Prévia do material em texto
<p>ise O (sem)lugar do sujeito de nas práticas em saúde IV, IV, Heloisa Helena Marcon Apesar de a Organização Mundial da Saúde ter proposto em a operacionalização do enfoque biopsicossocial mediante a adoção de um modelo multidimensional de funcionalidade e inca- pacidade e de estudos apontarem a necessidade da reintegração da dimensão psicossocial ao ensino e às práticas em saúde (De Marco, 2006; Koifman, 2001), o modelo biomédico segue sendo o modelo hegemônico da medicina na atualidade. Sendo assim, este artigo busca refletir sobre os efeitos do modelo biomédico nas práticas clínicas em saúde, a partir dos recortes clínicos apresentados. Para tanto, retoma a história das concepções de saúde e doença, visando apresentar as diferenças entre o modo de operar da psicanálise e os demais modos de tomar o sujeito, para assim pensar a importância da escuta psicanalítica no hospital e nas instituições de saúde. Como psicanalista num hospital de trauma, recebo pedido de consultoria de um médico da Cirurgia Plástica para avaliar e acom- panhar uma paciente vítima de atropelamento que estava sendo submetida diariamente a lavagens e enxertos nas suas duas pernas. Encontro uma senhora falante, sorridente e vaidosa, que me conta de sua vida e que se mostra aberta a falar sobre sua história. Depois de algumas semanas de atendimentos quase diários, encontro essa paciente muito mal. Além de não conseguir falar nem fixar o olhar, 1. A tradução para o Brasil foi realizada somente em 2003.</p><p>26 Heloisa Helena Marcon (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 27 arrancava pedaços dos enxertos de suas pernas. Após esse encontro, fui de paraplegia. Ele estava acompanhado de sua esposa que, animada conversar com a enfermeira e alertá-la da situação crítica e da condição e decidida, o tempo todo responder às perguntas dirigidas da paciente. Entrei em contato com o médico que a acompanhava e a ele. Após escutá-la durante um tempo, novamente voltei a lançar que solicitou a consultoria, e este me falou que havia conversado com a perguntas para o paciente, ocasião em que ele contou do acidente e paciente naquela mesma tarde e que ela estava ótima, que os enxertos de como estava, quando, então, referiu não sentir as pernas. Nesse estavam "pegando" e que, em poucos dias, ela teria alta. Dessa forma, momento a esposa, fora do campo de visão dele, começou a acenar e a relatei o que eu tinha testemunhado e falei de minha preocupação com fazer sinais para que eu não falasse sobre esse assunto com ele dizendo a condição clínica dela. No dia seguinte, com quadro séptico, segundo que os médicos afirmam coisas que depois não se confirmam, e que ela a avaliação do médico clínico, ela foi para a UTI, onde ficou por meses, conhecia pessoas que voltaram a andar, apesar das sentenças médicas. sendo depois transferida para outro hospital, em estado vegetativo. Então ela começou a repetir várias vezes "nós vamos conseguir"; "nós Nesse contexto coloca-se a pergunta: que fez com que o nos amamos muito"; "estamos juntos há muitos anos"; "afinal, nós médico da Cirurgia Plástica não pudesse enxergar o que se passava somos muito felizes". Algumas semanas depois, a esposa me procurou com a paciente, para além dos enxertos de suas pernas? para fazer queixas sobre o pessoal da enfermagem que, na troca de Numa outra consultoria, fui chamada para avaliar uma paciente, plantão, havia nomeado seu marido de paraplégico na frente dele, vítima de acidente de carro, que não estava aceitando o tratamento relatando que em virtude disso houve diversas discussões entre ela e o e solicitava alta, apesar da gravidade de sua condição clínica. Ela pessoal da enfermagem. Dessa vez, me contou que "no acidente, meu me recebeu agressivamente, dizendo que iria embora e não queria marido estava com sua amante na moto" e que seu casamento "estava conversar. Mesmo assim, acabou falando do acidente em que estavam por um fio", mas, agora, "depois do acidente", "tudo vai ficar bem", já ela, seu marido e suas duas filhas recém-nascidas, ocasião em que que "ele voltou a ser o meu ou seja, dela dependeria para sempre. começou a chorar. Contou-me que sentia angústia e precisava ir Com base no fragmento desse caso, duas perguntas se colocam: embora porque queria cuidar de suas filhas, que estavam internadas será possível a equipe, o familiar e o paciente irem na mesma direção em outro hospital, e porque não tinha certeza do estado de saúde no tratamento? Como pensar que um familiar possa ficar satisfeito do seu marido. Assim, a paciente conseguiu, pouco a pouco, se com a paraplegia do paciente? acalmar; foi quando lhe assegurei de seu direito de ter "alta a pedido", A hipótese aqui sustentada é que o modelo biomédico, que desde que assinasse um termo de responsabilidade por esse pedido. orienta o saber e o fazer da medicina, para se constituir como um saber Perguntei-lhe, então, como faria para cuidar de suas meninas. Nesse objetivo e científico sobre o corpo, excluiu o que é da ordem do sujeito momento ela se dá conta de que não conseguiria. Indaguei sobre o que da subjetividade do doente. Mas o que é excluído acaba retornando ela sabia a respeito do estado de suas filhas e se havia algum familiar e, sem lugar, torna-se um empecilho para a intervenção médica. Para ocupando-se delas, ao que ela respondeu que sua mãe as estava acom- discutir as questões que aqui propomos, apresentaremos um breve panhando no hospital, e que ela sabia cuidar de crianças. Ao final da histórico das concepções de saúde e doença, determinantes para o entrevista, tive a ideia de promover um encontro entre ela e o marido modo de operar da medicina na atualidade. e solicitei à enfermagem que, mais tarde, providenciou o encontro. Essa situação levanta a pergunta: o que se passava entre a paciente, os médicos, a enfermagem e a assistência social uma vez que todos a tomavam como alguém que não queria melhorar, que só História das concepções de saúde e doença atrapalhaya a condução do tratamento? Também sob pedido de consultoria, fui atender, na UTI, um Como qualquer história, também a história dos paradigmas paciente, vítima de acidente de moto, com lesão medular indicativa da medicina pode ser contada de diversos modos, dependendo,</p><p>28 Heloisa Helena Marcon Nr (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 29 sobretudo, do que se quer sublinhar. Assim, é possível partir apenas da efeito do puro mecanismo do corpo (como no mecanicista modelo última ruptura epistemológica, como fizeram Guedes et al. (2006), ou biomédico, como veremos adiante), mas o equilíbrio ou desequilíbrio destacar as rupturas mediante uma perspectiva antropológica, como dos mesmos tinha a ver com a história singular do doente, o que Queiroz (1986). Para acompanharmos a história mais longitudinal- incluía a relação do doente com seu trabalho, sua casa, seu sono, seus mente, inicialmente tomarei a proposta de Barros (2002), que divide as sonhos e até com sua dieta (Barros, 2002). concepções do processo saúde-doença em quatro paradigmas, sendo o modelo biomédico o último deles, mas trarei outras referências que Segundo Hipócrates, o médico confronta-se cada vez com uma história inédita. exame clínico visa, antes de tudo, a reconstituir a nos possibilitarão o aprofundamento de alguns temas de interesse para história singular do doente e prever seus possíveis desdobramentos, o presente trabalho. e não apenas identificar um quadro de entidades mórbidas primeiro paradigma, de acordo com Barros, é o da preestabelecido. Nesse exame, ele serve-se de inúmeros métodos, Antiguidade de modo geral, o qual, por sua vez, é preciso especi- até hoje utilizados: a investigação do aspecto geral do paciente, a ficar em duas distintas abordagens que coexistiam. Uma chamada palpação, a auscultação, ignorando, porém, a percussão. A semiologia de medicina mágico-religiosa, que dizia respeito à leitura em que o hipocrática era global e diferencial. Nenhum sintoma isolado é adoecer era resultado de alguma transgressão individual ou coletiva unívoco. Para tornar-se significativo ele deve ser referenciado, de aos deuses; e a cura feita por feiticeiros ou que visava resta- forma sincrônica, ao aspecto geral do paciente e ao conjunto de outros belecer o laço com a divindade "ofendida". Uma outra abordagem sintomas com os quais vai compor uma síndrome. (Volich, 2000, p. 25) chamada de medicina empírico-racional aparece nos papiros Ou seja, a medicina hipocrática considerava a singularidade de egípcios, que datam de 3.000 anos a.C. até Hipócrates no auge da cada caso, o que quer dizer que formulava categorias gerais, mas não Grécia Clássica (400 anos a.C), e é resultado de um primeiro desvio: o universais, justamente porque os sintomas não eram considerados adoecer foi liberado das influências divinas e passou a ser pensado no unívocos, ou seja, um mesmo sintoma, dependendo do contexto em portador da doença como um fenômeno natural. Essas duas correntes, de acordo com Queiroz (1986), correspondiam, respectivamente, aos que ele está, pode dizer respeito a diferentes enfermidades. Na medida em que o contexto incluía o sujeito e sua história, além dos outros mitos de Hygeia (deusa da saúde) e Asclepius (deus da medicina). sintomas, esse sistema não podia ser aplicado de modo universal, ou Após esse primeiro desvio, passou-se a vislumbrar "a possibilidade de o Homem ser responsável por sua doença" (Volich, 2000, 22). seja, para todos, independentemente de quem se tratava. Hipócrates, considerado o pai da medicina (de um de seus Mas contemporânea à Hipócrates havia uma outra prática escritos se tira o Juramento Médico), com base nas teorias filosóficas médica assentada em pressupostos muito diferentes dos da prática de sua época, propõe a teoria dos humores que associa os quatro hipocrática e cujos membros eram denominados cirurgiões, de acordo elementos da natureza água, terra, fogo e ar - a quatro elementos do com Volich: corpo bile amarela, bile negra, sangue e fleuma e saúde e doença Sua abordagem da doença focalizava os sintomas locais, estabelecendo são pensados, respectivamente, como equilíbrio e desequilíbrio desses o diagnóstico e a nosografia a partir dos órgãos atingidos. (...) os elementos. Segundo Queiroz (1986), a medicina hipocrática sinte- doentes são apresentados de forma impessoal, segundo curtos tizou as duas correntes anteriormente separadas, uma vez que ela se parágrafos que descrevem o nome da doença, os sintomas, sua preocupa tanto com a doença individual como com a manutenção etiologia e o prognóstico. Nessa visão descritiva da doença, não havia da saúde na relação dos homens com um sistema ecológico. A teoria preocupação em compreender sua natureza. (p. 27-28) dos humores é a base da medicina oriental ainda hoje, lembra Barros Nesse sentido, a terapêutica dessa abordagem baseava-se em (2002). Mas esses humores não se modificariam ao capricho dos tratamentos locais e sintomáticos, sem dar importância aos efeitos deuses (como se pensava na medicina mágico-religiosa), nem como colaterais de seus procedimentos.</p><p>30 Heloisa Helena Marcon (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 31 É importante percebermos que, já na Grécia Antiga, para além mecanicista da química do corpo e dos remédios, sem a visão holística da abordagem médico-religiosa, havia duas orientações completa- de Paracelso, como veremos no próximo paradigma. mente diferentes da prática médica empírico-racional. Uma entendia quarto paradigma, na proposta de Barros (2002), é o modelo o funcionamento do organismo como corpo que é afetado pela história biomédico ou mecanicista, abordagem predominante desde o século singular de vida de cada um; a outra lia sinais e sintomas e tratava da XVI até hoje. parte do organismo acometida pela doença, sem estabelecer nenhuma No contexto da saída da Idade Média, a partir do Renascimento, relação do processo de adoecer com o sujeito que adoece. intensificou-se a investigação do substrato material, já que a religião segundo paradigma, para Barros (2002), consiste num apro- e a filosofia cristã não definiam mais totalmente a compreensão de fundamento da abordagem empírico-racional, que foi proposto por corpo humano e de doença. No âmbito médico, Vesalius publicou o Galeno no século II d.C. e predominou até o final da Idade Média, isto primeiro tratado de anatomia humana, De Humanis Corporis Fabrica. é, por 14 séculos. Galeno segue com a teoria dos humores, mas centra A anatomia provocou um novo desvio na prática médica: a vida sua abordagem na ideia do fluxo permanente dos humores, o qual deixou de ser o ponto de partida da clínica médica e o corpo morto era determinado pelo ambiente e pela correta ou incorreta proporção da dissecação de cadáveres, seu inventário e sua nomeação, ocuparam da ingesta alimentar. Galeno trabalhou com o potencial curativo e seu lugar, a ponto de Pierre Fédida falar da "melancolia do anatomista venenoso dos medicamentos. A medicina galênica, de algum modo, moderno", como lembra Volich (2000). Desse modo, esse desvio teve foi no mesmo sentido das idéias de São Tomas de Aquino, principal também o sentido de um segundo desvio do religioso (o primeiro, filósofo do Medievo, e, assim, influenciou a prática médica hegemô- como vimos, ocorreu na Grécia Clássica). De acordo com Queiroz nica na Europa, mas, também por isso, acabou por se transformar em (1986), no século XVII, o corpo humano perdeu seu caráter divino, um dogma e, consequentemente, não foi revisto pelas descobertas que intocável. iam ocorrendo. Queiroz (1986) entende que o paradigma aristotélico Além disso, o desenvolvimento da anestesia e o combate às da unidade orgânica dos seres vivos foi o pressuposto da medicina infecções pós-operatórias permitiram à cirurgia ganhar um lugar de na Idade Média, a doença exprimindo alterações do organismo na destaque na medicina, até chegar à posição que ocupa hoje. relação com seu meio físico e social. "Assim, acreditava-se que, do A possibilidade de eliminar a doença por meio da extirpação de seus mesmo modo como os humores e líquidos do organismo influenciam sintomas ou das partes do corpo atingidas favorecia o deslocamento as virtudes do homem, suas virtudes influenciam os humores" (p. 311). do foco do cuidado do doente, aumentando o risco de negligenciar Conforme Barros (2002), o terceiro paradigma é constituído a compreensão de suas origens e sua dinâmica. (Volich, 2000, p. 36) pelas contribuições de Paracelso, já no século XV d.C., que se colocava Nesse mesmo momento de abertura, provocado pela saída contra a teoria dos humores, isto é, contra a medicina hipocrática do período das trevas, e início do Renascimento, surge Descartes, e a medicina galênica, e propunha "(...) o caráter de entidade inde- precursor do Iluminismo, que, com seu Discurso do método, revo- pendente para a doença a qual necessitaria ser tratada com remédios luciona o modo de produzir conhecimento, podendo, por isso, ser específicos, com frequência, de origem química" No entanto, considerado o ponto de corte para a Modernidade. o sistema médico proposto por Paracelso não era nada simplista, pois Nessa obra, Descartes (1996) propõe um método para aumentar reunia ideias da alquimia, medicina popular, astrologia e sua visão gradualmente seu conhecimento na procura da verdade. E, embora cristã de mundo. Mas tomar a doença como uma entidade indepen- ele mesmo diga que seu propósito não era "ensinar o método que dente a ser tratada com remédios específicos abriu caminho para cada um deve seguir para bem conduzir sua razão" (p. 7), chegando que, um século depois, pudesse surgir uma filosofia química mais a colocar esse escrito como uma fábula, o que acabou acontecendo é prática e mecanicista, ou seja, uma vertente de aplicação prática e que seu modo de conhecer a verdade acabou se consolidando como</p><p>32 Heloisa Helena Marcon (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 33 método científico. Nele estão colocados os quatro preceitos que o A mecânica de Newton, contemporânea à Descartes, foi tomada filósofo resolveu não deixar uma única vez de observar na procura como descrição do modo de funcionamento do corpo humano, pela verdade, a saber: mecânico como o funcionamento de um relógio e suas engrenagens, primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira um corpo-máquina. sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar Barros (2002) dá como exemplo mais ou menos recente do cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus raciocínio mecanicista na medicina o caso da diabetes: descobre-se, juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente em 1889, que a essência dessa enfermidade, a alteração metabólica a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em da insulina, pode ser reproduzida retirando-se o pâncreas; em 1921, dúvida. segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse detectou-se que administrar insulina produzida pelo pâncreas em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor aliviava os sintomas; ou seja, a causa da diabetes é a falta de insulina, resolvê-las. terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, ou, a diabetes é efeito da falta de insulina. começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, A racionalidade moderna com sua insistência na correlação para subir pouco e pouco, como por degraus, até o conhecimento dos causa-efeito, correlação destacada pelo filósofo iluminista Hume e que mais compostos; e supondo certas ordens mesmo entre aqueles que define o paradigma biomédico, substituiu as outras noções de processo não se precedem naturalmente uns aos outros. E, o último, fazer em saúde-doença e, portanto, de corpo. De um corpo que se ligava a uma tudo enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse alma, por exemplo, ou que podia sofrer os efeitos de uma transgressão certeza de nada omitir. 23) por ordem dos deuses, um corpo que se relacionava com o modo de É da aplicação exaustiva do seu primeiro preceito que Descartes vida etc., passa-se a considerar um corpo reduzido a corpo-máquina passou, então, a tomar como falso e, portanto, duvidar de tudo para ou organismo biológico, cujo ápice seriam as concepções iatromeca- ver se, ao final, sobraria algo que fosse inteiramente indubitável. Desse nicistas atuais, segundo as quais todas as doenças, até mesmo as psico- modo, ele formulou o que ficou conhecido como o cogito cartesiano, patologias, teriam uma origem física, conforme aponta Barros (2002). ou seja, de que ele, ao pensar, não podia duvidar que ele existia. "E, Guedes et al. (2006) situam, com base em Foucault, o surgimento notando que esta verdade penso, logo existo era tão firme e tão da medicina moderna no final do século XVIII, quando a medicina certa que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não deixa de ser classificatória para ser anatomoclínica, pondo em ação eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo uma nova racionalidade médica com o projeto de colocar o saber e a como o primeiro princípio da filosofia que buscava" (p. 38, grifos do prática médicos dentro das ciências naturais, de onde surge o nome autor). biomedicina. Os autores, no entanto, se dão conta que a biomedicina, filósofo, na sexta e última parte da obra, escreve que as noções modelo herdeiro da racionalidade científica, é tão classificatória gerais de Física que ele havia experimentado lhe mostraram que é quanto a medicina classificatória dos séculos XVI e XVII, mas, agora, possível chegar a conhecimentos úteis à vida e propõe, no lugar da a classificação está ancorada na anatomia patológica e não mais na filosofia especulativa, encontrar uma filosofia prática para empregar botânica. Assim, ela está ancorada no par doença e lesão. Lesão que, que se conhece das forças da natureza, "(...) do mesmo modo em depois de identificada pelo médico, deve ser removida para que haja todos os usos a que são adequadas e assim nos tornarmos, como que a cura. Desse modo, as doenças passaram a ser tratadas não como senhores e possessores da natureza" (p. 69), assim como nos livrarmos construções dos homens nesse sistema de pensamento, mas como de uma infinidade de doenças, com a aplicação dessa filosofia prática à entidades em si, objetivas. medicina. Ele convida os bons espíritos para fazerem experiências que Pelo exposto, podemos supor que as condições de possibilidade ele considera tanto mais necessárias quanto mais avançados estamos para que o médico da Cirurgia Plástica não enxergasse nada além dos no conhecimento. enxertos das pernas da paciente, descrita no início do texto, podem</p><p>34 Heloisa Helena Marcon (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 35 se relacionar com uma formação enfaticamente baseada no modelo que delimita os distintos campos de conhecimento: "Temos de nos biomédico que, com sua racionalidade moderna, mecanicista, reduz o aperceber que com a faca que dissecamos, mas com conceitos" doente e seu corpo a um organismo biológico no qual é possível intervir (p. 10). Objetividade e cientificidade, portanto, são conceitos; e, ainda "cirurgicamente" e, assim, extirpar a doença sem considerar a existência mais, são conceitos epistemológicos. do doente. E ainda mais, trata-se de um saber tão especializado que E qual é o modo de recortar os fatos e articulá-los logicamente esquadrinha o corpo em tantas partes quantas forem as especialidades reconhecido por nós sob o nome de objetividade e cientificidade? e permite que cada um se ocupe apenas de sua especialidade. Dessa Justamente esse que tem como efeito 1) que isso que se recorta e inter- forma, é possível que um médico cirurgião enxergue apenas os enxertos preta possa ser recortado da mesma maneira por qualquer um e possa da perna e não o estado clínico geral de um paciente. ser aplicado a qualquer um; e 2) que, mediante o recorte da realidade Esse modo de olhar, ler e interpretar as situações (próprio que delimita um campo de saber, o que ficou fora dessa circunscrição da medicina atual, logo, do modelo biomédico, como já mostrado não tem existência para esse campo de saber. anteriormente), relaciona-se com o modo de fazer ciência desde a Eliminando qualquer outro discurso, e consequentemente, o do próprio doente, o discurso médico afasta, pois, um certo número de Clavreul (1983), no já clássico livro intitulado A ordem médica elementos que não deixam de ter interesse em si mesmos. É da visada poder e impotência do discurso médico, nos apresenta com clareza a totalitária do discurso médico (como de todo discurso) nada querer relação entre discurso médico, objetividade e cientificidade: nem poder saber do que não lhe pertence, porque é inarticulável em seu sistema conceitual, e não pode resultar em nenhuma prática que (...) o discurso médico não se sustenta senão por sua objetividade, sua fosse médica. Esses elementos, estranhos ao discurso médico, e no cientificidade, que é seu imperativo metodológico. Ele deve poder ser entanto singularmente insistentes, uma vez que continuamente os enunciado por qualquer pessoa sobre qualquer pessoa, o primeiro doentes os apresentam ao médico, são verdadeiramente "não fatos" estando colocado em posição de médico, o segundo em posição de em relação à medicina. (Clavreul, 1983, p. 84) doente. mal-estar provém de que não é suportável ser qualquer um e que, sobre isso, a medicina nada tem a dizer. 30) Assim, o estado clínico da paciente dos enxertos pode ser tomado como um não fato para o médico da Cirurgia Plástica, do mesmo modo A segunda consultoria dá a ver os efeitos do mal-estar que que a necessidade da paciente de ir embora do hospital para cuidar provoca essa posição de ser tomado por qualquer um do lado dos de suas filhas também pode ser assim considerado. Mais evidente é a pacientes, pois, para a mãe dos dois bebês na UTI e mulher de um configuração do casal em questão na terceira situação clínica apresen- marido também polifraturado, não era suportável ser tratada como tada que pode voltar a ficar junto por causa da dependência gerada essa pessoa que existe apenas como polifraturada, ou seja, como pela paraplegia, condição que, paradoxalmente, não podia ser nomeada qualquer outra pessoa polifraturada, sobre a qual a equipe produzia como tal na frente do paciente que se configurava como não fato em enunciados de diagnóstico e condutas de tratamento. relação ao sistema conceitual médico. E todos esses não fatos, estranhos Não soa estranho que uma ciência como é a medicina se sustente ao discurso médico, insistiam ao modo de cada doente ou familiar, pela objetividade e cientificidade. A questão é do que se trata quando tentando se fazer escutar, ser levado em conta. falamos objetividade e cientificidade? Objetividade e cientificidade dizem respeito a um certo modo de recortar os fatos e interpretá-los dentro de uma articulação lógica, Valmor e da possibilidade de não ser qualquer um de maneira que se privilegie certas coisas e não outras e se imponha esse olhar, delimitando ou enquadrando um certo campo. Lacan Mediante o pedido de consultoria de um médico da (1953a) tem um modo muito interessante de falar dessa circunscrição Traumatologia para avaliação e acompanhamento de um paciente</p><p>36 Heloisa Helena Marcon (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 37 de 50 anos internado há aproximadamente 20 dias por não estar matá-lo e, naquele momento, não me parecia que as nossas palavras aceitando o tratamento e por estar se negando a realizar nova cirurgia, conseguiriam promover algum deslocamento nas suas certezas e, com encontrei este homem que aqui chamaremos de Valmor. diminuir sua angústia. Dessa consultoria da psiquiatria resultou Ele foi internado, via Emergência, por causa de uma infecção a indicação de presença familiar 24 horas por dia assim como a pres- na perna e operado de urgência, tendo sido, posteriormente, trans- crição de um ansiolítico. ferido para o serviço de Traumatologia. Essa cirurgia, que teve de ser A partir de então, ele passou a estar sempre acompanhado por realizada às pressas, tinha sido prevista e acertada com o médico trau- algum de seus filhos mais velhos. assunto passou a girar sempre matologista que o acompanhava havia vários anos no ambulatório de em torno de ainda não ter feito a cirurgia e por que ainda não tinha Traumatologia do mesmo hospital, mas, em virtude da infecção, teve feito, o que o levava a comparar essa situação com os acontecimentos de ser feita de emergência. da sua "antiga história" no hospital. Valmor ficava menos delirante e Já na primeira entrevista, ele me disse quase todas as coisas menos angustiado sempre que sua cirurgia era marcada, e delirante que seguiu contando até nossa última conversa, aproximadamente angustiado quando ela não ocorria e ele devia novamente esperar. três meses depois. E do que ele me falou? Valmor me contou da sua Diversas vezes, ela foi marcada e não ocorreu em virtude da logística "história antiga" com o hospital: que, no início dos anos 2000, em do bloco cirúrgico ou por causa das condições clínicas de Valmor ele função de ter "uma perna mais curta" e de seu desejo de "ficar normal", teve baixa no nível de plaquetas várias vezes ao longo da internação -, ali vinha realizando cirurgias. Disse que, naquela época, em razão de que o fazia perder a confiança nos médicos. Num desses momentos lhe terem cobrado a cirurgia e, além disso, colocado um fixador em vez de espera, ele refere que se sentia "morrendo aos poucos". Coladas na de uma placa de platina em sua perna, ter feito um processo judicial parede ao lado de sua cama, surgem fotos de seus filhos e netos e de contra os médicos que lhe operaram e, nesse sentido, ser o respon- sua casa. sável pela demissão de todos, exceto de uma pessoa que trabalhava no Sua cirurgia foi feita na ocasião de minhas férias, conforme bloco cirúrgico naquela época e que estava instrumentando sua última havíamos previsto, e transcorreu bem. No meu retorno, ele contou cirurgia a da atual internação. Nessa última cirurgia, teve sua perna que se sentiu acolhido por todos na cirurgia e deu como exemplo o quebrada. A presença dessa pessoa no bloco cirúrgico, assim como a fato de ele ter se sentido mal, com frio, antes da cirurgia, por ter feito fratura em sua perna no momento da cirurgia, deixaram Valmor com reposição de plaquetas, e de como tiveram paciência com ele. a certeza de que havia, ali no hospital, um complô para matá-lo e que, pós-operatório também transcorreu bem. Valmor fez uso dos dali, ele não sairia vivo motivo pelo qual se negava a realizar nova antibióticos necessários até que seu nível de plaquetas caiu drastica- cirurgia com a equipe que fez a primeira e que estava responsável por mente e por isso foi transferido para a UTI. Recebi um telefonema seus cuidados na atual internação. Ele confiava apenas no médico que da enfermeira pedindo que eu fosse falar com ele. Encontrei Valmor o acompanhou nesse longo período no ambulatório, mas esse médico desesperado, dizendo que iria morrer. Contou-me que tinha escutado não era da equipe que estava cuidando naquele momento. Esse médico médicos falarem de um paciente com câncer e tinha certeza de que em quem Valmor confiava, segundo me informou o médico que falavam dele. Notei que as fotos, que estavam no seu quarto, estavam solicitou a consultoria, não queria participar da cirurgia de Valmor no parapeito da sua janela, na UTI. Disse, então, que precisava me falar nem dele se ocupar. A enfermeira estava preocupada com Valmor, uma coisa, que não podia morrer sem me contar isso: que teve um referindo risco de suicídio. Ele tinha certeza de que seria assassinado, grande amor em sua vida e me contou como se passou essa história e ela de que ele se mataria! (que é anterior ao seu casamento) e da dúvida quanto a se deveria Escutei Valmor algumas vezes e fiz também eu pedido de procurá-la e lhe pedir perdão por não terem ficado juntos. Referiu que consultoria para a Psiquiatria, com vistas ao uso de alguma medicação, não ficaram juntos por causa das famílias, que eram contra o relacio- pois ele seguia muito angustiado com a certeza do complô para namento, e que ele lhe tinha proposto casarem e irem embora daquela</p><p>38 Heloisa Helena Marcon (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 39 cidade, mas ela lhe teria pedido mais tempo, pois precisava ainda sujeito do inconsciente, o ato só sendo falho quando pensado sob cuidar de sua irmã menor. Ela lhe pediu para esperar. Demos sorte ponto de vista do sujeito da consciência. Nesse texto, Freud dá um de o médico da UTI juntamente com o hematologista, que o estava exemplo de ato falho que ele atribui ao dr. Kardos. Ele conta, então, acompanhando, virem falar com ele naquele momento e esclarecerem ter presenteado seu discípulo com um anel que, diz ele "(...) já várias sua situação clínica: que a baixa no nível de plaquetas era apenas por vezes deu ocasião para atos sintomáticos ou falhos quando alguma causa do antibiótico que estava usando e que já estava bem melhor. coisa em nossas relações lhe provocava desconforto" (p. 202). Dessa Aproveitei a presença deles e ajudei Valmor a lhes falar de suas certezas vez, discípulo desmarca o dia em que se encontrariam para sair com do câncer e de que estava ali para morrer. uma moça. No outro dia, sai de casa sem o anel, mas se tranquiliza No dia seguinte, ainda na UTI, retomou a história desse grande pensando que ele estava em casa na sua mesa de cabeceira. Chegando amor, quando já havia decidido que não a procuraria. Então, cantou, em casa, vai procurá-lo e não o encontra em lugar algum. Então para mim, uma música religiosa de sua autoria, que é cantada pelos lembra que junto com o anel, na mesinha, sempre coloca seu canivete corais dos quais ele participava. Nesse mesmo dia, retornou para o que esse objeto leva sempre no bolso de seu colete. a mão ali e "seu quarto" e recebeu várias mensagens de boas-vindas e de torcida encontra ambos os objetos, mas não pode não pensar na expressão por sua recuperação por parte da equipe. Ele colocou essas mensagens "a aliança de casamento no bolso do colete", que faz referência na parede, ao lado da cama, juntamente com as duas fotos que já o ao lugar onde os maridos colocam a aliança quando saem para trair a acompanhavam e teve alta alguns dias depois. esposa. discípulo sentia-se traindo o mestre e confessou a infideli- Dessa forma, o que se passava na relação entre Valmor, o médico dade para ele! Exemplo, portanto, de como a linguagem nos ultrapassa, e a equipe de cuidados? que era dito ali que, inicialmente, produzia nos atravessa, ela nos usa, nos dobra, nos faz sentir que não somos tanto mal-estar? senhores em nossa própria casa, que não temos o domínio ao menos Se pensarmos na linguagem única e exclusivamente com a não tanto quanto supomos poder ter. função de transmitir informações, poderíamos pensar, no mínimo, que A noção moderna de sujeito é a que foi proposta por Descartes havia uma grande quantidade de mal-entendidos um pensava que o no seu cogito. A célebre formulação de Descartes, cogito ergo sum do queriam matar, e outros, que ele se suicidaria e de ameaças pois, de seu Discurso do método, tem diferentes traduções, portanto também fato, ele havia movido o processo judicial do qual ele falava e muitos diferentes interpretações. "Penso, logo sou" e "Penso, logo existo" são foram demitidos por causa disso. Mas essas informações já haviam se as mais conhecidas. Do fato de Descartes (1996) duvidar da verdade esclarecido nas primeiras entrevistas. E o mal-estar continuava. das outras coisas dúvida hiperbólica -, ele encontrou a verdade de A questão parece ser que "a linguagem tem outras propriedades que existia, como vimos anteriormente, e então reconheceu que: "(...) além da de constituir um veículo de transporte de informação, e é isso eu era uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar (...)" o que faz com que um sujeito não fale senão para não dizer nada, ainda 38). quando nem ele nem ninguém saiba exatamente o que quer dizer, e filósofo, com seu cogito, reduz o existir, isto é, tudo que existe, que ocupe tempo nesta atividade", como lembra Szpirko (1995, p. 20, pensar, de modo que não existe nada fora do pensar, até mesmo, o tradução nossa). sujeito. sujeito só existe enquanto é pensante, e toda sua existência Mas como poderia um sujeito falar sem saber o que diz? E que está reduzida ao seu pensar. Por isso, Vallejo e Magalhães (1981) outras propriedades teria, então, a linguagem que não a de comunicar? afirmam que o cogito ergo sum deve ser tomado como uma proposição A psicanálise propõe que a linguagem nos ultrapassa, que é de natureza analítica "na qual o que se formula no predicado tem de possível, sim, dizer outra coisa que não o que se pretendia dizer. É estar incluído no sujeito do enunciado" (p. 15). Dessa forma, o pensar isso que Freud (1901) mostra nos inúmeros exemplos que dá de atos envolve em si mesmo o ser ou o existir, de modo que não haveria nada falhos na sua "Psicopatologia da vida cotidiana", pois ali quem fala é da ordem do ser ou do existir do sujeito fora desse pensar.</p><p>40 Heloisa Helena Marcon o (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 41 É justamente na pura reflexividade de Descartes que se postula terapias que trabalham com o que o paciente diz, mas tomam esses uma perfeita coincidência do sujeito consigo mesmo e brota a ditos como e não como falas -, não levamos concepção do sujeito como agente absoluto, ponto de partida da tota- em conta, não estamos trabalhando com o singular daquele sujeito, lidade de seus atos e plenamente coincidente consigo mesmo. sujeito mas com algo que é indiferente a que seja este ou outro sujeito que cartesiano não é marcado por nenhuma ruptura, há uma perfeita diz aquilo que está sendo dito. Estamos no registro da universalidade. possibilidade de que o sujeito coincida consigo mesmo na reflexão. As Assim como vimos antes em relação à medicina. duas teses, a do sujeito agente e a do sujeito adequado, são básicas na E onde estava o sujeito de quem Valmor falava? Ou, ainda, de colocação tradicional da noção de sujeito (Vallejo e Magalhães, 1981). que posição ele falava? Descartes (1996), dessa forma, propõe que nossa existência As certezas de Valmor colocavam problemas não apenas para ele é dada no registro da consciência, no registro do pensamento, próprio e para o médico, como para toda a equipe de cuidados, pois, da reflexão, de modo que há uma coincidência entre eu, sujeito, todo tempo, ele falava de um outro tempo o tempo da sua "história consciência e pensamento, pois o sujeito se identifica com o cogito e antiga" com o hospital. por meio deste se identifica com a consciência. Trata-se, portanto, de Ele não apenas falava de um outro tempo, como falava desde esse um sujeito agente, centrado no cogito. outro tempo um tempo fora do tempo, no qual Valmor ficou fixado Entretanto, para Lacan (1954-1955), é a partir de Freud que como aquele fixador com o qual acordou depois da cirurgia para se produz a irrupção de uma nova perspectiva que revoluciona a colocação de platina. concepção de sujeito, mostrando justamente que o mesmo não se No texto "O inconsciente", Freud (1915) denominava a tempo- confunde com o eu e a consciência. ralidade do inconsciente negativamente a partir do tempo do sistema sujeito na teoria freudiana é um sujeito fendido, subordinado consciente, portanto, como atemporalidade: a uma outra cena, a um outro lugar além dele o inconsciente -, Os processos do sistema Ics são intemporais; isto é, não são ordenados destinado a uma não convergência consigo mesmo, a "uma impossi- temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm bilidade de nomeação do sujeito como área completa ou adequada" absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo (Vallejo e Magalhães, 1981, p. 17), uma vez que o sujeito é determi- vincula-se, uma vez mais, ao trabalho do sistema Cs. (p. 214, grifo do nado por uma ordem inconsciente. É esse descentramento de que o autor) sujeito não é igual à consciência, mas é determinado pelo inconsciente que permite Lacan nomear a descoberta freudiana do inconsciente Valmor estava fixado de modo que os acontecimentos do tempo de revolução copernicana, pois, de fato, descentra, tira do centro o da outra cirurgia foram atualizados nessa internação. Esse tempo desde sujeito, até então idêntico ao eu ou à consciência. De acordo com 0 qual Valmor falava é o tempo do inconsciente, atemporal, mas que Lacan (1954-1955), tudo o que Freud escreveu visava restabelecer a dirige tempo da consciência, o tempo no qual se desenrola sua fala, perspectiva exata da excentricidade do sujeito com relação ao eu. palavra após palavra, instante após instante. Conforme definido por Seguindo as pistas de Freud, Lacan (1954-1955) propõe sua Lacan no texto "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde tão repetida fórmula do inconsciente estruturado como linguagem trata-se da incidência do significante no significado (Lacan, regido pelas leis da linguagem cujo efeito é de o sujeito do incons- 1957). É o tempo da sincronia da cadeia significante inconsciente, ciente ser, então, o sujeito do discurso ou da fala. Desse modo, o que dirigindo a cadeia diacrônica do discurso consciente e se dirigindo define a posição particular de cada um é o modo como fala - é esse de para que alguém a escutasse. quem se fala e não exatamente aquilo que é falado, isto é, o conteúdo No entanto, depois" (nachträglich, conforme Freud, ou après- ou a informação da comunicação. Então, quando ficamos no registro em termos lacanianos) no tempo da escrita do caso e não no meramente da linguagem enquanto comunicação como é o caso das tempo da escuta, pude me dar conta que havia para ele algo da ordem</p><p>42 Heloisa Helena Marcon (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 43 do insuportável na condição de espera pela cirurgia. Tinha relação A psicanálise se situa em um registro totalmente diferente desse com a história de seu grande amor, que tinha lhe pedido para esperar, em que alguém paciente se oferece para ser lido desde o saber pois ainda precisava de mais um tempo para que sua irmã menor, de um outro. A psicanálise inverte a relação ao saber. A nós, analistas, de quem ela cuidava, crescesse. Ele não pôde esperar. Ele rompeu a nos é suposto saber, mas nós fazemos semblante disso, porque o saber, relação. E ali, nessa impossibilidade de esperar e nesse rompimento, ainda que insabido, porque inconsciente, está do lado do sujeito. Do ele também ficou fixado. Ele casou, teve filhos, tem netos, mas se sente sujeito do inconsciente esse que não é senhor na sua própria casa. em dívida que ele supõe ser uma dívida com ela, daí o desejo de lhe Nas palavras de Szpirko (1995): pedir desculpas. Dívida e mal-estar que parecem, antes, ser em relação Para ser brutal e marcar bem o assunto direi que, frente à demanda ao seu desejo, que ele não pôde sustentar suportando uma espera. do doente, toda a formação do analista, a que teve em sua própria Nesse sentido podemos entender que "O inconsciente é a parte análise, no estudo dos textos, nas suas confrontações com colegas, do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do na sua clínica, toda sua formação, consiste essencialmente... em quê? sujeito para restabelecer a continuidade do seu discurso consciente" Em não compreender. Seu saber consiste em fazer emergir algo da (Lacan, 1953b, p. 260). verdade do sujeito e esse algo não poderia eventualmente emergir Valmor levantava resistências no trato de todos para com ele. A mais que à condição de que o psicanalista não acredite saber, seja certeza que ele tinha de que queriam matá-lo e a sensação da enfer- que for, desta verdade específica do sujeito. (p. 33; grifo do autor, de ele ter risco de suicídio não são duas coisas distintas nem tradução nossa) desligadas. Funcionava ali um certo modo relacional bem específico Então, o que nós podemos fazer? que fazemos, nós analistas? do tipo de um espelho invertido fantasias de homicídio e suicídio. Deixamos o sujeito falar e escutamos. Sem pressa. Apesar da correria efeito desse espelhamento invertido é que Valmor e a equipe do hospital, das urgências, das emergências, precisamos escutar sem tenham ficado em suspenso, presos naquele tempo de espera para pressa. Com paciência, como Lenine na sua canção: a cirurgia: enquanto Valmor pensava que a demora na cirurgia era para que ele morresse, a equipe que tinha ficado tão assustada e Mesmo quando tudo pede com medo dele em razão do processo judicial que ele havia movido um pouco mais de calma, da outra vez tomou todas e mais algumas precauções para que nada Até quando corpo pede desse errado, para que não existisse a possibilidade do erro e da morte um pouco mais de alma, do paciente, e aí nada dava, ou seja, a cirurgia não ocorria. A vida não para. que será que se passou ao longo dessa consultoria que mudou Enquanto o tempo tanto a relação entre a equipe e Valmor? acelera e pede pressa, A singularidade de cada um, o seu mais próprio, aparece, então, Eu me recuso, faço hora, na posição de alguém quando fala. Só que é preciso que alguém you na valsa. consiga escutar isso. Nos lembra Szpirko (1995) que "Nem a medicina, A vida é tão rara. nem a psiquiatria, nem a psicologia digam o que digam ensinam a Precisamos dar tempo para o sujeito falar e não compreender escutar; cada uma à sua maneira busca compreender, quer dizer, tran- de imediato. E qual o efeito de não compreender? Simplesmente o de quilizar-se com uma ilusão: uma interpretação que conforte àquele comprometer aquele que fala a precisar essa demanda, a desenvolver que a produz" (p. 23-24; grifo do autor, tradução nossa). Isso porque, associações a respeito, a começar a comprometer-se com sua todos esses especialistas buscam compreender ou ler dentro daquela história, com isso que é tão raro, o singular de cada vida. grade lógica da sua especialidade, dentro da qual, vimos, não há espaço efeito de escutar Valmor, dar tempo para ele precisar sua para o sujeito. demanda, foi o de possibilitar que os nós que estavam impossibilitando</p><p>44 Heloisa Helena Marcon o (sem)lugar do sujeito nas práticas em saúde 45 a passagem do tempo se desenrolassem. E, então, ele pôde dar corda GUEDES, C. R. et al. A subjetividade como anomalia: contribuições no relógio. Ou, entrar na valsa. gicas para a crítica do modelo biomédico. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 11, p. 1093-1103, 2006. KOIFMAN, L. modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, V. VIII, Considerações finais p. 48-70, 2001. LACAN, J. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Com base no exposto no texto podemos perceber que o processo Escritos. Rio de Janeiro: Zorge Zahar, 1998. histórico pelo qual passou a medicina ao longo dos séculos foi, a cada (1953a). seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: vez, modificando seu entendimento de saúde e doença e, consequen- Jorge Zahar, 1986. temente, sua prática com o doente. A última modificação ou ruptura (1953b). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: de paradigma levou a medicina ao modelo biomédico ou mecanicista, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. modelo atual no mundo ocidental, que, para poder situar-se entre as (1954-1955). seminário. Livro 2. eu na teoria de Freud e na técnica da ciências naturais, precisou excluir de seu sistema conceitual o sujeito psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. e o campo da subjetividade de modo geral, resultando numa prática OMS ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE; OPAS ORGANIZAÇÃO exclusivamente centrada no organismo biológico e suas divisões. PANAMERICANA DE SAÚDE. Classificação internacional de funcionalidade, Assim, tudo o que é da ordem do sujeito e da subjetividade não pode incapacidade e saúde. São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, 2003. ser ali incluído, resultando, como vimos, em entraves na práxis clínica QUEIROZ, M. de S. paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna: em saúde. A importância do psicanalista nas instituições de saúde está, uma perspectiva antropológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 4, n. 20, portanto, em dar lugar, na medida em que consegue escutar, ao sujeito 309-317, 1986. e à subjetividade excluídos pelo paradigma médico, assegurando-lhes SZPIRKO, J. Psicoanalisis y Medicina. In: CANCINA, P. H.; DELLARIVA, C. o devido estatuto de existência e de singularidade. (Orgs). La Clinique Psychanalytique. Au fil rouge de la sciensce, Essais. Rosario: Homo Sapiens Ediciones, 1995. VALLEJO, A.; MAGALHÃES, L. C. Lacan: operadores da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1981. Referências VOLICH, R. Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. BARROS, J. A. C. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico? Saúde e Sociedade, São Paulo, V. 1, n. 11, p. 67-84, 2002. CLAVREUL, J. A ordem médica poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense, 1983. DE MARCO, M. A. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educação permanente. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, V. 30, n. 1, p. 60-72, 2006. DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Clássicos) FREUD, S. (1915). o inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. V. XIV. (1901). Psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. V. VI.</p><p>Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde Bruno Jardini Mäder Uma pergunta deve saltar aos olhos dos leitores quando se deparam com nosso título: por que apresentar uma diferenciação entre Psicologia Hospitalar e Psicologia da Saúde? Em seguida, algumas outras: afinal, se o hospital é um serviço que faz parte do sistema de saúde, por que há essa diferença? Não seria uma coisa só? Essa dife- renciação implica práticas diferentes do psicólogo quando atua em lugares diferentes? Para responder essas perguntas e apresentar os fundamentos do campo da Psicologia da Saúde e Hospitalar, um caminho histórico até culminar na atuação do psicólogo nas políticas de Saúde. Em nosso caminho, debateremos a noção de doença e seu estudo em populações, as formas de tratamento, a prática clínica e a prevenção. A partir daí, discutiremos o conceito de Saúde, sua amplitude também as suas limitações. Relacionamos esse conceito a uma forma ativa e autônoma de se fazer escolhas, cidadania, direitos e democracia. Mediante a oferta de serviços, desde o surgimento do hospital até os dispositivos dos dias de hoje, circunscreveremos as políticas de Saúde e a promoção de cuidados primários. Ateremos atenção especial ao Brasil, em que Saúde ganha status de justiça social. Por fim, discutiremos a atuação do psicólogo no sistema de Saúde, psicologia hospitalar, psicologia da saúde, seus objetivos e limitações.</p><p>48 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 49 o que é doença? seja pela forma racional seja pelos meios obscuros e transcendentes: herboristas, parteiras, consertadores de ossos e sacerdotes curandeiros Doença é uma palavra com ampla representação e compreensão (Porter, 2004). social; está ligada a desconforto, mal-estar, dor, sofrimento e morte. A medicina, tal como conhecemos hoje, é fruto do conhecimento Em geral, todas as pessoas já ficaram doentes e vão ficar doentes de da transmissão escrita. Um dos principais pilares da medicina, o novo na vida. Seria um espanto conhecer alguém que não apresenta conhecimento hipocrático, fundamentou-se em teorias naturais para nenhuma compreensão de doença; afinal, a vivência de estar doente se diferenciar dos curandeiros e Os médicos hipocráticos, tem um caráter pessoal e subjetivo. que tinham como princípio não prejudicar os doentes e não prometer Por outro lado, há uma dimensão objetiva de doença. Trata-se curas milagrosas, ofereceriam seu discernimento e sua capacidade para da visão científica, que a identifica, a estuda, descobre sua etiologia e ajudá-los e se apresentavam como seus amigos fiéis (Porter, 2004). É sob seu curso natural e propõe tratamentos e terapêuticas. Para além da essa figura de quem se debruça sobre o leito dos doentes que se desen- perspectiva individual, a ciência relaciona doença a populações, seus volveu uma prática clínica que pode ser reconhecida até os dias atuais. hábitos, suas heranças genéticas e seu meio ambiente. Com base na ascensão do método científico e no avanço do A disseminação de doenças está fortemente ligada ao início do conhecimento para fazer diagnósticos, a medicina passou a ter como processo cultural e civilizatório. Segundo Kiple (2008), o surgimento principal objetivo o "ataque às doenças" (Porter, 2008a). Essa postura da prática agrícola propiciou um ambiente favorável à reprodução dos traz à tona uma questão fundamental para a compreensão que preten- seres humanos e também aos animais domésticos. Porém, em virtude demos: poderíamos afirmar que as doenças existem porque a medicina da atividade de arar a terra, os homens tiveram contato com parasitas, as diagnostica? vermes e insetos. Essa seria uma afirmação apressada com uma noção bastante Se por um lado, o controle e o manejo das condições de cultivo parcial do que é doença. Conforme discutimos acima, há uma possibilitou aos humanos abandonar a vida nômade, estabelecer-se compreensão subjetiva e pessoal de estar doente, além das explicações num território, domesticar outros animais e aumentar a espécie, por espirituais, ritualísticas e alternativas. outro, a produção de lixo, a derrubada de vegetação e as queimadas A produção científica em língua inglesa apresentou uma proporcionaram também o ambiente ideal para proliferação de distinção interessante entre as formas de se referir à doença. Em inglês, parasitas (Kiple, 2008). De época em época, a civilização se tornou há mais de uma forma de nomear-se doente: ill ou sick, na língua mais complexa; criou condições de estabilidade e de crescimento coloquial, são entendidos como sinônimos. Propôs-se uma distinção populacional, mas também favoreceu o aparecimento de novas dos sinônimos: disease, illness e sickness. Enquanto disease aproxima-se doenças e seus transmissores. da noção de patologia, de algo que vai mal no organismo, ou em uma Vale destacar que os processos migratórios, as colonizações e parte dele, illness é definida como condição de estar enfermo (Almeida a urbanização foram fatores fundamentais para a disseminação de Filho, 2012). novas doenças e a dizimação de milhares de pessoas. Para cada época Essa é uma diferenciação importante, pois discrimina duas histórica, podemos associar uma doença: o escorbuto e a navegação; posições em relação ao adoecimento: a do médico e a da ciência, que a tuberculose na sociedade industrial; a febre amarela no século XIX; identificam e tratam uma doença, e a do paciente, que sente a enfer- o tifo nas expedições de Napoleão; a AIDS no século XX (Kiple, 2008). midade e sofre com seus efeitos e impactos (físico, mental e social). A vivência de doença está ligada à perspectiva de cura. É carac- Almeida Filho (2012) destrincha as possibilidades de referir-se terística intrínseca à civilização a busca de formas de propiciação de doença e faz algumas correspondências entre as palavras em inglês alívio. Em todas as épocas decantou-se figuras ligadas a esse objetivo: com português, oferecendo noções desde a especificidade da patologia até que chamamos de mal-estar:</p><p>50 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 51 Pathology, em inglês, e Patologia, em português, se referem à inves- estudo pioneiro nessa linha foi realizado na Inglaterra no tigação e à classificação da natureza, da causa e dos sintomas das século XIX, em que foi descoberta a relação entre consumo de água e doenças; proliferação da cólera (Bonita, Beaglehole e 2010). Desde Disease com Doença: está relacionada aos distúrbios de funções dos então, por meio da Epidemiologia, alcançou-se feitos notáveis como órgãos e do organismo. erradicação final global da varíola em 1979 (Porter, 2008a). Dessa Disorder com Transtorno: relacionados a perturbações da saúde, mas forma, é preciso dizer que a Epidemiologia é a ciência-base da Saúde mais especificamente a condutas e comportamentos que se afastam Pública. da normalidade. Podemos notar que doenças como poliomielite, tuberculose e Illness com percepção e reação individual ante a um hansenfase (por exemplo) já não assustam como na primeira metade incomodo ou sofrimento do século passado. Esse modo de atuação tem, por exemplo, reduzido Sickness com Enfermidade: refere-se à resposta subjetiva do paciente consideravelmente o número de mortes materno-infantil decorrentes ao fato de não estar bem; carrega a acepção histórica do controle do parto no Brasil. Entretanto, a ciência epidemiológica tem desafios social da doença, quando a prevenção era isolar e confinar os atuais relacionados a doenças que não são infectocontagiosas, como a enfermos. diabetes ou as doenças coronarianas (Porter, 2008a). Malady com Mal-estar: apesar de não ser um termo técnico usado A Epidemiologia é fundamental para que, por exemplo, um na clínica, denota a condição de quem o sofre. governo defina os serviços e as ações que serão disponibilizados Com base nessa comparação, nota-se que a oposição entre as para cada população. A população do Vale do Jequitinhonha, uma dimensões subjetiva e objetiva da doença estão relacionadas, por um das mais pobres do Brasil, não necessariamente precisará de ações e lado, à leitura de um sujeito sobre o seu sofrimento com a doença cuidados que a população do Vale do Itajaí (em Santa Catarina) recebe. (o enfermo) e, por outro, daquele que tem a doença como objeto de A primeira fica numa região rural com características de sertão. Já estudo ou de trabalho. segunda vive numa região industrializada e com maior densidade Além da perspectiva individual, o estudo das doenças tem um populacional. A partir desse exemplo caricato, podemos pensar que a grande campo em sua dimensão coletiva, ou seja, como uma deter- distribuição de serviços e recursos precisa considerar essas diferenças. minada patologia afeta uma determinada população. Estudos dessa Os epidemiologistas, contudo, não se interessam apenas pelas natureza foram fundamentais para o controle de doenças infectocon- manifestações das doenças, pelas incapacidades ou pelas causas de tagiosas que assolavam nações. morte, mas com a melhoria das condições de saúde e com a maneira A busca da causa e dos fatores que influenciam a ocorrência de de promover saúde (Bonita, Beaglehole e 2010). eventos relacionados ao processo saúde-doença é realizada pela ciência chamada Epidemiologia (Lisboa, 2008). Esse conhecimento propor- ciona o controle da disseminação de uma determinada doença como também o desenvolvimento de ações que previnam a sua que é saúde? A prevenção de doenças é recomendada desde os tempos hipo- cráticos, carregando a premissa: prevenir é melhor do que remediar A definição da Organização Mundial de Saúde, amplamente (Porter, 2008a). Entretanto, a noção de coletividade no processo saúde- conhecida, diz que saúde "não é apenas ausência de doença, mas um -doença surgiu no final do século XVII, no mesmo período histórico completo bem-estar físico, mental e social". Essa definição supera a visão que surge o conceito de população e de Estado (Lisboa, 2008). Dessa de saúde como "o fato de que, num determinado instante, por qualquer forma, foi possível estudar como uma doença afeta a população e forma de diagnóstico médico ou através de qualquer tipo de exame, não planejar uma ação em larga escala para intervenção. constatada doença alguma na (Arouca, 1987, p. 35).</p><p>52 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 53 Desta forma, busca-se uma noção holística e uma contraposição qualquer pessoa tem autoridade para decidir o que quer para sua vida ao modelo biomédico. Se a partir deste é possível identificar e tratar implica uma noção democrática de Estado e uma noção de poder. doenças, a promoção de bem-estar e Saúde é composta também por Cabe notar que o conceito ampliado de saúde aponta para uma outras variáveis, como condições de vida, relações pessoais, autoes- necessária quebra de poder. médico, para promover a autocon- tima, entre outras. Esta definição serve aos propósitos de reorientar o e autoestima do seu paciente, necessita que este faça parte das foco das ações: do combate à doença para a promoção de Saúde. escolhas de sua forma de tratamento. Além disso, o gerenciamento Há, contudo, uma imprecisão nesta definição de Saúde: a partir público precisa da participação da população em suas formulações e dela não é possível determinar quais as pessoas que possuem saúde e as execuções (ou pelo menos de uma parcela da população). As decisões que não possuem (Arouca, 1987). Saúde seria definida de forma negativa que antes estavam centralizadas nas mãos do médico ou do gover- ("não é doença"), vaga e abrangente ("um completo bem-estar"). nante passam a ser discutidas e construídas com os pacientes e com Um dos caminhos para ampliar a ação de promoção à saúde população. é identificar os riscos de se desenvolver cada doença e agir para Dessa forma, ainda que saúde não tenha uma definição precisa, diminuí-los. Dessa forma, saneamento adequado e moradias dignas ela aponta para a necessidade inequívoca da participação das pessoas representam exemplos de intervenções ambientais que promovem sobre a condução de seu tratamento ou de sua vida. A parcela subjetiva saúde. Mudanças de hábitos alimentares, realização de atividades do processo saúde-doença não poderá ser generalizada e será cons- físicas e divulgação de informações estão ligados ao estilo de vida truída no caso a caso. E, com base nessa premissa, abre-se o campo que cada pessoa escolhe. A lei seca (que endurece o cerco a motoristas para áreas do conhecimento que se somarão à medicina. alcoolizados) e a restrição à propaganda de cigarros também são frutos desta estratégia de ação. Entretanto, estas ações ainda estão ligadas a evitar as doenças e não conseguem indicar "essa coisa chamada Saúde" (Almeida Filho, 2000). A evolução do hospital e da oferta de serviços de saúde A palavra "saúde" vem do radical latino salus que designava atributo dos inteiros, intactos e íntegros. Ambas as palavras provêm A prática interdisciplinar e ampliada está relacionada à oferta de do grego holos, que continha o significado de todo, totalidade. Desse serviços. A assistência à saúde está bastante ligada à instituição hospi- mesmo radical provém a palavra "são" que tem relação com ser em especial para casos graves ou urgentes, mas ela está longe de "imaculado" e "perfeito", mas também de sagrado (Almeida Filho, a única referência. Podemos chamar facilmente à memória serviços 2012). como Unidades Básicas de Saúde (UBS), muitas vezes conhecida como Saúde carrega, portanto, uma ideia de plenitude que trans- ou os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), entre outros. cende o bem-estar e aponta para as explicações e crenças culturais oferta e a organização dos serviços de saúde pelo Estado da forma de sagrado e perfeito. Por essa razão, a visão objetiva e científica não como temos hoje é fruto da noção ampliada de saúde, mas se relaciona abrange todo seu significado. A ciência possui uma compreensão história do hospital e da medicina. parcial de saúde. Se em nossos dias a assistência à saúde é realizada em diversas Ao empregar o bem-estar social e mental para definir saúde, formas e serviços, em tempos passados era centralizada no hospital. permite-se a compreensão de que seja oferecido à população as Hoje hospital é referência para tratamento, reabilitação e cuidados condições para sua manutenção. Dessa forma, proporciona o "direito e que necessitam equipamentos de alta tecnologia, entretanto, em sua dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento origem o hospital não estava ligado necessariamente a cuidados em e na execução de seus cuidados de saúde" (Declaração de Alma-Ata, mas a receber e acolher pessoas. Pobres, doentes e andarilhos 1978). Essa definição pressupõe a autodeterminação, ou seja, que recebidos em locais com orientação religiosa e vocação para a</p><p>54 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 55 caridade. Esses locais com estruturas precárias, em vez de curar, proli- Durante séculos, o hospital foi um local de tratamento e acolhi- feravam doenças (Porter, 2008b). mento de pobres. Áfinal, a qualidade dos serviços prestados era baixa hospital'se tornou mais complexo com o crescimento do com alta mortalidade e contágios infecciosos no ambiente hospitalar. comércio e da população urbana. A precariedade de higiene e sanea- Além da falta de higiene, o conforto e a intimidade dos hospitais não mento transformava a cidade num ambiente adequado para prolife- os ricos. A própria concepção de maternidade, por exemplo, é ração de doenças. hospital serviu de asilo para as pessoas infectadas recente. Num tempo não tão longínquo, o parto era preferencialmente por doenças contagiosas como a lepra ou a peste bubônica (Porter, em casa. Apenas recentemente o hospital pôde oferecer cuidados 2008b). de manutenção de vida e conforto na hora da morte. A partir do século XV, no ambiente cultural do Renascimento, As características de alta tecnologia e alto conhecimento o hospital passa a ser um local de exercício da medicina, atuando em atribuem ao hospital um alto custo. Dessa forma, a oferta de seus conjunto com a atenção religiosa. No caldo cultural do Iluminismo, serviços é restrita a regiões urbanas, em que há uma concentração de no século XVIII, o hospital passa a ser um local de ensino e aprofun- pessoas, de comércio e de dinheiro. damento da medicina. A consolidação da finalidade do hospital como A centralidade da oferta de serviços de saúde em hospitais um ambiente com função terapêutica é consequência da cura dos foi repensada em conjunto com as descobertas científicas sobre as pacientes por meio de uma sistematizada prática médica de acom- doenças. Com o avanço do conhecimento epidemiológico, novas panhamento, observações e comparação. Nesse período, os hospitais atitudes foram tomadas: surge a vigilância sanitária, as práticas preven- passaram a ser construídos com distribuição funcional do espaço e a tivas e que se chamou de cuidados primários. criação de "dispensário" que seria o que conhecemos hoje como as A promoção de cuidados primários foi consagrada na declaração unidades somente para consultas -, deixando as enfermarias indicadas de definidos como primeiro nível de contato dos indi- somente para os casos de internamento (Ministério da Saúde, 1965). da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, No século XVIII, o declínio da religião e a ascensão do conhe- pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente cimento científico possibilitaram o estudo dos corpos após a morte possível aos lugares onde as pessoas vivem e trabalham, e constituem o dos pacientes, ampliando o conhecimento de anatomia e das lesões primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde" corporais em face objetiva da doença. Com essa postura clínica, o (Declaração de Alma-Ata, 1978). número de oferta de hospitais e leitos hospitalares cresceu, assim como Na prática, significa que serviços de baixa complexidade e de as populações urbanas (Porter, 2008b). custo devem ser oferecidos à população próximo de suas resi- Essas conquistas do conhecimento médico impulsionaram, além e de onde conduzem suas vidas. Essa diretriz implica uma da prática clínica, a técnica cirúrgica. Bastante rudimentar em seus descentralização de serviços e a oferta de serviços de menor complexi- primórdios, a cirurgia expandiu-se com técnicas de assepsia e anestesia dade do que os hospitais. Os serviços de saúde passam a oferecer, além e tem seu ápice no século XX. Hoje a cirurgia conta com um aparato de assistência médica, condições para que as pessoas possam cuidar e de alta tecnologia e crescente precisão (Porter, 2008b). desenvolver sua saúde. Realizada em Alma-Ata no Cazaquistão em 1978 e promovida pela Organização Mundial de Saúde, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em 1. A título de curiosidade, a palavra hospital e a palavra hotel tem origem na mesma discutiu as condições de saúde dos povos e propôs uma reorientação raiz latina hospes (hospedes). Enquanto uma evoluiu para hospitalise, em português, dos serviços para atuar com incidência comunitária, oferecendo aos sujeitos os transformou-se em hospital, a outra desvinculou-se de assistência restringindo-se instrumentos para manutenção da saúde. Como resultado foi formulada uma à hospedagem (Ministério da Saúde, 1965). declaração com princípios, da qual o Brasil foi signatário.</p><p>56 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 57 A organização da saúde no Brasil Dois conceitos são fundamentais para a organização do SUS: hierarquização e regionalização. primeiro significa que os serviços conteúdo dessa declaração teve impacto na forma de se pensar devem ser organizados em níveis de complexidade tecnológica crescente; saúde no Brasil. A base do pensamento preventivo resultou num segundo que devem ser dispostos numa área geográfica delimitada movimento social e foi o embrião do que se tornaria, em 1990, o Sistema com a definição da população a ser atendida. "Isso implica a capaci- Único de Saúde (SUS). Esse movimento, chamado de sanitarista, num dade de os serviços oferecerem a uma determinada população todas as modalidades de assistência, bem como o acesso a todo tipo de tecnologia primeiro momento objetivava a renovação médica, mas cresceu em importância e foi discutido com toda a sociedade brasileira (Arouca, disponível, possibilitando um ótimo grau de resolubilidade (solução de 1987). Dado seu movimento histórico, confundiu-se com a democrati- seus problemas)" (Ministério da Saúde, 1990, p. 6). zação do país, e sua importância foi consolidada com a promulgação da A hierarquia da atenção está estabelecida em três níveis: Constituição Federal de 1988, na qual saúde é considerada um direito. Atenção primária: Pode ser encarada como atenção à saúde Antes da CF-88, Saúde não era um dever do Estado e a assistência essencial, cujo acesso seja garantido a todas as pessoas e famílias à saúde era prevista apenas àqueles que tinham registro formal de da comunidade, mediante sua plena participação, a um custo que a trabalho. Não havia, portanto, serviços de saúde disponíveis para toda comunidade e o país possam suportar. Representa o primeiro contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema de saúde, a população. Antes da década de 1990, os serviços do Estado estavam centralizados em grandes centros urbanos e em hospitais de ensino. levando a atenção à saúde o mais próximo possível de onde residem trabalham as pessoas, constituindo o primeiro elemento de um Além destes, instituições religiosas desempenhavam importante função cuidando de quem não tinha direito de ser atendido ou outra processo permanente de assistência sanitária (Brasil, 2007). forma de atenção. As Santas Casas de Misericórdia e os hospitais filan- Atenção secundária: É formada pelos serviços especializados em trópicos foram responsáveis por grande parte dos serviços prestados a nível ambulatorial e hospitalar, com densidade tecnológica intermediária entre a atenção primária e a terciária historicamente interpretada uma parcela importante da população brasileira. conceito ampliado de saúde não resultou apenas numa como procedimentos de média complexidade. Esse nível compreende mudança na assistência médica, mas numa representação de liberdade. serviços médicos especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico e Segundo Arouca (1987), viver com a presença do medo (medo da atendimento de urgência e emergência (Erdmann et al., 2013). violência, medo da miséria, medo de expressar-se) seria uma forma Atenção terciária: É constituída por serviços ambulatoriais e de viver sem saúde. A promoção de saúde foi, então, intrinsecamente hospitalares especializados de alta complexidade e alto custo, tais como serviços de urgência e emergência, atenção à gestante de alto ligada à promoção de justiça social e cidadania. Podemos encontrar diferenças significativas entre o SUS risco, cardiologia, neurologia e atenção ao paciente grave. Garante e o SUS disponível hoje, 25 anos depois, tanto em cumpri- acesso a quimioterapia e radioterapia, terapia renal substitutiva, mento de sua missão de justiça social quanto na oferta de serviços. Por exames hemodinâmicos e exames de diagnose de maior complexidade. outro lado, também encontramos avanços, como a ampliação da oferta A atenção terciária é organizada pelo sistema de referência. Ou seja, territorialidade tem um serviço de alta complexidade para onde da atenção básica e a organização dos serviços. casos são encaminhados (Mendes, 2010). Essa forma de organização traz impactos importantes na atuação do psicólogo nos serviços de saúde. Afinal, os serviços de cada nível 3. "No sonho de tantos, inscrito na Constituição brasileira, o SUS seria a expressão de atenção têm suas limitações e capacidades de resolubilidade espe- de solidariedade que une todos os brasileiros, ricos e pobres, sadios e doentes, moradores dos centros e dos grotões, em resposta coletiva ao essencial do ser o psicólogo deverá realizar uma avaliação desse contexto para humano, a saúde" (Costa, Bahia, Scheffer, 2013). executar suas ações.</p><p>58 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 59 A atuação do psicólogo nos níveis de atenção à saúde A distinção proposta traz uma saudável discussão sobre a procura e a demanda na área da saúde, em especial no hospital: o Podemos começar a responder agora à pergunta proposta no sujeito não procura o psicólogo, mas um serviço de saúde, pois padece início do texto: por que apresentar uma diferenciação entre Psicologia de algum sofrimento. Há uma diferença entre essa procura daquela Hospitalar e Psicologia da Saúde? A resposta para isso deve vir da feita ao psicólogo em consultório numa prática privada, em que o constituição histórica do campo. Ora, se no Brasil a oferta de serviços sujeito já reconhece em si uma demanda psicológica. de Saúde era restrita ao Hospital, esse foi o espaço a ser ocupado pela Por outro lado, como apontado por Holanda (2012), a psico- Psicologia. A atividade pioneira nesse campo de atuação data de 1954 terapia e a clínica social não se contrapõem. Identificar a demanda com o acompanhamento psicológico de crianças internadas e suas faz parte da prática clínica assim como pensar o desenvolvimento do famílias na clínica ortopédica do Hospital das Clínicas da USP (CFP, acompanhamento que será ofertado. 2005). Desde então e com ampliação do campo consolidou-se a deno- A busca por tratamento de padecimento orgânico não deve minação de Psicologia Hospitalar para a área. implicar uma prática psicológica distinta de outras. Se entendêssemos Já Psicologia da Saúde tem seus primeiros passos dados pela assim, estaríamos descaracterizando a prática clínica da psicologia APA (American Psychological Association) na década de 1970, nos propondo a trabalhar sobre a doença e não sobre a enfermidade, Estados Unidos. A aplicação da nomenclatura se deu em outros países conforme vimos acima. da Europa e da América Latina a partir da década de 1980 (Castro e A não distinção entre doença e enfermidade traz um problema Bornholdt, 2004). A Psicologia da Saúde é mais ampla e abrange a "comunicacional" para a prática clínica: a equipe de saúde e o paciente Hospitalar (Gorayeb, 2010). expectativas diferentes sobre o que há para ser tratado. Enquanto Pode-se observar que as duas denominações são anteriores ao primeiros "atacam" a doença, o outro espera o alívio para o sofri- SUS e que não há qualquer impedimento em sua utilização no contexto mento que vivencia. "Os pacientes podem não aderir ao tratamento brasileiro. A organização hierarquizada da Saúde nos ajuda a contex- porque não entendem ou não concordam com as condutas médicas, tualizar a prática. A Psicologia Hospitalar estará circunscrita na média que leva a uma menor efetividade da intervenção clínica" (Almeida e, especialmente, na alta complexidade. Já a Psicologia da Saúde engloba Filho, Coelho e Peres, 1999, p. 122). todos os níveis de atenção. A necessidade de prática interdisciplinar é psicólogo se caracteriza justamente por ser um profissional comum a todos os níveis de atuação (Castro e Bornholdt, 2004). qualificado para ouvir o significado que o paciente dá ao seu sofri- Há uma discussão bastante pertinente sobre a denominação do mento ou a sua condição, seja ela orgânica, psicológica, seja de vulne- campo com a prática da Psicologia, que envolve também a Psicologia rabilidade social. Essa oferta de escuta é fundamental para que se Clínica (Gorayeb, 2010; Castro e Bornhold, 2004; Yamamoto, Trindade possa fazer com que o sujeito em questão participe da escolha do seu e Oliveira, 2002). tratamento, da manutenção ou mudança de seus hábitos e se respon- Para Gorayeb (2010), sabilize por eles em conjunto com a equipe de saúde. Podemos utilizar o exemplo da prática em Psicologia Hospitalar (...) o que distingue o campo da Psicologia da Saúde de outros campos (atenção terciária) em que a oferta da escuta se dá nas enfermarias. Lá da Psicologia é o fato que os indivíduos aqui atendidos têm, em paciente é convidado a falar e refletir sobre sua condição, sofrimento, geral, um problema ligado à sua saúde física, de diversas ordens ou e dificuldades. Nesse contexto, é o psicólogo que vai ao gravidades possíveis. Usualmente, trata-se de um indivíduo que tem um problema orgânico relacionado a aspectos comportamentais ou encontro do paciente e se depara com ele num quarto, em que há outros emocionais, podendo tanto o problema orgânico quanto os aspectos pacientes e outros profissionais. Dessa forma, o cenário da prática não é comportamentais/emocionais serem causa ou consequência da definido pelo seu espaço físico, mas pela capacidade de se preservar a inti- relação. (p. 119) midade, a privacidade e a confidencialidade do paciente no espaço dado.</p><p>60 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 61 Nesse cenário, o psicólogo avalia quais são as necessidades do nível de complexidade, o principal dispositivo em que o psicólogo está paciente e quais seus interesses. Algumas vezes ele precisará apenas presente é o Núcleo de Atenção ao Programa Saúde da Família (NASF). de uma informação; em outras, precisará de apoio emocional; e, em Esse núcleo, entre outras funções, deve ampliar as competências dos outras ainda, recusará a oferta de atenção. outros profissionais sobre seus conhecimentos e saberes, por meio do A atenção terciária e hospitalar é caracterizada pela internação e apoio (Ministério da Saúde, 2013). Nessa atuação, a equipe intervenção com forte necessidade da aplicação do modelo biomédico: deverá elaborar um Plano Terapêutico Singular (PTS) para os casos estabilizar uma situação grave. São encaminhados aos serviços atendidos. terciários os pacientes que não têm condições de ser tratados em outros Dois desafios se apresentam nessa prática: a) o foco não está na níveis. A alta hospitalar nem sempre é sinônimo de cura. Muitas vezes relação direta do psicólogo com o sujeito atendido, mas na relação de a alta é dada para que o tratamento seja continuado ou finalizado em toda equipe; e, b) a singularidade não é representada necessariamente casa. Finalizar o ciclo de antibiótico, alteração na dieta, cuidados com por uma pessoa, pode ser uma família ou um grupo social. curativos são alguns exemplos. Na atenção desses casos, a noção ampliada de saúde é funda- Dessa forma, é função do psicólogo avaliar se o paciente e sua mental para, além de haver um diagnóstico preciso, direcionar a família reúnem condições de assumir essa continuidade. Avalia-se a definição das metas e a divisão de responsabilidades com a partici- compreensão do paciente sobre sua situação, seus aspectos emocionais pação do sujeito atendido (Ministério da Saúde, 2013). e cognitivos, o apoio social e familiar ou condição social para a recu- peração do bem-estar. As reações psicológicas causadas pela internação são aspectos Considerações finais importantes para avaliação; afinal, a distância da família, a rotina hospitalar e a despersonalização que compreende, ou ainda, o medo A confusão que pode ser causada pelas nomenclaturas das espe- de hospital são questões que podem afetar a vida de uma pessoa e das áreas de atuação do psicólogo (Hospitalar, da Saúde internada. Investigar a relação do paciente com a doença, sua condição de enfermo, é fundamental: como o paciente projeta seu futuro e sua ou Clínica) é fruto de uma indefinição do campo, no qual, "não se carrega uma distinção suficientemente clara de seu 'fazer', nem do implicação no processo. Em situações que requerem cirurgias ou exames invasivos é ponto de vista técnico, nem do ponto de vista operacional" (Holanda, função do psicólogo hospitalar realizar o preparo dos pacientes para 2012, p. 75). Atuação clínica não é oposta à atuação em saúde, mas ao os procedimentos, identificando fantasias, medos e ansiedades para em contrário, são parte da mesma atuação que deve levar em consideração seguida elaborar estratégias de intervenção para dirimi-los. contexto em que está inserido. Em todos os casos, a atuação em equipe será fundamental. A Na atuação em saúde, além da avaliação psicológica do sujeito troca de informações e conhecimentos é fundamental e um desafio atendido é necessário que o psicólogo faça uma análise de contexto para todos os profissionais. Cada um faz sua avaliação específica para identificar os objetivos e limites do serviço em que atua. Por e, mediante o compartilhamento de impressões e conhecimentos é possível encontrar uma conduta comum a toda equipe. Em outros casos, o psicólogo poderá exercer um papel de mediador entre os inte- apoio matricial tem o "foco na ampliação de competências/capacidades das resses do paciente e os da equipe. Em virtude dessas interfaces, cabe ao equipes de saúde para lidar com problemas clínicos e sanitários (saúde mental, nutrição, reabilitação etc.)", objetivando "o aumento da resolutividade/capacidade psicólogo conhecer a prática das outras profissões. de cuidado das equipes de saúde e do escopo de ações da atenção básica, diante A participação do psicólogo na equipe de saúde é talvez mais de necessidades individuais e coletivas; alteração do lugar e da dinâmica das imprescindível na atuação do psicólogo na atenção primária. Nesse especialidades; e promover cuidado compartilhado" da Saúde, 2013).</p><p>62 Bruno Jardini Mäder Fundamentos em Psicologia Hospitalar e da Saúde 63 exemplo, se avalia que a intervenção psicoterapêutica é necessária para COSTA, A. M.; BAHIA, L.; SCHEFFER, M. Onde foi parar o sonho do SUS? Le aquele sujeito que acompanha, também se deve avaliar se, ele próprio, Monde Diplomatique Brasil, Abril de 2013. Disponível em: <http://www.diploma- dentro do atua, reúne condições de oferecê-la ou se deve Acesso em: 28 jan. 2015. encaminhar a um outro serviço competente. DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde (1978). Disponível em: <cmdss2011.org/site/wp-content/ Para essa avaliação e tomada de conduta, é fundamental saber Acesso em dez. que a assistência à saúde, historicamente, foi calcada num modelo e que nas últimas décadas vem sofrendo uma ampliação de concepção: ERDMANN, A. L.; ANDRADE, S. R.; MELLO, A. L. S. F.; DRAGO, L. C. A do modelo biomédico para o modelo biopsicossocial. Não se trata atenção secundária em saúde: melhores práticas na rede de serviços. Revista Latino de substituir um pelo outro, mas, reforça-se, de ampliá-lo. Por isso, é Americana de Enfermagem, V. 21, n. 8, 2013. necessário conhecer a evolução da noção de doença, como os homens GORAYEB, R. Psicologia da saúde no Brasil. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, n. (n° vêm se organizando para enfrentá-la até a condição atual. especial), p. 115-122, 2010. psicólogo surge como um profissional-chave nessa conjuntura HOLANDA, A. F. Reflexões sobre o campo das psicoterapias: do esquecimento aos pois com seus conhecimentos e técnicas qualifica a parcela "mental desaflos contemporâneos. In: HOLANDA, A. F. (Org.). o campo das psicoterapias: e social" da saúde. Afinal, desde o início da formação, é ensinado ao reflexões atuais. Curitiba: Juruá, 2012. psicólogo suspender (ou "colocar entre parênteses") seu julgamento K. F. A história da doença. In: PORTER, R. A história da medicina. Rio de pessoal e considerar a experiência singular do sujeito que atende. Revinter, 2008. LISBOA, L. Evolução do conceito de causa e sua relação com os métodos esta- em Epidemiologia. Einstein, V. 6, n. 3, p. 375-7, 2008. Referências MENDES, E. V. As Redes de Atenção à Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 15, 2010. MINISTÉRIO DA SAÚDE. História e evolução dos hospitais. Rio de Janeiro: ALMEIDA FILHO, N.; COELHO, M. T. A.; PERES, M T. conceito de Saúde Ministério da Saúde, 1965. Mental. Revista USP, São Paulo, n. 43 p. 100-125, 1999. MINISTÉRIO DA SAÚDE. o ABC do SUS Doutrinas e princípios. Ministério ALMEIDA FILHO, N. o conceito de saúde: ponto cego da epidemiologia? Revista Brasília, 1990. Brasileira de Epidemiologia, 3, n. 3, p. 5-20, 2000. DA SAÚDE. Departamento de Atenção Básica. Coordenação o que é saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. de Gestão da Atenção Básica (2013). Núcleos de Apoio à Saúde da AROUCA, S. Democracia é Saúde. In: Anais da Conferência Nacional de Conceitos e Diretrizes. Disponível em: <http://www.saude.rs.gov.br/ Ministério da Saúde, Centro de Documentação: Brasília, 1987. Acesso em: 15 jan. 2015. BONITA, R.; BEAGLEHOLE, R.; T. Epidemiologia básica. São R. Das tripas coração uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Paulo: Santos, 2010. BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Atenção o que é doença. In: PORTER, R. A história da medicina. Rio de Janeiro: e Promoção da Saúde/Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Brasília 2008a. CONASS, 2007. Hospitais e cirurgias. In: PORTER, R. A história da medicina. Rio de CASTRO, E. K.; BORNHOLDT, E. Psicologia da saúde psicologia hospitalar Revinter, 2008b. definições e possibilidades de inserção profissional. Psicol. cienc. Prof., 24. n. 3, O. H.; TRINDADE, L. O.; OLIVEIRA, I. F. O. o psicólogo 2004. hospitals no Rio Grande do Norte. Psicol. USP, 13, n. 1, p. 217-246, 2002. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA CFP. Homenageado: Mathilde Neder. Psicologia: Ciência e Profissão, n. 25, p. 332, 2005.</p><p>3 Para introduzir conceito de sofrimento em psicanálise cow Christian Ingo Lenz Dunker Há uma diferença essencial do trabalho do psicanalista em hospitais e demais equipamentos de saúde, em comparação com a sua clínica geral. No hospital ele não apenas se ocupa das interveniências e incidências dos sintomas que precedem o adoecimento, mas principal- mente de efeitos da situação hospitalar caracterizada como uma expe- riência de sofrimento. Incerteza diagnóstica ou efeitos deletérios de um mau prognóstico; temores diante de intervenções e exames; recusa ou resistência a aderir ao tratamento; efeitos indesejáveis da medicação ou da falta dela; dores e incômodos gerados pelo adoecimento; efeitos da vida em hospital; desencontros e transferências com os cuidadores, enfermeiros e médicos; angústias e inibições que cercam a finitude e a morte. Instrusões da realidade cuja espessura em relação sua reconstrução discursiva e rememorativa se afina. Esse conjunto de experiências não caracterizam sintomas psicológicos por si. Eles também não se enquadram semiologicamente apenas como formas específicas de angústia ou de inibição. Por outro lado, encontramos uma palavra que parece descrever perfeitamente e em todas as nuances experiência de hospitalização: sofrimento. A observação clínica sugere que a hospitalização bem como os tratamentos prolongados e no geral nossa relação e dedicação aos cuidados com a saúde tomam parte na economia do nosso narcisismo, com que sintomas, inibições e angústias causem maior ou menor sofrimento. Segundo a hipótese deste texto, isso ocorre porque 0 que chamamos genericamente de sofrimento corresponde a uma A DA</p><p>66 Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 67 Christian Ingo Lenz Dunker combinação entre demanda, identificação e transferência que interfere Mas o que nos chama a atenção é a quinta e última ou altera o cálculo de gozo de um sujeito. Adoecer é sempre um abalo que no texto de Freud é a primeira, para introduzir o narcisismo: o narcísico, contudo, sob certas circunstâncias, que dizem respeito à adoecimento orgânico. A debilidade de nossos corpos, a insuficiência fantasia inconsciente, esse abalo interfere na economia de gozo do de nossas leis e o caráter inexorável de nosso "comum pertencer ao sujeito, desencadeando novos sintomas ou fazendo com que antigos mundo", do qual não podemos sair, são três condições freudianas do sintomas sejam vividos com mais sofrimento. mal-estar que convergem para a produção do adoecimento orgânico Contudo, se procurarmos nos dicionários e nos vocabulários de como paradigma do sofrimento. Nele a debilidade de nossos corpos, a psicanálise pelo conceito de sofrimento nada será encontrado. Não há insuficiência de nossas leis e o caráter inexorável de nosso destino se um texto sequer, clássico ou de referência consensual, na história da repetem, nos recolocando novamente diante do desamparo e da passi- psicanálise, que se detenha nessa noção, que é ao mesmo tempo nossa vidade que tão marcadamente ocuparão a metapsicologia freudiana da antiga companheira e mais íntima presença em tudo o que fazemos pulsão de morte. na direção da cura e na condução de tratamentos. É possível que se tenha escrito mais em psicanálise sobre o masoquismo, essa forma de extrair satisfação libidinal do sofrimento, do que do sofrimento em si. Sofrimento como patologia do narcisismo Quando procuramos um ponto de partida para essa noção, vem em nosso auxílio justamente os motivos que Freud (1914) elenca para Mas o que significa uma doença orgânica? Uma pessoa que tem introduzir outra ideia que lhe parece conexa, a saber, o narcisismo. uma doença orgânica, mas não sabe, enquadra-se no critério freudiano Em seu consagrado estudo sobre o assunto, Freud elenca cinco razões de introversão ao egoísmo e regressão narcísica? Inversamente, clínicas para introduzir o conceito de narcisismo em psicanálise: 1) a suponhamos alguém que vive a suspeita da presença de uma doença regularidade das formas de amor das escolhas de objeto; 2) o agrupa- orgânica e que para tanto é internado para exames e estudos. Ao final, mento dessas escolhas entre as que se baseiam em imagens nas quais todas as hipóteses diagnósticas são descartadas. Mesmo assim essa alguém se reconhece ou que se baseiam em protótipos culturais (como pessoa foi tratada e reconhecida como doente, e isso não deixa de o pai protetor e a mãe nutridora); 3) existência de parafrenias, que provocar efeitos subjetivos, ainda que objetivamente nada tenha sido só podem ser compreendidas por conformações egoicas diferentes das constatado. Ou seja, o adoecimento é, antes de tudo, uma experiência que encontramos na neurose; 4) a existência das neuroses atuais, que de saber. Um saber composto pela experiência corporal e pelos seus colocam em consideração a vida sexual atual e a quantidade de libido signos de mal-estar, pelos seus autodiagnósticos e paradiagnósticos transformada em angústia. que constituem esse saber como indeterminado diante de uma verdade Encontramos aqui os termos da nossa equação relativa ao por vir. A operação médica tem em seu horizonte a transformação adoecimento: a escolha do objeto (identificação), nutrição e proteção dessa indeterminação em determinação, sobre a qual se poderia (demandas), parafrenias (transferência) e neuroses atuais (gozo). então intervir e operar. Portanto, devemos assumir que a experiência Não há como não ver nessas quatro primeiras as razões mais do adoecimento começa como um fato pré-médico. Ela é um saber comuns para caracterizar as experiências de sofrimento, com ideias suposto, uma hipótese, uma interpretação de certos estados do corpo. muito próximas: insatisfação (sexual), estranhamento (identitário), Do ponto de vista psicanalítico, a pessoa religiosa ou delirante que inadequação (da imagem de si ao outro) e infelicidade se crê saudável contra todas as evidências está doente. Assim como Nenhum desses quatro quesitos pode por si mesmo aspirar sua 0 hipocondríaco que está convicto de ter doenças que os outros não condição de sintoma, e cada qual pode estar mais ou menos acompa- reconhecem, está vivendo uma experiência de adoecimento. Para a nhado de fenômenos de angústia ou inibição. psicanálise, o doente imaginário é, ainda assim, um doente. ato</p><p>68 Christian Ingo Lenz Dunker Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 69 simbólico, por exemplo, de internação, assim como o ato real de uma toca ao sofrimento, essa experiência envolverá todos os que estavam cirurgia não mudam nem alteram essa condição preliminar. Mas que juntos conosco. Passámos assim de uma experiência indeterminada nome melhor dar para essa "doença" que não sofrimento? de saber para uma experiência determinada de sofrimento. o produto Por sugestão de Ferenczi, em seu texto "Introdução ao final das sequelas, traumas, inibições e angústias, que carregamos Narcisismo" Freud (1914) parte de uma observação clínica muito conosco ao fim do adoecimento, constitui um saber, como um estado simples: a enfermidade orgânica influencia a distribuição da libido: de espera até que outro evento similar aconteça em nossa série de adoecimentos. Nossa experiência de adoecimento está profundamente A pessoa afligida por uma dor orgânica [Schmertz] e por sensações determinada pelas experiências anteriores. Eis aqui outro fato trivial. penosas [Missempfindung] resigna seu interesse por todas as coisas do mundo externo [Aussenwelt] que não se relacionam com seu Nem tão trivial é dizer que isso constitui uma espécie de anamnese que sofrimento [Leiden]. faz parte de como saber e verdade se articulam para um dado sujeito, estrutura narrativa de seu sofrimento: Encontramos aqui nossa palavra-chave, "sofrimento", remetida a duas outras circunstâncias que lhe diferem, a dor e as sensações Sejamos categóricos: não se trata, na psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque o efeito da palavra plena é reordenar penosas. Há uma transformação psíquica marcada pela redução de as contingências passadas, dando-lhes o sentido das necessidades por interesse pelo mundo, fenômeno, aliás, descrito igualmente para a vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz situação de luto. que explica a observação subsequente de que, presentes. (Lacan, 1953, p. 257) enquanto durar o sofrimento, o paciente se torna incapaz de amar. "O enfermo retira do Eu seus investimentos libidinais para poder rein- Retenhamos o modo como Lacan define sua racionalidade diag- vesti-los quando se curar [Genesung]. (...) Na estreita cavidade de seu nóstica como uma anamnese, ou seja, uma reconstrução envolvendo molar se recolhe toda sua alma [Seele]" 49). processos como memória, recordação, desesquecimento e rememo- Surge então esse estado de união e indiscernimento entre libido ração. Quem diz anamnese diz reconstrução. E essa reconstrução não e interesse, as duas formas de energia psíquica admitidas por Freud da realidade, como a que encontramos na diagnóstica da medicina, nesse texto, que conferem ao paciente acometido por uma doença que conjectura sobre as relações entre sistemas, órgãos, funções e orgânica esse diagnóstico notório, que qualifica seu sofrimento como substâncias, mas é uma reconstrução da verdade. Por isso a cura, se é egoísta. Quando doentes, nos tornamos indiferentes ao mundo e que esse termo tem um sentido em psicanálise, não é a remoção dos incapazes de amar; mas esse fato combina com algo que Freud não sintomas, mas a experiência de retomada da consciência. disse nesse texto, ou seja, o retorno e até mesmo o desencadeamento Voltemos ao problema do sofrimento, examinando agora o de novas formas de amar e de escolha de objeto muitas vezes se ligam problema da hipocondria. Nela ocorre, aparentemente, uma relação ao processo de cura ou de recuperação da saúde. A gratidão que a que observamos no contraponto e na razão levantada por experimentamos com relação aos que nos acompanharam na jornada Freud (1914) para introduzir o conceito de narcisismo. Não se trata do adoecimento parece uma retribuição invertida pela tolerância que de um saber indeterminado, mas de convicção e certeza. Ao contrário nossos próximos tiveram para conosco e para com nosso egoísmo. da doença orgânica, as causas e os fundamentos das alterações, sentimento de sobrevivência e de restauração exerce influência sentidas como penosas e dolorosas "não são comprováveis" [Fallen benéfica não apenas para a experiência imaginária de que retornemos ao estado anterior, mas para que o façamos com um acréscimo impor- "Anamnese: literalmente, o termo significa recordação. Em medicina, refere-se tante, agora somos alguém que resistiu, que sobreviveu, que passou por comumente à descrição da história da doença de um paciente que precede o experiência. Essa experiência terá um nome, uma data e consti- período da própria doença. Distingue-se da catamnese, que se refere à história do tuirá muitas vezes um marco simbólico na vida de alguém. No que paciente após uma doença" (Campbell, 1986, p. 38).</p><p>Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 71 70 Christian Ingo Lenz Dunker nich] (p. 50). Ora, aqui há um erro clínico clamoroso de Freud. A estrutura performativa do sofrimento Como se um hipocondríaco, que verifica e comprova a doença da qual ele convictamente sofre, tivesse deixado de sê-lo. Obviamente que Freud parece ter descrito com seu breve exemplo clínico falso. Conforme o adágio: "não é porque você é paranoico que os para introduzir o conceito de narcisismo é que o sofrimento é uma outros não te perseguem". critério para o diagnóstico de hipocon- categoria que se aproxima do que os filósofos da linguagem chamam dria não é a irrealidade da causa, mas a convicção ou certeza relativa de performativo. Em outras palavras, existem estados de ser que inde- à verdade. Se assim fosse, não haveria diferença entre o diagnóstico pendem do modo e do tempo no qual são descritos. Por outro lado há em psicanálise e o diagnóstico em medicina. Não é a lesão de órgão, certas situações que só existem em razão de certas propriedades prag- presente ou ausente, que define um fenômeno psicossomático, mas máticas da linguagem. Para usar o vocabulário do pós-estruturalismo a posição do sujeito e o cálculo de gozo que estabelecem a relação (Viveiros de Castro, 2015), nos atos ilocucionários, por exemplo, nas particular entre corpo, carne e organismo (Dunker, 2011). Relação descrições de estados de coisas em terceira pessoa, a ontologia é fixa, de homologia borromeana entre organismo dotado de imaginária a epistemologia é variável. Temos vários pontos de vista ou perspec- consistência que é ameaçada pelo adoecimento, de corpo simbólico, tivas de um mesmo objeto (o organismo). Nos atos performativos se cujo buraco de saber apresentamos anteriormente e de ex-sisten- dá o contrário. A epistemologia é fixa, determinada pelo sujeito em tência da carne, que se apresenta no fenômeno clínico da convicção primeira pessoa, e as é que são variáveis (corpo, carne, hipocondríaca: "A hipocondria pode exercer, sobre a distribuição da organismo). Descoberto nos anos 1960 por J. L. Austin, os performa- tivos deram origem à teoria dos atos de fala (Searle) e influenciaram o libido, idêntico efeito que a contração de uma enfermidade material pensamento crítico (Habermas). dos órgãos" (p. 51). Ora, permanece a dúvida então sobre a diferença entre (...) exemplos de enunciados performativos são "Neste momento, eu condria, incluindo aí o sentimento de estar adoentado, ainda que não vos declaro marido e mulher" e "Batizo este navio" de HMS Pooty. se saiba muito bem do quê, e a doença orgânica, sobre a qual muitas Fica claro, que os enunciados não surtirão efeito a não ser que certo número de condições necessárias estejam preenchidas. Trata-se vezes não se tem além de suspeitas clínicas e de fratura no saber. de condições de felicidade para esse enunciado. Se as condições de A aproximação que Freud faz entre a hipocondria e as parafrenias, felicidade não forem satisfeitas, o enunciado resultante não será ainda no texto sobre o narcisismo, pode nos ajudar a entender o exatamente falso ou errado, será apenas infeliz e não terá efeito problema, mas também pode obscurecê-lo. Nem toda hipocondria (entenda-se: não terá os efeitos previstos). (Trask, 2004, p. 227) é um sintoma de psicose, ainda que na psicose, principalmente nos A descoberta de verbos e enunciados performativos representou litorais de desencadeamento, seja frequente sintomas hipocondríacos. um giro de abordagem da linguagem, antes concentrada na verdade ou Na parafrenia, termo formulado por Freud para unificar esquizofrenia falsidade de proposições, para as condições de felicidade ou infelici- e paranoia, encontramos outra relação com o adoecimento. Muito dade de um ato performativo. A experiência de sofrimento, como uma frequentemente a hospitalização desencadeia sintomas, mas, curiosa- experiência ligada ao narcisismo, tem uma estrutura performativa. A mente, também os pacifica. Tal efeito depende não apenas do estatuto hipocondria pode ser descrita como uma patologia do performativo de verdade, mas da dimensão de realidade que uma internação pode ligado ao adoecimento, uma patologia que não encontra no outro as trazer em termos de pacificação ou de tensionamento do delírio. Em condições discursivas pelas quais seus enunciados poderiam ser consi- outras palavras, o evento "objetivo" do adoecimento tem efeitos de derados felizes. adoecimento orgânico só é adoecimento orgânico, acirramento ou de estabilização do sofrimento, porque ele altera a em sentido freudiano, quando os performativos necessários para que relação entre saber e realidade pela intromissão de um novo discurso: alguém seja considerado doente são efetivamente realizados, e quando o discurso médico. enunciados que compõe o sofrimento são feitos de modo feliz (no</p><p>DESCR 72 Christian Ingo Lenz Dunker Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 73 sentido linguístico-discursivo do termo). Temos então uma partição infelizes, no sentido de que eu os subjetivo, que eu "acredito" em sua aplicável ao conceito psicanalítico de saber: saber descritivo e saber eficácia ou que eu em meu interlocutor. Freud nos lembra performativo. Esta última acepção é aproximável do saber-fazer (savoir que genericamente sofremos porque estamos sendo determinados por que caracteriza o fazer do psicanalista e o saber do analisante forças que supostamente vão contra nossa vontade: a decomposição do em sua relação com o sintoma. corpo, a injustiça das leis, a exiguidade de nossa presença no mundo. Essa dimensão performativa da linguagem é que Lacan tentou Podemos nos perguntar aqui qual ou quem é o sujeito desse processo descrever com seus desenvolvimentos em torno da noção de saber de adoecimento? o paciente ou o médico? discurso do sujeito ou da (savoir). Particularmente ao final de seu ensino, ele argumenta que o Da família ou do Estado? Do Outro que dele se encarregou próprio inconsciente deveria ser lido como um saber tolo (une bevue). performativamente de cuidar, tratar e curar, ou daquele que deveria ser Para isso ele joga com o radical alemão wiessen (saber), contido na agente de seu próprio processo de adoecimento? expressão alemã para inconsciente (Unbewusst). Ele observa que Nossa tese do adoecimento do corpo, carne e organismo como este radical "be" antes do verbo saber (bewiessen) denota um subs- uma experiência pragmática de saber e a decomposição desse saber tantivo, mas também pode ser lido como um saber que se apropria em sua face inconsciente, permite dirimir uma segunda forma de de si mesmo; um saber que se sabe como tal, apontando para um sofrimento: o.sofrimento de indeterminação. Inclui-se aqui os casos nos sujeito ciente, consciente ou sapiente (bewiessen). Portanto a negação, quais não se realizam perfeitamente os performativos, e, portanto, a felicidade dos enunciados não encontra suas condições de contida no mais importante conceito da psicanálise, é uma negação indeterminada, pois ela pode se remeter tanto ao sujeito como àquele Isso ocorre, por exemplo, quando a "teoria da doença" que o paciente que sabe (bewiessen), quanto ao saber ele mesmo [Un (...) wiessen)] pratica diverge substancialmente ou performativamente da "prática da insabido, mal sabido, tolice e ainda ao saber verdadeiro e constituído cura" que o hospital oferece. Isso ocorre tanto no caso dos transtornos factícios (hipocondria, Münchausen, Síndrome de Ganser), mas também (o já sabido). A confusão decorre do fato de que os cognatos de wiessen nas situações mais comuns de "não aderência" ao tratamento, de resis- referem-se a três conceitos distintos: saber descritivo, ter consciência tência aos procedimentos, de desistência, de eutanásia ou de distanásia. e saber performativo. Isso nos ajuda a esclarecer a tripla dimensão do No caso do sofrimento de determinação, é possível reconhecer conceito de sofrimento. Ele é referido à verdade, quando se trata da presença da função nominativa como indutora do sintoma. Há um negação do saber expressa por seu estado de indeterminação nome, ao qual se atribui função causal e narrativa, e desenvolve-se em incerteza, espera, hesitação). Ele é referido à "felicidade", quando se torno de uma coerção (necessidade) ou de uma impossibilidade (como trata da sua efetividade pragmática determinada (reconhecido, não negação do possível). transitivismo apresenta o sintoma como ego- reconhecido, parcialmente reconhecido). Finalmente, ele é referido à distônico e o sujeito se faz reconhecer por sua forma de sofrimento: realidade, quando se trata da consciência, como instância de objetifi- com sua demanda. A comunicação do diagnóstico costuma cação, alienação e determinação, e pode se apresentar como indetermi- um bom exemplo de um ato de determinação do sofrimento. nação em como o estranhamento (Unheimlich), a descrença No caso do sofrimento de indeterminação, estamos diante da (Unglauben), o transitivismo, a despersonalização e a dissociação. ausência da função nominativa indutora do sintoma. A narrativa Agora estamos em condições de sugerir uma distinção inicial se desenvolve-se em torno de uma contingência: mal-encontro, estranha- queremos entender a experiência de sofrimento, tomando como ponto mento, mal-estar poliqueixoso. transitivismo apresenta o sintoma de partida o narcisismo e dentro dele a oposição entre adoecimento como egossintônico, e o sujeito não se identifica com a demanda orgânico e adoecimento hipocondríaco. Podemos discernir a exis expressa em seu sofrimento. A incerteza prognóstica é um exemplo tência de um sofrimento de determinação, no qual sofremos com um do sofrimento de indeterminação. saber que nos atinge pragmaticamente, para o qual temos os nomes, Para o médico, pode não fazer diferença a concepção de doença as causas e para qual os enunciados do adoecimento são felizes ou que paciente pratica. Aliás, esse é um dos marcos característicos da</p><p>74 Christian Ingo Lenz Dunker Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 75 nova medicina clássica, que, depois de 1785, segundo a hipótese de do reconhecimento não deve ser confundida, como tão frequentemente Foucault (1968), tornou-se uma medicina na qual a teoria do adoe ocorre, com reconhecimento imaginário. A dialética do reconheci- cimento propagada pelo paciente deve ser silenciada. Contudo, para mento é a primeira versão do Real, Simbólico e Imaginário. o psicanalista, essa diferença constitui um discurso, o discurso do Do ponto de vista clínico, é relevante estabelecer quais são as sofrimento, no qual a transferência pode ou não facilitar os cuidados condições que tornam um sintoma apto a produzir mais ou menos sofri- que o médico quer e deve lhe dispender. mento, ou ainda, sob que circunstâncias o sofrimento em sua relação com o sujeito engendra formas de demanda, de inclusão ou rotação de discurso ou ainda de transferência. Noções como o cálculo neurótico do 1. sofrimento como patologia do reconhecimento gozo (Dunker, 2002), o fracasso da fantasia (Amigo, 2005) e o masoquismo cultural (Silva Jr., 2012) vêm sendo evocadas para dar conta dessa variedade Para introduzir a metapsicologia do conceito de sofrimento em de estados do sintoma. Genericamente elas tentam descrever operações de psicanálise, nosso método consistirá em dois movimentos. Primeiro, proce corte, escrita e sutura no saber em seu litoral para com o gozo. deremos a uma reconstrução das formas de emprego e da função nocional Em Freud (1927), se há um esboço de autonomização do dessa expressão nas obras de Freud e de Lacan. Em seguida compararemos conceito de sofrimento, isso é tardio na obra. Poderíamos localizar a incidência nocional e clínica da noção de sofrimento com os conceitos de como momento fundamental o texto sobre o humor, que procura sintoma e de mal-estar. Nesses dois movimentos tentarei delimitar a noção reexaminar o problema discursivo do chiste à luz da hipótese da pulsão de sofrimento como uma patologia da economia de reconhecimento, ou de morte e do mal-estar: seja, uma inflexão dupla do narcisismo sobre o sintoma e do sintoma sobre Com sua defesa frente a possibilidade de sofrer (Leidenmöglichkeit) o mal-estar. Nossa hipótese é de que o sofrimento sempre responde a um ocupa um lugar dentro da série daqueles métodos que a vida anímica déficit de reconhecimento, seja do ponto de vista dos atores imaginários, dos seres humanos mobilizou a fim de subtrair-se da compulsão de sofrer do Outro simbólico, seja de atos reais. (Zwang des Leidens), uma série que se inicia na neurose e culmina no As patologias mais gerais do reconhecimento foram descritas por delírio, e na qual se inclui a embriaguez, o abandono e o (p. 279; Honneth, recuperando o diagnóstico de época praticado por Hegel, tradução do autor) como o desrespeito, ressentimento, solidão, apatia e experiência de Temos aqui a inusitada expressão compulsão a sofrer, análoga e vacuidade. sofrimento exprime, consequentemente, a articulação particular da compulsão a repetir, que sera tema central do texto entre as fantasias do sujeito, os sentimentos sociais que regulam suas imediatamente posterior, "Mal-estar na civilização". Nesse texto, Freud trocas simbólicas e a dialética de reconhecimento do desejo. Essa afirma que o sofrimento humano é proveniente de três fontes: do dialética compõe-se de três momentos, que podemos associar com próprio corpo, do mundo exterior e da relação com o outro. os três estados do saber, anteriormente examinados. Ou seja, o sofri- Em a noção de sofrimento impõe algumas técnicas ou mento é condicionado pela subjetivação do saber na demanda. Ele algumas estratégias entre as quais o recalque seria um caso envolve, portanto, as vicissitudes pragmáticas do reconhecimento, cuja Ou seja, o sofrimento é uma categoria clínica transversal, uma vez que gramática Lacan esboçou no seminário XII: Comandar relaciona horizontalmente com as grandes estruturas defensivas, Mendigar (quémande); Exigir (to demand); Pedir (to beg). A demanda de ser reconhecido (saber-se um objeto e ter sua imagem reconhecida o recalque, a foraclusão, a renegação e a clivagem, e relaciona-se determinada pelo outro), ato ou trabalho de fazer-se reconhecer (saber determinado quanto aos meios e indeterminado quanto aos efeitos), Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como o método e o reconhecimento do desejo (na indeterminação de seu objeto e na mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes determinação dos significantes que o suportam). Portanto, a dialética da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo" (Freud, 1930, p. 96).</p><p>76 Christian Ingo Lenz Dunker Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 77 também verticalmente com as noções psicopatológias de sintoma, de escolarização e situações de vulnerabilidade social (Donnangelo de dor, de angústia, de inibição, de mal-estar. No texto em questão, o Pereira, 2011), tais como imigração (Rosa et al. (2013) e pobreza, sofrimento coloca em relevo a impotência do eu diante do real, assim associam-se regularmente com sintomas psíquicos. Aos transtornos como o humor é uma forma de fazer o supereu "consolar o eu, colo- por esforço repetitivo, às alexitimias e a quadros psicossomáticos dos cando-o a salvo do sofrimento" (p. 282). anos 1980, devemos acrescentar o sofrimento de gênero, o sentimento de inadequação social e a incongruência corporal crônica, ascen- dentes nos anos 1990, que tornaram as doenças mentais a principal 2. Motivos clínicos para introduzir o conceito de sofrimento causa de afastamento do trabalho e da escola nos anos 2000. Mas se os "problemas de sofrimento psíquico não são separáveis do conjunto A questão do sofrimento é clinicamente relevante, pois permitiria das condições de vida das ainda não se encontrou um entender uma série de vicissitudes, desde a interrupção, não aderência modelo que permita comparar clinicamente modalidades de sofri- ou aderência inconstante a tratamentos, em geral, até mesmo mento com tipos de sintoma, no quadro do que se poderia chamar lítico. Faz parte de considerar o paciente como sujeito de sua própria de uma psicopatologia crítica. Alguns passos nessa direção foram de adoecimento, acolher sua maneira própria de sofrer. dados por Ehrenberg (1998) com relação à depressão, Malabou (2007) E essa estilística do sofrimento comporta escolhas, no sentido de para as síndromes demenciais e para várias condições clínicas, como escolha inconsciente. Considerada essa outra forma de escolha, que paranoia e esquizofrenia, histeria e narcisismo, fetichismo e anomia, não é apenas a escolha forçada do fantasma, como saber que estamos em nossa pesquisa anterior no Laboratório de Teoria Social, Filosofia diante do sofrimento que acompanha a renúncia e o encontro com a Psicanálise (Latesfip-USP) (Dunker et al., 2014). castração e quando estamos diante do sofrimento que é incremento do A noção de sofrimento, se é pertinente nossa associação desta masoquismo moral propiciado pela própria psicanálise? com a sua incidência sob forma de narrativa, permite pensar a unidade Há, portanto, dois caminhos de investigação que devem se dos sintomas, da angústia e da inibição, retomando a antiga categoria cruzar: o mapeamento da incidência e da interferência da noção de de "história da doença". A postulação da neurose, da perversão e da sofrimento considerada a partir da relação com o sintoma e com a psicose como unidades etiologicamente distintas, contrariamente à angústia, portanto com as estruturas clínicas, e a dedução de formas fragmentação sindrômica de sintomas desconectados, que reconhe- específicas de sofrimento, tomando-se por base articulações do cemos em um sistema diagnóstico como o DSM, não implica apenas mal-estar e, portanto, da fusão e desfusão da pulsão de morte. Tais opor unidade causal e descrição semiológica, mas redução da possi- formas dependem da perspectiva que se assume diante do sofrimento; bilidade de contradição e de redescrição exigida pela metapsicologia. por exemplo, mostrou-se em estudo anterior (Donoso, 2013) que a Essa unidade não precisa ser definida pelo nexo fixo e regular entre variedade de atitudes e de interpretação diante do sofrimento do outro sintomas e causas, uma vez que ela envolve ainda a função narrativa corresponde à variedade de recepção narrativa do próprio sofrimento, do sofrimento, como uma espécie de história, ainda que coartada, que da crueldade à compaixão, da valentia à fuga. line e articula sintomas, conferindo-lhe valências de sofrimento, ou, Outro motivo para valorizar a noção de sofrimento decorre em caso contrário, impedindo e bloqueando o reconhecimento de dasua exclusão metodológica por parte sistemas diagnósticos como certas formas de sofrimento. DSM e CID. Apesar da sua aceitação e uso crescente por parte das 3 políticas públicas, a categoria de "sofrimento" não é médica, mas Delegation Interministerielle au Revenu Minimum d'Insetion et Delegation social. A partir dos anos 1980, tornou-se cada vez mais claro que certas Interministerielle a la Ville et au Development Social Urbain, 1995. Président: formas de vida, envolvendo posições laborais (Dejours et al., 2008), Antoine Lazarus. Une souffrance qu'on ne peut plus cacher. Rapport du groupe de de gênero (Costa Silva, 2011) e de classe (Barata, 2009), condições travail "Ville, santé mentale, précarité et exclusion sociale", février, 1995, p. 33.</p><p>Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 79 78 Christian Ingo Lenz Dunker A antropologia do adoecimento descreve quatro narrativas Curiosamente essas quatro incidências gerativas da causalidade fundamentais para articular a causalidade do sofrimento: a perda da do sofrimento se reapresentam nos usos e empregos do conceito de alma; a violação de um contrato; a intrusão de um objeto; e o desmem- objeto a em Lacan como: objeto da angústia (castração); objeto da bramento da unidade sistêmica do espírito. Seriam essas narrativas fantasia (identificação); objeto causa do desejo (demanda); objeto articuláveis com as hipóteses etiológicas que verificamos na psicanálise agalma (transferência); e objeto mais-de-gozar (discursos). Cada uma da seguinte maneira: delas representa um entendimento do que vem a ser a perspectiva do sujeito e a desconstrução do intérprete do sofrimento (Silva Jr., 2007). o objeto a afigura-se assim como uma espécie de ponto de Forma de Sofrimento Modelo de Etiologia do Sintoma convergência e amarração daquilo que compõe um quadro de sofri- mento: suas inúmeras perspectivas e linhas de horizonte, seu ponto de Alienação como perda ou Defesa e Recalcamento. exclusão do olhar em relação ao ver, a armadilha ou a demanda que o extravio da alma, esvaziamento, quadro faz ao outro e também a fantasia que é dada pela sua moldura. solidão ou apatia. DA Extraímos o modelo de narrativa do sofrimento da hipótese Ruptura de contrato e sentimen- Complexo de Édipo e Castra- lacaniana, formulada pela primeira vez por Lévi-Strauss, de que a to social de desrespeito ou in- ção. neurose é um mito individual. Mas teríamos de acrescentar ao mito o dignidade. siber rito. Ela é uma espécie de mito prático, formado por injunções Sexualidade e Trauma. veis, quando tomadas em sua totalidade, mas perfeitamente ordenadas, Objeto intrusivo, estrangeiro ou deficitariamente reconhecido. A quando consideradas em feixes isolados ou em conexões duais. Temos então três pilares da noção de a sua forma estrutural Perda da unidade do espírito, Fusão e Desfusão das Pulsões. (simbólico) da narrativa mítica (imaginário); seu conteúdo histórico anomia ou fracasso ou excesso is (Real), apresentado como realidade e suas estratégias de nomeação (simbólico-imaginário) do mal-estar (real). É de individualização da cia. essa tripla inserção da verdade, da realidade e da certeza no sofrimento que pretendemos traduzir aqui em acordo com a tese de que: "a verdade Para um desenvolvimento mais pormenorizado dessas narrativas do sofrimento é o sofrimento ele mesmo" (Lacan, 1965)4. remeto o leitor a trabalhos anteriores (Dunker, 2015) nos quais tentei Podemos associar cada uma dessas hipóteses freudianas sobre mostrar como o sofrimento condiciona a teoria freudiana do diag, 0 sofrimento com figuras narrativas fundamentais do sofrimento em Cada uma dessas narrativas apreende com melhor precisão real nossos mitos de sofrimento contemporâneos. Poderíamos eleger o os diferentes elementos de nossa equação de adoecimento. A fusão e vampiro como figura máxima do adoecimento, que articula tanto os desfusão das pulsões descrevem com precisão a compulsão à repetição, que cuidam quanto o próprio paciente em uma relação de possessão como saber insensato, que pode cercar um adoecimento. A sexualidade despossessão de si. Ao lado dos fantasmas, dos Zumbis e dos traumática apreende o papel específico da fantasia no transcurso do Frankensteins, os vampiros constituem narrativas que dão corpo a adoecer, como saber emergente e não antecipável. o complexo de Édipo e a castração compõem uma narrativa cujo cerne é a identifi cação do saber sobre a castração. Finalmente a teoria da defesa, como Lacan, J. (1965). seminário. Livro XIII. o objeto da psicanálise. "Quand je dénonce, gramática de negações e retornos do desejo, descreve com profun- par exemple, omme non vérité, d'énoncer au nom d'une certaine phénoménologie qu'il n'y a pas d'autre vérité de la souffrance que la souffrance elle-même, je dis: ceci didade o que Lacan chamou de circuito das voltas da demanda e, est une non-vérité tant qu'on n'a pas prouvé que ce qui s'est dit au nom de Freud... portanto, as relações, antes examinadas, entre saber e demanda. que la vérité de la souffrance n'est pas la souffrance elle-même". Versão Staferla.</p><p>80 Christian Ingo Lenz Dunker Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 81 uma determinada demanda. São figuras paradigmáticas para falar Devemos notar que Lacan cita Terêncio, mas não desconhece que do objeto intrusivo (Vampiro), da alienação (Zumbi), da dissolução quem reabilitou o termo foi Baudelaire (1888, p. 307) em seu poema da unidade (Frankenstein) e do contrato (Fantasma). Retomando a homônimo, que se encerra da seguinte maneira: dialética lacaniana do reconhecimento, vemos que as narrativas de Eu sou a faca e o talho atroz! sofrimento são expressões dos performativos da demanda articulados Eu sou o rosto e a bofetada! com um objeto de gozo: comandar (Vampiro), mendigar (Zumbi), Eu sou a roda e a mão crispada exigir (Fantasma), pedir (Frankenstein). Elas nos falam de experiências Eu sou a vítima e o algoz! de perda do corpo (Fantasma), de intrusão da carne (Frankenstein), de autonomização do organismo (Zumbi) ou de reversão perpétua entre Sou um vampiro a me esvair carne e corpo (Vampiro). um destes tais abandonados Ao risco eterno condenados, E que não podem mais sorrir. A noção de sofrimento em Lacan Notemos a insistência na relação existencial ("Eu sou") dirigida a uma identificação que não é nem com o agente nem com o paciente Na tese de 1932, Lacan faz referência ao heutontimorumenos, da ação, mas com algo que lhe seria intervalar, como na expressão essas personalidades que se comprazem em se atormentar. termo freudiana para a fantasia "Bate-se em uma criança". Ora, essta diag- procede de uma peça do poeta e comediógrafo latino Terêncio, na qual nóstica do sofrimento, que já aparecia em Aimée, se desenvolverá em um pai, que aplica um castigo severo demais a seu filho, emprega-se Lacan em torno do problema crucial da historicidade das formas de como escravo na fazenda vizinha para se punir, para se desculpar sofrimento em sua afirmação datada de 1938, a saber: "(...) o declínio e para se atormentar. termo é empregado por Lacan (1932) para da função social da imago paterna trará uma substituição da forma definir a personalidade de Aimée: neurótica de sofrimento pela forma caracterial (narcísica)" (p. .45). Estes tipos clínicos com os quais o caráter de nosso sujeito revelou sua Não se pode ignorar a incidência da expressão sofrimento nessa congruência precisa, o psicastênico e o sensitivo, não se revelam eles passagem crucial de Lacan, tantas vezes lida e reinterpretada como próprios por suas reações mais marcantes, seus obsessivos, chave de entendimento para a transformação social dos sintomas. pela inquietude de sua ética, por seus conflitos morais internos, Nossa hipótese implica considerar que a narrativa do sofrimento, como belíssimos tipos de "heautontimorumenoi": toda sua estrutura reaplicável para as outras formas de conexão entre mal-estar e sintoma, pode, ao que parece ser deduzida da prevalência dos mecanismos de traduz a noção tão importante de ficção, contida na tese lacaniana de autopunição. (p. 254) que "a verdade se estrutura como uma ficção". Sabemos que Lacan confere vários diagnósticos à Aimée, desde Lembremos que "A carta roubada", título do conto de Edgar Alan o bovarismo, que assediou sua faculdade imaginativa, até esse menos Poe e modelo de interpretação estrutural do desejo em sua relação com conhecido, de que ela era uma heautontimorumenoi. termo descreve significante e particularmente com o falo, é uma carta em espera com precisão uma forma de sofrimento, que não devemos confundir (souffrance), uma carta em sofrimento (souffrance). Lacan (1955) fala com o masoquismo. Ou seja, não se trata apenas da modalidade de em uma carta não retirada e de uma espera. Mas espera de quê, senão gozo, que se compraz no sofrimento; afinal nesse caso todo neurótico de reconhecimento, como mensagem jogada ao mar em uma garrafa. cairia sob essa condição, tornando o diagnóstico inútil pela sua gene- (...) nós que nos fazemos de emissários de todas as cartas roubadas ralidade. No caso em questão, temos uma prática específica que são que ao menos por algum tempo, ficam conosco em souffrance, sem os rituais de ser retiradas na transferência. (p. 41)</p><p>82 Christian Ingo Lenz Dunker Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 83 A primeira conotação do verbo souffrir em francês data de 1050 e Já que a verdade lhe diz Eu e que a resposta lhe vem em nossa remete a "suportar algo penoso ou desagradável". Ela descende do latim interpretação a interpretação deve ser mais bem delimitada, visto suferro, sustentar, resistir, tolerar o castigo infligido. Portanto o sentido que o profetismo não é outra coisa. Dizer Eu numa certa trilha que não we a de nosso sofrimento, isto também é interpretação. (p. 71) primitivo de sofrer é resistir, aguentar, sustentar. Dele deriva o e daí a souffrance como espera e pendência de "assuntos mal o desdobramento do problema do sofrimento nos leva a consi- É na segunda vertente da palavra, de extração mais cristã, que nos derar os fundamentos da experiência do sujeito em sua relação com a remete a passividade e paixão, denotando o sentimento que liga algo linguagem. Se quisermos propor um esboço de metapsicologia do sofri- físico a uma experiência moral. Só no uso posterior a 1530 consagrou- mento seria preciso dizer que ele depende da relação entre o ideal de eu -se o sofrimento no sentido de "aflição, martírio, tortura e o sintoma, que define a economia narcísica da demanda. o sofrimento Cabe destacar que a expressão malaise, que traduz em francês o termo envolve necessariamente identificação imaginária e, consequentemente, germânico Unbehagen (mal-estar), é uma variação do sentido primário convite à unidade por intermédio do amor e do ódio (Verliebtheit). de souffrance, ou seja, como espera indeterminada, resistência sem No plano simbólico o sofrimento envolve a captação da demanda esperança, expectativa sem recurso (Robert, 1995). em modalidades de transferência, ou seja, a dinâmica entre saber e É por isso que Lacan (1966) pode delimitar o campo de inter- sujeito e os atos de reconhecimento com o suposto que lhes subjaz. venção da psicanálise pela suposição de que há uma verdade no sofri- Entre tais atos os que mais afetam a experiência de sofrimento são mento. Diferentemente da ideia de que a "verdade da dor é a própria aqueles relativos à dimensão da nomeação, da letra e da escrita, cujo dor"; a verdade do sofrimento depende de que ele seja reconhecido, caso paradigmático são os atos diagnósticos. contado, ficcionalizado, e isso definiria a própria atividade do psicana- Na dimensão real o sofrimento regula-se pelo ritmo do gozo, lista: "(...) sim ou não, isso que vocês fazem tem o sentido de afirmar que pela temporalidade de sua restituição envolvida na comemoração de a verdade do sofrimento neurótico é ter a verdade como causa?" (p. um traço de gozo. o sofrimento é o que cessa de escrever, ou seja, uma Há aqui uma tese importante a reconstituir, ou seja, de que das negações possíveis do mal-estar como aquilo que não cessa de não sofrimento neurótico coloca a verdade na posição de se escrever. Ou seja, o sofrimento se exprime segundo a gramática do Acompanhando as teses de Lacan sobre a verdade (Iannini, 2012), possível, enquanto o mal-estar requer a gramática do impossível. sabemos que ela é indissociável de seu estilo de enunciação e que ela Lacan (1971) aborda as relações entre sofrimento e gozo no depende de um processo de contradições ou de negações, ou seja, ela Seminário sobre Um discurso que não seria do semblante, ao abordar a requer uma teoria do tempo. A verdade se produz por determinações, simbolização de gozo operada pelo princípio do prazer, como operação mas também por indeterminações do sentido. É nessa direção que pretendemos isolar, com base na noção de mal-estar (Unbehagen), de redução e de barra ao excesso de prazer: "Com efeito, o tecido de todos os gozos confina com o sofrimento; é nisso, inclusive, que dois tipos de sofrimento, caracterizados respectivamente pelo déficit de experiências improdutivas de indeterminação e pelo excesso de reconhecemos o hábito. Se a planta não sofresse manifestamente, não experiências improdutivas de determinação. que ela está viva" (p. 101). Para tanto pretendemos prolongar os estudos sobre a mutação do Ou seja, o sofrimento é tecido de todos os gozos; ele articula paradigma etiológico do recalque de modo que se pense o paradigma produz unidades discretas ali onde haveria apenas retalhos. da fusão e desfusão pulsional (Metzger e Silva, 2010) no quadro da Encontramos aqui a referência ao tecido e ao hábito, alusão à planta historicidade do supereu e da economia libidinal. de Aristóteles, que estaria imune ao logos, e à grande imagem do texto No Seminário XVI De um Outro ao outro, Lacan (1968-1969) como tecido, téssera, que liga fios de destino. volta a insistir nas relações entre verdade e sofrimento, agora deixando Mais ao final da obra, o tema do sofrimento reaparece ligado ao mais claro sua relação com atos de reconhecimento: da verdade.</p><p>Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 85 84 Christian Ingo Lenz Dunker Há sofrimento que é um fato, já que esconde um dizer. É por a castração. Aqui o diagnóstico estrutural é decisivo: há esta ambiguidade que se recusa que ele seja indispensável em sua modos neuróticos, psicóticos e perversos de adoecer. Os casos neuró- manifestação. sofrimento quer ser um sintoma, este quer enunciar ticos mais típicos remetem à aparição ou à reaparição de fobias infantis a verdade. (Lacan, 1975, p. 554) angústia como signo maior da indeterminação. adoecimento ocasião de retorno e de reedição da metáfora paterna. Ele constitui uma nova dialética entre determinação e indeterminação do saber em relação Considerações finais aos novos sintomas que se anunciam. E esse retorno pode ser dar não só 0 no simbólico, com a aparição oua reaparição de sintomas, mas também Cruzando as incidências da noção de sofrimento em Lacan com no imaginário, com a formação de fetiches corporais ou de um retorno as narrativas freudianas antes examinadas, torna-se possível agrupar do real, como desencadeamento de fenômenos elementares. Nesse caso, a experiência de sofrimento, determinada e indeterminada, segundo adoecimento está permeado pela ação de uma espécie de fantasma, o quanto cada sujeito pode recusar ou incorporar de gozo em sua como o de Hamlet, que vem nos cobrar uma dívida de existência. Nesse própria experiência de adoecimento. Como dissemos anteriormente, assume especial importância a história dos adoecimentos ante- todo adoecimento é uma perturbação narcísica, mas nem todo adoe- a mitologia familiar da doença, a transmissão e a identificação cimento torna-se uma ocasião para um novo cálculo de gozo (Dunker, de certos modos preferenciais de sofrer. 2002), um novo litoral entre saber e gozo. A terceira forma de adoecimento segue a rota da dessexualização A via mais simples para que isso ocorra de modo determinado traumática, tal como descrita brevemente no texto de Freud. Aqui a é naturalmente o circuito não complementar entre o masoquismo doença é sinônimo de intrusão, de envenenamento, de entrada de do eu e o sadismo do supereu. Como observou Deleuze (1973), com algo no corpo, que dele deve sair. Nesse caso o adoecimento é vivido, a anuência explícita de Lacan, o masoquismo envolve sempre uma principalmente, como estranhamento corporal, como Unheimlich de dimensão de contrato, explícita ou implicitamente. Aquele que adoece sensações, sentimentos e afetos que falam do sujeito como indeter- ao modo de uma perda narcísica entende que seu contrato com a vida minação diante do Outro. São adoecimentos vividos em estrutura não está justo, que o trato dos viventes não se mostra equânime. Mas vampírica, com a emergência de uma indeterminação no interior do há modalidades de indeterminação que envolvem, por exemplo, a tanto no sentido da demanda para os outros quanto pelo estra- desmontagem da demanda, o pedido de reconhecimento que atravessa nhamento que o adoecimento parece impor e despertar para quem o a experiência de sofrer e a torna uma mensagem ou uma formação de Como exemplo pessoal dessa modalidade de sofrimento posso sentido para o sujeito. É aqui também muito frequente que o adoeci a experiência de minha avó que aos 84 anos tem diagnosticado mento desperte os mais reconditos sentimentos de culpa e a reatuali um problema no coração e reage a isso indignada: "Mas eu nunca tive zação de lutos retidos, mal concluídos ou ainda não iniciados. Aqui o na minha vida! Como é possível que depois de tantos anos me sofrimento se narra pelas vias da perda da experiência e da experiência aparece algo novo deste jeito?" da perda. Ele assume a dimensão de um luto que pode mortificar ou A quarta incidência do objeto a faz do adoecimento um capítulo exaltar o sujeito. A melhor figura narrativa para o luto que não se dissolução da forma de vida até então vigente para um sujeito. São realiza é o Zumbi ou antigamente a Múmia, esse ser que retorna de esses os adoecimentos que parecem satisfazer mais fortemente sua tumba, sem saber que estava morto, como que a vagar em busca supereu, de modo que o gozo no adoecer torna-se mais pronunciado. da reapropriação de sua própria condição corporal. Nesse caso é comum que a condição de doente passe a ser efígie e Por outro lado, há adoecimentos que caem como para o sujeito. Aqui o adoecimento é excesso de experiência refacções da metáfora paterna, induzindo à formação de novos sintomas, improdutiva de determinação: diagnóstico fechado, enfermidade contra os quais o sujeito recusa saber, como recusou, um dia, assumir incurável, condição limitante permanente, transplante e tantos</p><p>86 Christian Ingo Lenz Dunker Para introduzir o conceito de sofrimento em psicanálise 87 outros cuidados que podem decorrer de um intercurso de adoeci- argumentamos que elas se dividem em dois grupos, conforme a deter- mento e que marcam o sujeito com a dissolução de suas unidades minação ou indeterminação de sua relação com a verdade, com a simbólicas: familiar, laboral, conjugal e discursiva. São as vidas que realidade e com a eficácia pragmática. Isso nos permitiu encontrar em se partem sem volta, ou que assim são vividas, mesmo quando não e em Lacan a dimensão narrativa do sofrimento, no imaginário, há uma confirmação objetiva dessa necessidade. Temos aqui a figura envolvendo estruturas míticas, a dimensão de nomeação no real do performativa de Frankenstein. corpo-máquina, descrito por Mary mal-estar e a dimensão simbólica do reconhecimento. A partir disso Shelley, não é apenas um errante que precisa de mais carne, que vem propusemos modalidades genéricas de adoecimento que agrupam tais ajustar as contas de uma dívida ou que precisa de mais sangue para narrativas e estratégias de nomeação, exemplificando ainda a partição viver. Frankenstein sofre com uma pergunta existencial em relação à entre corpo, carne e organismo nas diferentes incidências subjetivas finalidade da vida, que de certa forma reúne e sintetiza todas as ante do sofrimento e consequentemente de adoecimento. riores. Nós, que nos acostumamos a imaginar Frankenstein a partir do cinema, temos em mente uma criatura que não fala direito, que anda desarticuladamente e que procura seu mestre como uma espécie Referências de criança. texto nos fala de uma criatura que procura se integrar à ordem humana, mas é sucessivamente rechaçada e se vinga AMIGO, S. Clínica dos fracassos da fantasia. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2005. do fato de que sua condição excepcional não encontra reconhecimento BARATA, R. B. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de pelos outros. Contudo, quando encontra seu criador Frankenstein Fiocruz, 2009. pede que este construa uma fêmea para si, depois do qual deixará os C. (1888). As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. humanos em paz. Depois de aceitar o pedido, Victor Frankenstein CAMPBELL, R. Dicionário de psiquiatria. São Paulo: Martins Fontes, 1986. seu pai, criador e autor dessa gênese assexuada, interrompe o projeto COSTA SILVA, R. M. Raça e gênero na Saúde Mental do Distrito Federal. Curitiba: temendo dar origem a uma nova raça de monstros, sem alma. Nada 2011. descreveria melhor a busca pela sexualização do gozo do que essa C.; LANCMAN, S.; L. Christophe Dejours: da alegoria romântica. Os adoecimentos que se organizam narrativamente à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Paralelo 2008. por essa modalidade de sofrimento têm em comum a insensatez do G. Sade Masoch. Lisboa: Assírio Alvim, 1973. adoecimento, que é sentido como uma punição ou maldição incontor BONNANGELO, M. PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Hucitec, 2011. nável, exatamente como no conto de 1818. Vimos então que o adoecimento é um paradigma do sofrimento BONOSO, M. D. B. Reflexões sobre duas modalidades de crueldade diante da Iniciação Científica, IPUSP, orientação Nelson da Silva Jr., 2013. um dos mais antigos e consistentes que podemos reconhecer ao longo da história. Como tal, o sofrimento é uma experiência de saber, irre cálculo neurótico do gozo. São Paulo: Escuta, 2002. dutível à dor ou às suas formas de objetivação em escalas de adaptação Corpo, carne e organismo. In: ASSADI, T.; RAMIREZ, H.; DUNKER, ou qualidade de vida. E essa experiência de saber é coordenada (Orgs.). corpo como litoral. Fenômeno psicossomático e psicanálise. São vicissitudes do narcisismo, desdobradas na relação de reconhecimento Annablume, 2011. no real, no simbólico e no imaginário. Há diferentes incidências Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015. transformação de saber que caracteriza o adoecimento. Neste capítulo L.; SAFATLE, V.; SILVA JR., N. da. Patologias do social. São Cosac Naify (2014, no prelo). A. The Fatigue of Being Oneself. Depression and Society. Paris: 5. Jacob, 1998. M. (1968). nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense, 1988.</p><p>88 Christian Ingo Lenz Dunker FREUD, S. (1914). Zur Enführung des Narzismus. In: Sigmund Freud Studienausgabe. Frankfurt: Fischer, 1973. V. IV, p. 41-68. (1927). Der Humor. In: Sigmund Freud Studienausgabe. Fischer, 1973. V. IV. O campo transferencial (1930). Mal-estar na civilização. In: Obras Completas. Buenos como fundamento clínico Amorrortu, 1988. V. XXI, p. 57-140. IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, da ação terapêutica LACAN, J. (1932). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987 (1938). Complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Rubens Marcelo Volich (1953). Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (1955). Seminário sobre a Carta Roubada. In: Escritos. Rio de Janeiro Jorge Zahar, 1998. (1965-1966). o seminário. Livro XIII. objeto da psicanálise. Inédito. Se a psicanálise consagrou o potencial terapêutico da palavra (1966). A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge uma talking cure, se foi evocada por S. Zweig como uma "cura 1998. pelo cabe ainda plenamente reconhecê-la como reveladora do (1968-1969). o seminário. Livro XVI. De um Outro ao outro. Rio de de cura pela relação com o outro humano. Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Ana O. empregava a expressão "terapia pela palavra" para (1971). o seminário. Livro XVIII. De um discurso que não seria do sem descrever seu tratamento por Breuer, manifestando o poder blante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. transformador das lembranças e das narrativas sobre seus sintomas (1975). Introdução à Edição em Alemão de um Primeiro Volume e Breuer, 1895). Coube porém a Freud melhor explicitar e Escritos. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. desenvolver a compreensão de uma outra manifestação daquele MALABOU, C. Les nouveaux Paris: Bayard, 2007. o enamoramento de Ana O. por Breuer. Um fenômeno METZGER, C.; SILVA JR., N. da. (2010). Sublimação e pulsão de morte: frequente nos tratamentos das pacientes histéricas, que, tendo assustado desfusão pulsional. Psicologia USP, São Paulo, V. 21, n. 3, p. 567-583, jul.-set./2010 Breuer, provocou a interrupção do tratamento e impediu que ele ROBERT, P. Le petit Robert. Paris: Robert, 1995. compreendesse sua função e suas implicações no tratamento da histeria ROSA, M. D.; CARIGNATO, T. T.; ALENCAR, A. L. Desejo e política: desafios de outras manifestações neuróticas. Um fenômeno presente, como e perspectivas no campo da imigração e refúgio. São Paulo: Max Limonad, Freud, em toda relação médico-paciente, professor-aluno, SILVA, JR., N. da. (2007). "Whos there?" A desconstrução do intérprete subordinado, entre muitas. a situação psicanalítica. Ide, São Paulo, V. 30, n. 44, p. 25-31, jun. 2007. L'irremédiable soufrance de l'a culture. In: COELEN, M.; NIOCHE, Santos Jouissance et Soufrance. Paris: Campagne Premiére, 2012. TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e linguística. São Paulo: Contexto, 2004, de falha a recurso VIVEIROS DE CASTRO. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, As dificuldades e a interrupção prematura do tratamento de compreendidas posteriormente por Freud como uma falha sua</p>