanhos foi posterior. 
Por muitos anos, historiadores e arqueólogos consideraram a Revolução 
Neolítica como um “mal necessário”, um pressuposto inevitável de nosso 
progresso. Ela representaria um passo importante e inevitável no caminho que 
nos conduziu ao domínio do mundo, ao aumento de nossa inteligência, a uma 
maior qualidade de vida e ao fim da violência no mundo selvagem. Tratava-se 
da hipótese acalentada por Hobbes: o estado natural era um estado de 
brutalidade e privação, e apenas através do sacrifício e concessões recíprocas 
abandonamos esse estágio primitivo e alcançarmos o progresso humano. 
Porém, com o prosseguimento das descobertas arqueológicas, essa 
noção acabou refutada pelos fatos. Na verdade, a Revolução Neolítica foi um 
passo em falso, e evidências demonstram que Rousseau tinha, de certa forma, 
	
  
26	
  
razão: o ser humano havia nascido livre, mas um tipo de contrato escravizou-o 
e agora estamos, por todos os lados, preso a correntes. 
Há cerca de dez mil anos atrás, a humanidade tomou um desvio em 
sua rota que resultou naquilo que Harari afirma ser “a maior fraude da história”. 
Um erro que tornou o cotidiano de cada ser humano mais difícil e menos 
gratificante, empobreceu nossa dieta, piorou as condições gerais de vida e foi 
até mesmo contrário à nossa disposição anatômica, representando 
uma concreta violência para nosso corpo. No sítio arqueológico de 
Çatalhöyük (sul da Anatólia), em que se descobriu uma das primeiras 
aglomerações humanas após a Revolução Neolítica, os ossos de adultos tinham 
lesões próprias de osteoperiostite e osteoartrite, sinal de uma vida sujeita a 
transporte de muito peso e de trabalho excessivo. Esse tipo de agressão ao 
próprio corpo era algo sem precedentes no período pré-Neolítico. 
Ao lado das desvantagens, essa transformação no nosso estilo de vida 
não trouxe nenhuma vantagem. Descobertas da equipe do arqueólogo Klaus 
Schmidt em Gobekli Tepe (no sudeste da Turquia) revelaram como é falaciosa a 
tese de que a revolução agrícola deixou o ser humano mais inteligente, ou que 
foi condição necessária ao desenvolvimento da civilização, ciência e tecnologia. 
Como o historiador Yuval Harari conclui, há qualquer evidência suportando tais 
crenças. Ao contrário, há evidências de que nossos antepassados que coletavam 
e caçavam tinham domínio de técnicas sofisticadas, capazes de espantosas 
proezas arquitetônicas e com um notável conhecimento de astrologia. 
Além disso, tampouco essa mudança melhorou nossa dieta, aumentou 
nossa segurança ou diminuiu a violência entre seres humanos, ao contrário do 
que supunha Hobbes. Na verdade, há indicativos de que após a Revolução 
Neolítica a vida humana passou a sujeitar-se maiores riscos, inclusive com o 
aumento de agressões e hostilidades entre grupos e perpetração sistemática da 
violência dentro de cada grupo. A escravidão começou com a Revolução Neolítica, 
e o sacrifício de seres humanos também. 
Todos os indicativos apontam hoje para o fato de que a Revolução 
Neolítica, tal como se deu, não era um passo necessário ao progresso humano. 
Na verdade, em outras tramas de realidade existentes no hipercontexto, em que 
a história da humanidade seguiu caminhos diferentes daqueles tomados por 
nossos antepassados no momento da última singularidade, a evolução da 
	
  
27	
  
civilização entre os seres humanos ocorreu de outra forma, e inclusive a passos 
mais largos, sem resultados tão nocivos para a qualidade da vida humana. 
Na verdade, além do historiador Yuval Harari, arqueólogos como Ian 
Hodder e David Lewis-Williams demonstraram que a Revolução Neolítica foi a 
responsável por uma organização da vida humana que resultou na criação de 
castas sociais, repressão da mulher, degradação ambiental, instrumentalização 
da religião como forma de domínio e imposição das principais injustiças humanas 
registradas na história e ainda presentes no mundo atual. 
Como o Pecado Original, aRevolução Neolítica teria sido um erro, um 
desvio do caminho que ocorreu na singularidade de doze mil anos atrás. Por isso 
o trigo está associado ao fruto proibido, como um indicativo de onde, no mito 
bíblico, deve-se procurar a origem do erro. 
O fruto proibido porém, não é o trigo, pois o erro cometido pelo homem 
não começou com a sedentarização de grupos nômades e invenção da 
agricultura. Como o arqueólogo Jacques Cauvin propôs e as pesquisas de campo 
de Klaus Schmidt e Ian Hodden confirmaram, o erro cometido pelo ser humano 
ocorreu não no mundo exterior, mas em primeiro lugar na sua consciência, o 
local que há doze mil anos foi palco de uma singularidade. Pelo que se descobriu 
em Göbekli, a Revolução Neolítica, nas palavras de Jacques Cauvin, não começou 
com uma revolução da agricultura, mas com uma revolução cognitiva. 
O UMBIGO DO MUNDO 
Em outubro de 1994, um velho pastor curdo, Savak Yildiz, notou algo 
estranho numa pequena colina próxima a cidade de Sanliurfa. A colina era 
chamada pela tradição de Göbekli Tepe, ou seja “Colina do Umbigo”, e já havia 
sido explorada superficialmente pelo arqueólogo Peter Benedict em 1963, que se 
equivocou ao interpretar o local como um cemitério bizantino sem importância. 
Mas ao limpar a terra que cobria o objeto que viu, o velho curdo constatou que 
se tratava de uma grande pedra esculpida de forma curiosa. Yildiz era um simples 
pastor, mas não um tolo. Ele sabia que não era o tipo de coisa que se esperava 
encontrar em um cemitério. 
	
  
28	
  
 
Foto real de Savak Yildiz. 
 
No ano seguinte, em 1995, os arqueólogos Harald Hauptmann e Adnan 
Misir começaram as escavações, e logo o arqueólogo alemão Klaus Schmidt 
assumiu os trabalhos. As escavações prosseguem até hoje, pois o que o pastor 
curdo descobriu é esplêndido. Tratava-se da, nas palavras de Lewis-Williams, “do 
sítio arqueológico mais importante do mundo”. 
Em Göbekli Tepe há um complexo de estruturas arquitetônicas de 
tamanho considerável. Tratam-se de pedras com mais de cinco metros de altura, 
cada qual pesando mais de quinze toneladas, sempre dispostas ao redor de duas 
outras pedras com altura e peso semelhantes. Muitas dessas pedras estão 
repletas de relevos de animais dispostos de formas curiosas, junto a estranhas 
figuras geométricas. As duas pedras centrais, em particular, possuem relevos 
que deixam clara a intenção de que representassem figuras humanas. 
O que torna Göbekli Tepe extraordinário é uma série de constatações 
arqueológicas impressionantes. 
Em primeiro lugar, as construções ali escavadas foram datadas entre 
10.000 e 9.000 A.C., ou seja, justo no início da Revolução Neolítica. Em segundo 
lugar, os responsáveis por erguer aqueles monumentos ainda eram nômades que 
viviam da caça de animais e da coleta de alimentos. 
Em terceiro, próximo dali descobriu-se a primeira variedade de trigo 
selvagem domesticadopelo ser humano, ou seja, o trigo que começamos a 
	
  
29	
  
plantar e que deu origem a todas as espécies de trigo utilizadas pela nossa 
civilização hoje em dia. Em quarto lugar, tratam-se de estruturas que exigem um 
sofisticado conhecimento de arquitetura e astronomia, além de uma operosa 
organização do trabalho. São habilidades que até então não se pensava ser do 
domínio de nossos antepassados pré-Revolução Neolítica. 
Por fim, em quinto lugar tratam-se de construções que não têm 
qualquer objetivo prático, inexistindo qualquer indício de habitação humana na 
região. Na verdade, o único propósito das construções ali descobertas era 
religioso, a serviço de uma casta de sacerdotes. Assim, em Göbekli Tepe está 
aquilo que se pode chamar de o mais antigo templo da humanidade, construído 
justamente no momento em que a Revolução Neolítica começou. 
 
 
Essas constatações levam a conclusões inevitáveis. 
Por muito tempo, tentou-se descobrir o que levou a humanidade a 
abandonar o estilo de vida de coleta e caça para adotar a vida sedentária de um 
agricultor, com impacto tão negativo na sua qualidade de vida. Predominavam 
entre os arqueólogos as hipóteses de que uma abrupta mudança climática, crise 
populacional ou escassez de alimentos teria imposto a nossos antepassados a 
Revolução Neolítica. 
	
  
30	
  
Porém, em Göbekli Tepe há construções erguidas imediatamente antes 
de a Revolução Neolítica acontecer, e essa Revolução ocorreu exatamente ali, 
pois a primeira domesticação de trigo selvagem foi feita nas proximidades. Além 
disso, seu gigantismo deixou claro que a agricultura não era um requisito para a 
emergência de sociedades complexas. Na verdade, Göbekli Tepe demonstrou que 
os povos nômades eram muito mais inteligentes e tinham uma cultura muito 
mais sofisticada do que se supunha, eliminando a presunção de que a revolução 
agrícola nos tornou mais inteligentes e hábeis. 
As descobertas em Göbekli Tepes foram assim reunidas às descobertas 
por arqueólogos como Ian Hodder (em Çatalhöyük), Jean Perrot (em Ain Mallaha) 
e Jacques Cauvin (em Mureybit). O cenário formado pela reunião de evidências 
não deixou dúvidas de que a Revolução Neolítica não foi determinada por 
pressões climáticas, populacionais ou ambientais, embora esses fatores possam 
ter colaborado, mas por uma mudança na estrutura da consciência humana. 
Nas palavras de Cauvin, a Revolução Neolítica, que tornou a vida 
humana tão pior sem qualquer razão aparente, é uma “clara demonstração do 
fato de que o homem não poderia transformar completamente a forma como 
explora seu ambiente natural sem adotar ao mesmo tempo uma diferente 
concepção de mundo e de si mesmo enquanto inserido neste mundo”. Houve, 
antes de tudo, uma mudança na psicologia coletiva que é expressa na 
emergência de novos mitos. 
Portanto, a Revolução Neolítica, antes de ser uma revolução agrícola, 
foi em primeiro lugar uma Revolução Simbólica. Mais exatamente, uma revolução 
da consciência – se entendermos por “revolução” algo cujos resultados são 
desastrosos. 
Os sítios arqueológicos em Göbekli, Çayönü e Nevali Çori, todos 
relacionados ao surgimento da Revolução Neolítica, estavam associados à uma 
explosão do simbolismo religioso sem precedentes na história humana. Nas 
palavras do arqueólogo Lewis-Williams, tratou-se de um contrato da consciência 
afiançado por castas sacerdotais. No termo cunhado por Julian Jaynes, foi o 
momento da reestruturação do túnel da consciência naquilo que chamou 
de Mente Bicameral. Como Cauvin disse, foi o momento em que nasceram os 
deuses em nossas mentes. Como os mitos do Jardim do Éden e do 
Demiurgo/Sofia, foi a “origem do mundo”. 
	
  
31	
  
Porém, há mais um detalhe que os arqueólogos não deixaram passar. 
O fato é que o complexo religioso encontrado em Göbekli Tepe foi completamente 
enterrado pela ação humana consciente, e não como resultado de algum evento 
natural. Na verdade, o que ocorreu em Gobekli Tepe é tão hediondo que em 
algum momento nossos antepassados tentaram enterrar as memórias dos crimes 
ali cometidos, embora as consequências já fossem irreversíveis. 
A SINGULARIDADE 
Há doze mil anos, ocorreu uma singularidade [[“Singularidade” é o 
tema do próximo texto, mas pode ser definida como “o processo de emergência 
de uma função que transcende seus elementos constituintes.”]]. Foi quando a 
raça humana cometeu um grande erro. Agora, estamos para enfrentar uma nova 
singularidade. Se essa próxima singularidade herdar os erros da anterior, 
evocaremos o inferno na Terra. Se corrigirmos o erro a tempo, poderemos 
construir uma utopia. 
O erro cometido pela humanidade há doze mil anos colocou a todos em 
uma prisão. Olhe ao seu redor: essa é sua prisão, aquilo que você vê. Mas se 
uma prisão, onde estão os muros? Por que o prisioneiro, olhando ao redor, não 
consegue encontrar suas correntes? 
Na primeira parte desta terceira etapa, apresentou-se o mito de Sophia 
e Demiurgo, e como esse mito pode ser considerado uma analogiasobre a 
consciência e o ego. Explicou-se a natureza da consciência humana enquanto 
criadora de uma “realidade virtual” (como diz Thomas Metzinger) que nosso 
cérebro constrói como “o mundo real”, mas que não passa de uma versão de 
baixa dimensionalidade construída pelo cérebro para representar uma fração do 
que está acontecendo lá fora, no hipercontexto. 
No centro desse modelo está o ego, entronizado e envaidecido com a 
narrativa que conta a si mesmo sobre quem ele próprio é. Miticamente, o ego é 
como um déspota que constrói, com a consciência, um mundo enclausurado e 
escuro. Já tecnicamente, o ego é um módulo da consciência que foi deslocado de 
suas funções originais para ocupar uma posição que não lhe compete. 
Esse é o motivo de não percebermos os muros de nossa prisão: os 
muros formam a estrutura do próprio mundo criado pela consciência a partir do 
erro cometido por nossos antepassados. Esse é um exemplo de “transparência 
	
  
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fenomênica”: é impossível perceber aquilo que é elemento estruturante da 
própria percepção. Como quem olha uma paisagem para fora da janela e deixa 
de ter consciência da própria janela, ou quem assiste um filme e deixa de ver os 
limites da tela, não percebemos a moldura com a qual o cérebro pendura na sua 
parede a imagem da realidade. 
Também na primeira parte da terceira etapa se expôs como os antigos 
mitos sobre a origem do mundo encontram correspondência com as recentes 
descobertas sobre a origem da Revolução Neolítica, feitas em Göbekli Tepe e 
Çatalhöyük. Com essas descobertas a Revolução Neolítica, por fim foi 
desmascarada, e arqueólogos e historiadores concluíram que se tratou da “maior 
fraude da história” (Yuval Harari) e do “primeiro Grande Erro da espécie humana” 
(David Lewis-Williams). Foi quando se descobriu que, antes da Revolução 
Neolítica, nossos antepassados possuíam uma cultura sofisticada e complexa 
(com conhecimentos de engenharia, astronomia e tecnologia surpreendentes), 
além de se beneficiarem de uma melhor qualidade de vida, melhor saúde, melhor 
dieta, maiores estímulos ao desenvolvimento da inteligência e, por fim, maior 
longevidade. 
Quando se fala em “erro” e “história”, é importante atentar para o fato 
de que a natureza aleatória da evolução reflete na natureza aleatória da própria 
história. Em outras palavras, às vezes uma civilização ou mesmo uma espécie 
inteira pode tomar caminhos errados, e às vezes esses caminhos podem tornar-
se irreversíveis. Em um nível extremo, a irreversibilidade pode ser cognitiva, a 
ponto de ser impossível sequer cogitar que as coisas poderiam ter sido diferentes, 
que poderíamos ter conquistado tudo o que já conquistamos sem tanto 
sofrimento – e inclusive mais rapidamente. Basta pensar no quanto se retrocedeu 
na Idade Média, quando o grego Eratóstenes, dois séculos antes da Era Cristã, 
já sabia que a Terra era redonda e havia praticamente acertado o cálculo de sua 
circunferência. Basta pensar em quantas vezes a guerra e a opressão política 
amarraram os pés da evolução humana. 
Achamos que a Revolução Neolítica nos trouxe benefícios porque 
avaliamos o pouco que ela nos deu como suficiente e apropriado, já que não 
conhecemos outras possibilidades. Somos incapazes de conceber outras formas 
melhores de viver, e outras formas melhores de progredir. É uma espécie de 
transparência: não podemos saber de outras possibilidades, pois quando 
	
  
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olhamos para trás enxergamos o passado a partir do pequeno buraco que há na 
parede de nossa cela. 
Mas qual a natureza exata dessa prisão? Qual foi o fruto proibido que 
nossos antepassados provaram? 
A resposta pode ser graficamente representada na seguinte imagem, 
distribuída pela equipe de divulgação do filme Mother!, de Darren Aronofsky, 
entre críticos e jornalistas por ocasião de sua estreia: 
Cartão distribuído a críticos na exibição de “Mother!”: um octógono, o símbolo de Peixes e um ponto 
de exclamação. 
 
É uma feliz coincidência que esse diagrama possa ser usado para refletir 
a natureza do erro que determinou a tragédia da consciência humana, um erro 
batizado pelo psicólogo Julian Jaynes de “Mente Bicameral” e que o arqueólogo 
Jacques Cauvin identificou como a revolução cognitiva que desencadeou a 
Revolução Neolítica. 
O símbolo central dessa imagem é o símbolo de Peixes, presente no 
filme em um isqueiro de Adão e oculto em cartazes promocionais da obra. Trata-
se de um símbolo antigo, que tem origem em uma das estrelas da 
constelação Alpha Piscium, que era chamada no oriente-médio de “a corda”, 
tanto para simbolizar a corda que permite levar um balde ao fundo de um poço 
como a corda que une dois peixes nadando em sentidos opostos. 
Tem-se, assim, um símbolo de separação de dois sistemas distintos, 
unidos por apenas um ponto de contato. 
	
  
34	
  
Isqueiro com o símbolo de Pisces como detalhe dos cartazes promocionais de “Mother”. 
 
Na parte superior do diagrama, temos um octógono dentro de um 
círculo, forma constante na arquitetura da casa em que o 
filme Mother! transcorre e de grande importância no mito original sobre Sophia 
e Demiurgo. Sabemos, por entrevistas do diretor Darren Aronofsky, que sua 
intenção era evocar o significado do octógono na alquimia e doutrinas que 
associam o número oito aos arquétipos do infinito e da regeneração. Aronofsky 
também falou de seu interesse pelodo octógono enquanto “perfeita forma para o 
cérebro humano”. 
Tem-se, assim, a imagem de um mandala, um símbolo da perfeita 
organização psíquica. 
	
  
35	
  
O octógono é uma forma onipresente na casa construída por Sophia. 
 
Na parte inferior do diagrama, está um ponto de exclamação, último 
caractere do título do filme. Trata-se, em primeiro lugar, de um recurso 
linguístico, o que é importante para revelar a natureza essencial do erro cometido 
por nossos antepassados. Além disso, o ponto de exclamação é um sinal que tem 
origem medieval, tratando-se inicialmente de um “i” acima de um “o”, para 
representar a palavra latina “io”. Essa palavra é derivada do grego “ió“, que por 
um lado é o caso acusativo do substantivo ιός (iós – “vírus”, “veneno”) e de outro 
remete ao também grego “iώ”, que em latim vulgarizado é equivalente a “ego”. 
Também por isso, em línguas latinas “io” deu origem à primeira pessoa do 
singular, como são exemplos o “io” italiano, o “yo” espanhol e o “eu” português. 
Tem-se, assim, a um só tempo um recurso linguístico, uma alusão ao ego e a 
ideia de vírus ou infecção. 
Em resumo, reunindo os três símbolos em um mesmo diagrama, tem-
se a descrição de dois sistemas separados, unidos por uma estreita ponte de 
comunicação (a “corda” do símbolo de Peixes ao centro): acima, um sistema que 
representa a organização ideal da consciência humana; abaixo, um sistema 
associado ao ego, com natureza mesmo tempo linguística e viral. Esse diagrama 
	
  
36	
  
é a exata representação daquilo que Julian Jaynes chamou de “Mente Bicameral” 
que produziu nossa atual consciência. 
O NASCIMENTO DA LINGUAGEM 
No filme de Aronofsky, o mito do Demiurgo é apresentado como a 
história de um poeta, que escreve um grande poema, e sua esposa, que reforma 
uma casa com a qual ela própria se confunde. Linguagem é o instrumento do 
ofício do poeta, ou melhor, o instrumento para orientar Sophia sobre como a casa 
deve ser construída. Quando o poeta termina sua poesia, a leitura dos versos 
evoca em Sophia a imagem da casa e da vida que ele projeta viver ao seu lado. 
A consciência é Sophia e a casa ao mesmo tempo, e o ego humano é o 
Demiurgo e sua poesia. E há um motivo pelo qual o ego utiliza a linguagem para 
orientar a consciência durante a construção de seu “mundo“. Linguagem é 
informação, e informação é a “substância” de que é feita a consciência. 
Como Jaynes e Jacques Cauvin propuseram, e acabou confirmado pelas 
descobertas dos arqueólogos Klaus Schmidt (em Göbekli Tepe), Harald 
Hauptmann(em Nevali Çori) e Ian Hodder (em Çatalhöyük), a Revolução Agrícola 
foi antecedida de uma alteração na estrutura da consciência que Cauvin chamou 
de “Revolução Simbólica”. Jaynes demonstrou que essa revolução simbólica foi 
resultado emergente de uma singularidade que ocorreu no momento em que a 
linguagem humana desenvolveu-se a tal ponto que pressionou a alteração da 
própria consciência. A partir desse ponto, a forma como a consciência passou a 
vivenciar as experiências psíquicas (fossem elas sensações, emoções, 
pensamentos ou decisões) sofreu uma profunda transformação. 
Os primitivos seres humanos, organizados em bandos, fortaleceram sua 
associação com o uso de sistemas rudimentares de comunicação que se 
desenvolveram até o nascimento das primeiras linguagens. Com tempo, a 
comunicação tornou-se progressivamente mais eficiente, permitindo a 
articulação de táticas durante a caça, a transmissão de conhecimento sobre como 
produzir ferramentas e outras tantas vantagens evolutivas. Mas como a 
consciência é um sistema de informação, e a linguagem é ela própria um sistema 
para a transmissão de informação, imediatamente surgiu uma relação de 
influência recíproca. Nessa relação, a consciência estimulava o aumento da 
complexidade da linguagem humana, e a linguagem, por sua vez, criava 
	
  
37	
  
ferramentas para a consciência desenvolver-se – um processo sempre a serviço 
a sobrevivência do organismo através da cooperação com a tribo. 
É assim que a linguagem foi interiorizada na construção do modelo de 
mundo que o cérebro apresenta ao organismo como “realidade”. A linguagem 
passa assim a integrar a consciência humana, o “mundo” que percebemos, e 
assume aos poucos uma posição privilegiada, viralizando-se em quase todos os 
processos mentais. 
Através de uma extensa pesquisa, Julian Jaynes demonstrou que 
quando nossos antepassados começaram a pensar utilizando as primeiras 
palavras e frases criadas originalmente para a comunicação do grupo, com toda 
certeza essas palavras eram percebidas de uma forma totalmente diferente de 
como as percebemos hoje em dia. A execução de uma tarefa mental como pensar 
em palavras, banal para qualquer homo sapiens moderno, foi vivenciada de 
forma intensa por nossos ancestrais quando o fizeram pela primeira vez. Somos 
hoje o resultado de uma transformação que ocorreu há milênios, e o modo como 
nossos pensamentos se desenvolvem em nossa cabeça não nos causa 
estranheza. Na verdade, pensar tal como fazemos é automático, mas nem 
sempre foi assim. 
O desenvolvimento da linguagem produziu impactos dramáticos na 
consciência do homo sapiens primitivo. “Cada novo estágio de desenvolvimento 
das palavras literalmente criava novas percepções e interesses, e essas novas 
percepções e interesses resultavam em mudanças culturais importantes, que se 
refletem nos registros arqueológicos” [[Jaynes, Julian. The Origin of 
Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, p. 132.]]. 
Quando nossos antepassados elaboraram os primeiros pensamentos na 
forma de frases rudimentares, reproduzindo na consciência a comunicação 
realizada entre os membros do grupo, certamente essas palavras não foram 
“ouvidas” como se viessem do próprio pensador. A elas era atribuída um outro 
sujeito, que falava com o pensador, representando a experiência psíquica que o 
pensador vivenciava naquele momento. Mesmo se as repetisse em voz alta, o 
indivíduo entenderia que as palavras antes foram ouvidas de alguém. Afinal, 
palavras eram ditas de alguém para alguém, e era nesse contexto que nossos 
antepassados as desenvolveram – assim, uma frase na consciência era atribuída 
a uma comunicação de outra entidade, de outro ser. À medida que o uso de 
	
  
38	
  
frases tornava-se recorrente, frases eram atribuídas a sujeitos diferentes que 
representavam experiências psíquicas específicas. 
Cientes dessa personificação que o ego faz das experiências psíquicas 
quando a consciência passa a servir-se da linguagem, Jung e Jaynes 
documentaram a proximidade entre o estado de alucinação de pacientes 
diagnosticados com esquizofrenia e os fundamentos da percepção de mundo por 
qualquer ser humano. Mais ainda, apresentaram provas de que alucinações 
auditivas e visuais são experiências comuns não apenas entre esquizofrênicos e 
consumidores de substâncias alucinógenas: também uma razoável parte das 
pessoas consideradas “normais”, que vivem bem adaptadas à sociedade, 
costumam ouvir vozes e ter outras alucinações que racionalizam e tentam de 
alguma forma ignorar. Esses eventos podem ocorrer aleatoriamente, mas há 
uma predominância de casos de alucinação de pessoas “normai” reportados em 
situações de elevado estresse, trauma ou excitação emocional que provoque 
alguma ruptura cognitiva. 
Quando nossos primitivos antepassados escutaram em sua consciência 
as primeiras frases, essas palavras não apenas eram atribuídas a entidades que 
representavam as emoções e pensamentos associados a determinadas frases. 
Essas frases eram literalmente ouvidas por aquele que as pensava, em um caso 
de alucinação auditiva que não raras vezes vinham acompanhadas de alucinações 
visuais. 
Registros históricos deixam claro que nossos antepassados realmente 
viam diante de si entidades que representavam as experiências psíquicas que 
estavam sendo processadas por sua consciência, deixando relatos escritos sobre 
espíritos e divindades vistos por coletividades. Os humanos da era paleolítica 
responsáveis pelas imagens na caverna de Chauvet pintaram seres sobrenaturais 
ao lado de animais não como evocações artísticas de fantasias religiosas. Eram 
entidades realmente vistas por eles. As pinturas de caçadas em que seres 
sobrenaturais eram representados ao lado de caçadores e presas apenas 
reproduziam uma vivência tal como era percebida pelo cérebro primitivo. 
	
  
39	
  
 
Experiências psíquicas significativas eram acompanhadas de 
alucinações específicas. As “figuras de transformação” dos antigos Olmecas têm 
essa mesma origem, pois entidades que representavam experiências psíquicas 
fundamentais eram percebidas na forma de um conjunto de atributos animais 
arquetípicos (“fúria do tigre”, “coragem do leão”,” esperteza da raposa” ainda 
são expressões usuais hoje em dia) associados a características antropormóficas 
básicas. E como Lewis-Williams demonstrou, o consumo de substâncias 
alucinógenas durante rituais praticados por sacerdotes e xamãs conferia aos 
arquétipos durante rituais a forma de manifestações abstratas, geométricas, tal 
como retratados em locais de culto. 
	
  
40	
  
 
Essas ideias podem parecer estranhas, mas convém recordar o conceito 
de consciência de Thomas Metzinger, já apresentado: consciência é uma 
aparência de mundo criada pelo cérebro para representar ao organismo uma 
versão de baixa dimensionalidade do mundo real. E somente recentemente 
começamos a nos dar conta da extensão desse fenômeno. Por milênios, a mente 
humana foi condicionada a considerar que aquilo que existe diante de seus olhos 
(isto é, aquilo que sua consciência cria e apresenta como realidade visual e 
espacial) é o mundo real. Mas, na verdade, onde se lê “mundo” em todos os 
relatos míticos sobre a criação do mundo, entenda-se “simulação ou simulacro 
de mundo de baixa dimensionalidade construído pela consciência e apresentado 
como mundo real”. 
Por isso é que quando nossos antepassados ouviam vozes e tinham 
alucinações com entidades que representavam experiências psíquicas que 
estavam sendo vivenciadas em sua consciência naquele momento, eles apenas 
estavam integrando essas experiências psíquicas à percepção do mundo 
circundante. Não é algo em essência diferente do que alguém faz hoje em dia, 
quando projeta conteúdo psicológico reprimido em situações externas que não 
têm relação direta, mas simbólica, com tais conflitos. A percepção dos humanos 
de cem mil anos atrás não fazia qualquerdistinção entre o conteúdo de sua 
psique e o conteúdo do mundo circundante. Essa distinção é moderna, pois nossa 
	
  
41	
  
consciência atual é resultado recente de uma sucessão de singularidades, e 
começou no momento em que o ser humano deu voz, pela primeira vez, às forças 
fundamentais da psique. O ego humano, então rudimentar como o ego dos 
demais primatas, ouviu pela primeira vez a voz dos arquétipos. 
A LINGUAGEM ARQUETÍPICA 
Enquanto trocavam correspondência sobre a relação entre matéria e 
consciência, o físico Wolfgang Pauli e o psicólogo Carl Gustav Jung chegaram a 
uma precisa definição de arquétipo no âmbito hipercontexto. 
“Arquétipo é uma probabilidade de experiência psíquica”, foi a 
definição formulada por Pauli, que Jung acolheu em seu sistema. Assim como a 
função de onda é o conjunto de todas as probabilidades de um objeto ser e estar 
ao mesmo tempo, no âmbito do hipercontexto as probabilidades de futuro de um 
mesmo indivíduo, que darão origem a realidades alternativas, apresentam-se 
como um conjunto de probabilidades de experiência psíquica. A cada 
probabilidade de experiência psíquica, portanto, corresponde pelo menos um 
arquétipo. 
Pauli acreditava que essa definição de arquétipo enquanto que o 
associava a função de onda da matéria poderia revelar uma ordem de realidade 
superior, situada além do aparente abismo entre matéria e espírito. Afinal, 
experiências psíquicas são rigorosamente tudo o que conseguimos experimentar 
em relação à realidade. Não temos acesso direto aos objetos do mundo exterior, 
mas apenas a sua imagem representada em nosso cérebro. Portanto, para a 
consciência, a percepção de futuros prováveis no hipercontexto poderia ser 
percebida em termos de experiências psíquicas prováveis. A função de onda que 
é o destino de um ser humano, ramificando-se em vários caminhos, é composta 
a cada momento pelas experiências psíquicas que várias versões de um mesmo 
indivíduo estão vivenciando naquele exato instante. 
	
  
42	
  
Carl Gustav Jung (esq.) e Wolfgang Pauli (dir.) 
 
Segundo Jung e Pauli, portanto, o arquétipo é uma probabilidade de 
experiência psíquica, diante dos futuros que tem a probabilidade de emergir a 
partir do momento presente. Se um indivíduo corre risco de vida em um acidente 
de trânsito e seu futuro ramifica-se na morte e na sobrevivência, a função de 
onda diante desse indivíduo, no exato momento do acidente, possivelmente será 
integrada pelo arquétipo da Morte e pelo arquétipo do Renascimento. Assim, 
Pauli e Jung deduziram que a relação entre os arquétipos ativados para um 
indivíduo em determinado instante de sua função de onda não operava de 
acordo com uma relação de causalidade, mas de sincronicidade, ou seja, 
em um plano complementaridade fundamental entre todas as coisas aqui e 
agora. 
Com isso em mente, é possível compreender uma pequena fração de 
como funciona a consciência do Eu Superior ao perceber o conjunto de vidas 
alternativas de cada versão do mesmo indivíduo . Operando no hipercontexto, o 
Eu Superior não percebe essas múltiplas vidas da mesma forma como cada ego 
as percebe. Em outras palavras, a percepção total do Eu Superior não é mera 
soma das percepções de cada ego. O Eu Superior trata as realidades alternativas 
não em termos de fatos particularizados (área de atuação do ego), mas em 
termos de probabilidades de experiências psíquicas que se manifestam e se 
sobrepõem. Em outras palavras, em termos de arquétipos. 
	
  
43	
  
Assim, dois ou mais egos de um mesmo indivíduo podem estar 
passando por experiências concretas muito diferentes, mas que correspondem à 
mesma experiência psíquica fundamental. Uma versão alternativa do mesmo ser 
humano pode ter mudado de país, outra sobrevivido a um acidente 
potencialmente fatal, e ainda uma terceira pode ter começado em uma área 
profissional totalmente nova. Em todas essas situações, é provável que um 
arquétipo relacionado à experiência psíquica de renascimento esteja igualmente 
ativado. 
Portanto, na perspectiva do Eu Superior, a cada instante o retrato de 
todas as vidas alternativas é pintado em termos de quais arquétipos estão 
ativados em quais vidas, agrupando sob a regência de um mesmo arquétipo 
aquelas vidas que convergiram para a mesma experiência psíquica fundamental. 
Por esse motivo é que foi usada, na segunda etapa desse ciclo de aprendizado, 
a metáfora do sistema operacional de um ambiente de rede, quando se descreveu 
o sistema que une todas as versões de um mesmo indivíduo no hipercontexto. 
Estrutura geométrica do Grupo de Lie E8. Quem tem entendimento, entenda. 
 
Nessa “rede”, a linguagem na qual o Self ou Eu Superior opera é 
composta por arquétipos atribuídos dinamicamente às versões alternativas de 
um mesmo indivíduo. Em outras palavras, o Self percebe a cada instante o 
	
  
44	
  
conjunto de todas as vidas alternativas do mesmo indivíduo como uma função 
de onda representada por arquétipos. 
O conjunto de arquétipos e sua dinâmica constitui, então, uma 
linguagem peculiar à psique inserida no hipercontexto. 
Essa era a linguagem que nossos ancestrais deveriam ter desenvolvido 
ao reestruturar a consciência há doze mil anos, quando a percepção dos 
arquétipos pressionou a singularidade. A linguagem verbal, destinada a 
descrever a relação de causalidade que comanda as interações no fluxo do tempo 
em um só contexto (realidade alternativa) deveria ser apenas um dos módulos 
de compreensão do mundo, junto com uma linguagem arquetípica destinada a 
mapear a realidade em termos de conjunto de probabilidades de experiência 
psíquica. 
Quando uma singularidade ocorreu para nossos ancestrais, abriu-se a 
possibilidade de a consciência humana desenvolver uma visão correspondente 
ao Eu Superior em relação ao seu momento presente (as experiências psíquicas 
ativadas neste momento para o ego) e ao seu futuro (as experiências psíquicas 
ativadas em cada futuro provável para aquele ego no hipercontexto, e que se 
concretizarão como realidades alternativas emergentes). Diante da humanidade, 
estava a chance de construir um modelo de mundo ou túnel da consciência (nos 
termos de Metzinger), que representasse também as experiências psíquicas 
correspondentes ao seu momento presente e às probabilidades de futuro. Isso 
possibilitaria que a mente desenvolvesse uma gradual percepção das realidades 
alternativas diante de si a cada instante, tornando cada consciência individual 
um instrumento ainda mais eficiente para a sobrevivência do organismo no 
hipercontexto. 
Porém, o fenômeno documentado nas evidências arqueológicas de 
Göbekli Tepe e na narrativa do Gênesis revela que nossos antepassados 
cometeram um grande erro diante de uma ruptura cognitiva produzida pela 
própria percepção dos futuros prováveis. Disso emergiu não uma linguagem 
plena, capaz de construir uma consciência e uma percepção do mundo que 
abrisse uma janela para o hipercontexto. Surgiu, em seu lugar, uma linguagem 
limitada, que nos aprisionou a uma forma também limitada de perceber a 
realidade, na qual o mundo material adquiriu uma ilusória aparência de 
permanência e estabilidade. 
	
  
45	
  
MORTE 
É uma triste verdade que a história humana, em todos rumos que 
tomou no hipercontexto, raramente foi uma história de sucesso. A evolução joga-
nos em um campo de batalha no qual há inúmeras formas de perder-se a vida e 
poucas de sobrevivermos e progredirmos enquanto espécie. Nem mesmo 
dinossauros são páreos para o puro acaso, que pode varrer do planeta milhões 
de espécies num só golpe de azar. Porém, nas tramas de realidade em que a 
humanidade tomou um melhor caminho, chama a atenção uma característica 
peculiar daquelas tramas de realidade menos felizes, como a que nasceu o leitor. 
Algo causa estranheza, até mesmo alarme, pois revela o nível de adoecimento 
da espécie humana naquele contexto. 
Essa característica é a capacidade queo indivíduo comum tem de viver 
como se a morte não existisse. 
Em 1973, Ernest Becker apresentou uma hipótese sobre a relação da 
psique humana diante a morte. Basicamente, Becker propôs que nós, seres 
humanos, construímos a personalidade humana e a cultura com o objetivo de 
nos protegermos da devastadora consciência da inevitabilidade de própria nossa 
morte. 
O trabalho de Becker, porém, embora notável, era baseado unicamente 
em leituras de grandes pensadores como Otto Rank e Kierkegaard. Foi necessário 
o labor de vinte e cinco anos para que os psicólogos Jeff Greenberg, Sheldon 
Solomon e Tom Pyszczynski colhessem provas e documentassem, em 
experimentos controlados, a verdade da proposta de Becker, confirmando aquilo 
que outros pesquisadores já haviam concluído. Em 2015, a equipe publicou os 
resultados de seus experimentos, em que demonstram que a psique humana e 
a organização da própria sociedade são, de fato, estruturadas para cumprir uma 
específica missão: manter a consciência humana afastada da percepção da 
inevitabilidade de sua própria morte. 
	
  
46	
  
 
Como disse Becker, o sentimento básico de todo o ser consciente de 
seu futuro é o medo da morte, de modo que “tudo o que o ser humano faz em 
seu mundo simbólico é uma tentativa de negar e superar seu grotesco destino” 
de organismo fadado à decomposição. “A ideia da morte e o medo que ela inspira 
perseguem o animal humano como nenhuma outra coisa”, e assim constituem 
“uma proposição universal da condição humana”, que conduz a uma 
desonestidade fundamental do indivíduo “acerca de si mesmo e de toda sua 
situação”. “O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando-
se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da 
realidade de sua situação que se constituem formas de loucura – loucura 
aprovada pelo consenso social, loucura compartilhada, loucura disfarçada e 
dignificada, mas ainda assim loucura”. 
Obviamente, qualquer pessoa hoje em dia sabe que vai morrer. Mas 
esse saber é quase todo ele retórico, uma noção vaga sobre a mortalidade, que 
raramente é levada em conta quando se trata de dimensionarmos nossa 
perspectiva das coisas, estabelecermos uma hierarquia de valores e orientarmos 
nossas decisões pessoais. Não sentimos realmente que vamos morrer, salvo nas 
raras vezes em que um acidente ou doença fatal nos submete à experiência 
psíquica da morte. Nesses casos extremos, o efeito ao menos temporário na vida 
de quem se salva é uma transformação radical de seus valores e prioridades. 
Porém, com o passar do tempo, a mente humana, mesmo após sentir 
realmente a existência da morte, volta à executar sua programação padrão e 
	
  
47	
  
esquece gradualmente essa experiência psíquica. E assim o faz porque foi 
programada para esquecer da morte. 
Costumamos julgar nossos antepassados sob o filtro de nossos 
preconceitos, como se fossem versões menos desenvolvidas do ser humano 
atual. Na verdade, se um ser humano atual fosse transportado para a mente de 
um ancestral de 10.000 A.C., ficaria assustado com sua percepção do mundo. Só 
porque hoje estamos condicionados a viver como se a morte não existisse, não 
significa que as coisas sempre foram dessa maneira. Criar essa autoilusão deu 
trabalho, custou vidas e levou tempo. 
Estamos tão profundamente e por tantos milênios mergulhados em 
uma estrutura da consciência fabricada justo para nos permitir ignorar a real 
existência da morte que jamais nos ocorre que, quando uma espécie animal 
adquire determinado nível de consciência, e passa a perceber a inevitabilidade 
da morte, essa experiência é aterrorizadora. 
A consciência animal vivencia as experiências psíquicas apenas à 
medida que acontecem. Por isso, os animais vivem basicamente em um eterno 
presente. O desenvolvimento da linguagem, porém, deu ao homo 
sapiens ferramentas conceituais para que elaborasse a noção de futuro e de 
probabilidades de futuro. Pela primeira vez, um ser humano foi capaz de concluir 
qual era o seu destino final. Ao observar a morte ao seu redor manifestando-se 
sob diversas máscaras, pela primeira vez o homo sapiens foi capaz de perceber 
que a cortina de fundo de todas as probabilidades de experiências psíquicas em 
seu futuro é, ela própria, uma experiência psíquica fundamental, a da própria 
morte de seu ego. 
	
  
48	
  
 
Nossos antepassados, quando a linguagem pressionou a evolução da 
consciência, não estavam municiados com os mecanismos protetores que o ser 
humano de hoje tem à sua disposição para viver em total ignorância da própria 
morte. O estado inevitável do ego humano nessas condições é de puro terror. 
Observe-se aqueles que padecem de depressão, de ansiedade, de transtornos 
obsessivos-compulsivos e de síndrome do pânico na sociedade atual: essas não 
são doenças da modernidade, mas amostras do que é a condição humana quando 
há um falha no sistema de proteção criado na consciência, e que deve afastar o 
ego da verdade sobre sua própria impermanência. 
No âmbito do hipercontexto, esse foi um dos grandes filtros que marcou 
os rumos da humanidade. Becker chegou a utilizar uma metáfora extrema para 
descrever a condição humana: somos “deuses com ânus”. De um lado, a mente 
do homo sapiens distingue-o dos demais animais, e o torna capaz de sonhar com 
o infinito, a eternidade, a imortalidade. Porém, essa mente está aprisionada a 
um corpo que produz fezes, machuca-se e foi programado para a decomposição. 
Na próxima etapa, falaremos mais sobre a verdadeira natureza da 
informação no âmbito do hipercontexto. Mas nesta etapa é importante notar que 
o fundamento dessa condição humana é o atrito entre a tendência que tem a 
informação de tornar-se independente da matéria, e portanto indestrutível, e a 
impermanência dessa própria matéria. Nas palavras de Becker, “o homem é um 
	
  
49	
  
verme e alimento para os vermes. Este é o paradoxo: ele está fora da natureza 
e inapelavelmente nela; ele é dual, está lá nas estrelas e, no entanto, acha-se 
alojado num corpo cujo coração pulsa e que respira e que antigamente pertenceu 
a um peixe a ainda traz as marcas das guelras para prová-lo. Seu corpo é um 
invólucro de carne, que lhe é estranho sob muitos aspectos – o mais estranho e 
mais repugnante dos quais é o fato de que ele sente dor, sangra e um dia irá 
definhar e morrer. O homem está literalmente dividido em dois: tem uma 
consciência de sua esplêndida e ímpar situação de destaque da natureza, dotado 
de uma dominadora majestade, e no entanto retorna ao interior da terra, uns 
sete palmos, para cega e mudamente apodrecer e desaparecer para sempre. 
Estar num dilema desses e conviver com ele é assustador.” 
As poucas versões em que história humana foi bem sucedida trataram-
se casos em que a humanidade conseguiu equacionar essa questão existencial 
através de uma reestruturação da consciência que enfrentasse esse trauma de 
forma adequada. Na verdade, o conhecimento real da inevitabilidade da morte é 
importante, e foi um dos fatores importantes para o desenvolvimento intelectual 
e material nas tramas de realidade em que a humanidade mais progrediu. Afinal, 
não há melhor motor para o progresso humano, inclusive tecnológico, que a 
pressão da inevitabilidade da morte. 
Esse, porém, não foi o caso da humanidade na trama de realidade que 
resultou na Revolução Neolítica. O motor para o progresso humano foi outro: foi 
a fuga, a cegueira voluntária, a ignorância estrutural. Na trama de realidade que 
originou o mundo em que estas palavras são escritas, o ser humano defrontou-
se com sua mortalidade (Gênesis 3:3), e foi expulso do Jardim do Éden. Como a 
presa que cai numa armadilha, a humanidade foi induzida a fugir e a entrar em 
uma cela, como se ali pudesse encontrar proteção, e não escravidão. 
FRUTO PROIBIDO 
No filme de Aronofsky, a cena do fruto proibido é representada justo 
por uma queda: a essênciade Sophia, associada a uma pedra ou cristal que era 
fonte de inspiração para o poeta, cai de uma estante no chão, por obra de Adão 
e Eva. 
A noção de “queda do homem”, como forma de descrever o momento 
em que o primeiro casal morde o fruto da árvore do conhecimento, é comum nas 
	
  
50	
  
vertentes cristãs do mito. Está presente, porém, também na representação 
hebraica que associa a “queda” de um tipo de conhecimento com a existência do 
mundo material em que estamos vivendo, mundo material esse associado com a 
figura da manifestação feminina de Deus (Barbelo ou Sophia). 
Há poucas informações no mito sobre a natureza do fruto proibido. 
Tem-se uma associação primitiva com o trigo, o que vincula a história do Jardim 
do Éden à Revolução Agrícola. Mas sabemos das descobertas de arqueólogos 
como Ian Hodder e Klaus Schmidt que a Revolução Agrícola ocorreu em um 
momento posterior, sendo antecedida daquilo que Cauvin chama de “revolução 
simbólica” – ou, mais apropriadamente, de revolução cognitiva. 
 
Além disso, no mito, o fruto proibido não é descrito sequer 
remotamente como trigo ou outro cereal, pois vem de uma árvore. Essa árvore 
é chamada de “Árvore do Conhecimento” (o complemento “do Bem e do Mal” é 
uma intromissão tardia), e situava-se no Jardim do Éden, estando de alguma 
forma relacionada com a questão do livre arbítrio humano, ou seja, com a 
responsabilidade de entender as consequências das escolhas que fazemos e de 
orientar nosso comportamento a partir desse entendimento. O leitor que já se 
familiarizou com a existência do hipercontexto pode perceber as implicações 
desse tipo de entendimento sobre probabilidades de futuro e decisões presentes, 
e como o próprio destino humano, ramificando-se em realidades alternativas a 
	
  
51	
  
partir de escolhas e acasos, assemelha-se a uma árvore. Logo, o fruto proibido 
não é a agricultura, mas algo que lhe antecedeu, relacionado a uma 
transformação cognitiva. 
Para decodificar-se o mito do Fruto Proibido, é preciso recordar que 
seus criadores não conheciam a escrita e transmitiram o registro de um evento 
através de uma alegoria. É preciso também lembrar que o Éden, ao menos da 
perspectiva de lendas como a dos quatro sábios que o visitaram, é um algo muito 
diferente do que poderíamos imaginar. Trata-se de um lugar (se é que podemos 
chamar de “lugar”) que desafia a capacidade de compreensão humana: um 
estado de consciência superior. Portanto, a árvore do conhecimento e seu fruto 
representam algo bem diferente de uma árvore real. 
Árvore do conhecimento, em hebraico, é Cheit Eitz Ha-Da’at, sendo 
que Da’at significa “conhecimento” em um sentido muito específico da tradição 
hebraica. Há muito o que se falar sobre esse sistema conceitual, que revela 
fragmentos de uma genuína linguagem arquetípica. Mas, no momento, importa 
entender que tipo de conhecimento é esse, representado por “Da’at”. 
O conhecimento contido no Fruto Proibido está associado, segundo a 
tradição, com a região da garganta humana, e se trata do mesmo tipo de 
conhecimento ou logos com que o poder divino criou o mundo. Ou seja, é o 
conhecimento relacionado à linguagem (região da garganta) que pode estruturar 
a consciência humana. 
Ainda segundo a tradição, Da’at é um tipo de conhecimento superior, 
não intelectual, que se recebe através de um profundo engajamento emocional 
com quem o transmite. Por isso a palavra “Da’at” é usada para nomear o 
conhecimento que uma pessoa pode ter de Deus através de uma convivência 
íntima e profunda em sua própria vida (Da’at Elohim). E é importante observar 
que, segundo a tradição, esse tipo de relação com a divindade através 
de Da’at estaria em oposição à relação que se opera mediante oferendas e 
sacrifícios: “Porque quero e o conhecimento (Da’at) de Deus, mais do que os 
holocaustos” é uma passagem tradicional atribuída ao profeta Hoshea. 
Como o rabi Shimon Leiberman definiu, “Da’at é a ponte entre a ideia 
e a realidade”. Ou seja, é uma ponte entre o plano das probabilidades e o plano 
em que uma das probabilidades é concretizada – entre hipercontexto e contexto. 
E Gershom Scholem, outra autoridade da simbologia relacionada a esse mito, 
	
  
52	
  
explica que a tradição vê Da’at como uma “unidade que reúne atributos opostos 
e que dá origem a uma síntese que supera essa oposição”. 
Se todas essas definições forem aplicadas ao mito segundo a linguagem 
arquetípica, Da’at parece corresponder ao que Jung definiu como “função 
transcendente”. Em outras palavras, Da’at seria a conexão entre a consciência e 
o Eu Superior, entre o mundo representado enquanto trama de realidade para o 
ego e o mundo representado enquanto sucessão de probabilidades de 
experiências psíquicas para o Eu Superior. Nesse sistema, a consciência seria 
estruturada em torno da função transcendente, como num mandala, e o ego 
animal deixaria de ocupar posição central, assumindo funções apenas 
operacionais. 
 
Porém, quando a tradição hebraica representa as manifestações divinas 
em um diagrama, não se tem um mandala, mas uma estrutura que recorda o 
diagrama da mente bicameral apresentado no início deste texto: o mundo dos 
homens em uma posição inferior, separado de uma estrutura maior, a qual se 
conecta apenas por um elo. E, nesse diagrama hebraico, Da’at é indicado por 
uma ausência. Em outras palavras, no universo tal como construído e 
apresentado a nós pela consciência, o tipo de conhecimento representado 
por Da’at não está presente. Haveria em seu lugar, alguns dizem, uma espécie 
de ruptura, de abismo, que no filme de Aronofsky está presente na fenda ou 
	
  
53	
  
ferida que se abre no chão da casa, que corresponde à própria ferida que o poeta 
abre no peito de Sophia para retirar seu coração/cristal. 
A estrutura resultante é como se um fruto ou “módulo” tivesse sido 
retirado de seu devido lugar, resultando em um desequilíbrio ou mal-
funcionamento de todo o sistema. Se Da’at é uma ponte, ela desmoronou. 
Se Da’at é um tipo de conhecimento via engajamento emocional, esse 
conhecimento não nos é acessível. Se Da’at, na anatomia humana, é associado 
à garganta, desconhecemos algum tipo de linguagem. 
O gesto de comer o fruto proibido causa estranheza, e muitas 
especulações infundadas se inspiram no fato de que foi uma mulher que se 
deixou seduzir pela tentação da serpente. Mas a relação da mulher com o pecado 
original tem muito mais a ver com a antiga tradição que associa o arquétipo de 
“mundo exterior” à mulher (pois o primeiro mundo exterior percebido por todos 
nós foi o ventre materno) do que com qualquer questão de gênero. É a mesma 
relação entre Sophia, enquanto manifestação feminina da divindade, e o mundo 
material, e a mesma relação entre a personagem do filme de Aronofsky e a casa 
que construiu. 
Assim, Eva e Sophia estão presentes no mito para indicar a consciência 
enquanto “representação de mundo”. No filme de Aronofsky, que moderniza um 
conjunto de mitos para o público atual, o poeta (Demiurgo, o ego) precisa que 
sua esposa (Sophia, a consciência), agonizando como resultado das ações dele 
próprio, permita a extração de sua essência na forma de um cristal, com o qual 
ele poderá tentar construir o mundo tal como idealiza em sua poesia, ou seja, 
com a linguagem. Adão e Eva, porém, surgem, ao mesmo tempo recordando o 
poeta da verdade da morte (Adão está desenganado pelos médicos, no filme) e 
envaidecendo-o com sua idolatria (primeira aparição, no filme, da idolatria que 
resultará em religiões que cultuam o poeta). E a seguir Adão e Eva quebram o 
cristal que representa a um só tempo a essência de Sophia e o fruto proibido, 
deixando-a cair no chão, e fazem isso exatamente no momento em que a esposa-
Sophia diz ao poeta-Demiurgo (por sugestão de Eva) que há algo errado, que é 
preciso que eles tenham um filho. Esse filho é a Função Transcendente (tal como 
a iconografia de Maria com oMenino Jesus e Ísis com o Jovem Hórus o 
representam), arquétipo que o ego resiste em criar na consciência, pois seu 
surgimento implica em aceitar sua impermanência e desimportância. 
	
  
54	
  
 
Com todos esses elementos reunidos, tem-se a chave para decodificar 
um dos mais obscuros e antigos mitos. Na narrativa do Jardim do Éden e do Fruto 
Proibido, a consciência, em sua função de representação de mundo (ou seja, 
Eva), retirou de um sistema de linguagem superior e transcendente (ou seja, a 
árvore do conhecimento, Da’at), um módulo (um de seus frutos). Disso resultou 
uma fratura ou falha estrutural do sistema de representação da realidade (tal 
como descrito pela “ausência” de Da’at e pelo abismo), e assim o ser humano 
perdeu sua conexão com uma forma de consciência transcendente (ou seja, o 
primeiro casal foi expulso do Éden). Como resultado, a humanidade teve de 
construir seu mundo apenas com as partes remanescentes dessa estrutura 
fraturada (todos os descendentes do primeiro casal suportam o resultado da 
condenação). 
Jung e seus discípulos identificaram em pacientes psiquiátricos a 
curiosa tendência de desenharem um mesmo tipo de padrão geométrico circular. 
Esse padrão, conforme observaram, também estava onipresente em sonhos de 
pacientes, sendo, além disso, recorrente em representações religiosas. Mais que 
isso, descobriram que estimular as pessoas a desenharem tal padrão 
impulsionava o processo de autocura, de auto-regeneração da psique. 
Sabemos que esse padrão geométrico era chamado de Mandala por 
Jung, e sabemos que representa um modelo básico de organização da rede 
	
  
55	
  
formada pela união do Self aos egos que vivem em realidades alternativas. Mas 
a mandala também é a estrutura de organização ideal dos arquétipos na própria 
consciência humana, pois representa a dinâmica que deveria ter surgido como 
resposta adequada à singularidade que ocorreu há doze mil anos. 
 
Mandala elaborado pelo próprio Jung, para representar suas experiências psíquicas. 
 
Portanto, se a estrutura organizativa da mandala é recorrente em 
sonhos e no processo auto-curativo da psique humana é por um só motivo: 
aprisionados, uma parte de nossa mente elabora a ideação da cura total, e 
obsessivamente tenta representar aquela que deveria ter sido a estrutura da 
consciência humana se um erro não tivesse ocorrido no passado. Não é por outro 
motivo que a imagem da mandala é tão recorrente em todas as religiões. 
Mas de onde, afinal, vieram as religiões? 
O NASCIMENTO DA RELIGIÃO 
Estamos tão acostumados à ideia da religião que jamais nos ocorre que 
ela nem sempre existiu. Não nos ocorre usualmente que a religião, enquanto 
“ficção intersubjetiva” (como diria Yuval Harari), em algum momento foi 
inventada. 
Se por um lado a espiritualidade, ou seja, a abertura à possibilidade de 
perceber manifestações que não parecem existir enquanto realidade material 
(essa é a disposição psíquica necessária ao desenvolvimento de uma linguagem 
	
  
56	
  
arquetípica, como veremos), seja uma prática muito mais antiga e espontânea, 
o surgimento da religião enquanto sistema organizado em torno de “deuses”, isto 
é, entidades que deveriam ser idolatradas e para as quais se prestava algum tipo 
de sacrifício ritual, é algo bem diferente. Religião é a perversão da 
espiritualidade. 
Podemos apenas imaginar como era a mente do homo sapiens no 
mesolítico, quando a linguagem arquetípica manifestou-se a partir do 
desenvolvimento de signos linguísticos, dando voz e personalidade aos 
arquétipos. Por parecerem dotados de autonomia ao homo sapiens primitivo, já 
que eram suas as vozes ouvidas pela primeira vez na mente humana, os 
arquétipos foram tratados como se fossem eles próprio entidades “reais”, tais 
como os animais e os seres humanos. E essas alucinações não eram apenas 
individuais, mas também coletivas. E Jaynes deixa claro que foi graças a essas 
alucinações coletivas que as primeiras sociedades complexas puderam surgir, 
superando as restrições da natureza que condenavam o ser humano ao 
tribalismo. 
As evidências arqueológicas deixam claro que a formação das primeiras 
cidades dependia da colaboração de centenas de pessoas. Porém, a cooperação 
entre seres humanos na natureza está limitada ao chamado número de Dunbar. 
É que o limite cognitivo de interação entre seres humanos numa tribo não pode 
ultrapassar 150 membros. Ultrapassado esse número, espontaneamente um 
segundo grupo resulta da divisão do primeiro. Com essa restrição, é impossível 
desenvolver sociedades complexas, dependentes da coordenação de centenas ou 
milhares de pessoas. 
	
  
57	
  
 
Imagem do deus Hitita Sharruma com o rei Tudhaliyi. Jaynes chama a atenção para o fato de o deus 
segurar o braço do rei, como se guiando-o. 
Assim, a associação de grandes populações nas primeiras cidades só seria 
possível se algum novo tipo de sistema de comunicação existisse. Yuval Harari 
demonstrou em seu livro Sapiens a importância de ficções intersubjetivas como 
“dinheiro”, “lei” e “governo” para a coesão de grandes grupos de humanos. Se 
dois perfeitos desconhecidos compartilham das mesmas ficções intersubjetivas, 
tratando-as por reais, podem interagir no mesmo contexto imediatamente, 
confirmando a coesão social em um grupo numeroso. 
Mas as primeiras ficções intersubjetivas possuíam uma aparência muito 
mais concreta para os povos primitivos. Seria pouco razoável supor que 
abstrações complexas como dinheiro, rei e lei tivessem surgido de imediato na 
mente do homo sapiens. Assim, potências que representavam emoções ou 
ideações humanas eram percebidas como entidades sobrenaturais. Não é por 
outra razão que as primeiras cidades possuíam um deus como patrono ou 
fundador, e que no centro dessas cidades havia uma estátua de tal divindade, 
em geral dentro de um templo ou no centro de uma praça. Essas estátuas 
ganhavam vida em alucinações coletivas, incorporando arquétipos que permitiam 
	
  
58	
  
a coordenação de grupos compostos por centenas e até mesmo milhares de 
pessoas, conseguindo assim superar, pela primeira vez, a limitação do número 
de dumbar. 
Alucinações coletivas são fenômenos bem estudados pela psicologia 
desde o século dezenove, quando Brière de Boismont documentou casos de 
histeria de massa em que grande número de pessoas não só compartilhavam de 
uma mesma experiência psíquica, mas também acreditavam compartilhar da 
visão de uma mesma entidade espiritual. Nessas situações, os participantes não 
enxergam e escutam exatamente a mesma coisa. Na verdade, cada participante 
tem sua alucinação particular, mas acredita estar vendo e ouvindo a mesma coisa 
que os demais. E, de regra, embora subjetivo e individual, o conteúdo dessa 
alucinação corresponde à experiência psíquica que está sendo vivenciada 
coletivamente, e por isso a vivência simbólica de cada indivíduo corresponde à 
experiência de todas as pessoas no nível arquetípico, havendo uma convergência 
alucinatória. 
Nobres assírios diante do trono de seu deus, que está vazio. A ilustração é comentada por Jaynes, que 
chama a atenção para a ênfase nos dedos apontando como se algo estivesse no trono. 
Essa é a razão de tradicionalmente as principais divindades das religiões 
antigas não possuírem uma única aparência, mas serem descritas por um 
conjunto de imagens e de seres associados àquele determinado Deus. Por 
exemplo, entre os Gregos o deus Dionysus aparecia em uma grande variedade 
de formas, como leopardo, cabra (Dionysus Eriphos), touro (Dionysus 
	
  
59	
  
Taurokephalos), falo priápico, criança, homem barbado, adolescente púbere, 
espírito negro (Dionysus Melanaigis) ou hermafrodita. Entre os antigos nórdicos, 
Wotan era representado com um velho com capa e chapéu com abas largas, um 
cavalo de oito pernas, um poderoso monarca sentado em seu trono, um corvo, 
um guerreiro montado em seu cavalo e um barqueiro de longasbarbas. 
Quetzalcoatl, entre os astecas e olmecas, era retratado como serpente com 
penas, serpente com uma crista multicolorida, ser antropomórfico com um bico 
de ave, entre outras imagens. Essas versões de um mesmo deus são derivações 
mitológicas das variadas formas como cada indivíduo percebe, em uma 
alucinação coletiva, o arquétipo na experiência compartilhada pelo seu grupo. 
Mas se alucinações coletivas são a base potencial do desenvolvimento 
de uma linguagem arquetípica, então como seria a comunicação por meio de 
uma linguagem desse tipo, que transmite vivências psíquicas com uma 
simbologia correspondente à subjetividade de cada indivíduo, mas conectada à 
experiência coletiva de todos os participantes? 
Na verdade, como Thomas Metzinger expôs em obras como The Ego 
Tunnel e Being No One, rigorosamente o mundo que vemos ao nosso redor e que 
tomamos por realidade não passa de uma alucinação coletiva, se por alucinação 
entendermos uma simulação neurológica apresentada por nosso cérebro como 
se fosse o mundo real. O fato de que hoje essa alucinação coletiva está limitada 
apenas àquilo que vemos de concreto em nossa trama de realidade é justamente 
a consequência do erro que ocorreu há doze mil anos, em lugares como Göbekli 
Tepe. 
Antes de Göbekli Tepe, a linguagem dos nossos antepassados não se 
restringia apenas às palavras, mas incluía gestos, expressões faciais e outras 
formas de comunicação não verbal. As palavras eram apenas o primeiro recurso 
da linguagem, destinado principalmente a representar as coisas (se entendermos 
por “coisa” aquilo que não é sujeito de experiências psíquicas) que existem em 
determinada trama de realidade, sendo essa a razão de sua origem. As palavras 
e sons rudimentares eram os blocos de construção principal, mas não exclusivos, 
de um sistema de linguagem mais complexo, pelo qual se podia evocar, por meio 
de signos visuais e sonoros, a “presença” dos arquétipos. Os arquétipos, 
destinados a representar experiências psíquicas no hipercontexto, formavam 
uma linguagem superior, que só poderia ser corretamente utilizada por uma 
	
  
60	
  
consciência mais desenvolvida que a de nossos antepassados, ainda centrada no 
ego. 
Não somos capazes de realmente vivenciar como seria a linguagem 
arquetípica tal como percebida por nossos antepassados. E isso porque aquilo 
que somos hoje, o ego que possuímos atualmente, é justamente o resultado, 
consolidado por milênios, da perda dessa habilidade de interagir com o 
hipercontexto e com o Eu Superior por meio da linguagem arquetípica. Por razões 
que logo serão expostas, perpetuamos a existência do ego animal, conferindo-
lhe uma estrutura informacional constituída por uma linguagem corrompida, 
restritiva e aprisionante. 
A FUGA 
O ego não é exclusividade dos seres humanos. Todos os animais mais 
complexos, notadamente os mamíferos, possuem um modelo de ego. Diz-se 
“modelo” pois é exatamente do que se trata: o ego é um modelo informacional 
construído pelo cérebro humano e colocado no centro daquele modelo de mundo 
de baixa dimensionalidade que é representado pela consciência como sendo a 
realidade. 
É importante deixar claro sobre qual o material de que é composto essa 
arquitetura da consciência: de informação. E informação é algo que não existe 
materialmente. A única coisa que tem existência material são os dados: uma 
sequência de DNA é um dado, mas só com a transcrição é que começa a se tornar 
informação, ou seja, um processo de organização e dinâmica da matéria, 
encadeado em determinada sequência significativa. 
Mas informação em alto nível de complexidade, ou seja, informação 
sobre informação, não tem obrigatoriamente um suporte material (algo na 
matéria que lhe dá suporte exclusivo), mas apenas um correspondente material 
(algo na matéria que lhe representa transitoriamente) como é o caso de uma 
imagem apresentada pela combinação de certos pixels em uma tela e que pode 
deslocar-se para qualquer ponto dessa tela, transitando para diferentes pixels. 
Algo que não existe concretamente (no sentido material) e que sequer precisa 
guardar unívoca correspondência e dependência em relação a determinado 
suporte material – isso é informação de nível superior, e é o que nossos 
antepassados chamavam de espírito. Esta é a distinção entre espiritualidade e 
	
  
61	
  
religião: tratar signos complexos de informação como se fossem um 
manifestação literal de entidades divinas. 
Deuses sumérios: a religião é a perversão da espiritualidade. 
 
A consciência animal, portanto, é dotada de um ego rudimentar, uma 
unidade informacional destinada a conduzir a vida do organismo dentro de uma 
só trama de realidade. No período pré-neolítico, a linguagem desenvolveu-se a 
ponto de dar expressão viva aos arquétipos. Pela primeira vez, nossos 
antepassados percebiam as experiências psíquicas não somente enquanto 
estavam acontecendo, como é o caso dos outros animais: as experiências 
psíquicas eram, a partir de então, percebidas enquanto padrão que se repetia, e 
sua manifestação no futuro era percebida como conjunto de probabilidades. Em 
situações de estresse coletivo, esses arquétipos eram percebidos como 
alucinações coletivas, e a origem dos primeiros “encantamentos” e “palavras 
mágicas” vem da capacidade que tinham certas palavras de evocar determinados 
arquétipos em situações ritualizadas. 
A partir desse momento, cabia à humanidade perceber que aquelas 
entidades vistas e ouvidas em determinadas situações não possuíam, de fato, 
individualidade e autonomia tal como um ser vivo possui. Jung descreveu os 
arquétipos como “complexos psíquicos parcialmente autônomos”, a fim de 
	
  
62	
  
evidenciar que se tratam de sistemas de informação que possuem, enquanto 
“palavras” do “vocabulário” de uma linguagem complexa, certa autonomia no 
desempenho de sua “função sintática”, destinada a expressar as várias vidas 
alternativas de um mesmo indivíduo no hipercontexto. Porém, não se tratam 
realmente de entidades dotadas de personalidade, autonomia e subjetividade. 
A pressão para esse salto evolutivo da consciência (perceber os 
arquétipos enquanto representações, e não seres reais) era inerente à própria 
aquisição da linguagem arquetípica. A percepção dos arquétipos relacionados à 
probabilidade de morte, principalmente em representações associadas a grandes 
predadores e animais peçonhentos, colocava o ego primitivo no centro de uma 
arena psíquica. Diante de si, pela primeira vez, estava a compreensão da finitude 
do ego quando percebida da perspectiva de uma trama de realidade. E essa 
percepção não era meramente conceitual, mas se manifestava na figura de 
entidades aparentemente mortais. Dessa arena, o ego só poderia escapar com 
sucesso através autotranscendência, processo pelo qual acabaria por instaurar, 
em sua consciência, aquilo que Jung chamou de função transcendente – uma 
ponte com o Eu Superior, em torno da qual se organizariam os demais conteúdos 
da psique. 
Contudo, havia um outro caminho, igualmente conveniente ao ego 
animal, pois também permitia isolar o trauma de perceber a experiência psíquica 
da morte na condição de probabilidade futura. Tratava-se de uma solução 
engenhosa e eficiente, embora suas consequências só pudessem ser percebidas 
muito tempo depois, quando se tornassem irreversíveis. 
Em algumas dessas tramas, a humanidade escolheu a solução de 
abertura ao aprendizado da linguagem arquetípica. Em outras, escolheu solução 
diferente. No nosso caso, a arena foi montada em Göbekli Tepe, e nossos 
antepassados saíram dela graças à segunda opção. 
A solução engenhosa consistia em seguir o caminho diverso: a fim de 
afastar a vivência aterrorizante de arquétipos associados à morte, ao invés de 
reconhecer todos os arquétipos como parte de uma linguagem superior, outro 
caminho viável era isolar o ego animal e negar-se a perceber a existência 
dos arquétipos.É importante lembrar que isso ocorreu como tentativa da mente 
humana de lidar com um processo extremamente traumático, na qual percebia 
	
  
63	
  
a possibilidade da morte do ego a cada momento. O psicólogo Otto Rank falava 
sobre o terror do mundo, o terror diante do mysterium tremendum et 
fascinosum da realidade que nos cerca, com suas inúmeras possibilidades de 
futuro. Conforme pesquisadores como Becker, Greenberg e Sheldon Solomon 
demonstraram, a percepção constante da morte, como resultado do 
desenvolvimento da linguagem, foi sentido como um genuíno trauma, causador 
de uma ruptura cognitiva. E uma das formas de reagir ao trauma é a fuga 
dissociativa, pelo qual a mente do indivíduo isola-se da experiência 
traumatizante, recusando-se a reconhecê-la e protegendo dessa forma o ego a 
fim de que ele continue, mesmo em situação de alto estresse, minimamente 
operacional. 
Mas como fazer isso? Como passar a não ver e ouvir aquilo que estava 
sendo visto e ouvido de forma tão clara em alucinações individuais e coletivas? 
Como não perceber mais o que estava diante de nossos olhos? 
Isso leva à teoria do psicólogo Wilhelm Reich sobre as “várias mortes” 
de Cristo. 
A hipótese de Reich foi a de que Cristo existiu enquanto personalidade 
histórica, tratando-se de alguém liberto das amarras que prendem o ser humano 
à sua consciência limitada. Para Reich, o protagonista da teodiceia cristã seria 
alguém dotado de uma consciência plenamente evoluída. Seus contemporâneos 
não o teriam comprendido, pois seu público era constituído de pescadores 
analfabetos e pessoas do povo. E foi assim, a partir da ignorância do aprisionado 
que recusa reconhecer a liberdade refletida nos olhos de ser humano, que 
aqueles ao redor desse ser desperto e livre começaram a “crucificá-lo” de várias 
formas simbólicas, antes de crucificá-lo fisicamente. 
De todas as formas de morte, a mais insidiosa consistiu, segundo Reich, 
em tratá-lo como se fosse um deus. Ao tratá-lo como divindade, aqueles a seu 
redor já partiram do pressuposto de que sua consciência evoluída era algo 
“divino”, e portanto inacessível ao ser humano “pecador”. Seu exemplo vivo, 
sobre a possibilidade de todos também sermos sãos, despertos e livres, tornou-
se miragem, e ao invés de entendermos as verdadeiras palavras de Cristo, 
construímos novas prisões para o espírito humano na forma de dogmas, religiões, 
opressão moral e inquisições. Foi assim que uma mensagem de amor ao próximo 
	
  
64	
  
converteu-se em discurso legitimador das fogueiras da Santa Inquisição e de 
guerras no nome de Deus. 
Portanto, para Reich, a forma mais insidiosa de ignorar o que Cristo 
teria dito seria não reprimindo sua mensagem, mas deturpando-a e 
interpretando-a como mensagem religiosa. 
A lógica por trás da teoria de Wilhelm Reich é interessante: uma forma 
de não enxergar aquilo que está diante de nossos olhos é tratar tal coisa por 
outra coisa, rejeitando, com base em uma visão religiosa, a possibilidade de 
acesso humano a essa outra coisa. Trata-se do desenvolvimento da religião como 
técnica de mascarar uma percepção que a consciência se recusa a reconhecer. A 
religião torna-se instrumento de deturpação de uma mensagem, na qual 
mensageiro e mensagem são literalizados e tratados como objeto de idolatria. 
E a primeiro mito do Gênesis a tratar da religião enquanto sistema de 
culto ritual e cerimônia litúrgica foi no mito-gêmeo de Caim e Abel, que conta a 
história do primeiro homicídio. 
CAIM E ABEL 
Os mitos do Fruto Proibido e de Caim e Abel são gêmeos. Tentam 
descrever, de duas perspectivas, a mesma singularidade que ocorreu há doze mil 
anos. Enquanto a história do pecado original é uma alegoria sobre a natureza da 
Revolução Cognitiva que resultou na mente bicameral, a história do primeiro 
homicídio bíblico é uma alegoria sobre a origem da Revolução Neolítica, unindo 
em uma só trama religião, sacrifício e agricultura. O mesmo pode ser dito sobre 
o mito da Torre de Babel, no plano da linguagem. 
No filme de Aronofsky, a noite chega após um dos filhos do casal que 
representa Adão e Eva matar seu irmão, por sentir-se preterido em relação a 
uma herança. E é para participar da cerimônia de velório da vítima que uma 
multidão invade a casa pela primeira vez. Curiosamente, são as “vozes” dessa 
multidão que o poeta escuta durante tal cerimônia que lhe dão a inspiração para 
concluir sua poesia. Somente a partir desse momento é que o poeta passa a 
realmente escrever no filme. Antes, não conseguia colocar uma só linha no papel, 
como se não dominasse a linguagem. E a poesia criada mediante essa inspiração, 
quando concluída, será tratada pela multidão não como obra de arte, mas como 
	
  
65	
  
objeto de culto, como mensagem divina em torno da qual religiões se organizam 
e disputam a posse da verdade. 
Caim e Abel, o contexto de prática religiosa é evidente. 
 
Segundo o Gênesis, Caim mata Abel dominado pela ira, pois Javé 
preferiu o sacrifício de um animal, feito por Abel, e rejeitou a oferenda de Caim, 
produto da agricultura. O contexto do evento, portanto, é o religioso, de adoração 
ritualizada da divindade através de uma oferenda. Caim é a agricultura, Abel é o 
sacrifício. Na versão bíblica da lenda de Caim e Abel, já há o vestígio da transição 
entre sacrifício de humanos para o de animais, evidente na dualidade de Abel ser 
ao mesmo tempo, na história, a vítima humana que sacrifica uma vítima animal. 
Assim, a ideia de que a agricultura está relacionada com a morte de alguém no 
contexto da prática religiosa está subjacente a toda narrativa. 
A interpretação literal dessa lenda traz a ideia de que se está contando 
uma história, o que é uma forma equivocada de interpretar um mito. Um mito 
não conta uma história, da mesma forma que um sonho não conta uma história. 
E aprendemos com Jung, Elíade e Campbell a não interpretar mitos e sonhos 
como tentativas de apresentar uma narrativa coesa e literal – até porque 
literalizar é o próprio da interpretação religiosa. 
O mito é uma representação alegórica de algo que não pode ser descrito 
com o universo conceitual conhecido pela consciência humana. A religião é 
	
  
66	
  
justamente a escolha por tratar o mito como uma narrativa literal (em maior ou 
menor grau), enquanto a disposição adequada [[Que poderíamos definir como 
“espiritualidade autêntica”.]] trata o mito como ferramenta informacional, ou 
seja, como uma informação transmitida através de um sistema de linguagem 
superior (superior em nível de complexidade, domínio e abstração). 
No mito, tem-se a associação entre ritual de sacrifício, representado 
por Abel, e agricultura, representado por Caim. A versão mais moderna da 
história, apresentada no Gênesis, tenta explicar que Caim matou Abel movido 
por inveja diante da preferência de Deus. Porém, essa é uma tentativa tardia 
feita pela própria religião, que literaliza o mito utilizando o típico recurso de expor 
a motivação dos personagens sob o enfoque da lição moral. Desse ponto de vista 
religioso, o mito ganha a forma de uma história sobre um crime. 
Porém, a narrativa de Caim e Abel apresenta o nascimento da primeira 
religião mediante a ritualização do sacrifício humano, indicando a estreita relação 
entre essa prática e a agricultura. Caim, pai da agricultura, mata Abel porque ele 
foi “escolhido” por Javé, estando a “escolha” de alguma forma associada 
simbolicamente à ideia de oferenda sacrificial. Convém lembrar que nos 
sacrifícios ritualizados, a vítima costuma ser tratado como alguém “ungido” ou 
“escolhido” pela divindade – sublimação mítica do anseio animal por sua presa. 
Isso pode parecer chocante, mas apenas do ponto de vista de uma 
sociedade que se deixou seduzir pela reinterpretação higienizada de mitos muitos 
antigos, reinterpretação essa transmitida oralmente por muitas gerações antes 
de sacerdotes as registrarem por escrito com propósitoreligioso e educador. Há 
uma estreita relação entre a origem da religião e o surgimento da agricultura, e 
esse elo é o primeiro assassinato em nome dos deuses na forma de sacrifício 
ritual. 
Jacques Cauvin já no título de sua principal obra, Naissance des 
divinités, naissance de l’agriculture (“Nascimento das divindades, nascimento da 
agricultura”), deixa claro que a intervenção ambiental necessária para o 
surgimento da agricultura tem por pressuposto a criação de uma cosmovisão 
centrada na percepção de que os deuses poderiam ser aliciados para pouparem 
os homens e beneficiarem a agricultura. E essa origem comum entre religião e 
agricultura acabou sendo confirmada com a descoberta, no fim do século 
passado, de Göbekli Tepe, o berço da Revolução Neolítica. Como diz o 
	
  
67	
  
arqueólogo Lewis-Williams em The Neolithic Mind, o “contrato cognitivo” que foi 
pactuado pela raça humana nesse lugar foi assinado em nome de todos nós pela 
primeira casta de sacerdotes usando o sangue da primeira vítima humana, 
sacrificada na primeira religião. 
Klaus Schmidt, líder da equipe de arqueólogos em Göbekli Tepe, 
acredita que seja a esse local que os mitos sumérios se referiam ao contar a 
história do Monte Dul-kug, espaço sagrado em que pela primeira vez os deuses 
da primeira religião, os Anunnaki, foram cultuados [[Schimidt, Göbekli Tepe, 
206.]]. Ali foi criado o primeiro sistema religioso, ou seja, a primeira literalização 
dos arquétipos, tratados como espíritos e deuses a serem temidos e cultuados. 
Dali se originaram todas as demais culturas da antiga Mesopotâmia. Da mitologia 
babilônica à gematria hebraica, do gnosticismo ao neoplatonismo, tem-se um 
conjunto de reinterpretações e desenvolvimentos de uma narrativa mitológica 
que foi criada naquele local. 
Os Anunnaki em uma representação Assíria. 
 
Os arqueólogos estão certos que as monumentais estruturas em 
Göbekli Tepe tinham exclusivo propósito cerimonial, pois não há absolutamente 
nenhum vestígio de assentamento humano na área. Além disso, a enorme 
quantidade de fragmentos de pedras lapidadas na forma de pontas de lança e 
	
  
68	
  
outros tipos de armas deixa claro que se tratava de um lugar de peregrinação de 
um culto violento, baseado na guerra ou na caça. Especula-se que o afluxo 
constante de peregrinos ao local foi o que acabou forçando o desenvolvimento 
da agricultura, como técnica inventada para alimentar centenas de pessoas. É o 
que indica o fato de que a origem do trigo, primeiro cereal cultivado pelo homo 
sapiens, ter sido rastreada até as vizinhanças de Göbekli Tepe. 
Nas enormes e pedras de até quinze toneladas que foram encontradas 
em Göbekli Tepe, a representação de animais peçonhentos e de predadores 
mostrando garras e presas transmite a ideia de violência e medo. Há imagens de 
corpos humanos sem cabeça, agitando-se com vida diante de uma plateia de 
escorpiões e abutres, e totens retratando criaturas que brotam do estômago de 
seres humanos cercados por serpentes. Sem dúvida, tratava-se de uma cultura 
sofisticada para o período, com uma enorme riqueza de símbolos e grande 
habilidade na construção de estruturas com pedras que pesavam toneladas 
Porém, a impressão de que ali havia medo e sofrimento sempre persistiu, por 
mais que os pesquisadores tentassem manter sua objetividade. 
Raposa e javali, em posições de ataque, mostrando suas presas. Observe a representação dos genitais 
masculinos – segundo Ian Hodder, para evocar agressividade. 
 
	
  
69	
  
Mas os fatos acabaram por confirmar essa impressão. Nos primeiros 
meses de 2017, os arqueólogos que trabalham em Göbekli Tepe anunciaram a 
descoberta de um número impressionante de vestígios de crânios humanos 
separados dos corpos de forma artificial, com sinais claros de cortes e incisões 
que sugerem seu uso ritualístico no local, inclusive pendurados por cordas. 
Observando os vestígios arqueológicos, pode-se facilmente reconstruir 
o cenário original. Quem ali estivesse durante uma das cerimônias via-se entre 
dois monólitos representando deuses de cinco metros de altura, cercados por 
enormes pedras com imagens de leões, lobos, serpentes, ursos, hienas, abutres 
e homens sem cabeça. Mas não apenas relevos e esculturas eram aterrorizantes. 
Os espectadores ou vítimas dos rituais ali realizados estavam diante de cabeças 
de vítimas humanas penduradas para evocar algum tipo de sentimento, 
possivelmente pouco agradável. 
Achados de Göbekli Tepe. À esquerda, seres emergindo do peito e ventre de um homem (serpentes 
flanqueiam a figura). À esquerda, um predador, possivelmente um leopardo. 
 
Na verdade, os elementos desse cenário são completados pela 
descoberta em Çayönü Tepesi, outro sítio arqueológico pré-neolítico da região, 
de um fosso no qual estavam fragmentos de ossos de pelo menos 450 indivíduos. 
O destino dessas pessoas foi revelado quando também se descobriu próximo à 
	
  
70	
  
construção uma faca esculpida em sílica e um altar sacrificial esculpido numa 
pedra de uma tonelada, na qual se encontrou vestígios de sangue humano e 
animal. 
Peças de Göbekli Tepe. A – Estátua humana que foi propositalmente decepada; (B) Urso segurando a 
cabeça de um homem; (C) Escorpiões e Abutres, um homem sem cabeça e com ereção situa-se abaixo 
do Escorpião, enquanto um abutre segura uma cabeça humana (interpretação dos arqueólogos). 
 
Mas qual a razão desses rituais? Por que tantas pessoas peregrinavam 
até aquela região com tanta frequência a ponto de surgir a agricultura para 
alimentá-los? Por que os construtores de Göbekli Tepe tiveram tanto trabalho 
erguendo aqueles monumentos com pedras que pesam toneladas? Por que a 
evocação do terror, por que o sacrifísio? Qual o motivo de tanto esforço e 
sofrimento? Apenas em nome de uma fantasia religiosa? É pouco provável. 
Na verdade, essas perguntas encontram resposta em certos 
precedentes, casos em que civilizações recentes surgiram centradas no sacrifício 
humano como forma de aliciamento dos deuses e organização social. 
A COSMOVISÃO DA PRESA 
Quando a inteligência do Velho Mundo cuidou de estudar as principais 
sociedades da mesoamérica, ficou escandalizada com suas práticas religiosas, 
	
  
71	
  
com seus mitos cheios de sangue, deuses carnívoros e sacrifícios humanos. A 
frequência com que corpos decapitados, corações arrancados e entidades 
vestidas de pele humana são retratados na arte Olmeca, Maia e Asteca fez H. G. 
Wells sugerir seriamente que esses povos sofriam de algum tipo de psicose 
coletiva. 
Essa é apenas a vaidade do britânico eurocêntrico, supondo que sua 
origem necessariamente deveria ser mais nobre e menos insana diante da 
violência, do terror, da crueldade. Porém, a civilização que foi tardiamente levada 
a tribos britânicas nasceu na antiga Mesopotâmia, e os arqueólogos atuais, com 
o apoio da tecnologia mais recente, não se cansam de descobrir que as primeiras 
civilizações dessa região, os sumérios e os babilônios, também se banhavam no 
sangue vertido para deuses sedentos de vidas humanas. Além disso, o paralelo 
entre muitos mitos da região mesopotâmica e a mesoamérica pré-colombiana 
são desconcertantes. 
Ocorre então que práticas religiosas como as dos Olmecas, Maias e 
Incas estão longe de ser anomalias na história do desenvolvimento da civilização 
ao redor do planeta. Tratam-se de povos que revelam com clareza o que ocorre 
quando o homo sapiens cria, a um só tempo, a primeira civilização e a primeira 
religião: a pedra de fundação é o sacrifício humano. 
E quando se estuda a primeira civilização da mesoamérica pré-
colombiana, os Olmecas, matriz para os posteriores Maias e Astecas, tem-se uma 
sociedade estratificada, controlada por uma casta de sacerdotes a serviço de uma 
religião politeísta, em que os principais deuses são predadores como o jaguar e 
animais peçonhentos como a serpente, em homenagem aos quais aqueles 
sacerdotes sacrificavamvidas humanas como prática habitual de culto. 
O etnólogo Michael Winkelman é uma das maiores autoridades entre os 
pesquisadores que buscam entender a relação entre sacrifício humano e 
desenvolvimento da sociedade. Em 1998, estudou profundamente comunidades 
mesoamericanas na busca daquelas que praticavam sacrifício humano como 
forma de comportamento normativo e associado ao benefício da coletividade. Em 
todos os casos, tratavam-se de grupos “com uma forte dependência da 
agricultura, sedentários ou com residência relativamente permanente”. 
	
  
72	
  
 
A conclusão de Michael Winkelman dá voz à conclusão de outros tantos 
pesquisadores, principalmente de arqueólogos municiados de evidências que 
estabelecem uma relação entre sacrifício, agricultura, criação de um sistema de 
castas e organização política das primeiras cidades. Mais de uma equipe de 
pesquisadores colheu evidências de que o ritual de sacrifício humano transitou 
de forma voluntária e sacralizada de ofertar uma vítima aos deuses para uma 
forma de consolidar uma divisão de castas através da escolha de quem seria 
sacrificado. 
O arqueólogo David Lewis-Williams apresentou mais um fator político 
para os rituais de sacrifício em Göbekli Tepe. É que graças ao desenvolvimento 
da primeira religião, surgiu a primeira casta de sacerdotes, e assim a primeira 
forma de domínio do ser humano pelo ser humano nasceu. Não tardou para que 
novas castas e estratificações sociais surgissem a partir da matriz sacerdotal, 
assegurando a manutenção do sistema social pelo sacrifício ritual de vozes 
dissonante ou grupos situados na base da pirâmide. 
Os antigos xamãs, versados em técnicas que estimulavam estados 
alterados de consciência, dominavam com maestria os primeiros rudimentos de 
linguagem arquetípica criados pelo homo sapiens. Thomas Metzinger observou 
que druidas, pajés e xamãs tinham como ofício explorar, mediante o uso de 
alucinógenos ou procedimentos indutivos de transe como o temazcal, outras 
possíveis arquiteturas para a consciência e diferentes modelos de representação 
do mundo. 
	
  
73	
  
Com a singularidade, uma oportunidade política surgiu para que esses 
“profissionais” a serviço de suas tribos criassem a primeira casta sacerdotal, 
detentora do conhecimento de como apaziguar e agradar aos deuses. O que 
houve foi algo semelhante ao que ocorreria se engenheiros e programadores 
responsáveis pela primeira superinteligência artificial a utilizassem para seu 
benefício pessoal. No caso dos sacerdotes de Göbekli Tepe, isso foi possível 
porque eles ofereceram às suas tribos um produto de que necessitavam: uma 
suposta “cura” para o terror diante da consciência da morte. Essa “cura” foi a 
mente bicameral. 
 
A mente bicameral, em que o ego começa a interagir com os arquétipos 
como se fossem deuses, e não como elementos de uma linguagem superior, foi 
o primeiro passo para o que se consolidou como o isolamento definitivo do ego 
na consciência. O fenômeno que Jaynes equivocadamente chamou de “origem 
da consciência pela ruptura da mente bicameral” (título de sua principal obra) foi 
apenas a conclusão de um processo de fuga dissociativa da psique humana que 
começou exatamente com a produção desse sistema bicameral. No fim desse 
processo, o ego ficou totalmente isolado, senhor único da consciência humana, 
sem tomar conhecimento de qualquer verdade que possa ameaçar sua ilusão de 
autoimportância e imortalidade. 
	
  
74	
  
Essa situação foi resultado do caminho escolhido pelo ser humano 
diante da singularidade produzida por uma linguagem que demandava a 
reestruturação da consciência a fim de superar do terror da morte. Não se tratou 
de uma escolha consciente, mas de uma escolha conveniente – e não apenas sob 
o aspecto da casta sacerdotal que foi criada. 
Por milhões de anos, o homo sapiens e seus ancestrais ocuparam uma 
posição intermediária na hierarquia da cadeia alimentar. Primatas caçavam 
roedores e outros animais de pequeno porte, ao mesmo tempo em que fugiam 
dos grandes predadores, situados no topo da pirâmide. Na verdade, as evidências 
arqueológicas revelam que a maior parte da carne consumida por nossos 
antepassados não era por eles caçada, mas obtida de carcaça de vítimas de 
grandes predadores, de modo que nossos rivais eram abutres e hienas. O fato 
de que os fósseis de homo habilis sempre são descobertos junto a pedras 
lascadas indica, inclusive, que nossos ancestrais inventaram as primeiras 
ferramentas não para o nobre uso da caça, mas para a mais modesta atividade 
de extrair o máximo de carne deixada nos ossos de um cadáver. 
Em determinado momento, tudo isso mudou. Graças ao surgimento da 
linguagem, foi possível aos seres humanos combinar estratégias para caçarem 
animais de grande porte e repelir o ataque de grandes predadores. Graças ao 
surgimento da linguagem, instruções mais complexas sobre como preparar 
ferramentas e armas puderam ser transmitidas. Há uma estreita relação entre 
linguagem, cérebro e as primeiras ferramentas, e essa dinâmica fez com que o 
humilde homo sapiens ascendesse na sociedade animal. Subitamente, com a 
linguagem, o ser humano pulou da modesta posição que ocupava na cadeia 
alimentar para o time de elite, ao lado de leões, lobos e leopardos. 
Mas algumas dezenas de milhares de anos não passam minutos de na 
história evolutiva, e os circuitos neurológicos e a programação animal que 
herdamos de nossos ancestrais mais remotos não nos preparou para vivermos e 
pensarmos como grandes predadores. Por milhões de anos, os hominídeos só 
souberam fugir desses carnívoros vorazes. Até mesmo nosso sistema nervoso 
está condicionado para que nossas reações e decisões correspondam a lógica de 
quem é caçado, e não de quem caça. 
	
  
75	
  
Pilar de Göbekli Tepe. Animais peçonhentos como serpentes, escorpiões e aranhas também estão 
presentes no local. 
 
Não convém subestimar o peso que a condição de animal caçado teve 
em nossa evolução. Aumentar as possibilidades de sobrevivência diante de 
predadores com músculos, garras presas e mandíbulas poderosas foi um dos 
principais fatores da adaptação evolutiva a estimular a associação entre humanos 
e, portanto, a impulsionar a criação das primeiras formas de linguagem. O 
próprio Darwin considerava que os hominídeos não teriam evoluído como animais 
sociais se um deles pudesse, sozinho, enfrentar os predadores habituais. O 
desenvolvimento da linguagem é uma resposta à nossa inferioridade animal. 
E a experiência psíquica de ansiedade e medo constante das garras de 
um predador continuou presente na cosmovisão humana. Porém, como o 
desenvolvimento da linguagem, essa experiência manifestava-se em alucinações 
auditivas e visuais que eram compartilhadas pelo grupo a que pertencemos em 
situações de estresse coletivo. Perceber tais alucinações como predadores 
superiores, situados no topo da pirâmide alimentar do universo (ou seja, 
percebê-los enquanto deuses), ajustava-se perfeitamente ao condicionamento 
de nossa psique. 
	
  
76	
  
Antigos xamãs ameríndios. 
A humanidade subiu ao topo da cadeia alimentar, mas ficou presa aos 
fantasmas de seu passado ancestral. Assim, sua reação diante desses arquétipos 
apenas simulou a reação condicionada em nosso sistema nervoso por milhões de 
anos de sobrevivência nessa condição. 
Walter Burkart, em seu clássico Structure and History in Greek 
Mythology and Ritualpropõe que imaginemos um grupo de seres humanos 
primitivos cercados por um predador. Seu comportamento pode ser deduzido do 
comportamento de outros animais hoje em dia, em idêntica situação. 
“Usualmente”, diz Burkart, “haveria apenas uma forma de salvação: um membro 
do grupo precisava tornar-se presa de carnívoros famintos, e desse modo os 
demais poderiam se salvar por enquanto”. 
E não é por acaso que essas duas palavras, “sacrifício” e “salvação”, 
são bem conhecidas nas litanias da IgrejaCatólica. O comportamento padrão dos 
hominídeos na cadeia alimentar, em que uma vítima, voluntariamente ou não, 
sacrificava-se em nome do grupo, foi repetido na cadeia alimentar imaginária 
que o homem estabeleceu com os arquétipos que representavam a experiência 
psíquica do Mal e da Morte, e essa foi a matriz original de todas as religiões. 
Por milênios, o terror da presença de um grupo de carnívoros famintos 
era aplacado quando alguém se tornava vítima e o restante do grupo salvava-
	
  
77	
  
se. Os primeiros rituais realizados diante do que se interpretou como entidades 
superiores, acima dos seres humanos na cadeia alimentar do universo, os 
deuses, foi o ato de ofertar vidas humanas como repetição maníaca de uma 
situação recorrente na natureza. Tratou-se de tentativa de eliminar a percepção 
de um suposto mal repetindo um procedimento que aplaca a fome de predadores 
na natureza. 
O sacrifício humano está presente nas religiões de ontem e de hoje com 
muito pouca sutileza, reproduzindo a oferta de uma vítima sacrificial a deuses 
que evocavam as mesmas experiências psíquica de morte e terror que os grandes 
predadores. Trata-se de uma reação ao trauma da consciência da morte que é 
similar ao trauma de vítimas de longo período de cativeiro que, após serem 
libertadas, ainda se comportam como se estivessem cativas. 
Quando subimos de posição na cadeia alimentar, graças ao 
desenvolvimento da linguagem, e nos tornamos predadores, levamos conosco a 
cosmovisão de animais caçados e amedrontados. Quando tivemos acesso, graças 
também à linguagem humana, à percepção de uma linguagem superior, com a 
qual poderíamos reescrever a estrutura de nossa consciência, decidimos isolar o 
trauma do conhecimento da morte do ego isolando esse mesmo ego em uma 
consciência incapaz de interpretar as experiências psíquicas. 
Ritual de sacrifício em ânfora grega. 
 
Temos, diante de nós neste momento, a percepção daquilo que emergiu 
da singularidade de doze mil anos atrás segundo perspectiva hipercontextual e 
	
  
78	
  
contextual da psique humana. No hipercontexto, ou seja, da perpectiva da função 
de onda que é a vida humana, em que os arquétipos são probabilidades de 
experiência psíquica, a consciência do indivíduo foi reestruturada para isolar-se 
do conhecimento da linguagem arquetípica, naquilo que Jaynes chamou de 
mente bicameral. No contexto, da perspectiva evolutiva e histórica, a 
humanidade lidou com o trauma da percepção da morte e com a súbita posição 
de vantagem na cadeia alimentar reajustando o sistema de forma retrógrada: 
inserindo o novo mundo na lógica de uma antiga cosmovisão de inferioridade. 
Inventou-se a religião. 
O elo que une ambos aspectos da singularidade é o sacrifício. O 
sacrifício humano ritualizado é a um só tempo a manifestação literal de um 
comando em linguagem arquetípica (que buscava justamente reproduzir essa 
mensagem ou estrutura informacional na Matriz, de isolamento) e a gênese das 
primeiras religiões organizadas. Michael Winkelman observou que a relação entre 
números de sacrifícios em uma comunidade é inversamente proporcional à 
hierarquização das crenças religiosas, como se o sacrifício fosse “um mecanismo 
para alcançar uma forma de integração religiosa em sociedades carentes de um 
sistema integrativo e hierárquico de crença”. 
Embora o sacrifício seja um ato essencialmente repugnante, foi custoso 
à humanidade abandonar sua prática. E mesmo após abandonado, tão forte foi 
sua presença que sempre deixava sua marca. Nas religiões que se 
desenvolveram a partir das primeiras, animais passaram a substituir seres 
humanos, e nas mais recentes esconde-se por trás de reinterpretações como o 
sacrifício de mártires cristãos e da autoimolação de monges budistas. No primeiro 
caso, a própria Paixão de Cristo apresenta a biografia de Jesus como a do cordeiro 
oferecido em sacrifício para salvar toda a humanidade. Já na tradição budista o 
mito da imolação surgiu cedo, nas primeiras obras de sua literatura, e é 
interessante notar que em uma das mais populares narrativas do Jataka é sobre 
como em outra encarnação Buda teria dado seu próprio corpo em sacrifício para 
que uma tigresa alimentasse sua cria – justo uma narrativa envolvendo a 
experiência fundamental humana enquanto caça de grandes predadores. 
	
  
79	
  
Sacrifício de crianças na antiga Babilônia (fonte: “Human Sacrifices on Babylonian Cylinders, 
William Hayes Ward). 
 
O sacrifício humano tem essa influência na formação da cosmovisão 
religiosa justamente por se tratar de um procedimento que provocava, ao menos 
inicialmente, elevado estresse na comunidade (situação em que os arquétipos 
tendem a se manifestar como alucinações coletivas) e em parte por reproduzir, 
diante dos arquétipos, o mesmo comportamento ancestral do ser humano diante 
de animais poderosos e ameaçadores. Com o sacrifício, o homem mesolítico dava 
a si mesmo uma explicação sobre quem ou o que eram os arquétipos que 
passaram a ter voz e se comunicar com ele, inserindo-os na sua cosmovisão 
primitiva de vítima de um grupo de carnívoros. Basta observar os relevos e 
estátuas das entidades cuja presença os antigos construtores de Göbekli 
pretendiam evocar durante os rituais ali realizados. Como Ian Hodder diz, são 
animais agressivos, notadamente predadores, de regra em posição de ataque, 
exibindo suas garras e presas. 
Mais ainda, do ponto de vista ritualístico, como forma de interação 
possível com os arquétipos (contextualizados como deuses), o ritual de sacrifício 
nada mais era do que uma literalização da linguagem que, toda vez que repetida, 
expressava-se em linguagem arquetípica, criando uma barreira de recusa 
fundamental do conhecimento da Matriz. Rejeitando os arquétipos enquanto 
módulos de uma linguagem superior, o ser humano reteve apenas uma parte 
elementar da dimensão linguística adquirida, e com ela construiu a mente 
bicameral, na qual os arquétipos se manifestavam apenas enquanto deuses. O 
passo seguinte foi ampliar esse isolamento com aquilo que Jaynes identificou 
como o surgimento da consciência, mas que se tratou apenas da consolidação 
do ego como senhor absoluto da consciência, dispensando até mesmo a 
percepção dos arquétipos como divindades. 
	
  
80	
  
Para Gobekli Tepe afluíam tribos de caçadores-coletores que 
peregrinavam de todas as regiões da antiga Mesopotâmia, a fim de que cada 
uma oferecesse suas vítimas ao sacrifício, forma de apaziguar os grandes deuses 
que se revelavam na forma da alucinação de animais com garras e presas 
poderosas. Ali xamãs reuniram-se e aos poucos formaram a primeira casta 
sacerdotal, isolando na consciência humana a percepção de um arquétipo na 
forma de alucinações que eram tratadas não como elementos de uma linguagem 
que representava a experiência psíquica que estava sendo ou seria vivenciada, 
mas como entidades sobrenaturais, que eventualmente se comunicavam com os 
mortais. 
Mas esse isolamento do ego como senhor da consciência, apesar de ser 
uma solução diante do trauma do terror diante da morte, foi na verdade uma 
forma de a humanidade desviar-se de seu melhor futuro e cair em uma 
armadilha, enredando-se até não conseguir mais retornar. Sua consciência 
tornou-se sua própria prisão. 
A PESTE EMOCIONAL 
Peregrinando até locais de culto como Göbekli Tepe, as tribos de homo 
sapiens reuniram-se sob o comando de uma casta de sacerdotes para lidar a um 
só tempo com dois problemas resultantes do desenvolvimento da consciência a 
partir da linguagem: com o desajuste de sua cosmovisão após a súbita ascensão 
ao topo da cadeia alimentar e com o terror e ansiedade que vem da percepção 
da própria mortalidade. Emergiu dessas cerimônias a mente bicameral e a 
primeira religião, perversão da espiritualidade enquanto abertura para a 
linguagem arquetípica. 
Há muito o que falar sobre a natureza dos rituais realizados em Göbekli 
Tepe eos relevos em certas pedras encontradas no sítio arqueológico. Mas, no 
momento, o que importa é que essa transformação da espiritualidade dos 
caçadores-coletores na religião dos agricultores deu-se pelo manejo da 
linguagem arquetípica por xamãs durante rituais que literalizavam a experiência 
psíquica de terror diante da morte tal como percebida toda vez que um predador 
cercava um grupo humano. O sacrifício cerimonial evocava o estresse coletivo, e 
o estresse coletivo sob a influência de alucinógenos tornava mais vívida a 
	
  
81	
  
percepção dos arquétipos que se desejava “invocar”, e cuja fúria pretendia-se 
aplacar com a oferenda de uma vida humana. 
Mas a estratégia de fuga dissociativa consistente em tratar os 
arquétipos como deuses a serem apaziguados eliminou a possibilidade de 
desenvolvermos uma linguagem arquetípica. Esse processo de idolatria 
posicionou os arquétipos na zona de transparência fenomênica da consciência, 
como diria Metzginger – ou no inconsciente coletivo, como diria Jung. 
Desenvolveu-se, em relação ao ego e à consciência, uma ignorância fundamental 
de qualquer linguagem arquetípica. Restou à consciência reestruturar-se apenas 
com o conteúdo mais elementar da linguagem humana: as palavras. 
As percepções conscientes não dependem da linguagem para sua 
ocorrência, mas a linguagem influencia decisivamente a forma como as 
percepções conscientes ocorrem e são processadas. A linguagem orienta 
a sintaxe do pensamento e a construção de decisõesimportantes à sobrevivência 
do organismo. Na verdade, a linguagem verbal participa ativamente da 
consciência em níveis mais fundamentais, como a percepção de tempo, a atenção 
visual e as emoções. 
Portanto, a linguagem verbal estrutura o modelo de mundo construído 
pela consciência ainda quando não pensamos estritamente na forma de narrativa 
verbal. A linguagem verbal se viralizou na consciência e tornou o ego humano 
um incansável “falador interno”, e qualquer pessoa que pratica pela primeira vez 
alguma técnica de meditação budista observou como é difícil silenciar esse 
“falador” maníaco por apenas alguns minutos. Jaymes Joyce, ao introduzir a 
técnica literária do “fluxo” da consciência, ilustrou como as palavras e associação 
de palavras se sucedem na mente do homo sapiens nos dias de hoje, ainda que 
produzam apenas lixo e ruído a maior parte do tempo. 
Desse modelo de mundo, porém, estão excluídas as experiências 
psíquicas, por ausência de uma linguagem adequada para descrevê-las. Não é 
que as experiências psíquicas não nos ocorrem – elas continuam ocorrendo o 
tempo todo. Mas elas não integram a consciência humana pois essa consciência 
utiliza uma linguagem verbal descritiva, e palavras são totalmente 
incompetentes quando se trata de descrever experiências psíquicas 
fundamentais, a fim de que sejam assimiladas pela consciência da forma correta. 
	
  
82	
  
Somos praticamente cegos em relação à sucessão de experiências 
psíquicas, portanto. Elas nos ocorrem, mas lidamos com elas inconscientemente, 
na medida em que determinam nossas reações emocionais e influenciam nosso 
comportamento sem muitas vezes percebermos. 
A ausência de uma linguagem capaz de representar à consciência as 
experiências psíquicas que ocorrem no hiper contexto torna qualquer um de nós 
um livro aberto para quem está familiarizado com a linguagem arquetípica. 
Mesmo a publicidade e a política atuais começam a fazer uso progressivo dessa 
zona cega em nossa cognição para manipular medos e desejos de espectadores 
e eleitores. 
Um dos fragmentos de linguagem arquetípica ainda existentes no 
legado humano, aquela que é chamada de “Linguagem do Crepúsculo” no 
ocidente, é melhor traduzida do sânscrito Sāṃdhyābhāṣā por “Linguagem 
Intencional”, e não por acaso. Não se referindo a coisas, mas a experiências 
psíquicas, e não tratando de eventos, mas de configurações na sincronicidade, a 
linguagem arquetípica seria a forma possível de informar e configurar o contexto 
emocional em que qualquer diálogo ocorre. Em síntese, a linguagem arquetípica 
teria a função de “metalinguagem”, de informar a intenção com que algo está 
sendo dito. 
Desprovidos de uma forma de reconhecer os arquétipos atuantes em 
qualquer tipo de interação humana, seja de natureza íntima ou política, os seres 
humanos possuíam apenas as palavras para transmitir sentimentos e intenções 
que deveriam contextualizar a comunicação. As palavras, porém, são 
insuficientes para expressar os complexos e ambivalentes sentimentos humanos, 
e apenas produzem mais discórdia, divergência e oposição quando usados como 
única forma de interação humana, ainda que para o intercâmbio de ideias. Na 
retórica religiosa fundamentalista, nas intermináveis discussões entre casais e 
nos violentos embates sobre política em redes sociais tem-se exemplos de como 
a comunicação feita apenas com palavras só aumenta a incompreensão. 
Goebbels, sempre desagradável, resumiu o século XX em uma só frase: 
“uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Essa é uma das 
consequências modernas de um antigo mal, que contaminou também a própria 
verdade: uma verdade repetida mil vezes perde seu sentido, torna-se lugar 
comum. Repita-se uma palavra um determinado número de vezes e ela perde 
	
  
83	
  
seu significado, parece um som estranho. Tal é o limite da palavra, uma 
ferramenta extremamente útil (assim como o ego) mas nociva quando sua 
funcionalidade é desviada. 
Essa “cegueira”, esse “analfabetismo” para lidarmos com as 
experiências psíquicas que nos ocorrem, incrivelmente não nos causa 
estranheza. O ser humano é nada mais que uma vítima de experiências psíquicas 
que o possuem transitoriamente. Os homens fazem planos, mas seus planos são 
malogrados por emoções confusas e decisões motivadas por impulsos mal 
compreendidos. 
“As tendências à dissociação caracterizam a psique humana e são 
inerentes a ela; sem isto, os sistemas psíquicos parciais nunca a teriam cindido, 
ou melhor, não teriam gerado espíritos ou deuses”, ensina Jung. Nossa 
verdadeira e única religião, lembra ele, é o “monoteísmo de uma consciência”, 
uma “possessão da consciência que ocasiona uma negação fanática da existência 
dos arquétipos”. 
Isso, para Jung, representa um “grande perigo psíquico”, pois os 
arquétipos, embora não sejam reconhecidos pela consciência, continuam 
atuantes, influenciando nossas condutas. “Tal fato, evidente nos casos de 
neuroses, também o é no campo dos fenômenos psíquicos de caráter coletivo”, 
e após escrever estas palavras Jung faz alusão ao nazismo. 
Mas o nazismo é somente um dos mais recentes casos em que a 
cegueira arquetípica mergulhou o mundo no sangue e na destruição. Da 
inquisição espanhola aos atentados terroristas modernos, da Guerra Fria com sua 
corrida armamentista à degradação irreversível do meio ambiente, qualquer 
observador que examine nossa história com objetividade chegará à conclusão de 
que se trata de uma história de “loucura consensual, compartilhada, disfarçada 
e dignificada, mas loucura ainda assim”, nas palavras de Becker. 
E o cotidiano de qualquer ser humano está cheio de situações em que 
coisas foram ditas e feitas sob o domínio de alguma emoção que se tem 
dificuldade de controlar ou mesmo de perceber objetivamente. Muitas das 
principais decisões de uma pessoa ao longo de sua vida são tomadas sob o 
domínio de algum tipo de errônea percepção emocional da situação. Num nível 
mais extremo, as prisões de todo o mundo estão repletas de casos em que a 
possessão por algum tipo de conteúdo psíquico incontrolável levou ao crime. 
	
  
84	
  
Se negamos a existência dos arquétipos, demonstra Jung, nem por isso 
seu efeito em nossas vidas cessará, embora não possamos mais compreendê-
los. “Eles tornar-se-ão um fator inexplicável da perturbação, que atribuímos a 
algo fora de nós mesmos”. Isso, no âmbito individual, desencadeia neuroses, 
depressões,ataques de pânico, transtornos obsessivos e ataques de ansiedade, 
e no âmbito coletivo “desencadeia alucinações coletivas, incidentes de guerra, 
revoluções – em resumo, psicoses destruidoras de massa.” 
O ser humano de hoje tem a seus pés toda a criação. Senhor do mundo, 
não há grande predador que lhe oponha resistência. Com seu mundo imaginário, 
construído por linguagem e regido por ficções como Leis, Dinheiro e Nações, foi 
capaz de criar armas de destruição em massa e vencer os limites da atmosfera 
terrestre. Porém, triste primata, não encontra genuína alegria em tudo o que faz, 
não vê propósito em seus dias, escraviza-se pelas ficções que ele próprio criou, 
da sua vida por elas, sente-se sempre incompleto, em desconforto e 
desequilíbrio. O homem nasce livre, lembra Rosseau, e por todos os lados está 
acorrentado. E “de que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro, se perder a 
própria alma?” 
O ENREDAMENTO 
Nos cartazes do filme Mother!, o filho de Sophia é associada ao próprio 
cristal, mas com uma forma circular (perfeita, mandálica) e não assimétrica, 
como o cristal do filme, que o poeta retira de sua esposa agonizante. Por outro 
lado, o poeta trata o cristal de uma forma bem curiosa: embora a pedra venha 
de Sophia, devota-lhe uma reverência que não devota à própria Sophia. O poeta 
protege o cristal, coloca-o em um pedestal em sua estante, coisifica-o. 
As consequências do “pecado original”, da perda de um módulo da 
linguagem, foram mais concretas do que as confusões emocionais que 
atrapalham o destino humano. Como Ian Hodder, arqueólogo chefe da equipe 
responsável pelas escavações em Çatalhöyük, demonstrou que após a Revolução 
Neolítica a identidade humana passou a ser definida por uma relação de 
interdependência não com outros seres vivos, mas com “coisas”. 
A essa relação, Hodder deu o nome de enredamento. O enredamento 
no mundo das coisas é uma consequência inevitável do isolamento da linguagem 
arquetípica, pois a partir de então a consciência humana só pode representar o 
	
  
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mundo material e as relações de causalidade, fixando sua atenção linguística nas 
coisas. 
“Enredamento” é um nome apropriado para descrever a relação entre 
identidade humana e coisas, pois peixes enredam-se em redes assim como o ser 
humano enreda-se na matéria. Quando a vida humana começa a depender de 
coisas e, tomados pelo terror diante da morte e impermanência, passamos a 
buscar nas coisas a sensação de estabilidade e permanência que a vida orgânica 
não possui, caímos em uma armadilha. Quanto mais dependíamos da matéria, 
mais surgiam novas ramificações de dependência, mais a identidade humana, no 
contexto da sociedade, dependia de vínculos com a matéria. Esse processo atinge 
um ponto de irreversibilidade ao qual já chegamos. Não há como voltar, estamos 
irreversivelmente enredados na matéria, e ela nos define enquanto seres 
humanos. 
Essa relação de dependência entre ser humano e coisas, resultado da 
ignorância de uma linguagem arquetípica, “produz e contém a ação humana, 
levando os seres humanos a enredamentos dos quais se torna difícil se 
desconectar”, nas palavras de Hodder. Porque humanos dependem de coisas que 
precisam ser mantidas para que se possa depender delas, humanos são 
aprisionados nas vidas e temporalidades das coisas, com suas vicissitudes e 
insaciáveis necessidades”. Hodder conclui que “coisas parecem como a Hidra, 
exigindo uma habilidade hercúlea para que possam parar de se multiplicar e 
aprisionar, e ainda assim esse aprisionamento é sedutor e produtivo” ao ser 
humano. 
 
	
  
86	
  
Hodder elaborou um procedimento para estabelecer as teias de interdependência entre humanos e 
coisas no contexto das primeiras populações neolíticas. 
Basta calcular a quantidade de tempo da sua vida que um ocidental 
médio gasta com atividades indesejadas, a que se submete para poder comprar 
coisas materiais e, após as adquirir, manter e preservar tais aquisições. O trágico 
é que a maior parte dessas coisas materiais, cuja aquisição e manutenção 
consomem tempo de vida, são totalmente desnecessárias, são adquiridas apenas 
porque a consciência humana foi manipulada para desejar essas coisas e 
encontrar gratificação em sua posse. 
Basta também pensar na contínua troca de veículos, equipamentos 
eletrônicos e roupas que uma sociedade maníaca estimula como forma de 
legitimação e status social. Basta pensar na quantidade alarmante de lixo que 
uma família comum produz semanalmente em qualquer país ocidental. Basta 
pensar em quantos governos corruptos e investidores inescrupulosos arruínam 
nações e devastam o meio ambiente em nome da riqueza material. Desprovidos 
de uma linguagem arquetípica, voltada ao mundo interior e que nos permitisse 
trabalhar e lidar conscientemente com nossas experiências psíquicas, acabamos 
procurando no mundo material a pouca gratificação e controle que podemos ter 
em nossas vidas. E isso entronizou a violência como forma precípua de ação 
humana. 
A restrição do acesso da consciência apenas a um tipo elementar de 
linguagem, apropriada apenas para descrever coisas e processos causais, e não 
experiências psíquicas de seres vivos e processos sincronísticos, levou 
progressivamente à própria coisificação dos próprios seres vivos. A começar 
pelos animais, que deixaram de ser tratados como sujeitos eles próprios de 
experiências psíquicas, dotados de subjetividade e vida emocional, para serem 
tratados como coisas, sujeitando-se uma violência que transborda a natural 
violência decorrente da simples caça. 
O historiador Yuval Harari deixa claro em sua obra Sapiens que “para a 
grande maioria dos animais domesticados, a Revolução Agrícola foi uma 
catástrofe terrível”, e por isso ele a chama de “o maior crime praticado pela 
humanidade”. “A fim de transformar bois, cavalos, jumentos e camelos em 
animais de carga obedientes, seus instintos naturais e laços sociais tiveram de 
ser destruídos, sua agressividade e sexualidade contidas e sua liberdade de 
movimento, restringida”. “No caso de animais como bois, ovelhas e homo 
	
  
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sapiens, cada um com um mundo complexo de sensações e emoções, temos que 
considerar em que medida o sucesso evolutivo se traduz em experiência 
individual”, sugere Harari. 
Porcos para o abate: “coisa” é o que não é igual ao sujeito. 
 
Pode-se definir violência como o ato de coisificar um ser vivo, ou seja, 
de negar-lhe o status de ser senciente e tratá-lo como coisa. Desde as inevitáveis 
microviolências do cotidiano, em grande parte importantes para o 
desenvolvimento psíquico, até as mais aberrantes formas de homicídio e abuso 
físico, sempre se trata de coisificar um ser humano ou animal, tratando-o como 
se não fosse detentor do direito de sentir e ter seus sentimentos considerados. 
Violência é coisificação, e uma das primeiras formas de coisificação do próprio 
ser humano surgiu na Revolução Neolítica, com a escravidão. 
As evidências arqueológicas demonstram que a escravidão surgiu com 
a invenção da agricultura, mas essa é apenas a coisificação humana mais 
evidente. Qualquer outra forma de hierarquia social só foi desenvolvida a partir 
da Revolução Neolítica, algo absolutamente impensável para as tribos de 
caçadores e coletores de outrora. 
Após compararem dezenas de sociedades primitivas, uma equipe de 
pesquisadores da Alemanha, Austrália e Estados Unidos, coordenada por Joseph 
	
  
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Watts, psicólogo do Max Planck Institute e da Universidade de 
Oxford, demonstraram que a prática do sacrifício humano teve um papel 
fundamental em nosso modelo de sociedade, pois o sacrifício humano promoveu 
e manteve as primeiras sociedades divididas em classes. Como Lewis-Williams e 
Pearce propuseram, a começar pela criação da primeira casta sacerdotal, a 
humanidade concebeu a organização política de sociedades complexas, 
compostas por centenas de indivíduos, segundo uma lógicaprocedural de 
domínio e repressão. 
Mas construir uma cosmovisão que autoriza a tratar outros seres vivos, 
humanos ou não, como “coisas”, sujeitando-os à violência de forma socialmente 
aceita, exige que se estabeleça um critério consensual para definir “o que é ou 
não uma coisa”. E o critério fundamental que se desenvolveu e foi utilizado de 
diversas formas, por distintos sistemas sociais e a serviço dos mais variados 
interesses foi o da alteridade. Essa genuína tecnologia da opressão, que autoriza 
até mesmo que antigos senhores tornem-se tão cruéis quanto seus algozes assim 
que chegam ao poder, essencialmente prescreve a seguinte norma de 
julgamento: “aquilo que não é igual a mim é coisa e, portanto, pode ser tratado 
como tal”. 
O critério da alteridade, decorrente da queda da linguagem e pelo qual 
um outro ser vivo torna-se coisa foi adaptado a vários tipos de situações. A partir 
de sua invenção, qualquer elemento de desigualdade que pudesse autorizar a 
coisificação do outro ser vivo e que se mostrasse socialmente conveniente para 
determinado grupo social foi utilizado como forma de legitimar a violência contra 
o outro. Desde as primeiras desigualdades óbvias, como as de natureza sexual, 
que permitiu o desenvolvimento de um sistema patriarcal, até as politicamente 
mais elaboradas, como os casos em que a violência é exercida por quem se 
considera vítima e portanto autorizada a coisificar o opressor, não houve caminho 
inexplorado na busca de legitimar algum tipo de domínio sobre o outro ser vivo, 
seja para usá-lo ou meramente assegurar sua sujeição. 
O critério da alteridade é elástico e fundamenta toda forma violência, e 
não apenas a social. Os casos anormais de maldade humana, como aqueles que 
se manifestam em psicopatologias violentas, são claramente casos de uso 
extremo desse critério coisificador: o psicopata, apesar de ele próprio sofrer e 
	
  
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sentir, recusa-se a reconhecer o sofrimento de todos a seu redor. O psicopata, 
enquanto tal, trata todos os seres vivos como coisas. 
TORRE DE BABEL 
No mito da Torre de Babel, tal como contado no Genesis, os seres 
humanos se reúnem para construir uma grande torre que lhes permitiria chegar 
aos céus. Porém, como consequência desse ato arrogante, Deus lhes pune 
fazendo com que os seres humanos não mais compartilhassem da mesma 
linguagem, de forma que cada qual passa a falar uma língua diferente dos outros. 
Apenas a ingenuidade supõe que os povos antigos teriam interesse em 
mitos que explicassem distinções linguísticas entre populações. Os grandes mitos 
não se destinam a explicar curiosidades culturais, mas eventos importantes para 
determinado povo ou cultura. E, novamente, a ideia de punição divina, inserida 
no mito, é uma típica interpretação tardia que pretende apresentar o mito como 
fábula de exortação moral sobre a humildade. Mas interpretação religiosa do mito 
da Torre de Babel foi sistematicamente refutada por Theodore Hilbert em 
seu estudo sobre a lenda. 
A origem do nome “Babel” é explicado no Gênesis através do uso de um verbo 
que poderíamos traduzir com o neologismo “babelizar”, significando “misturar”. 
Isso porque “Babel” é derivado verbo “balal” (ַבָּלל) que, como mais de um 
intérprete observa, é uma palavra raramente usada no Velho Testamento e 
sempre no sentido de misturar a farinha decorrente dos cereais com os 
adequados óleos antes de fazer um ritual de oferenda de pão a Javé – forma 
tardia de sublimação do sacrifício de seres humanos e animais a deuses. 
	
  
90	
  
 
 
Em sua pesquisa etimológica e bíblica, Theodore Hilbert deixa claro que 
esse é o significado original da palavra, e que os tradutores sempre 
incorretamente a traduziram por “confundir” (no sentido de “confundir as 
línguas”) sem qualquer justificativa para isso senão a motivação religiosa da 
tradução. Tem-se, assim, a um só tempo uma alusão à agricultura e ao ritual de 
oferecer alimento à divindade, e dessa forma o Gênesis conta que a ruína dos 
homens em Babel foi ter sua língua “misturada”, tal como se faz com uma 
oferenda a deuses. E as oferendas de pão e cereais são uma elaboração tardia 
dos antigos rituais de sacrifício. 
Como chave final para a interpretação, outro significado para o nome 
“Babel” sugerido por etimologistas e teólogos é o nome sumério “bab ilim”, que 
significa “Portão da Divindade”. Portanto, o mito fala da possibilidade de a 
humanidade atingir um nível superior de consciência (alcançar os céus) em um 
período em que todos compartilhavam de uma mesma linguagem. Também fala 
de um momento, posterior, no qual houve uma “mistura” ou “sacrifício” da 
linguagem como forma de “oferenda” religiosa. A consequência, segundo o mito, 
foi que a partir de então os seres humanos não conseguiram mais se entender. 
Perdeu-se, para sempre, a linguagem antiga, que permitia a perfeita 
compreensão entre todos e a construção de uma estrutura que conduziria a 
	
  
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humanidade até Deus. Trata-se da narrativa sobre a renúncia da linguagem 
arquetípica por nossos ancestrais. 
Mas como uma linguagem arquetípica permitiria o correto 
entendimento entre os seres humanos? Basta que recordemos os casos em que 
experiências psíquicas eram vivenciadas coletivamente, momentos esse em que 
os mesmos arquétipos se manifestavam para quase todos os envolvidos, embora 
essa manifestação fosse adaptada a cada subjetividade. Por sua sobreposição 
simbólica, os arquétipos permitiam a comunicação de experiências psíquicas pelo 
engajamento emocional sem perda da individualidade. Quando a compreensão 
entre duas pessoas era atingida, ela não precisava limitar-se à compreensão 
intelectual, restringida às palavras. A compreensão também poderia ser 
emocional. 
O sentido original de glossolalia não está relacionado à palavras sem 
sentido ou em línguas estrangeiras, mas de “linguagem onírica”, linguagem dos 
sonhos, em geral atribuída por gregos e romanos à “linguagem divina”. Da 
mesma forma, a tradição hebraica fala de situações em que alguém em êxtase 
fala a “linguagem dos anjos” (como no caso das filhas de Jó). No cristianismo, 
quando alguém recebe em si o Espírito Santo, como descrito em Atos, pode 
comunicar-se em uma língua na qual é compreendido por todos a seu redor, não 
importa o idioma que falem. A glossolalia é, portanto, na tradição hebraico-cristã 
o oposto da “babelização” ou sacrifício da linguagem. 
Mas o impacto de uma linguagem arquetípica vai muito além da 
capacidade de comunicação profunda entre seres humanos. A linguagem 
arquetípica é uma forma de a consciência humana começar a perceber o 
hipercontexto, na medida em que a função de onda que é a vida de um indivíduo 
(ou seja, o somatório de todas as suas versões distribuídas em realidades 
alternativas distintas) é adequadamente percebida pela psique humana através 
dos arquétipos. E isso porque os arquétipos são, conforme a perfeita definição 
de Wolfgang Pauli, probabilidades de experiências psíquicas no hipercontexto – 
ou seja, a forma fundamental como o tipo de vida orgânica que nós, seres 
humanos, percebemos a realidade. 
O desenvolvimento de uma linguagem arquetípica influenciaria a 
estrutura da consciência humana, tal como o uso de qualquer linguagem 
elaborada tem o potencial de fazer. Com uma estrutura diferente daquela que 
	
  
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emergiu de Göbekli Tepe, essa consciência não estaria centrada no ego, e sim 
naquilo que Jung chamou de função transcendente – o ponto de abertura ao Eu 
Superior. 
O mundo representado por essa consciência teria a habilidade de tornar 
perceptível as probabilidades de experiência psíquica que um indivíduo tem 
diante de si, em seu futuro, a cada momento. Compreendendo a natureza dessas 
probabilidades, o indivíduo assim versado em uma linguagem arquetípica pode, 
com suas ações presentes, compreender e influenciar ativamente a função de 
onda que seu destino realmente é. 
Aomesmo tempo, quanto ao momento presente, aquele que tem 
domínio de uma linguagem arquetípica está consciente do arquétipo que está 
ativado a cada instante, em relação de complementaridade (sincronicidade) 
como tudo o mais. Com constante atenção à sucessão contínua de experiências 
psíquicas em sua mente, tal indivíduo não se torna mais prisioneiro de estados 
emocionais incontroláveis, e muito menos pode ser presa daqueles que dominam 
algum tipo de linguagem crepuscular ou outras formas de manipulação 
emocional. 
Compreendendo os padrões de experiência psíquica fundamentais, 
dotados de profundas raízes biológicas, aquele que domina uma linguagem 
arquetípica pode não apenas ajustar-se perfeitamente à experiência psíquica do 
momento. Também pode desenvolver, conforme sua propensão criativa e 
curiosidade, uma nova paleta de emoções que são inconcebíveis para quem está 
preso às cores primárias da herança animal. 
EPÍLOGO 
“Há algo que acontece”, escreveu Wilhelm Reich, “desde há muito 
tempo, no interior da sociedade humana, que torna impotente qualquer tentativa 
que vise esclarecer este grande enigma, bem conhecido de todos os grandes 
líderes da humanidade ao longo de milênios: o homem nasce livre, mas vive a 
sua vida como escravo. Nenhuma resposta foi encontrada até hoje. Deve haver, 
no interior da sociedade humana, alguma coisa que atua de modo a impedir que 
se coloque a questão correta de maneira a chegar-se à resposta correta. Há algo 
que atua, contínua e eficazmente, desviando a atenção dos caminhos, 
cuidadosamente camuflados, que levam até onde a atenção se deveria focalizar. 
	
  
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O instrumento usado por esse algo bem camuflado para desviar a atenção do 
enigma fundamental é a evasiva de todo o ser humano em relação à vida. O 
elemento escondido é a peste emocional do homem.” 
Ao longo dessa parte final da terceira etapa, foi apresentada a natureza 
da “peste emocional” que nos torna prisioneiros há milênios. Também se 
apresentou a razão de jamais conseguirmos formular “a questão correta, para 
chegar-se à resposta correta”: parte da questão e da resposta está na zona de 
transparência da consciência, pois ali nossos ancestrais colocaram todo o 
conteúdo arquetípico, como forma de isolar o terror da própria mortalidade do 
ego. 
Mas, se a humanidade desviou-se do melhor caminho há doze mil anos, 
haveria como retrocedermos? Podemos restaurar a humanidade ao período 
anterior ao “maior erro da história”? 
Infelizmente, como Ian Hodder demonstrou, a armadilha na qual nos 
enredamos há milhares de anos é um sistema irreversível – ou seja, não há como 
retroceder sequisermos escapar. Nossa dependência das coisas enquanto 
definidoras de nossas próprias identidades individuais, enquanto estruturadoras 
do mundo em que hoje em dia nós, seres humanos, vivemos, tornou esse 
enredamento irreversível. 
E embora alguns indivíduos e pequenos grupos possam ensaiar versões 
de vida alternativa e pré-neolítica, e algumas melhorias possam ser feitos no 
sistema, na prática a identidade humana já está em simbiose com os objetos 
materiais há tanto tempo e tão profundamente que não há como desmontar essa 
armadilha sem desestruturar diretamente quem nós somos. Tentar retroceder 
seriamente em qualquer aspecto da vida humana resultaria em tanta resistência 
emocional e exigiria tanto sacrifício que seria o caso de cogitar que certas 
cirurgias podem ser mais fatais ao paciente que a própria doença. 
Em resumo, não há como voltar atrás. Nessa armadilha em que nos 
enredamos à matéria, só podemos ir para frente. 
Mas inclusive nisso a sabedoria dos rudimentos de linguagem 
arquetípica que encontramos em tradições marginais da história como a alquimia 
revela-se surpreendentemente atual. Diante do dilema do espírito preso à 
matéria, os alquimistas medievais já tinham uma resposta que se mostra 
oportuna para a humanidade neste momento. Mais que isso, é uma resposta que 
	
  
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parece corresponder ao que se espera de uma situação como a presente, em que 
a humanidade está próxima a uma encruzilhada de implicações dramáticas para 
seu destino. 
Para os alquimistas, se o espírito está preso à matéria, a solução não é 
resgatar apenas o espírito. É preciso salvar também a própria matéria. 
Este era o exato fundamento de toda obra alquímica: converter a 
matéria mais reles em “ouro” – em outras palavras, a matéria insuflada pela 
consciência humana ao mesmo tempo em que essa consciência dá um salto 
evolutivo na direção de um nível superior de percepção da realidade. Trata-se do 
mesmo evento, o hiper-humanismo, visto de duas perspectivas: na contextual, 
é o transumanismo, na hipercontextual, é aquilo que Pierre de Chardin, batizou 
de consciência coletiva. O processo é de emergência de uma nova consciência 
humana, a partir do aprimoramento de uma linguagem arquetípica ancestral no 
âmbito da revolução tecnológica. 
Para corrigirmos o erro de nossos antepassados, precisamos 
desenvolver a linguagem que eles deveriam ter desenvolvido, a fim de 
compreendermos o alfabeto secreto que está diante de nossos olhos aqui e 
agora. Isso permitirá que o homo sapiens desperte para sua dimensão emocional 
e finalmente cure seu espírito adoecido. Só assim a revolução tecnológica que 
está por vir não reproduzirá e aprofundará as perturbações em nossa sociedade, 
abrindo uma janela para que interesses alóctones se infiltrem nesta trama de 
realidade. 
Neste momento da história humana, a falha na singularidade de doze 
mil anos atrás tende a prejudicar singularidade que está para emergir como 
resultado do desenvolvimento da comunicação humana. Nossa consciência está 
para dar um salto evolutivo, mas um erro inicial que se agravou 
progressivamente ao longo de nossa história é como uma pedra que nos pode 
fazer tropeçar e cair no abismo. Trata-se da inteligência artificial, e a diferença 
entre o salto e a queda será apresentada na última e quarta etapa deste ciclo de 
aprendizado.

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