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LAURENCE BONJOUR ANN BAKER FILOSOFIA TEXTOS FUNDAMENTAIS COMENTADOS 2ª EDIÇÃO B715f BonJour, Laurence. Filosofia : textos fundamentais comentados / Laurence BonJour, Ann Baker ; consultoria e revisão técnica desta edição: Maria Carolina dos Santos Rocha, Roberto Hofmeister Pich. – 2. ed. – Porto Alegre : Artmed, 2010. 776 p. ; 28 cm. ISBN 978-85-363-2119-6 1. Filosofia. I. Baker, Ann. II. Título. CDU 1 Catalogação na publicação: Renata de Souza Borges CRB-10/1922 CONSELHO EDITORIAL DE FILOSOFIA Maria Carolina dos Santos Rocha (Presidente). Professora e Doutora em Filosofia Contemporânea pela ESA/Paris e UFRGS/Brasil. Mestre em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS)/Paris. Fernando José Rodrigues da Rocha. Doutor em Psicolinguística Cognitiva pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, com pós- -doutorados em Filosofia nas Universidades de Kassel, Alemanha, Carnegie Mellon, USA, Católica de Louvain, Bélgica e Marne-la- Vallee, França, Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Lia Levy. Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em História da Filosofia pela Universidade de Paris IV-Sorbonne, França. Mestre em Filosofia pela UFRJ Nestor Luiz João Beck. Diretor de Desenvolvimento da Fundação ULBRA. Doutor em Teologia pelo Concordia Seminary de Saint Louis, Missouri, USA, com pós-doutorado em Teologia Sistemática no Instituto de História Europeia em Mainz, Alemanha. Bacha- rel em Direito. Licenciado em Filosofia. Roberto Hofmeister Pich. Doutor em Filosofia pela Universidade de Bonn, Alemanha. Professor do Programa de Pós-Gradua ção em Filosofia da PUCRS. Valerio Rohden. Doutor e livre-docente em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado na Uni- versidade de Münster, Alemanha. Professor titular de Filosofia na Universidade Luterana do Brasil. EQUIPE DE TRADUÇÃO André Nilo Klaudat. Doutorado em Filosofia, University College London. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Gran- de do Sul. Darlei Dall’Agnol. Doutorado em Filosofia, University of Bristol. Professor Associado I da Universidade Federal de Santa Catarina. Marco Antonio Franciotti. Doutorado em Filosofia pela University of London. Professor Adjunto IV da Universidade Federal de Santa Catarina. Maria Carolina dos Santos Rocha. Doutorado em Filosofia Contemporânea pela ESA/Paris e Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Milene Consenso Tonetto. Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Nelson Fernando Boeira. Doutorado em História, Yale University. Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Roberto Hofmeister Pich. Doutorado em Filosofia, Bonn Universität. Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Filosofia: textos fundamentais comentados 727 O Absurdo5 A maior parte das pessoas sente, ocasionalmente, que a vida é absurda, e algumas sentem isso de forma viva e con- tínua. 1 Todavia, as razões normalmente oferecidas em defesa dessa convicção são visivelmente inadequadas: elas não pode- riam realmente explicar por que a vida é absurda. Por que, então, elas fornecem uma expressão natural para a percepção de que ela o é? 5 Extraído de Mortal Questions (Cambridge, Mass.: Cambridge University Press, 1979). 1 de acordo com nagel, a maioria das pessoas, ao menos algumas vezes, considera a vida absurda, em que isso significa algo como radicalmente fora de sincronia com as expectativas e aspirações humanas. Você (ou talvez alguém que você conheça bem) já teve alguma vez essa experiência? em caso afirmativo, qual foi o conteúdo dela? de que modo ou em qual sentido a vida lhe pareceu absurda? tente ex- plicar essa ideia da maneira mais clara que você puder antes de ver o que nagel tem a dizer sobre isso. pAre 728 laurence bonJour & Ann baker i Considere alguns exemplos. Fre- quentemente, nota-se que nada do que fazemos agora terá importância em um milhão de anos. Porém, se isso for ver- dade, então, pela mesma razão, nada do que será o caso em um milhão de anos tem importância agora. Em particular, não tem importância agora que, em um milhão de anos, nada do que fazemos agora terá importância. Além disso, mes- mo se o que fizéssemos agora tivesse im- portância em um milhão de anos, como isso poderia evitar que as nossas preo- cupações presentes sejam absurdas? Se a sua importância agora não é suficiente para realizar isso, como seria útil se elas tivessem importância daqui a um milhão de anos? Se o que fazemos agora tivesse im- portância em um milhão de anos é algo que poderia fazer a diferença crucial so- mente se o fato de ter importância em um milhão de anos dependesse do fato de ter importância, ponto final. Mas, então, negar que qualquer coisa que aconteça agora terá importância em um milhão de anos é incorrer em petição de princípio com respeito ao fato de ela ter importân- cia, ponto final; afinal, naquele sentido não se pode saber que não terá importân- cia em um milhão de anos se (por exem- plo) alguém agora é feliz ou miserável sem saber que isso não tem importância, ponto final. 2 O que dizemos para comunicar a absurdidade de nossas vidas muitas ve- zes tem a ver com espaço ou tempo: so- mos minúsculos pontinhos na vastidão infinita do universo; a nossa vida é mero instante, mesmo em uma escala de tem- po geológica, para não citar uma escala cósmica; todos nós estaremos mortos a qualquer minuto. Porém, é claro, ne- nhum desses fatos evidentes podem ser aquilo que torna a vida absurda, se ela for absurda. Ora, suponhamos que vivês- semos para sempre; não seria uma vida que é absurda se durar setenta anos ain- da infinitamente mais absurda se duras- se toda a eternidade? E se nossa vida é absurda por causa do nosso presente ta- manho, por que seria ela menos absurdas em qualquer medida se preenchêssemos o universo (ou porque fôssemos maiores ou porque o universo fosse menor)? A reflexão sobre a nossa miudeza e finitu- de parece estar intimamente conectada com a percepção de que a vida não tem sentido, mas não está claro qual é essa conexão. 3 Um outro argumento inadequado é o de que, pelo fato de que vamos morrer, todas as cadeias de justificação devam ser abandonadas em pleno ar: estuda-se e trabalha-se para ganhar dinheiro para pagar roupas, moradia, diversão, alimen- tação, para se sustentar ano após ano, tal- vez para sustentar a família e seguir uma carreira – mas para que fim último? Isso tudo é uma jornada elaborada que não leva a lugar algum. (Também se exercerá alguma influência na vida de outras pes- soas, mas isso simplesmente reproduz o problema, pois elas morrerão também.) Há inúmeras respostas para esse argumento. Primeiro, a vida não consis- te em uma sequência de atividades, cada uma das quais tendo como seu propósito algum membro subsequente da sequên- cia. Cadeias de justificação chegam re- petidamente a um fim ao longo da vida e, se o processo como um todo pode ser justificado, isso não tem relação com a finalidade desses pontos finais. Nenhu- ma justificação posterior é necessária para tornar razoável tomar aspirina para uma dor de cabeça, ir à exibição da obra de um pintor que se admira ou impedir que uma criança ponha a mão sobre a chapa quente. Nenhum contexto mais amplo ou propósito adicional é neces- sário para impedir que esses atos sejam sem propósito. 4 Mesmo que alguém desejasse for- necer uma justificação adicional para buscar todas as coisas na vida que são comumente vistas como autojustifica- doras, essa justificação também teria de terminar em algum lugar. Se nada pode justificar a não ser que seja justificado em termos de algo fora de si mesmo, que também é justificado, então o resultado é um regresso infinito e nenhuma cadeia de justificação pode estar completa. Além disso, se uma cadeia finita de razões não pode justificarcoisa alguma, o que pode- ria ser realizado por uma cadeia infinita, em que cada elo deve ser justificado por referência a algo fora de si próprio? 5 Uma vez que as justificações devem chegar a um fim em algum lugar, nada é ganho ao negar que elas terminam onde elas parecem terminar, a saber, na vida – ou ao tentar subsumir as justificações 2 Que algo “tem importância, ponto final” significa que ele tem importância em si mesmo, fora de qualquer relação com outras coisas (que podem não ter existido) – ter importância, como posteriormente nagel coloca isso, sub specie aeternitatis (desde a eternidade). A maioria das coisas tem importância por causa de sua relação com outras coisas – por exemplo, o dinheiro tem impor- tância por causa daquilo que ele pode oferecer, mas não “tem importância, ponto final”. 3 Há, contrariamente ao que nagel está sugerindo, uma maneira pela qual a “finitude e brevidade” da nossa vida genuina- mente dão suporte à ideia de que ela é absurda – ou sem sentido? (Como nagel deixará claro depois, dizer que a vida não tem sentido não é exatamente a mesma coisa que dizer que ela é absurda, embora as duas alegações estejam intimamente relacionadas.) pAre 4 É bastante comum pensar que o ponto ou propósito de cada ação deve residir em algum fim ou meta adicional, de maneira que, se a cadeia de atos termina (na morte de uma pessoa ou na morte daqueles que eles afetam), então tudo o que alguém fez foi sem propósito. de fato, porém, nagel está alegando que muitas atos têm um propósito ou um sentido em si mesmos, sem que isso dependa de quaisquer fins adicionais. 5 suponha que, como muitas pessoas acreditam, fomos colocados neste planeta por um ser poderoso e que a nossa exis- tência é justificada pela satisfação dos seus propósitos. então, o que, para além dele, justifica os seus propósitos (e isso é requerido caso seja verdadeiro que “nada pode justificar a menos que seja justificado em termos de algo fora de si mesmo”)? Filosofia: textos fundamentais comentados 729 7 de acordo com nagel, a ab- surdidade resulta quando há uma discrepância entre as nos- sas pretensões ou aspirações e a realidade. pense cuidadosamente em como essa descrição aplica-se às situações limitadas descritas aqui. Você consegue pensar em outros exemplos desse tipo? pAre 6 nagel está sugerindo que o argumento a favor da absurdidade da vida falha porque considera sem nenhuma justifica- ção que o único tipo de razão que alguém poderia possivelmente ter para qualquer coisa (dado que uma cadeia infinita de razões é logicamente impossível) ainda não é bom o suficiente. ordinárias de ação múltiplas, frequente- mente triviais, a um único esquema que controla a vida. Podemos ficar mais fa- cilmente satisfeitos do que isso. De fato, através de sua deturpação do processo de justificação, o argumento faz uma exigência vazia. Ele insiste que as razões disponíveis na vida são incompletas, mas sugere, a partir disso, que todas as razões que chegam a um fim são incompletas. Isso torna impossível fornecer quaisquer razões. 6 Os argumentos padrão a favor da absurdidade parecem, portanto, falhar como argumentos. Eu acredito, todavia, que eles tentam expressar algo que é di- fícil de afirmar, mas fundamentalmente correto. ii Na vida comum, uma situação é ab- surda quando ela inclui uma discrepân- cia visível entre pretensão ou aspiração e rea lidade: alguém faz um discurso com- plexo em apoio a uma proposta que já foi aprovada; um criminoso notório torna-se presidente de uma grande fundação fi- lantrópica; você declara o seu amor por telefone para um anúncio gravado; en- quanto você está sendo condecorado, as suas calças caem. 7 Quando uma pessoa encontra-se em uma situação absurda, ela geralmen- te tentará mudá-la, modificando as suas aspirações, tentando trazer a realidade a um melhor acordo com elas ou afastando- -se por completo da situação. Nem sem- pre estamos dispostos a ou somos capa- zes de nos desembaraçar de uma posição cuja absurdidade tornou-se clara para nós. Contudo, é normalmente possível imaginar alguma mudança que remove- ria a absurdidade – independentemente se podemos ou não implementar isso. A percepção de que a vida como um todo é absurda chega quando percebemos, talvez obscuramente, uma pretensão ou aspiração mais importante que é insepa- rável da continuação da vida humana e que torna a sua absurdidade inescapável, quase um escape da própria vida. A vida de muitas pessoas é absur- da, temporária ou permanentemente, por razões convencionais que têm a ver com suas ambições particulares, circunstân- cias e relações pessoais. Se há um sen- tido filosófico de absurdidade, contudo, ele deve surgir de uma percepção de algo universal – algum aspecto em que a pre- tensão e a realidade inevitavelmente se chocam para todos nós. Essa condição é suprida, eu argumentarei, pela colisão entre a seriedade com que levamos a nossa vida e a possibilidade perpétua de considerar tudo aquilo sobre o que somos sérios como sendo arbitrário ou aberto à dúvida. Não podemos viver a vida humana sem energia e atenção, nem sem fazer escolhas que mostrem que levamos al- gumas coisas mais a sério do que outras. Entretanto, temos sempre disponível um ponto de vista exterior à forma particular da nossa vida, a partir do qual a serie- dade parece gratuita. Esses dois pontos de vista inescapáveis colidem em nós, e isso é o que torna a vida absurda. É ab- surdo porque ignoramos as dúvidas que sabemos que não podem ser resolvidas, continuando a viver com uma seriedade praticamente não diminuída, apesar de- las. 8 Essa análise exige uma defesa em dois aspectos: primeiro, no que diz res- peito à inevitabilidade da seriedade; se- gundo, no que diz respeito à inescapabili- dade da dúvida. Nós nos levamos a sério tanto se levamos vidas sérias ou não quanto se estamos preocupados primeiramente com fama, prazer, virtude, luxo, triunfo, beleza, justiça, conhecimento, salvação ou a mera sobrevivência. Se levamos a sério as outras pessoas e nos dedicamos a elas, isso só multiplica o problema. A vida humana é repleta de esforço, planos, cálculos, sucessos e fracassos: buscamos a nossa vida com graus variáveis de pregui- ça e energia. Seria diferente se não pudéssemos dar um passo para trás e refletir sobre o processo, mas fôssemos levados de im- pulso a impulso sem autoconsciência. Contudo, os seres humanos não agem somente pelo impulso. Eles são pruden- tes, refletem, medem as consequências, perguntam se o que estão fazendo vale a pena. A sua vida não é apenas repleta de escolhas particulares que se juntam em atividades mais amplas com estru- turas temporais: eles também decidem em termos mais amplos o que buscar e o que evitar, quais prioridades devem estar entre os seus vários objetivos e que tipo 8 Reafirmação/Resumo Que a vida como um todo seja absurda significa que ela envolveria essencialmente uma versão em larga escala desse mesmo tipo de discrepância entre pretensões e realidade. A principal alegação de nagel é que, embora não possamos deixar de levar a sério muitas coisas em nossa vida, há, ao mesmo tempo, sempre disponível um ponto de vista diferente, mais objetivo, a partir do qual essa seriedade parece desabalizada e até mesmo tola. 730 laurence bonJour & Ann baker de pessoas eles querem ser ou se tornar. Alguns homens são confrontados com tais escolhas pelas grandes decisões que tomam de tempos em tempos; alguns meramente por refletir sobre o curso que suas vidas estão tomando como o produ- to de incontáveis pequenas decisões. Eles decidem com quem se casar, qual profis- são seguir, associar-se ou não ao Country Club ou à Resistência; ou podem simples- mente pensar por que continuam sendo vendedores, acadêmicos ou motoristas de táxi e então param de pensar sobre isso depois de um certo período de reflexão inconclusiva.Embora possam ser motivados de ato a ato por aquelas necessidades ime- diatas que a vida lhes apresenta, eles permitem que o processo continue ao aderirem ao sistema geral de hábitos e à forma de vida em que tais motivos têm lugar – ou talvez somente por agarrar-se à própria vida. Gastam quantidades enor- mes de energia, risco e cálculos sobre os detalhes. Pense sobre como um indivíduo normal preocupa-se com a sua aparên- cia, a sua saúde, a sua vida sexual, a sua honestidade emocional, a sua utilidade social, o seu autoconhecimento, a qua- lidade dos seus laços com a família, os colegas e amigos, quão bem ele faz o seu trabalho, se ele entende o mundo e o que está acontecendo nele. Levar uma vida humana é uma ocupação de tempo inte- gral, para a qual todos devotam décadas de preocupações intensas. 9 Esse fato é tão óbvio que é difícil considerá-lo extraordinário e importante. Cada um de nós vive a sua própria vida – vive consigo mesmo 24 horas por dia. O que mais se supõe que ele faça – viver a vida de mais alguém? Os humanos, toda- via, têm a capacidade especial de dar um passo para trás e investigar a si próprios e a vida com a qual estão comprometi- dos, com aquele espanto desprendido que provém de assistir ao esforço de uma formiga em subir um montinho de areia. Sem desenvolver a ilusão de que eles são capazes de escapar de suas posições al- tamente específicas e idiossincráticas, podem ver isso sub specie aeternitatis – e a visão é ao mesmo tempo sóbria e cô- mica. O passo para trás crucial não é to- mado ao pedir-se ainda outra justificação na cadeia e ao fracassar-se em alcançá- -la. As objeções a essa linha de ataque já foram estabelecidas; as justificações che- garam a um fim. Mas isso é precisamente o que fornece uma dúvida universal com o seu objeto. Voltamos atrás para desco- brir que o sistema inteiro de justificação e crítica, que controla nossas escolhas e dá suporte às nossas defesas da racionalida- de, baseia-se em respostas e hábitos que nunca questionamos, que não deveríamos saber como defender sem circularidade e aos quais continuaremos a aderir mesmo depois de terem sido questionados. 10 As coisas que fazemos ou queremos sem razões e sem exigir razões – as coisas que definem o que é uma razão para nós e o que não é – são o ponto de partida do nosso ceticismo. Nós nos vemos do lado de fora, e todas as contingências e espe- cificidades de nossos objetivos e buscas tornam-se claras. No entanto, quando tomamos essa posição e reconhecemos o que fazemos como arbitrário, isso não nos separa da vida, e ali está a nossa ab- surdidade: não no fato de que tal visão externa pode ser tomada de nós, mas no fato de que nós mesmos podemos tomá- -la sem deixarmos de ser as pessoas cujas preocupações últimas são consideradas tão friamente. 11 iii Pode-se tentar escapar dessa posi- ção ao buscar preocupações últimas mais amplas, a partir das quais é impossível dar um passo para trás – a ideia é de que a absurdidade resulta porque o que levamos a sério é algo pequeno, insigni- ficante e individual. Aqueles que procu- ram preencher a sua vida com sentido geralmente anteveem um papel ou uma função em algo mais amplo do que eles mesmos. Portanto, procuram a realização no serviço à sociedade, ao Estado, à revo- lução, ao progresso da história, ao avan- ço da ciência ou da religião e da glória de Deus. Contudo, um papel em um empreen- dimento maior não pode atribuir significa- do a menos que o empreendimento seja ele mesmo significativo. E o seu significa- do deve voltar àquilo que podemos enten- der, ou ele nem mesmo parecerá nos dar aquilo que estamos procurando. Se apren- dêssemos que estávamos sendo criados para fornecer alimento a outras criaturas afeiçoadas à carne humana, que planejas- 9 nagel está correto sobre isso? Você pode pensar em alguém que não busca dessa maneira ao menos algumas partes ou aspectos da sua vida, alguém para quem tem pouca ou nenhuma importância se as coisas acontecem de uma forma em vez de outra? pAre 10 todas as pessoas, de acordo com nagel, têm a capaci- dade de “dar um passo para trás” e de ver a sua vida da “perspectiva da eternidade”, uma perspectiva que transcende os interesses e as preocupações da sua vida ou mesmo da vida humana em geral. A partir dessa perspectiva, assim ele alega, todas as nossas razões para todas as nossas ações estão abertas à dúvida. 11 Assim, podemos pretensa- mente tomar um ponto de vista a partir do qual seja possível reconhecer que todas as nossas ações e os nossos propósitos são arbitrários. e, todavia, continua- mos a nos preocupar seriamente com eles – e é por isso, segundo nagel, que a nossa vida é absurda. (realmente reconhecemos que as coisas com que nos preocupamos são arbitrárias – genuinamente arbitrárias – ou elas meramente parecem arbitrárias daquele ponto de vista? nagel não é claro sobre esse ponto bastante crítico.) Filosofia: textos fundamentais comentados 731 12 A alegação de nagel é a de que fazer uma contribuição para um projeto maior não pode por si só atribuir significado à sua vida – não importa se esse projeto maior tem ou não sentido ou significado. * N. de R.T. Especiaria da culinária francesa pre- parada com carne de galinha embebida em vi- nho. 13 está claro, como nagel ale- ga, que o significado ou a justificação de qualquer propósito maior (ou da fonte daquele propó- sito) sempre pode ser questionada da mesma maneira ao “dar um passo para trás” tal como ele indica? muitas pessoas pensaram que o significado de deus ou dos propósitos de deus não podem ser questionados dessa maneira, mas há alguma razão clara pela qual isso é assim? nagel tem qualquer razão clara a favor da sua alegação contrária? pAre sem nos transformar em costeletas antes que emagrecêssemos muito – mesmo que aprendêssemos que a raça humana havia sido desenvolvida por criadores de ani- mais precisamente para esse propósito –, isso ainda não daria sentido à nossa vida, por duas razões. Primeiro, estaríamos no escuro em relação ao significado da vida daqueles outros seres; segundo, embora pudéssemos admitir que esse papel culi- nário torne a nossa vida significativa para eles, não está claro como ele a tornaria significativa para nós. 12 Reconhecidamente, a forma normal de serviço a um ser superior é diferente disso. Supõe-se que se contemple e par- tilhe da glória de Deus, por exemplo, de um modo em que os galináceos não compartilham da glória do coq au vin.* O mesmo é verdadeiro a respeito do serviço a um estado, um movimento ou uma re- volução. As pessoas podem chegar a sen- tir, quando elas são parte de algo maior, que isso é parte delas também. Elas se preocupam menos com o que é peculiar a si mesmas, mas se identificam o bastante com o empreendimento maior de encon- trar o seu papel na realização daquilo. Contudo, qualquer propósito maior desse tipo pode ser posto em dúvida, as- sim como os objetivos de uma vida indi- vidual podem ser e pelas mesmas razões. É tão legítimo encontrar justificação úl- tima ali quanto encontrá-la antes, entre os detalhes da vida individual. Todavia, isso não altera o fato de que as justifica- ções chegam a um fim quando estamos satisfeitos em ter chegado ao fim delas – quando não julgamos necessário seguir procurando adiante. Se podemos dar um passo para trás dos propósitos da vida in- dividual e duvidar do seu propósito, tam- bém podemos dar um passo para trás do progresso da história humana, da ciência, do sucesso de uma sociedade ou do reino, do poder e da glória de Deus, questionan- do todas essas coisas da mesma maneira. 13 O que nos parece conferir sentido, jus- tificação, significado, faz isso em virtude do fato de que não precisamos de mais razões depois de um certo ponto. O que torna a dúvida inescapável em relação aos objetivos limitados da vida individual também a torna inesca- pável em relaçãoa qualquer propósito maior que estimule a percepção de que a vida é significativa. Uma vez que a dú- vida fundamental teve começo, ela não pode ser deixada de lado. Camus afirma em O mito de Sísifo que o absurdo surge porque o mundo fa- lha em satisfazer as nossas demandas por sentido. Isso sugere que o mundo poderia satisfazer aquelas demandas se ele fosse diferente. Porém, agora podemos ver que esse não é o caso. Parece não haver qualquer mundo concebível (que contém a nós) sobre o qual não poderiam surgir dúvidas irresolúveis. Consequentemente, a absurdidade da nossa situação deriva não de uma colisão entre as nossas ex- pectativas e o mundo, mas de uma coli- são dentro de nós mesmos. 14 iv Pode-se objetar que o ponto de vista a partir do qual essas dúvidas su- postamente são percebidas não existe – que, se tomamos o recomendado passo para trás, aterrissamos em ar rarefeito, sem qualquer base para julgar as respos- tas naturais que supostamente estamos verificando. Se mantivermos os nossos padrões usuais a respeito do que é im- portante, então as questões sobre o sig- nificado do que estamos fazendo com a nossa vida serão respondidas no sentido usual. No entanto, se não os mantiver- mos, então aquelas questões não podem significar nada para nós, dado que não há mais qualquer conteúdo para a ideia daquilo que tem importância e, portan- to, nenhum conteúdo para a ideia de que nada tem importância. 15 Todavia, essa objeção deturpa a natureza do passo para trás. Não se su- põe que ele nos dê um entendimento do que é realmente importante, de modo que vemos por contraste que a nos- sa vida é sem significado. No decorrer dessas reflexões, nunca abandonamos o padrão normal que guia a nossa vida. Meramente as observamos em operação e reconhecemos que, se elas são ques- tionadas, podemos inutilmente justificá- -las apenas por referência a elas mes- mas. Aderimos a elas devido ao modo como somos constituídos; o que nos pa- rece importante, sério ou valoroso não 14 Assim, a alegação de nagel não é somente que a procura por sentido ou significado inquestionáveis em nossas vidas pode falhar, dependendo exata- mente de como é a realidade, mas sim que o fracasso é garantido. estamos condenados para sempre a tentar encontrar uma maneira pela qual a nossa vida possa ter sentido ao final, embora, ao mes- mo tempo, vejamos claramente que isso não pode ser feito. 15 essa é a objeção mais séria à concepção de nagel. ela alega que a suposta perspectiva a partir da qual podemos legiti- mamente questionar os padrões de significado, pelos quais nor- malmente avaliamos a nossa vida, em realidade não existe, porque não há nenhuma base alternativa para avaliar o significado à qual possamos apelar. 732 laurence bonJour & Ann baker nos pareceria assim se fôssemos diferen- temente constituídos. 16 Na vida comum, com certeza, não julgamos uma situação absurda a menos que tenhamos em mente alguns padrões de seriedade, significado ou harmonia com os quais o absurdo pode ser con- trastado. Esse contraste não é implicado pelo julgamento filosófico da absurdi- dade, e pode-se pensar que isso torna o conceito inadequado para a expres- são de tais julgamentos. Isso, contudo, não é assim, pois o julgamento filosó- fico depende de outro contraste que o torne uma extensão natural a partir de casos mais comuns. Ele se afasta destes somente ao contrastar as pretensões da vida com um contexto mais amplo, em que nenhum padrão pode ser descober- to, a não ser com um contexto a partir do qual padrões alternativos, que se so- brepõem, podem ser aplicados. 17 ... vi Quando nos vemos de uma perspec- tiva mais ampla do que aquela que po- demos ocupar em carne e osso, nós nos tornamos espectadores de nossa própria vida. Não podemos fazer muito como meros espectadores de nossas próprias vidas, então continuamos a levá-las e a nos dedicar ao que somos ao mesmo tem- po capazes de ver como não mais do que uma curiosidade, como o ritual de uma religião estranha. Isso explica por que o sentido de absurdidade encontra a sua expressão natural naqueles argumentos ruins com os quais a discussão começou. A referên- cia ao nosso tamanho pequeno e à curta duração da vida e ao fato de que toda a espécie humana eventualmente desa- parecerá no final sem deixar um traço são metáforas para o passo para trás que nos permite considerar a nós mes- mos a partir de fora e descobrir a forma particular de nossa vida como curiosa e ligeiramente surpreendente. Ao fingir uma visão turva como essa, ilustramos a capacidade de nos vermos sem pres- suposições, como ocupantes arbitrários, idiossincráticos, altamente específicos do mundo, uma das incontáveis formas possíveis de vida. 18 Antes de voltar à questão relativa a se a absurdidade de nossa vida é algo a ser lamentado e se possível evitado, deixem-me considerar o que teria de ser abandonado no intuito de evitar isso. Por que a vida de um camundon- go não é absurda? A órbita da lua não é um absurdo também, mas isso não envolve quaisquer buscas ou objetivos. Um camundongo, contudo, tem de tra- balhar para ficar vivo. Todavia, ele não é absurdo, porque não tem a capacidade de autoconsciência e autotranscendência que o capacitaria a ver que ele é apenas um camundongo. Se isso acontecesse, a vida dele se tornaria absurda, pois a au- toconsciência não o faria deixar de ser um camundongo e não o capacitaria a elevar-se acima de suas preocupações de camundongo. Trazendo consigo a sua au- toconsciência recém-descoberta, ele teria de voltar à sua vida escassa, ainda que frenética, cheio de dúvidas a que ele foi incapaz de responder, mas também cheio de propósitos que ele não foi capaz de abandonar. 19 Já que o passo transcendental é natural a nós, humanos, podemos evitar a absurdidade recusando tomar aque- le passo e permanecendo inteiramente dentro de nossa vida sublunar? Bem, não podemos recusar conscientemente, pois para fazer isso teríamos de estar cientes do ponto de vista que estávamos recu- sando adotar. A única maneira de evitar a autoconsciência relevante seria ou nunca atingi-la ou esquecê-la – nenhuma das duas pode ser alcançada pela vontade. Por outro lado, é possível dedicar es- forços a uma tentativa de destruir o outro componente do absurdo – abandonando a vida humana, individual, terrena, no intuito de identificar-se o mais completa- mente possível com aquele ponto de vista universal segundo o qual a vida humana parece arbitrária e trivial. (Esse parece ser o ideal de certas religiões orientais.) Se alguém for bem-sucedido, terá então de arrastar a consciência superior através de uma vida mundana estrênua, e a ab- surdidade será diminuída. Contudo, na medida em que esse autodefinhamento é o resultado de esfor- ço, de força de vontade, de ascetismo, e assim por diante, ele requer que alguém leve a si mesmo a sério como indivíduo – que queira despender considerável es- forço para evitar ser criatural e absurdo. 16 A primeira resposta de nagel é que a suposta perspectiva não envolve uma base alternativa ou um padrão alternativo, mas em vez disso nos deixa ver que os nossos padrões dependem dos tipos de criaturas que somos e não se aplicaria se fôssemos criaturas de um tipo diferente. (isso é de fato algo que vemos claramente – ou isso é meramente uma possibilidade que não pode ser excluída?) 17 Aqui está o que parece ser uma resposta bastante diferente: de uma perspectiva mais ampla, não há padrões de significado a serem discernidos – alegadamente mostrando-se a partir daí a arbitrariedade dos padrões comuns de significado que empregamos em nossa pers- pectiva mais limitada. (por que deveríamos supor que a perspectiva mais am- pla proporciona a concepção mais acurada, em vez de simplesmente tornar mais difícil ver algo que ainda poderia ser perfeitamente genuíno?) 18 nagel retorna à sugestão, brevemente feitaantes, de que poderiam existir tipos muito diferentes de criaturas, as quais se preocupam com tipos muitos diferentes de coisas. mas por que o fato, se é que ele existe, de que poderia haver criaturas que se preocupam com tipos muito diferentes de coisas é relevante ao fato se eu deveria ou não levar a sério as coisas com as quais me preocupo? 19 o camundongo teria agora dúvidas graves sobre aque- les propósitos que ele não pode abandonar. Antes que ele tivesse aquelas dúvidas, a vida dele não era absurda, mas uma vez que tem as dúvidas a sua vida se torna absurda, dado que ele não pode evitar, apesar disso, buscar seria- mente aqueles propósitos. Filosofia: textos fundamentais comentados 733 Assim, alguém pode minar o objetivo da não mundanidade ao buscá-lo de um modo demasiadamente vigoroso. 20 Não obstante, se alguém simplesmente permi- tir que a sua natureza animal e individual deixe-se conduzir pelo impulso e respon- da a ele, sem fazer da busca pelas suas necessidades um objetivo central e cons- ciente, então esse alguém poderia, a um custo dissociativo considerável, alcançar uma vida que fosse menos absurda do que a maioria. Não seria, é claro, uma vida dotada de sentido também; porém, ela não envolveria o compromisso com uma consciência transcendente na busca assídua de finalidades mundanas. E essa é a condição principal da absurdidade – a subsunção de uma consciência transcen- dente não convencida a um empreendi- mento imanente limitado como uma vida humana. 21 A saída final é o suicídio. No en- tanto, antes de adotar qualquer solução precipitada, seria sábio considerar cui- dadosamente se a absurdidade de nossa existência de fato se apresenta como um problema para o qual alguma solução deve ser encontrada – um modo de li- dar com um desastre prima facie. Essa é certamente a atitude com a qual Camus tratou o assunto, e ela ganha suporte a partir do fato de que todos estamos, em uma escala menor, ansiosos para sair de situações absurdas. Camus – não sob fundamentos uni- formemente bons – rejeita o suicídio e outras soluções que considera escapistas. O que ele recomenda é a provocação* ou o desprezo. Ele parece acreditar que po- demos salvar a nossa dignidade mostran- do os punhos para o mundo, que é surdo às nossas súplicas, e continuar a viver apesar disso. Isso não fará com que nossa vida torne-se não absurda, mas empres- tará a ela uma certa nobreza.6 Isso me parece romântico e ligeira- mente autopiedoso. A nossa absurdidade não autoriza nem tanta aflição nem tanta provocação. Sob o risco de cair em um romantismo por um caminho diferente, argumentarei que a absurdidade é uma das coisas mais humanas que temos: uma manifestação das nossas características mais avançadas e interessantes. (...) ela é possível somente porque possuímos um certo tipo de insight – a capacidade de nos transcendermos em relação a nós mesmos em pensamento. Se uma percepção do absurdo é um modo de perceber a nossa verdadei- ra situação (mesmo que a situação não seja absurda até que a percepção surja), então qual razão podemos ter para nos ressentirmos ou fugir dela? Da mesma forma que a capacidade para o ceticismo epistemológico, ela resulta da habilidade de entender as nossas limitações huma- nas. Não precisa ser uma questão que gere agonia, a não ser que façamos com que seja assim. 22 Nem é preciso que isso evoque um desprezo desrespeitoso pelo destino que permita que nos sintamos corajosos ou orgulhosos. Essa dramatiza- ção, mesmo que conduzida na vida pri- vada, denuncia uma falha em apreciar a insignificância cósmica da situação. Se sub specie aeternitatis não há nenhuma razão para acreditar que qualquer coisa tem importância, então isso também não tem importância, e podemos abordar a nossa vida absurda com ironia em vez de heroísmo ou desespero. 20 A outra maneira de eliminar a absurdidade da vida de alguém é parar de levar a vida tão a sério. Contudo, buscar esse curso tão vigorosamente se auto- anularia, por ser, afinal de contas, um modo de levar a vida a sério. 21 A nossa vida não é absurda meramente porque não tem sentido. o que leva à absurdidade é a dupla apreensão (a) de que a seriedade com que levamos a nossa vida não é justificada e (b) de que não podemos parar de levar a sério a nossa vida. * N. de R.T. No original, defiance. 6 “Sísifo, proletário dos deuses, impotente e rebelde, conhece a dimensão total da sua condição mise- rável: isso é o que ele pensa durante a sua descida. A lucidez que deveria constituir a sua tortura ao mesmo tempo coroa a sua vitória. Não há nenhum destino que não possa ser superado pelo desprezo.” (The Myth of Sisyphus, traduzido por Justin O’Brien [New York: Vintage, 1959], p. 90; publicado ori- ginalmente: Gallimard, 1942.) 22 epicteto aprovaria essa atitude de nagel. Filosofia: textos fundamentais comentados 735 O tópico do interesse próprio* levan- ta questões filosóficas amplas e insisten- tes – mais obviamente a questão “Em que consiste o interesse próprio?”. O concei- to, contudo, em oposição ao conteúdo do interesse próprio parece suficientemente claro. O interesse próprio é o interesse de alguém em seu próprio bem. Agir por interesse próprio é agir pelo motivo de promover o seu próprio bem. Se aquilo que alguém faz é realmente em seu inte- resse próprio depende se isso realmente promove ou, ao menos, minimiza o de- clínio do seu próprio bem. Embora possa ser difícil dizer se uma pessoa está moti- vada pelo interesse próprio em um caso particular, e também seja difícil determi- nar se um dado ato ou uma dada decisão realmente é em seu interesse próprio, o significado das alegações em questão não parece ser problemático. 1 Neste ensaio, a minha principal pre- ocupação é mostrar algo a respeito do con- teúdo do interesse próprio.8 Mais especifi- camente, sustentarei a concepção de que a posse de sentido,** tal como elaborarei, é um elemento importante de uma vida boa. Segue-se, então, que é uma parte de um interesse próprio esclarecido que alguém queira assegurar sentido na sua vida ou, de qualquer modo, permitir e promover uma atividade significativa*** nela. Po- rém, a aceitação dessa concepção substan- cial de interesse próprio carrega consigo uma consequência curiosa: o conceito de interesse próprio, que anteriormente pare- cia ser claro, começa a tornar-se obscuro. Felizmente, ele também parece tornar-se menos importante. 2 teorias do interesse próprio Em Reasons and Persons,9 Derek Parfit distingue três tipos de teorias sobre o interesse próprio – teorias hedonistas, teorias preferencialistas e aquilo que ele chama de “teorias de lista objetiva”. As teorias hedonistas asseguram que o bem de uma pessoa é uma questão da quali- dade percebida de suas experiências. A teoria mais popular do interesse próprio, que identifica o interesse próprio com a felicidade e a felicidade com o prazer e a ausência de dor, é um exemplo primor- dial de teoria hedonista. 3 Contudo, a percepção de que algumas pessoas não cuidam muito de sua própria felicidade – e, de modo importante, que elas nem mesmo consideram a sua própria feli- cidade como o elemento exclusivo em seu próprio bem – tem levado alguns a propor uma teoria de preferências do interesse próprio, que identifica o bem de uma pessoa com aquilo que ela mais quer para si mesma. Assim, por exem- plo, se uma pessoa se importa mais em ser famosa, mesmo que postumamente famosa, do que em ser feliz, então uma teoria de preferências poderia conceder à fama um peso proporcional na iden- tificação do interesse próprio dela. Se uma pessoa se importa mais com o co- nhecimento da verdade do que acreditar naquilo que é prazeroso ou confortável crer, então está no seu interesse próprio saber a verdade, por mais desconfortá- vel que ela possa ser. 4 No entanto, as preferências de uma pessoa em relação a si mesma podem ser autodestrutivasou até mesmo bizarras, e pode ser que algumas coisas (incluindo o prazer) sejam boas para uma pessoa, não importa se ela as prefere ou não. Não é absurdo pensar que ser enganado é ruim para uma pessoa (e, assim, que não ser enganado é bom para uma pes- soa), não importa se a pessoa em questão conscientemente valoriza isso ou não. A amizade e o amor também parecem ser Felicidade e Sentido: Dois Aspectos da Vida Boa7 7 Extraído de Social Philosophy & Policy, v. 14, n. 1 (inverno, 1997). * N. de T. No original, self-interest. 8 A visão descrita e defendida aqui mostra a influência das posições de Aristóteles e John Stuart Mill – e a minha total simpatia por elas. Não posso especificar a minha dívida para com eles; isso está em todo o texto. ** N. de R.T. No original meaningfulness. *** N. de R.T. No original, meaningful activity. 9 Derek Parfit, Reasons and Persons (Oxford: Oxford University Press, 1984). 1 nem sempre é fácil dizer o que realmente motiva al- guém e nem sempre é fácil saber o que é verdadeiramente bom para alguém; contudo, se o ato de alguém for de fato motivado pelo que pensa ser o seu próprio bem, então é um ato de interesse próprio. 2 embora a preocupação última de Wolf (que surge principalmente no final do trabalho) seja com questões pertencentes ao interesse próprio, o cerne do trabalho defende uma concepção particular de vida boa (uma noção que desempenha um papel crucial no argumento dela sobre o interesse próprio). 3 de acordo com uma teoria hedonista, alguém sempre poderia satisfazer seu interesse próprio ao se conectar à máquina de experiência de nozick. 4 tal teoria não impõe limitações nas preferências de uma pessoa. o bem dela foi incrementado na medida em que suas preferências, sejam lá quais forem, são satisfeitas. 736 laurence bonJour & Ann baker coisas cuja bondade explica as prefe- rências das pessoas, em vez de resultar delas. A plausibilidade desses últimos pensamentos explica o apelo das teorias de lista objetiva, de acordo com as quais o bem de uma pessoa inclui ao menos alguns elementos que são independen- tes ou anteriores às suas preferências e ao efeito delas sobre a qualidade perce- bida de sua experiência. Segundo essa visão, há alguns itens, idealmente espe- cificáveis em uma “lista objetiva”, cuja relevância para uma vida plenamente bem-sucedida não é condicionada pela escolha de um indivíduo. 5 A concepção que estarei anteci- pando, a saber, que a posse de sentido é um elemento da vida boa, compromete alguém com uma versão deste último tipo de teoria, pois a minha alegação é de que a posse de sentido é um aspecto não derivativo da vida boa – a sua bon- dade não resulta do fato de que ela nos faz felizes ou do fato de que ela satisfaz as preferências da pessoa cuja vida está em pauta. Assim, segue-se que qualquer teoria que tome o interesse próprio como sendo uma questão completamente sub- jetiva, em um sentido que identifique o interesse próprio com a qualidade subje- tiva das experiências de uma pessoa ou em um sentido que permita os padrões do interesse próprio serem estabeleci- dos pelas preferências subjetivas, deve ser inadequada. Ao mesmo tempo, seria um erro pensar que o bem objetivo que consiste em uma pessoa viver uma vida dotada de sentido* é um bem completa- mente independente das experiências ou preferências subjetivas, como se pudes- se ser bom que uma pessoa vivesse uma vida dotada de sentido, não importa se isso a torna feliz ou satisfaz as suas prefe- rências ou não. De fato, como veremos, a própria ideia de que as atividades podem tornar dotada de sentido uma vida é, sem a confirmação da pessoa, duvidosa. o sentido da vida O que é uma vida dotada de sen- tido? O ponto central do meu trabalho consistirá em explicar isso, pois a minha esperança é que, assim que a ideia for ex- primida, será prontamente aceito que ela é um elemento de uma vida plenamente bem-sucedida. Uma vida dotada de sentido é, an- tes de mais nada, uma vida que tem em si a base para uma resposta afirmativa para as necessidades ou os anseios que são ca- racteristicamente descritos como neces- sários para o sentido. Tenho em mente, por exemplo, o tipo de perguntas que as pessoas fazem em seu leito de morte ou simplesmente na contemplação de sua eventual morte, sobre se as suas vidas foram (ou são) dignas de viver, se tive- ram algum propósito, bem como o tipo de questão que alguém faz quando está considerando o suicídio e perguntam-se se têm alguma razão para seguir adiante. Se elas não são familiares nas próprias experiências pessoais, elas podem ser en- contradas nos romances russos e na filo- sofia existencialista. Embora surjam, em sua maior parte, em momentos de crise e de emoção intensa, elas também têm seu lugar em momentos de calma refle- xão, quando se consideram as escolhas importantes da vida. Além disso, estão prontamente disponíveis em nossa cultu- ra paradigmas daquilo que se pode con- siderar vidas dotadas de sentido e sem sentido. As vidas de grandes realizações morais ou intelectuais – Gandhi, Madre Teresa, Albert Einstein – vêm à mente como vidas que são inquestionavelmente significativas (se alguma o é); vidas de desperdício e isolamento – as “vidas de silencioso desespero” de Thoreau, tipica- mente anônima para o restante de nós, e a figura mítica de Sísifo – representam a falta de sentido.* 6 Para quais características gerais da posse de sentido nos levam essas imagens e como elas fornecem uma resposta para os anseios antes mencionados? Grosso modo, direi que vidas dotadas de sentido são vidas de engajamento ativo em pro- jetos valiosos. É claro que muito precisa ser dito na elaboração dessa afirmação. Deixem-me começar discutindo as duas expressões principais, “engajamento ati- vo” e “projetos valiosos”. Uma pessoa está ativamente enga- jada em algo se ela está ligada, excitada, envolvida com aquilo. Mais obviamente, estamos ativamente engajados nas coisas 5 somente de acordo com esse terceiro tipo de teoria é que o interesse próprio envolve exigências que são objetivas no sentido de que não dependem do que faz um indivíduo particular feliz nem do que ele de fato pre- fere. o que são exatamente essas exigências objetivas depende obviamente do que está na “lista objetiva”. 6 sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar uma pe- dra para cima de uma montanha, simplesmente para deixá-la rolar para baixo, e assim indefinida- mente, pelo resto de sua vida. * N. de R.T. No original, meaningful life. * N. de R.T. No original, meaninglessness. Filosofia: textos fundamentais comentados 737 e com as pessoas pelas quais e por quem somos apaixonados. Os opostos de um compromisso ativo são o tédio e a aliena- ção. Estar ativamente engajado em algo nem sempre é prazeroso no sentido co- mum da palavra. As atividades nas quais as pessoas estão engajadas de forma ativa frequentemente envolvem tensão, peri- go, esforço ou sofrimento (considere, por exemplo, escrever um livro, escalar uma montanha, treinar para uma maratona, cuidar de um amigo doente). Todavia, existe algo bom sobre o sentimento de engajamento: alguém se sente especial- mente vivo (em geral, sem ficar pensan- do acerca disso). 7 Que uma vida dotada de sentido deva envolver “projetos valiosos” será, eu espero, mais controverso, pois a expres- são sugere um comprometimento com al- gum tipo de valor objetivo. Isso não é aci- dental, pois acredito que a ideia da posse de sentido e a preocupação de que as nossas vidas o tenham estão conceitual- mente ligadas a tal comprometimento. De fato, essa é a conexão que quero de- fender, porque não tenho nem uma teoria filosófica do que é o valor objetivo nem uma teoria substantiva sobre o que tem esse tipo de valor. O que está claro para mim é que pode não haver nenhum sig- nificado para a ideia de posse de sentido sem uma distinção entre os modos mais ou menosvaliosos de alguém passar o tempo. O teste do que é valioso é, ao me- nos parcialmente, independente do pra- zer ou das preferências sem fundamento de um sujeito. 8 Primeiro, considere os anseios e as preocupações que as pessoas têm sobre o sentido, as suas ponderações sobre se suas vidas são dotadas de sentido, os seus juramentos de acrescentar mais sentido às suas vidas. O sentido dessas preocupações e resoluções não pode ser completamente capturado por uma ex- plicação na qual o que uma pessoa faz com a sua própria vida é algo que não interessa, contanto que goste dela ou a prefira. Algumas vezes, as pessoas têm preocupações sobre o sentido, apesar de saberem que as suas vidas até o momento têm sido satisfatórias. Certamente, o seu prazer e o seu “engajamento ativo” com as atividades e os valores que elas agora veem como superficiais parecem apenas aumentar o sentimento da falta de senti- do que as aflige. A sua percepção de que as suas vidas até agora têm sido sem sen- tido não pode ser uma percepção de que as suas atividades não foram escolhidas ou divertidas. Quando elas procuram por fontes de sentido ou pelos caminhos para atribuir sentido às suas vidas, elas estão buscando projetos cujas justificações es- tão em outro lugar. Segundo, precisamos de uma ex- plicação referente a por que certos tipos de atividades e envolvimentos parecem- -nos contribuir para a posse de sentido, enquanto outros parecem intuitivamente inapropriados. Pense sobre o que dá sen- tido à sua própria vida, à vida de seus amigos e à vida de seus conhecidos. Entre as coisas que tendem a surgir nessas lis- tas, já mencionei as realizações morais e intelectuais, bem como as atividades em andamento que nos levam a elas. Para a maioria de nós, as relações com os ami- gos e parentes são até mais importantes. As atividades estéticas (criativas e apre- ciativas), o cultivo das virtudes pessoais e as práticas religiosas geralmente contam bastante. Por contraste, seria estranho, até mesmo bizarro, pensar em palavras cruzadas, em seriados ou em um tipo de jogo de computador, acerca do qual es- tou tentando me livrar do vício, como algo que proporciona sentido às nossas vidas, embora não questione que eles nos proporcionem um tipo de satisfação e que são os objetos de escolha. Escolho algumas coisas, como chocolate e aulas de aeróbica, até mesmo por um conside- rável custo (é irrelevante que essas esco- lhas particulares possam ser relativas), de forma que devo considerá-las valiosas em algum sentido. Porém, elas não são o tipo de coisas que tornam a vida digna de viver. Defendo que o “engajamento ativo em projetos valiosos” responde às neces- sidades a que uma explicação do sentido da vida deve dirigir-se. Se uma pessoa está ou esteve assim engajada ativamen- te, então ela tem uma resposta para a questão referente a se a sua vida é ou foi valiosa, se ela tem ou teve um propósito. Quando alguém procura por modos de atribuir sentido para a sua vida, está em busca (embora talvez não sob essa descri- ção) de projetos valiosos pelos quais pos- sa ficar entusiasmado. 9 Esse enfoque também explica por que pensamos em algumas atividades e projetos, e não em outros, como contribuindo para o sentido 7 Assim, não importa o quão objetivamente importante a vida de uma pessoa possa parecer (pense em vários exemplos aqui), essa vida não é dotada de sentido, de acordo com Wolf, se a pessoa está entediada ou apática em relação a ela. 8 suponha, por exemplo, que você realmente goste de contar folhas de grama de dife- rentes gramados. A afirmação de Wolf é que essa atividade deve ter algum valor independente (além do fato que você goste disso) para que ela tenha valor objetivo. (Ver a Questão para discussão 2.) 9 note que você tem de ser capaz de ficar entusiasmado acerca do projeto. se não está entusiasmado, então você não se engajará ativamente, segundo a visão de Wolf. 738 laurence bonJour & Ann baker da vida. Alguns projetos ou atos particu- lares são valiosos, mas também muito en- tediantes ou muito mecânicos para serem fontes de sentido. As pessoas não con- ferem sentido para a vida reciclando ou assinando cheques para a Oxfam e para a ACLU.* Outros atos e atividades, embora altamente prazerosas e profundamente envolventes, como andar de montanha- -russa ou encontrar uma estrela de cine- ma, não parecem ter o tipo certo de valor para contribuir para o sentido da vida. Bernard Williams certa vez distin- guiu desejos categóricos de outros dese- jos. Os desejos categóricos nos dão razão para viver – eles não são estabelecidos sob a suposição de que viveremos. Os tipos de coisas que dão sentido à vida tendem a ser objetos de desejo categórico. Nós os desejamos, ao menos eu assim sugeriria, porque os consideramos valiosos. Eles não são valiosos simplesmente porque os desejamos ou simplesmente porque tor- nam as nossas vidas mais agradáveis. 10 Grosso modo, então, de acordo com a minha proposta, uma vida dotada de sentido deve satisfazer dois critérios adequadamente conectados. Primeiro, deve haver engajamento ativo e, segun- do, esse engajamento deve ser em (ou com) projetos valiosos. Uma vida é sem sentido se falta a ela engajamento ativo com alguma coisa. Uma pessoa que está desanimada ou alienada da maior parte das coisas que está fazendo em sua vida é uma pessoa cuja vida pode ser conside- rada sem sentido. Note que ela pode de fato estar desempenhando funções de va- lor. Uma mãe e dona de casa, um doutor ou um motorista de ônibus podem estar fazendo, com competência, um trabalho socialmente valioso. No entanto, porque não está engajada em seu trabalho (ou, como estamos supondo, por nada mais em sua vida), essa pessoa não tem de- sejos categóricos que lhe forneçam uma razão para viver. Ao mesmo tempo, al- guém que está ativamente engajado pode também viver uma vida sem sentido se os objetos de seu envolvimento são com- pletamente sem valor. É difícil dar exem- plos desse tipo que sejam incontroversos sem ser bizarros. Porém, há exemplos tanto bizarros quanto controversos. Na categoria bizarra, podemos considerar os casos patológicos: alguém cuja pai- xão exclusiva na vida é colecionar tiras de borracha, memorizar o dicionário ou fazer cópias à mão de Guerra e Paz. Os casos controversos incluirão o advogado de uma corporação que sacrifica a saúde e a vida privada pelo sucesso ao longo de sua escalada profissional, o devoto de um culto religioso, ou o criador de porcos que compra mais terra para plantar mais milho, para alimentar mais porcos, para comprar mais terra e plantar mais milho, para criar mais porcos. Podemos resumir o meu propósito no seguinte lema: “O sentido surge quan- do a atração subjetiva encontra a atrati- vidade objetiva”. A ideia é de que, em um mundo em que algumas coisas são mais valiosas do que outras, o sentido surge quando um sujeito descobre ou desen- volve uma afinidade por uma ou várias coisas tipicamente mais valiosas e tanto tem quanto faz uso da oportunidade de se engajar com ela ou com elas de um modo positivo. Uma vantagem do lema é que ele evita, de algum modo, a referência enga- nosa a “projetos”. Esse termo não é ideal em sua sugestão de tarefas bem-definidas e bem-orientadas por fins. Para ser mais exata, muitos projetos de fato atribuem sentido à vida – dominar um campo de estudo, construir uma casa, transformar um brejo em jardim, curar um câncer –, mas grande parte do que dá sentido à vida consiste em relações e envolvimen- tos duradouros, com amigos, com a famí- lia, com a comunidade científica, com a igreja, com o balé ou com o xadrez. Esses aspectos duradouros da vida dão origem e são de certo modo constituídos por pro- jetos – você planeja uma festa surpresa para o seu esposo, treina um pequeno time de uma liga, faz um parecer para o artigo de um periódico –, mas o sen- tido vem menos de projetos individuali- zadosdo que de grandes envolvimentos dos quais eles fazem parte. O lema, além disso, é intencionalmente vago, pois se julgamentos pré-teóricos sobre o sentido até mesmo se aproximam da verdade, en- tão não somente os objetos de valor, mas também os tipos de interação com eles, os quais são capazes de contribuir para o seu sentido, são imensamente variáveis. Alguém pode obter sentido ao criar, pro- mover, proteger coisas (valiosas), ao aju- 10 de acordo com a posição de Wolf, a ordem de depen- dência aqui é muito importante. se você está atraído por algo porque julga que é valioso, então isso pode dar sentido à sua vida. porém, se você julga que isso é valioso meramente porque está atraído por ele e você não tem nenhuma razão além do seu próprio prazer de ser atraído por aquilo, então isso não é capaz de dar sentido à sua vida. * N. de T. American Civil Liberties Union ou União Americana para as Liberdades Civis. Filosofia: textos fundamentais comentados 739 dar as pessoas a quem ama e as pessoas necessitadas, ao alcançar níveis de talen- to e excelência, ao superar obstáculos, ao alcançar entendimento e até mesmo ao desabafar ou apreciar ativamente o que está ali para ser apreciado. 11 É parte da nossa tarefa, se não da nossa tendência natural, como filósofos, sermos céticos – sobre a correção desses julgamentos pré-teóricos, sobre a nossa habilidade confiável para distinguir as atividades significativas das atividades não significativas e sobre a coerência dessa distinção. Não estou muito interes- sada pelas duas primeiras preocupações. Admitindo que as distinções são coeren- tes e que algumas atividades são mais va- liosas do que outras, nossos julgamentos contemporâneos de quais atividades são valiosas, julgamentos esses que são cultu- ralmente limitados, estão condenados a ser parcialmente errôneos. A história está repleta de gênios, artistas, inventores, exploradores desvalorizados, cujas ativi- dades em seu tempo foram desprezadas e de modelos de comportamento e rea- lizações que mais tarde parecem ter sido valorizados. Embora possamos melhorar nossos julgamentos, tanto particulares quanto gerais, através de um esforço não preconceituoso, concentrado e comum para examinar e articular as suas bases (um projeto que me sensibiliza por ser valoroso e intrinsecamente interessan- te), a esperança ou expectativa de que tal exame produzirá um método seguro para distinguir as atividades valiosas das ati- vidades sem valor parece excessivamen- te otimista. Por que respeitamos mais as pessoas que se consagram ao xadrez do que as pessoas que se tornam ganhadoras no pinball? Por que admiramos mais as estrelas do basquete do que os campeões em pular corda? Por que é mais valioso escrever um livro sobre filosofia da lin- guagem do que escrever um livro sobre a vida sexual (de alguma celebridade)? É proveitoso perguntar e responder a tais questões, à medida que podemos, para ampliar e corrigir os nossos horizontes e aumentar o nosso entendimento. Porém, não precisa ser um problema sério nos- sa falta de habilidade para dar respostas completas e adequadas ou para ficarmos confiantes nos detalhes de nossas ava- liações. No final das contas, o ponto de reconhecimento da distinção não é hie- rarquizar vidas dotadas de sentido. Em geral, não há nenhuma necessidade de julgar indivíduos ou até mesmo ativida- des em que as pessoas querem engajar- -se. A questão é, em um nível mais amplo, entender os elementos de nosso próprio bem ou dos outros e ter uma ideia me- lhor do tipo de considerações que forne- cem razões para viver nossa vida de uma maneira em vez de outra. 12 O ponto que estou desenvolvendo é que a posse de sentido é uma parte não derivativa do bem de um indivíduo e que ela consiste em um engajamento ativo em projetos e atividades valiosas. Embora me pareça que esse ponto e grande parte de sua utilidade possa ser sustentado apesar das reconhecidas dificuldades de identifi- car precisamente quais são esses projetos ou atividades, ele poderia ser completa- mente destruído caso se descobrisse que não existem, de modo algum, coisas tais como projetos ou atividades valiosas – caso se descobrisse, em outras palavras, como Bentham pensou, que qualquer jogo infantil é tão bom quanto a poesia, não por causa de alguma excelência não descoberta até agora nos jogos infantis, mas porque a própria ideia de distinção dos valores é falha e incoerente. Se não há projetos valiosos (em contraste com outros projetos), então não há coisas como vidas mais ou menos significativas e, portanto, não pode ser parte do bem de uma pessoa viver uma vida mais dota- da de sentido em vez de uma vida menos dotada de sentido. Se a ideia de que um projeto que vale a pena é uma fraude ou um engano, então a minha posição sobre o interesse próprio está inacabada. 11 É tão fácil ver como as atividades que contribuem para os projetos ou objetivos bem-definidos contam para uma vida dotada de sentido que alguém pode até mesmo falhar em apreciar a importância de atividades mais comuns – aquelas que não contribuem com um projeto específico, mas que ainda são importantes para uma vida dotada de sentido por causa dos relacionamentos e envolvimentos que refletem. 12 Aceitar a distinção entre atividades significativas e não significativas não pressupõe que, na prática, seja fácil distinguir as duas ou que não possam existir casos discutíveis. ela também não exige que você esteja preocupado em hierarquizar a vida de seus amigos e de sua família (e de você mesmo) a esse respeito. Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.