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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia A ESCUTA DO DELÍRIO: DIÁLOGOS ENTRE A PSICANÁLISE E A SAÚDE MENTAL Jonas Rayfe Vasconcelos da Silva Natal/RN 2022 Jonas Rayfe Vasconcelos da Silva A ESCUTA DO DELÍRIO: DIÁLOGOS ENTRE A PSICANÁLISE E A SAÚDE MENTAL Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob orientação do Dr. Mário Francis Petry Londero e co-orientação da Dr. Ana Carolina Rios Simoni, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Psicologia. Natal/RN 2022 iii iv Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia A dissertação “A escuta do delírio: diálogos entre a psicanálise e a saúde mental”, elaborada por " Jonas Rayfe Vasconcelos da Silva", foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA. Natal, RN, 02 de Dezembro de 2022 BANCA EXAMINADORA DRº MÁRCIO MARIATH BELLOC- UFPA Examinador Externo à Instituição DRª ZAETH AGUIAR DO NASCIMENTO- UFPB Examinadora Externa à Instituição DR º MARIO FRANCIS PETRY LONDERO- UFRN Presidente v AGREDECIMENTOS Há muitas pessoas que conheci durante o percurso de escrita dessa dissertação, cada vez que me perguntavam sobre o que estava pesquisando/escrevendo me ajudaram a elaborar uma pequena parte dela. Faço menção inicialmente, como forma de agradecimento, aos meus pais, Zezinho e Tiquinha, que não tiveram a oportunidade de chegar à universidade, mas sempre acreditaram na potência transformadora da educação. Aos meus orientadores Francis e Ana que sustentaram as minhas incertezas, procrastinações e angústias de uma forma que tornou possível a concretização do mestrado com a entrega e defesa da dissertação. Aos que compõe o Hospital Geral Drº João Machado, o setor de psicologia o qual tenho a honra de coordenar, a direção geral na pessoa de Leidiane Queiroz, as assistentes sociais Fátima Couto e Vilca, que são fontes de inspiração no trabalho de desinstitucionalização, e a todos (as) usuários que me oportunizam aprender quando me coloco a escutá-los. À Clara e Wamberto, colegas do mestrado, que de forma muito especial me ajudaram a atravessar as angustias e frustações da formação, mesmo com a distância imposta pela pandemia da COVID-19. Enfim, a todas e todos que de alguma forma me impulsionaram e acreditaram, mesmo quando eu cogitei desistir. Escutar essas vozes me fez concluir essa etapa da vida acadêmica. Gratidão! vi Sumário Resumo vii Abstract .............................................................................................................................................. ix 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 11 2. OBJETIVOS ................................................................................................................................. 16 2.1 Objetivo geral 16 2.2 Objetivos específicos 16 3. METODOLOGIA ......................................................................................................................... 17 3.1 Método Psicanalítico 17 3.2 Campo e participantes 20 3.3.1 A construção do caso clínico 23 3.3.2 Diário de experiência 27 4. DESINSTITUCIONALIZAÇÃO E ESCUTA DO DELÍRIO ...................................................... 29 4.1 Breve reflexão histórica sobre a loucura e o delírio 29 4.2. O delírio para psicanálise e as interseções com a saúde mental 34 4.3. Os processos de desinstitucionalização na Reforma Psiquiátrica Brasileira 40 5. CONSTRUÇÕES DE CASOS CLÍNICOS E A CLÍNICA DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO ...................................................................................................... 46 5.1 Construção do Caso Eny 50 5.2 Construção do caso Amy 57 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 69 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 71 vii Resumo Trata-se de um estudo a respeito dos efeitos da escuta do delírio psicótico para a construção de processos de desinstitucionalização. O discurso delirante provoca reações antagônicas, tanto de estranheza frente a dimensão enigmática da linguagem nas psicoses, quanto de fascínio em desejar saber como o delírio se constitui para cada sujeito e o que pode operar aquele que o escuta. Na atividade de escuta aos sujeitos psicóticos, que historicamente são silenciados como uma técnica de tratamento, interrogo sobre o que pode acontecer quando o delírio é escutado e quais os efeitos que se produzem nos modos de cuidar. A questão que baseia esta pesquisa é: como a escuta de sujeitos psicóticos, em seus discursos ditos delirantes, pode ousar a construção de processos de desinstitucionalização? Nesta perspectiva, analisamos os efeitos da escuta do delírio como verdade singular de um sujeito. A pesquisa teve como base a orientação do método psicanalítico. O campo de pesquisa foi o Hospital Geral Dr. João Machado, componente da Rede de Atenção Psicossocial do RN, que historicamente é conhecido como uma instituição psiquiátrica, com atenção à crise em saúde mental e possibilidade de internação. Utilizei o dispositivo clínico-metodológico denominado escuta-flânerie articulada com diários das experiências do campo problemático e a ferramenta de construção do caso clínico. A aposta de trabalho com delírio não foi de confrontá-lo, buscando certa adaptação do sujeito ao discurso compartilhado, mas de levar em conta sua força reconstrutiva na estabilização psicótica, bem como a capacidade de formar laço social e tecer caminhos que apontem saídas da clausura. No trabalho da desinstitucionalização, em suas itinerâncias pelos territórios, tratou-se de de-lirar ousando andar pelos caminhos indicados por aquilo que estava fora dos sulcos, fora dos viii caminhos retos da razão manicomial. Portanto, escutou-se o delírio para delirar um lugar no mundo junto com os sujeitos. Palavras-chave: Delírio; instituição psiquiátrica; psicanálise; escuta; desinstitucionalização. ix Abstract This study analyzes the effects of listening to psychotic delirium for construction of deinstitutionalization processes. Delusional discourse provokes antagonistic reactions, both of strangeness regarding the enigmatic dimension of the language of psychoses and the fascination of wanting to know how the person who listens can operate. In the activity of listening to psychotic subjects, who historically have been silenced as a treatment technique, I ask what can happen when delirium is heard and what effects are produced in the modes of caregiving. The question that underpins this study is: How can listening to psychotic subjects, in their discourses said to be delusional, chance the construction of deinstitutionalization processes? From this perspective, I analyze the effects of listening to delirium as a singular truth of a subject. The study is based on the orientation of the psychoanalytic method. The research was carried out at Dr. João Machado General Hospital, a component of the Psychosocial Care Network in the state of Rio Grandedo Norte, which is historically known as a psychiatric institution, with focus on treating mental health crises and the possibility of hospitalization. I applied the clinical-methodological technique called flânerie listening, articulated with diaries of experiences as the problematic field and the clinical case as the construction tool. The proposal to work with delirium was not to confront it, seeking a certain adaptation of the subject to shared discourse, but rather to take into consideration the reconstructive force of psychotic stabilization, as well as the capacity to form social ties and define paths for escape from enclosure. Regarding the work of deinstitutionalization, in its ramblings, the effort was to de-lirar by hazarding to travel over the avenues indicated by that which is outside the mold, outside the straight paths of the asylum rationale. Thus, delirium was scrutinized to find a place in the world together with the subjects. x Keywords: Delirium; psychiatric institution; psychoanalysis; listening; deinstitutionalization. 11 1. INTRODUÇÃO A minha inserção no campo da saúde mental se deu desde a graduação em psicologia e é profundamente marcada por aproximações e distanciamentos que me possibilitaram refletir sobre a minha práxis profissional e de pesquisador. O interesse em estudar sobre o delírio surge a partir da escuta de sujeitos psicóticos internados em um hospital historicamente psiquiátrico de Natal, Rio Grande do Norte. O discurso delirante, desde os meus primeiros contatos com o campo da saúde mental, provoca-me reações antagônicas, tanto de estranheza frente a dimensão enigmática da linguagem nas psicoses, quanto de fascínio em desejar saber como o delírio se constitui para cada sujeito e, principalmente, o que pode fazer aquele que o escuta. Recordo-me de quando estava na graduação em Psicologia e tive a experiência de visitar o Hospital João Machado no estágio básico, sendo o meu primeiro contato com o campo da “saúde mental”. Antes de entrar no hospital, a preceptora fez uma série de recomendações sobre os cuidados gerais (não podia usar brincos, relógios, anéis) com a alegação que os pacientes poderiam pedir ou simplesmente arrancar. Havia orientações até para o que responder caso os pacientes pedissem alguma coisa. Confesso que fiquei assustado, senti-me como uma visita ao zoológico, pois parecia que a qualquer momento alguma coisa muito ameaçadora fosse acontecer, senti-me preso como os que ali estavam. Então, depois dessa experiência, decidi me afastar completamente desse campo nomeado como “saúde mental”, haja vista este (des) encontro que reforçou todos os estereótipos da periculosidade da loucura sedimentados no laço social. Contudo, por outras vias, me aproximei da psicanálise e comecei a estudar a clínica das psicoses, com 12 a qual conheci a possibilidade de uma escuta ao sujeito dito louco, em um trabalho que aposta nos sujeitos, na invenção e que não recua, como diria Lacan (1955-1956) no seminário 3 As psicoses. Isso influenciou na minha decisão de estagiar, no último ano do curso de psicologia, no Centro de Atenção Psicossocial III de Natal, no qual desenvolvi um trabalho com oficinas terapêuticas, permitindo-me experienciar outras formas de cuidado em saúde mental e também compreender que não há apenas manicômios físicos, mas também mentais (Pelbart, 1991), os quais dizem respeito a nossa forma de conceber e tratar a loucura, o diferente de nós mesmos. Assim que terminei a graduação, iniciei a residência multiprofissional em atenção básica na cidade de Caicó, pela Escola Multicampi de Ciências Médicas da UFRN, e pude conhecer durante dois anos a realidade da rede de saúde em uma cidade do interior do estado. Um dos rodízios nos equipamentos de saúde foi no CAPS III, lá conheci uma pessoa que estava internada, a qual foi encontrada pela polícia errante pela BR que liga Currais Novos a Caicó. O transeunte estava sem documentos de identificação e dizia que não era do planeta terra, pois pertencia a um povo vivente no subsolo e que possuía mais de 1000 anos e inúmeros filhos. Escutar essa pessoa era um grande desafio, ficava me perguntando de onde aquilo tudo que me contava havia surgido, o que eu poderia fazer para ajudá-la. Certamente, foi o delírio mais estruturado que já escutei, não à toa que questões sobre o delírio retornam como um problema de pesquisa. Por ironia do destino, junto ao início do mestrado em 2020, retorno ao Hospital João Machado, dessa vez como servidor público. A minha chegada ao hospital se deu com o desejo decidido de lutar pela desconstrução do manicômio por dentro. Já conhecia a história de luta de alguns trabalhadores, e o primeiro momento foi de 13 conhecer o território e me apresentar como mais um a movimentar as estruturas e processos do hospital psiquiátrico. Esse retorno ao hospital me possibilitou iniciar um trabalho de escuta aos sujeitos psicóticos internados e perceber um processo de silenciamento que se apresenta através de discursos proferidos pela própria equipe de cuidado ou pelos processos institucionais. Mas o que há de se escutar na fala do louco? A escuta é um dispositivo clínico fundamental no processo de cuidado em saúde. Uma das principais falas que se ouve no hospital é “Doutor, cadê minha alta?”, ou seja, o desejo pulsante pela liberdade. Entretanto, apesar da rotatividade e os investimentos de diminuir o tempo de permanência na instituição, ainda sim existem casos que desafiam a equipe pela longa permanência na internação. Esses casos acontecem, sobretudo, por questões relativas a vulnerabilidades sociais, fragilização de vínculos familiares e, por que não, pelo preconceito e a discriminação. Nesta perspectiva, o trabalho em equipe é fundamental para destravar processos de desinstitucionalização que visem o direito à saúde e cidadania, levando em conta o singular do caso. É assim que a clínica e a política se encontram no cuidado em saúde mental, e isso só é possível quando se dá a dignidade de escuta aos protagonistas das cenas de desinstitucionalização, usuários e equipe – a qual, em alguma medida, também são considerados delirantes por ousar romper com a naturalização da inscrição da loucura no registro da doença, da periculosidade e da incapacidade. Na atividade de escuta aos sujeitos psicóticos, internados e imersos em um contexto institucional psiquiátrico historicamente responsável pelo silenciamento do discurso delirante como uma técnica de tratamento, interrogo-me sobre o que pode acontecer quando o delírio é escutado, tornado peça fundamental para o cuidado e 14 terapêutica. Nesse sentido, quais efeitos podem gerar nos modos de cuidar e na lógica institucional quando o delírio começa a ser escutado? Assim, a partir do território psicanalítico se tem a intenção de pensar sobre tais efeitos no cuidado dos sujeitos psicóticos em uma instituição psiquiátrica, propondo a construção de casos e mesmo o caso da clínica para pôr em análise este cenário institucional. A clínica psicanalítica das psicoses entende que o delírio tem uma função da estabilização psicótica, ou seja, a direção do tratamento não visa à eliminação do delírio, mas o escutar em sua própria articulação significante e como portador de uma verdade do sujeito. Já a instituição psiquiátrica, ao longo da sua história, promoveu um processo de silenciamento do delírio, concebendo-o apenas como um sintoma da doença que deve, necessariamente, ser abafado para uma possível “cura”. A perspectiva psicanalítica permite pensar o delírio para além da dimensão sintomática de uma doença, possibilitando a partir da escuta analítica dos sujeitos e a reflexão sobre os atravessamentos institucionais, problematizar a direção do tratamento na clínica das psicosese interrogar o saber/poder da psiquiatria. Ressaltando que historicamente a psicanálise também esteve enlaçada com a captura da loucura enquanto doença e foi usada para reforçar a manicomialização das pessoas com experiência de sofrimento psíquico. Esse trabalho, então, analisou os efeitos de se tomar a escuta do delírio como uma direção no cuidado a pessoas cujo discurso é definido pelo poder psiquiátrico como delirante, partindo-se de investigações sobre as formas de conceber e tratar o delírio, bem como os modos de silenciamento do discurso do louco que se colocam nas práticas em saúde mental. Para estudar esse campo problemático, trabalhou-se a partir do método psicanalítico, o qual desde Freud se configura com um método de tratamento e de pesquisa. O dispositivo ético-metodológico da escuta dos usuários, da equipe, 15 familiares e a própria instituição psiquiátrica compôs o instrumental metodológico, com uma proposta que articula a clínica psicanalítica a perspectiva benjaminiana, denominada de escuta flanerie. Ademais, trabalhei com a ferramenta de construção do caso clínico, importante contribuição da psicanálise a psicopatologia e saúde mental (Figueiredo, 2004), e a ferramenta de diários de experiência, nos quais também se conjugam os operadores metodológicos da psicanálise freudiana e lacaniana com outras perspectivas de construção de conhecimento. 16 2. OBJETIVOS 2.1 Objetivo geral Analisar os efeitos da escuta do delírio como verdade singular de um sujeito, no contexto de um hospital historicamente psiquiátrico. 2.2 Objetivos específicos Identificar as formas de conceber e tratar o discurso delirante em um hospital historicamente psiquiátrico; Analisar os processos de desintitucionalização que se desdobram a partir do campo problemático da escuta do delírio em um hospital; Pensar as possibilidades de cuidado produzidas a partir da escuta do delírio de usuários no contexto da internação. 17 3. METODOLOGIA 3.1 Método Psicanalítico A pesquisa trabalha de acordo com a orientação do método psicanalítico. A partir do século XIX, a Psicanálise surge no cenário científico, no qual ocorria a ascensão triunfante da razão cientificista, em que a física se configurava como o modelo ideal de ciência. Em seu princípio, Freud pensava a psicanálise como uma disciplina científica, haja vista a escrita do Projeto para uma psicologia científica de 1895 (Macedo & Dockhorn, 2015). A psicanálise foi considerada por Freud (1926-1929/2014) como ciência e investigação, abrangendo três sentidos: uma forma de tratamento, um método investigativo e uma teoria. Em Recomendações ao médico que pratica a psicanálise, Freud afirma: “Um dos méritos que a psicanálise reivindica para si é o fato de nela coincidirem pesquisa e tratamento” (1912/2010, p. 153), argumentando que a pesquisa em psicanálise diz respeito a cada caso específico e não a um experimentalismo. De acordo com Nogueira (2004, pg. 1) "a metodologia científica em Psicanálise confunde-se com a própria pesquisa, ou seja, a psicanálise é uma pesquisa”. Nesse campo, como já apontava Freud (1912/2006; 1932-1933/2006), saber teórico e prática clínica são inseparáveis, sendo esta última concebida como um lugar de produção de um saber, visto que a origem da psicanálise se deu como método de tratamento, dessa forma, a clínica é o lugar privilegiado que sustenta a pesquisa em psicanálise. 18 É inquestionável o fato de a investigação ter, por excelência, o campo da clínica como o locus privilegiado de seu fazer, é por meio da escuta analítica de uma história singular que se apresentam os diversos enredos humanos que contam do aprisionamento do sujeito no circuito de dor psíquica (Macedo & Dockhorn, 2015). Entretanto, é necessário problematizar a utilização da psicanálise para além da clínica tradicional e realizar esforços de aproximação com outras possibilidades metodológicas de pesquisa. Em que pese, cabe diferenciar pesquisas em psicanálise e pesquisas sobre psicanálise, a primeira acontece a partir de material clínico e do método analítico e a segunda sobre questões que interessam à psicanálise, não necessariamente conduzida por analistas, articulando a psicanálise com outros campos, com diferentes estratégias metodológicas, e cujos resultados podem ser compreendidos à luz da psicanálise (Fontelle et al, 2018). Isso dialoga com o que Lacan diz na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola, referente à dicotomia sobre psicanálise em intenção e em extensão, no qual a primeira derivada da clínica e a segunda das aplicações da psicanálise (Figueiredo, 2008). Na investigação psicanalítica não há separação entre sujeito e objeto, mas fundamentalmente opera-se com a transferência, que não é puramente um conceito psicanalítico, mas um fenômeno humano. Nesta perspectiva, a pesquisa em psicanálise se dá invariavelmente na relação analítica, considerando o fenômeno da transferência e o desejo do analista, sendo este último um termo cunhado por Lacan para designar uma posição ética. Conforme Castro (2020), toda pesquisa que pretenda se qualificar como psicanalítica deveria levar em conta tanto os pressupostos teóricos como os princípios éticos neles entrelaçados, como o desejo do analista. A ética em Psicanálise tem como 19 fundamento uma reflexão profunda sobre o desejo do analista/pesquisador como uma condição para o processo de análise/investigação, que se desdobra no ato do analista/pesquisador de produzir questionamentos sobre si mesmo e sobre o laço social, ou seja, sobre o contexto da pesquisa em geral (Dallazen et al., 2012) Segundo Silva e Macedo (2016) o processo de pesquisa com o método psicanalítico ocorre de forma ativa com vistas à emergência do material, enfatizando-se o exercício da escuta em transferência como condição investigativa. Entretanto, tomando o conceito de atenção flutuante como operador de pesquisa, entende-se que a atenção do pesquisador ocorre sem fixidez, sem querer notar nada em especial, mas oferecer a tudo que se ouve a mesma atenção (Magtaz & Berlinck, 2012). Nesse sentido, tomamos como referência o trabalho de Gurski (2019), que propõe a escuta-flânerie como um resultado da articulação entre a ética da psicanálise com a questão da flânerie encontrada nas teorizações de Benjamin. Esse dispositivo clínico-metodológico surgiu a partir dos estudos de Gurski (2008) em sua tese de doutorado sobre a violência juvenil, na qual forjou a metodologia do ensaio-flânerie a partir do enlace de três elementos: “da flânerie como um modo de olhar do pesquisador, do ensaio como a „janela da escrita‟ e do tema da experiência como uma tentativa de produzir polissemia e criação ao invés de repetição e fechamento de sentidos” ( p. 25). De acordo com Pires e Gurski (2020) a flânerie se evidencia conforme se conjuga a posição do flâneur com a do psicanalista, em que enunciamos a atenção flutuante, preconizada pela psicanálise, e o flâneur, os quais, a partir do que seria descartado ou negado, oferecem um espaço para o tropeço, o impensável e o detalhe. É válido ressaltar que apesar das pesquisas destacarem a escuta flânerie no âmbito da instituição socioeducativa, Guski (2019) sublinha que esse dispositivo ético- 20 metodológico configura-se como uma inspiração possível para a pesquisa psicanalítica em diferentes cenários. Escutar e possibilitar processos de desinstitucionalização a partir do delírio em um contexto institucional psiquiátrico para além de ser uma intervenção analítica, é também uma forma de pesquisa-intervenção. Nesse sentido, ratifica-se que o método psicanalítico se desdobra em uma ética que se dá no próprio fazer do psicanalista (Lacan, 1959-1960/2010), convocando a um desdobramento da clínica que resulta em uma aposta de escutaros sujeitos em contextos outros ao consultório, reatualizando a clínica de acordo com as demandas do laço social e de seus diferentes dispositivos 1 . 3.2 Campo e participantes O Hospital Dr. João Machado é um dos componentes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde no Rio Grande do Norte (RN). Foi construído em 1957 na qualidade de colônia psiquiátrica. Inicialmente, foi nomeado como Hospital Colônia de Psicopatas, mas teve seu nome alterado em homenagem a seu idealizador, o médico psiquiatra João da Costa Machado. O hospital vem passando por inúmeras transformações ao longo dos anos, é referência no RN para internações em saúde mental, mas vem ampliando a assistência em outras linhas de cuidado, com o 1 O conceito de dispositivo é trabalhado por Broide (2014), que diz ser constituído por uma relação entre diferentes aspectos institucionais que se incluem os discursos, instalações arquitetônicas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, morais e filosóficos que bordeiam essa relação. O autor destaca a escuta, sob transferência, como um elemento primordial dos dispositivos para o aparecimento do sujeito do inconsciente, quer seja no consultório particular (dispositivo criado por Freud) ou nos espaços institucionais. 21 objetivo de se transformar em um complexo clínico hospitalar, inclusive para o tratamento de COVID-19 com leitos de enfermaria e Unidade de Terapia Intensiva. Nesta perspectiva de transformação, a missão e visão do hospital foram reformuladas, o que antes tínhamos como missão “cuidar do cidadão acometido de transtorno mental agudo, com humanização e internação integral no menor espaço de tempo possível”, passamos a “oferecer assistência em saúde à pessoa adulta e idosa em sofrimento agudo e/ou crônico com foco em qualidade e segurança do paciente, além de formação de profissionais de saúde”, sendo a nova visão “um centro de excelência em assistência hospitalar de cuidados clínicos de maneira integral, sustentável, alicerçado na humanização, inovação, ensino e pesquisa” (Regimento interno, 2021). Nesta linha transformativa do hospital, foram constituídos espaços dentro e fora dele (com outros dispositivos da RAPS) para a discussão dos casos de longa permanência de internação. Esse trabalho já existia antes da minha chegada ao hospital através de alguns profissionais comprometidos com a ideia do cuidado em liberdade, entretanto, esse movimento ganhou força com o aceleramento do processo de transformação do perfil de assistência hospitalar, no qual há um investimento em diminuir os indicadores de tempo de permanência na internação, bem como contribuir com o avanço da reforma psiquiátrica e luta antimanicomial no que tange a garantia do cuidado em rede e territorial. Somam-se a esse trabalho alguns dispositivos importantes, como a Coordenação de Saúde Mental do RN e o Observatório de Saúde Mental da UFRN através de supervisões e ações de articulação com os serviços assistenciais da rede de saúde municipal de Natal, como os Centros de Atenção Psicossocial, Atenção Básica e outros. As discussões aconteciam conforme a disponibilidade dos participantes e o próprio 22 percurso de evolução dos casos, sendo que havia um compromisso pactuado de encontros pelos menos uma vez por mês, o que não isentava as equipes de fazerem contatos de articulação em outros momentos. Nestes espaços, algumas histórias me causaram reflexões enquanto pesquisador. Uma delas é a de uma paciente aqui nomeada de Eny, caso no qual pude experienciar um trabalho coletivo de desinstitucionalização em que foram construídas condições de escuta para destituir os modos de silenciamento institucional e legitimar a fala do sujeito que, pela marca do delírio, acaba sendo descredibilizada. Outra história é a de Amy, paciente em regime de moradia provisória no hospital, advinda da penitenciária onde cumpria medida de segurança há 14 anos por homicídio do pai. Este caso, que também será tratado como objeto de análise nesta dissertação, tem movido um trabalho de desinstitucionalização, que, como não poderia deixar de ser, leva em conta a singularidade do caso e os efeitos institucionais dos anos em privação da liberdade. Isso tem proporcionado análises sobre as dimensões delirantes que se operam no ambiente hospitalar que vão da paciente, daqueles que trabalham no hospital e dos meus próprios delírios de desinstitucionalização no que tange aos atravessamentos institucionais psiquiatrizantes da loucura. São, portanto, as construções feitas a partir do trabalho com Eny e Amy que ganharão espaço de tematização neste trabalho, naquilo que elas convocaram ao trabalho entre vários, à escuta do delírio como ferramenta da desinstitucionalização, à ousadia de romper com os silenciamentos institucionais e delirar a Reforma Psiquiátrica. Nesta perspectiva, pretende-se problematizar a clínica operada no contexto hospitalar a partir da escuta dos usuários, dos trabalhadores e das minhas próprias 23 afetações que emergem do meu percurso pela instituição. Vale ressaltar que esta pesquisa tem autorização do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte através do Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) número: 51872821.3.0000.5537. 3.3.1 A construção do caso clínico Na condução deste estudo utilizei o método de construção do caso clínico, importante contribuição da psicanálise a psicopatologia e a saúde mental (Figueiredo, 2004). De acordo com Bursztyn e Figueiredo (2012) essa proposta de trabalho e de pesquisa de orientação psicanalítica visa uma conduta em equipe a partir da transmissão da lógica única e singular do sintoma em cada caso. Conforme Figueiredo (2004), o termo construção refere justamente a ideia de partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, já o termo caso, segundo Viganó (2010), diz do encontro direto com o real indizível que escapa a regulação simbólica, e, por último, o sentido do termo clínico, que originariamente define-se como um debruçar-se sobre o leito do doente e produzir um saber a partir daí, para psicanálise seria uma inclinação não ao pé do leito, mas ao pé da letra. De acordo com Nasio (2001), o caso é um relato singular, redigido por um psicanalista para testemunhar o encontro com o analisando e fundamentar um avanço teórico, de modo a promover uma passagem do inteligível para o sensível, sendo como uma pintura viva de um pensamento abstrato. 24 Segundo Durões e Mori (2018) o trabalho de construção do caso tendo como orientação as incidências do real, é bancar uma proposta que se faz a partir de um vazio, no rompimento da cadeia simbólica, em que o real passa a ser o vetor da experiência, o que significa acolher o imprevisto, a incerteza e os riscos no trabalho clínico (Durões & Mori, 2018). Nesse ponto é que o método de construção do caso se articula com a escuta flanerie, pois ambos se desenrolam por um perambular despretensioso do não saber, em uma abertura para a surpresa e desconhecido. Vígano (1999) aponta uma discussão interessante entre caso clínico e caso social, sendo o primeiro uma condição para que o segundo aconteça, apesar de existir construções da clínica que separem ambos e outras que os articulam entre si. Segundo o mesmo autor, há lugares psiquiátricos que podem ofertar uma clínica do caso social, desde que o momento clínico não seja comprimido pelo Projeto Terapêutico da Equipe, esvaziando qualquer possibilidade do sujeito elaborar sobre seu sintoma e iniciar a transferência. O vazio que interessa é o do saber, o qual permite a passagem para um processo de construção. A noção de construção para Freud se diferencia da interpretação (Viganó, 1999). De acordo com Figueiredo(2004) a construção é uma concatenação de elementos discursivos visando a uma conduta, já a interpretação é pontual e visa a um sentido, destarte, o propósito da construção deve ser justamente a de partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, o que seria impossível na via da interpretação. Nesta perspectiva, Dias e Neto (2016) apontam duas consequências ao trabalho do analista, a primeira é que a construção, bem como a interpretação, não estaria reservado ao lugar de completude; já a segunda, relaciona-se a possibilidade de uma construção provocar no pacientes convicções próximas a de uma lembrança. 25 Entende-se que o trabalho com o delírio é da ordem da construção, não cabe ao analista interpretar, pois ele é dado na certeza, que faz signo, que não tem possibilidade de interpretação por meio da posição do sujeito, que não faz metáfora. De acordo com Dias e Neto (2016), a noção de construção tem parentesco com a concepção freudiana de delírio, na medida em que através de ambas nos aproximamos da verdade do sujeito e revelam algo que estruturalmente se equivoca no momento em que aparece. Assim como assinala Freud: Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que erguemos no decurso de um tratamento analítico – tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que substituir o fragmento de realidade que está sendo rejeitado no passado remoto. [...]. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada (Freud, 1937/1996, p. 286). Em “Moisés e o Monoteísmo” Freud (1937-1939; 2018) lança o conceito de verdade histórica, a qual é distinta da verdade material, é aquela verdade pela qual não podemos nos apoiar objetivamente, não é a verdade dos fatos, do acontecido (Durões & Mori, 2018). Nesse sentido, a construção nada mais é que uma das formas de nos aproximarmos da verdade daquele sujeito, ou seja, o saber oriundo de uma construção, assim como de um delírio, teria como subsídio a verdade daquele paciente (Dias & Neto, 2016). O método de construção do caso consiste em discutir um caso apresentado através de um registro escrito por um dos participantes da equipe de saúde mental. Segundo a proposta de Viganò (2010) a construção deve compreender três etapas: a narrativa (do sujeito, da família, da instituição); as escansões do tratamento e o cotejamento entre o diagnóstico do DSM ou CID e o psicanalítico. 26 Segundo Val e Lima (2014), que pensaram quatro momentos da construção do caso clínico, o processo inicia quando o analista elege o caso e faz um consolidado, a posteriori, de memórias dos conteúdos das sessões em um texto com formato de uma história clínica. Entretanto, Figueiredo (2004) faz a distinção entre a história e o caso, sendo este último produto do que se extrai das intervenções do analista na condução do tratamento e do que é decantado de seu relato. No segundo momento temos a supervisão individual com outro analista, com vistas à localização dos pontos em que a relação com a fantasia produz obstáculos para extração da lógica do caso, permitindo reorientar a transferência (Val & Lima, 2014). Para Figueiredo (2004) as discussões realizadas em equipe sustentam o funcionamento do método e remetem mais a um trabalho de construção do que de supervisão, ainda que no seu desenrolar tangenciem a experiência de supervisão. Na reunião de equipe, terceiro momento, os elementos do texto podem ser verificados e ampliados a partir da conversação com outros profissionais envolvidos no caso, os quais assumem uma posição de ignorância em função do privilégio conferido à pesquisa e ao questionamento, próprios da clínica. E por último, ocorre a verificação do que se construiu do caso a partir das intervenções da equipe, em que a construção do caso continua após o ato analítico com um novo texto que conecte o que se aprendeu do caso e o tratamento possível (Val & Lima, 2014). Segundo Bursztyn e Figueiredo (2012) o que caracteriza a construção do caso na equipe de saúde mental é composição múltipla do trabalho, essencialmente no coletivo, no qual a ação do psicanalista direciona a discussão do caso a partir da posição assumida por uma equipe como “aprendizes da clínica”, possibilitando colher das produções do sujeito os indicadores para seu tratamento e da singularidade de seus sintomas uma orientação clínica para o trabalho. 27 3.3.2 Diário de experiência Os diários de experiência foram realizados no processo de pesquisa para registrar as vivências no campo e nos espaços de construção do caso. Conforme Pires e Gurski (2020), registra-se qualquer coisa que atravessa o pesquisador a partir da sua vivência, sendo essa ferramenta inspirada no trabalho de Benjamin sobre o tema da experiência em articulação a escuta psicanalítica, remetendo-se aos diários de campo das pesquisas antropológicas e etnográficas, os curtos diários escritos por Freud no final de sua vida e a notas confeccionadas por Walter Benjamin em suas narrativas sobre as memórias e experiências pela cidade (Pires & Gurski, 2020). Conforme Gurski (2019) os diários consistem em um compilado escrito pelo pesquisador-psicanalista acerca de suas vivências, experiências e reflexões em suas atividades da pesquisa, metodologicamente guiados pelo movimento da associação livre, o que pode causar estranhamento pela (des) organização da escrita, e só se tornam possíveis quando o psicanalista ocupa o lugar de estrangeiro, fazendo anotações no a posteriori, possibilitando que a experiência seja compartilhada no só depois. A mesma autora destaca que essa premissa do registro permite o pesquisador- psicanalista seguir a noção de imprevisibilidade, como na clínica, e as recomendações freudianas de conduzir o tratamento (e a pesquisa) sem qualquer intuito em vista, na medida em que o pesquisador é convidado a registrar sua experiência em outra temporalidade, no a posteriori, um tempo mais distendido que permite o surgimento das marcas do vivido, as quais em um caminho de escuta ganham lugar no dispositivo da construção do caso, possibilitando à equipe se enlaçar com a produção do cuidado na contramão do silenciamento institucional. 28 Conforme Broide (2014) entendemos, também com Deleuze, que cada dispositivo diferente capta uma subjetividade distinta e o material inconsciente que surge no atendimento individual no consultório particular não é exatamente igual àquele que emerge em um grupo, em determinada instituição pública, privada ou na rua, todavia, em todas essas situações há um sujeito do inconsciente que fala e quer falar, e que se apresenta à nossa escuta através da transferência, pela busca do espaço vazio de que nos diz Badiou, e que permite o surgimento do sujeito do desejo. 29 4. DESINSTITUCIONALIZAÇÃO E ESCUTA DO DELÍRIO 4.1 Breve reflexão histórica sobre a loucura e o delírio Os estudos sobre o delírio abordam concepções diferentes ao longo da história da humanidade e desaguaram em modos diferentes de tratá-lo. Na antiga Grécia a loucura era apreciada por compreensões antagônicas que correspondiam ao favorecimento ou hostilidade divina. Segundo Pelbart (1989), o filósofo Platão, em seu livro o Fredo, destaca que Sócrates impetra um elogio a loucura como a fonte de maiores bens, especificando um modo de loucura que ocorre como efeito de favor divino. De acordo com Ribas (2014) a tragédia grega antiga apresenta a “loucura” como algo múltiplo por meio do delírio e de estados alterados, em que se davam os transes, os festejos e os rituais, nos quais era preciso reconhecer a divindade causadora do mal parapoder apaziguá-la com os devidos ritos, isto é, a intenção era revelar a identidade da divindade atuante. Nessa concepção, o delírio possui uma dimensão oracular e se relaciona intimamente com a sabedoria, ou seja, a profecia mântica (um modo de loucura mencionada por Sócrates) produz algo que é da ordem do saber, atravessado por uma linguagem desarrazoada que nem por isso a desqualifica e que tem um efeito de verdade cuja densidade está perdida para nós, mesmo que isso provoque estranheza (Pelbart, 1989). Essa estranheza frente ao sem-sentido conduziu, historicamente, a maneira de lidar com loucura ou com aquilo que foge aos limites colocados por certo tipo de 30 racionalidade vigente. Então, foi assim que as figuras da desrazão, quais sejam: loucos, prostitutas, devassos, feiticeiros e tantos outros, tiveram seus corpos aprisionados distantes da cena social. Segundo Foucault (1961-1972/2012), o fim da idade média foi o ponto inicial de silenciamento da loucura pela razão, configurando-se uma destituição da experiência trágica e enigmática da loucura. Destarte, a loucura perdeu a força primitiva de revelação oracular, sendo progressivamente destituída como saber que expressa a experiência trágica do homem no mundo. Na época clássica, inicia-se o processo de enclausuramento do louco e, supostamente da loucura, tomando-se uma percepção que estabelece a razão como critério para distinguir, isolar e excluir as figuras da desrazão descritas anteriormente (Laia & Aguiar, 2017). Ainda de acordo com Laia e Aguiar (2017), com o capitalismo emergente, constatou-se que aprisionar não constitui uma solução adequada frente aos novos problemas econômicos. A necessidade de mão de obra operária faz da população como um todo um recurso para produção de riqueza. Então, a política assistencial da segunda metade do século XVIII distinguiu duas categorias: pobres válidos, os quais se tornaram mão de obra trabalhadora, e os pobres doentes, que ficariam sob responsabilidade da assistência social. Ao passar do tempo algumas figuras da desrazão foram ocupando lugares no cenário social para compor a força produtiva, já os loucos, impossibilitados ao trabalho e perigosos, acabaram como últimos remanescentes daquilo que Foucault (1961- 1972/2012) chamou de Grande Enclausuramento. Assim, segundo Laia e Aguiar (2017), nasceu o manicômio e a loucura foi capturada como objeto do conhecimento médico, 31 classificada e medicalizada das mais variadas formas ao longo dos últimos séculos, reduzida a condição de doença mental, mero erro da razão ou do cérebro. Segundo Pelbart (1989), a antiguidade grega manteve com o louco uma certa proximidade, contrariamente à época moderna, de distanciamento radical através da reclusão asilar. De acordo com o autor, o tratamento moral preconizado por Pinel consistia, simploriamente, em aplicar quatro técnicas: o silêncio institucional (que esvaziasse por si só os delírios, tornando-os literalmente "sem efeito"), o julgamento perpétuo (a vigilância e a punição interiorizariam a culpa e a consciência da loucura), a ridicularização da loucura (que Foucault chamou de "reconhecimento pelo espelho", em que se convocava a loucura de um para julgar absurda a do outro, e assim invalidar a ambas) e, finalmente, a autoridade do médico, peça chave do dispositivo. Como vimos, o silêncio institucional forma o quarteto técnico estruturante do tratamento moral, constituindo o manejo “terapêutico” do delírio nos primórdios da psiquiatria. Dessa forma, faz-se necessário investigar o lugar do discurso delirante no cuidado em saúde mental em uma instituição que está em processo de transformação de sua lógica de atenção e o que pode o dispositivo da construção do caso produzir de mudanças nesta lógica, problematizando os modos de silenciamento estigmatizantes que colocam o sujeito psicótico na posição de objeto e excluem a sua possibilidade de fala. No final do século XX, em muitos países, tal qual o Brasil, temos a problematização deste aparato manicomial que encarcera os loucos e a loucura. No Brasil, tivemos a Reforma Psiquiátrica, a qual produziu dispositivos de cuidado em rede e territorial para enfrentar a lógica manicomial. Infelizmente, como anuncia Pelbart (1991), não basta derrubar os muros para acabar com os manicômios, pois os mesmos retornam sutilmente no cotidiano dos serviços de saúde mental caso não se problematize 32 as práticas de regulamentação do discurso louco. É necessária, neste sentido, uma radicalização na escuta, para que um esburacamento dos muros institucionais dos manicômios ocorra. A escuta do delírio, no que consta em sua bizarrice para um mundo ainda transferenciado pela razão, é um desafio, e a construção do caso, tal qual aqui apresentada, se faz como um dispositivo de resistência frente aos manicômios institucionais vigentes. Gabriel García Márquez escreve um conto intitulado “Só vim telefonar” (Márquez, 2013), que compõe um de seus Doze Contos Peregrinos, no qual alude ao estigma da loucura e da consequente perda de autonomia que ela impõe a quem recebe sua marca. A personagem principal, Maria, ao pegar carona em um ônibus repleto de mulheres sonolentas, depois de um incidente com seu carro, foi capturada pela engrenagem do hospício e seu pedido por um telefone foi interpretado como um delírio, que se somaram as suas reações ao regime manicomial (tentativas de fuga, horror e descontrole emocional diante do que vê) e foram satisfatórios para completar o diagnóstico médico de doente mental. Nesse sentido, o delírio é sempre interpretado como um sintoma que coloca o louco na condição incapaz de distinguir entre o falso e o verdadeiro, de gerir sua própria vida ou de incredibilidade discursiva, justificando todo confinamento e tutela do louco ao longo da história pelo saber médico e manicomial (Neto, 2016). A psicanálise se insere na história da loucura de maneira dual, com posições antagônicas. De acordo com Martins (2016), Foucault refere-se tanto a uma tradição crítica quanto uma tradição trágica do pensamento concernente a loucura, sendo crítica, quando entende a loucura por meio de uma metapsicologia, na qual há uma reprodução do tratamento moral no dispositivo clínico, e por outro lado é trágica, quando recolhe a palavra do louco para inscrevê-la em narrativas romanescas cujo personagem central 33 não é um sujeito da razão, mas uma verdade do real, sendo essa verdade atravessada por uma historicidade. Em Freud, a dimensão trágica se expressa por meio de narrativas clínicas. É no relato dos casos clínicos que a loucura como experiência primitiva pode ser resgatada, dando lugar à linguagem e ao delírio do louco, experiência positivada antes da divisão entre razão e desrazão (Foucault, 2009). Isso tem comparecido nos espaços constituídos dentro e fora do hospital que visam discutir a longa permanência de alguns sujeitos na internação hospitalar, especialmente quando o delírio não é tomado como um signo que elimina a possibilidade dos sujeitos habitarem os lugares onde a “razão” impera, mas como construção possível de modos de se relacionar com o mundo que aponta direções no caminho da criação de formas de alojar a singularidade no tecido social. Em se tratando do delírio, segundo Laia e Aguiar (2017) não existe uma definição unificada e completa. Foucault, em A história da loucura (1961-1972/2012), escreveu que a designação de um delírio situa-se na dependência da sensibilidade com que se julga o grau do afastamento que uma ideia apresenta, seja em relação aos discursos estabelecidos ou no que diz respeito a uma suposta realidade das coisas. O termo delírio surge no século XVI, originado da palavra latina lira, que significa sulco (do arado). Logo, de-liro surge como aquilo que está fora do sulco, fora do caminho reto da razão. Os estudiosos se dividemem dois grupos com acepções diferentes, o primeiro influenciado por Jonh Locke postulavam que o delírio era causado por um erro da sensopercepção, já o segundo acreditava se tratar de um erro do julgamento, relacionado ao adoecimento da alma (Briggs & Rinaldi, 2014). Essas noções dicotômicas influenciaram a psiquiatria e a psicanálise, de um lado estava a corrente alemã que predomina nos manuais psiquiátricos atuais com uma 34 abordagem descritiva, na qual o delírio é definido como um falso juízo psicopatológico, e em oposição há a corrente francesa que influenciou Freud no desenvolvimento da sua teoria sobre a paranóia e particularmente sobre o delírio, como veremos a seguir. 4.2. O delírio para psicanálise e as interseções com a saúde mental A noção de delírio para psicanálise é derivada da corrente francesa que pontua sua psicogênese, opondo-se radicalmente à visão organicista da época. Em Freud, no texto Neurose e Psicose (1924/2011), ele faz referência à gênese do delírio ao dizer que este surge no lugar em que originalmente “uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo” (p.169), ou seja, o delírio se constitui como uma espécie de remendo. Em sua elaboração do caso Aimée, Lacan opõe-se também ao organicismo (Miller, 1995), pois aborda as psicoses a partir da linguagem e conclui não se tratar de um déficit ou doença, mas um modo específico com que esses sujeitos se manifestam, causando uma revolução no pensamento científico da época (Maffili et al., 2014). Freud no início dos seus estudos situa a paranoia no campo das neuroses, como sendo uma enfermidade que se origina dos conflitos psíquicos, contudo, posteriormente desenvolve uma teoria que tenta explicar a função do delírio para o sujeito como o mecanismo específico da psicose, o qual será mais bem trabalhado por Lacan, afirmando que tanto na estruturação neurótica, quanto na psicótica haveria uma tentativa de apaziguamento (Briggs & Rinaldi, 2014). Lacan (1932; 1987) em sua tese de doutorado começa a circunscrever, a partir do caso Aimée, a relação dos mecanismos da paranoia com as operações lógicas do pensamento de criadores e teóricos. 35 Nesta perspectiva, conforme Simoni (2012) o delírio foi definido como importante à interpretação e processos de criação, retirando a psicose do lugar (fora da razão) que o discurso médico a colocou. Para a autora, o que Lacan explicita em seus estudos sobre as psicoses é que não é a capacidade que uma ideia tem de espelhar a “realidade” que a faz verdadeira e que o delírio não seria um déficit no acesso àquela, mas sim uma construção feita a partir “de uma particular posição frente à linguagem.” (Simoni, 2012, p.52). Na verdade, desde Freud (1911-1913/2010), a formação delirante, que pode ser considerada como produto da doença, é na realidade tentativa de cura, reconstrução. De acordo com Maranhão (2016) a associação entre delírio e construção acompanha as produções teóricas de Freud sobre a psicose em diferentes momentos, reconhecendo uma tentativa de autocura do sujeito psicótico. Nesta perspectiva, entende-se que é possível operar e construir dispositivos de cuidado a partir da potência inventiva do delírio. De acordo com Laia e Aguiar (2017) o discurso delirante está referido à realidade psíquica de quem o enuncia, de forma que ele é sempre verdadeiro e é preciso tomá-lo em sua própria articulação significante devido a sua estrutura de linguagem, sem pretender referi-lo à prova de realidade. Como dizem Rey e Ramos (2014), o apego do psicótico ao seu delírio é questão de sobrevivência, o delírio é o que pode dizer quem ele é. Nesse sentido, a aposta de trabalho com delírio não é de confrontá-lo, buscando certa adaptação do sujeito ao discurso compartilhado, mas é necessário que se leve em conta sua força reconstrutiva na estabilização psicótica, bem como a capacidade de formar laço social e tecer caminhos que apontem para um lugar no mundo. 36 De acordo com J.-A. Miller (1999), se quisermos manter a definição do delírio como pensamento que não encontra seu correlato de realidade, temos de nos haver com o caráter universal da constatação de que todo mundo delira, perspectiva denominada de delírio generalizado, que remete ao pensamento lacaniano a qual “todo mundo é louco, isto é, delirante”. Destarte, o delírio universal passa a significar a condição de todo sujeito ou ser falante, no sentido em que a dependência da linguagem produz necessariamente uma separação em relação à realidade que se tenta designar por seu intermédio, ou seja, todo sentido dado através da linguagem a alguma coisa se produz num campo separado da coisa, sem que haja uma instância superior que permita regular a relação entre o se diz e aquilo do que se fala. Nesta perspectiva, parte-se da ideia que o sentido não representa a coisa, então, qualquer nomeação é uma tentativa de produção de sentido sobre o vivido, porém, nenhuma forma de nomear é capaz de responder em sua totalidade ao referente nomeado, de modo que o próprio ato de nomear produz a perda da possibilidade de acessar o vivido em si. A partir dessa premissa, é possível apostar na legitimidade de qualquer discurso que esteja nessa tentativa de dizer do vivido, nesse esforço de construção da realidade, aí incluído o discurso delirante. É esta a tese que Lacan nos possibilita acessar por meio da ideia de delírio universal. Conforme Laia e Aguiar (2017), a clínica psicanalítica das psicoses permite verificar duas funções do delírio: na primeira, na ausência do significante fálico que articula o gozo à sua mediação simbólica, o delírio cumpre a função então de reconstrução imaginária da realidade, criando para o sujeito uma espécie de cenário no qual ele tenta reorganizar o elemento pulsional que transborda o seu corpo e que se manifesta no desencadeamento do delírio; na segunda, a função do delírio também se 37 estende, no sentido de um tratamento do real a partir do simbólico, permitindo localizar, dominar e cifrar uma parcela de gozo invasivo e transbordante da experiência psicótica. Maleval (1998) compreende o delírio como uma notável forma de apaziguamento da angústia do sujeito e, além disso, busca uma construção possível a partir da falta do significante que o permita tornar suportável a incompletude do Outro. Conforme nos orienta Monteiro e Queiroz (2006, p. 114): O bom uso do delírio pode promover o advento de um sujeito, destituindo-o da condição de objeto de gozo do Outro, posição na qual o psicótico se encontra. Uma das advertências do psicanalista na instituição é a de que o delírio é um modo de expressão subjetiva, não devendo ser debelado a todo custo, mas usado na perspectiva da construção de uma metáfora delirante, através da qual significante e significado se estabilizam, possibilitando um efeito de significação. A atuação da psicanálise nas instituições requer manejos diferenciados da clínica tradicional. Monteiro e Queiroz (2006) elencam três indicativos de trabalhos nas instituições, a saber: a atuação baseada no singular de cada caso, convocando o sujeito, as contribuições da escuta psicanalítica na equipe e a incidência da escuta junto aos familiares. Nesta direção, os autores propõem introduzir o termo inclusão subjetiva à proposta de reinserção social da loucura, na qual é preciso fazer comparecer a dimensão da clínica em uma “prática feita por muitos”, compreendendo que excluir a clínica no campo da saúde mental não é apenas excluir a psicanálise, mas o próprio sujeito e o direito a fala. 38 Com base em Veras (2007), o campo da saúde mental e sua interseção com a psicanálise não se trata da clínica do social, mas da clínica no social, o que nos convoca a pensar na direção do tratamento ofertada pela psicanálise aos sujeitos psicóticos. Conforme nos orienta o mesmo autor, deve-se passarde um ideal político de uma sociedade sem sintomas, que formula debelar o sintoma a qualquer custo, e provocar a partir da escuta o surgimento dos dispositivos clínicos e de um tratamento possível, encarando a função do sintoma não necessariamente como prejudicial. Nesta perspectiva, é que propomos a criação de um dispositivo de escuta do delírio que aponte caminhos possíveis para desinstitucionalização, quer seja da compreensão hegemônica a qual silencia a voz dos loucos, quer seja para construção coletiva, “entre muitos”, no tecido social. De acordo com Monteiro e Queiroz (2006), a inserção psicanalítica nas instituições de saúde mental é complexa, visto que é um campo diversificado, e que trata de questões que não são específicas à psicanálise. Contudo, a mesma autora aponta que “é preciso destituir o status de especialista e, como propõe Eric Laurent, passar à posição de “analista-cidadão”, “um a mais” em uma prática feita por muitos”. O termo analista-cidadão cunhado por Laurent (1999, p.13) compete aquele que “é perfeitamente compatível com as novas formas de assistência em saúde mental, formas democráticas, anti-normativas e irredutíveis a uma causalidade ideal”. Entretanto, o que fazer para articular a dimensão clínica com o ideal político em jogo na clínica psicossocial? Segundo Borsoi (2011) a atenção psicossocial, define o projeto terapêutico orientando-se por dois significantes universais: inclusão e cidadania, deixando de fora, na maioria das vezes, o sujeito e suas invenções singulares. Nesta perspectiva, convocar o sujeito a partir do universal é querer não encontrá-lo. A 39 mesma autora aponta que os efeitos da psicanálise se desdobram em uma política que é do sintoma, na qual dá lugar ao singular, o caso a caso. De acordo com Costa (2009) a psicanálise historicamente teceu várias críticas à psiquiatria, e, por conseguinte aos hospitais psiquiátricos, especialmente pela medicalização excessiva dos pacientes internos ocasionando a supressão do delírio. Portanto, o trabalho de escutar o delírio trata-se de um ato subversivo, rompe-se com uma lógica na qual o sujeito psicótico é colocado como mero objeto do gozo do Outro, subjetividade descartável, como acontece na lógica manicomial. Parte-se do princípio de que a fala-escuta é o centro de referência do tratamento da psicose. Lacan (1955-1956/1985) propõe a expressão “secretário do alienado” para assinalar a posição do analista frente ao psicótico, aconselhando-nos a “tomar ao pé da letra” o que o sujeito nos conta. Neste trabalho, acolhemos a indicação lacaniana de se colocar na posição de “secretariar o alienado”, mas tratamos de não apenas tirar consequências deste lugar para acompanhar processos de estabilização psicótica, mas sobretudo para a construção de processos de desinstitucionalização a partir da escuta da construção delirante. Assim, a psicanálise comparece de forma importante na tessitura dos caminhos desta pesquisa por ofertar a possibilidade de apostarmos na verdade do discurso delirante das psicoses, mas foi preciso não apenas se conformar com sua função na estabilização psicótica, senão que ousar andar mais longe. Foi preciso aliançar a ética da psicanálise à política antimanicomial para ousar sulcar, com os significantes do delírio, lugar no território para o sujeito de direitos. Neste sentido, entendendo que a psicanálise tem papel fundamental para o campo da reforma psiquiátrica, mas também que esta conjuga territórios potentes 40 capazes de fazer a psicanálise reinventar-se, propomos esta pesquisa como um ato subversivo e, por isso político, de intervir e problematizar os modos de escuta e tratamento, no cotidiano de cuidado do Hospital Dr. João Machado e em outros espaços em que a lógica manicomial insista em permanecer. 4.3. Os processos de desinstitucionalização na Reforma Psiquiátrica Brasileira A institucionalização da loucura ao longo dos tempos é marcada por práticas de isolamento e exclusão, em que os sujeitos eram apartados do laço social para tratamento. De acordo com Sampaio e Bispo Junior (2021), à medida que o asilamento se fortalecia como um imperativo terapêutico e a periculosidade como atributo inerente à loucura, o hospital psiquiátrico se destacava como única instituição adequada ao tratamento das pessoas com transtornos mentais. A legitimação do saber médico sobre o louco e da instituição psiquiátrica como lócus de tratamento tinha como foco a produção, classificação e tratamento da doença, excluindo o sujeito e sua experiência com a loucura (Paiva et al, 2021). Após uma série de questionamentos sobre as práticas institucionalizantes e o próprio saber psiquiátrico, surgiram diferentes movimentos relativos à reforma psiquiátrica com a premissa da desinstitucionalização. De acordo com Sampaio e Bispo Junior (2021), o termo desinstitucionalização é polissêmico e, por apresentar diferentes perspectivas, influenciou vários modelos de reformas ao redor do mundo. Conforme Paiva et al. (2021) os movimentos reformistas são divididos em três momentos, cada um possuindo suas especificidades quanto ao caráter de crítica a psiquiatria. O primeiro 41 momento é marcado pela comunidade terapêutica na Inglaterra e pela psiquiatria institucional na França. Ambas as experiências supracitadas reconheciam a violência e ineficácia dos manicômios, mas tinha como proposta uma mudança interna da instituição para torná-la efetivamente terapêutica, seria uma espécie de “humanização” do hospital psiquiátrico (Desviat, 2015). Destarte, não se pode falar de desinstitucionalização da loucura nessas experiências, haja vista que não se questionava a existência dos hospitais como prioridade no tratamento, tampouco a noção de saúde mental e sua relação com o laço social (Sampaio & Bispo Jr., 2021). Já o segundo momento, tem dois principais movimentos, a psiquiatria de setor francesa e a psiquiatria comunitária e preventiva dos Estados Unidos, os quais não se restringiam ao espaço asilar, mas propuseram a conexão com o espaço público objetivando prevenir o adoecimento e promover a saúde mental (Amarante, 2013; Paiva et al. 2021). Pode-se dizer que esses movimentos abordaram a perspectiva da desinstitucionalização da loucura para espaços comunitários e territoriais, entretanto, não questionaram o saber/poder psiquiátrico sobre os sujeitos, ou seja, avançou-se na criação de novos serviços, porém eram limitados na construção de uma saúde mental emancipadora (Sampaio & Bispo Jr., 2021; Paiva et al. 2021). É no terceiro momento que se inicia a crítica e desconstrução do aparato psiquiátrico através de dois movimentos denominados Antipsiquiatria, originado na Inglaterra em 1960, e a Psiquiatria Democrática Italiana. De acordo com Sampaio e Bispo Jr. (2021), a antipsiquiatria se propõe como antítese do marco teórico conceitual da psiquiatria tradicional ao defender a indissociabilidade entre adoecimento, sujeito e relações sociais, fomentando uma desautorização do saber psiquiátrico sobre o louco e a 42 loucura. Já a psiquiatria democrática italiana é a experiência mais expressiva desse modelo e influenciou fortemente os marcos conceituais e epistemológicos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, por criar uma nova forma de organização de serviços, em meio aberto e comunitário, para produzir cuidado e ao mesmo tempo promover novas formas de sociabilidade e subjetivação. O processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) iniciou na década de 70, contexto de redemocratização, impulsionado estrategicamente pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) do Rio de Janeiro (Tenório, 2002). De acordo com Amarante (1995), o MTSM inicialmente organizou um conjunto de críticas ao modelo psiquiátrico manicomial, procurando entender a função social da psiquiatria e suas instituições, vislumbrando apossibilidade de inversão deste modelo a partir do conceito de desinstitucionalização. Conforme Pitta (2011), que se refere ao processo de desinstitucionalização responsável, isto é, tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida. Destarte, o tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e morte social para tornar-se criação de possibilidades concretas de subjetivação e interação social. Nesta perspectiva, o Brasil instituiu através da lei 10.216/2001 a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental por serviços inovadores e intervenções comunitárias, com ênfase na expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e do Programa Volta para Casa, mudando o foco paulatinamente do hospital para a comunidade (Pitta, 2011). É importante se questionar assim como Rotelli (2001), por que queremos esta desinstitucionalização? Ressalta-se que a ruptura do paradigma fundante das instituições manicomiais, o paradigma clínico, foi o verdadeiro objeto do projeto de 43 desinstitucionalização. Conforme Braga (2019) é necessária uma ruptura em relação às bases do saber psiquiátrico e à prática realizada em manicômios, o que inclui seus aparatos científicos, assistenciais, relacionais, administrativos, legislativos e culturais. De acordo com Sampaio e Bispo Jr. (2021) entende-se que o processo de desinstitucionalização vai muito além do lócus de intervenção, o que envolve mudanças no fundamento epistemológico centrado no conceito ampliado de saúde e na integralidade, na qual o foco deixa de ser a doença mental e passa a ser a pessoa em sofrimento mental possuidora de subjetividades, desejos e perspectivas de vida singular. Para Braga (2019), o processo de desinstitucionalização não se refere ao mero fechamento ou reforma do hospital psiquiátrico, mas ao desmonte da lógica da instituição psiquiátrica em todas suas formas de expressão, com a superação do modelo tradicional de conceber e de se relacionar com a experiência de sofrimento psíquico, transformando saberes e práticas e construindo novas possibilidades de viver e existir em um mundo compartilhado. A verdadeira desinstitucionalização será então o processo prático-crítico que reorienta instituições e serviços, energias e saberes, estratégias e intervenções em direção a este tão diferente objeto, o problema se tornará não a cura, mas a emancipação; não se trata de reparação, mas de reprodução social das pessoas (Rotelli, 2001). Braga (2019) propôs uma discussão sobre o ponto de vista teórico da desinstitucionalização abordando quatro chaves de leitura, quais sejam: “circuito de controle”, “exercício do poder”, “manter as contradições abertas” e “instituição aberta/instituição fechada”. Sobre o circuito de controle e exercício do poder, a autora destaca que para compreender a lógica manicomial é necessário refletir sobre como é concebida a ideia de norma social e quem são os sujeitos considerados desviantes, aos 44 quais é atribuída uma suposta periculosidade, pois para o exercício do controle as instituições produzem e reproduzem lógicas de normatização impositiva que tutelam os sujeitos. No que tange a manter as contradições abertas, a autora supracitada coloca a necessidade de nas práticas desenvolvidas nos serviços substitutivos o trabalho partir não mais da concepção problema-solução, mas da possibilidade-probabilidade, com o reconhecimento da complexidade de uma situação que se relaciona com o sofrimento experimentado pelo sujeito em sua vida na relação com o tecido social. Nesse contexto, Simoni e Moschen (2020) apontam que o retorno ao território das pessoas institucionalizadas é apenas um primeiro movimento, desta forma, é necessário produzir cotidianamente as condições para sustentar e operar a desinstitucionalização no laço social, tecendo a reconexão do singular ao coletivo e costurando os resquícios do sujeito ao tecido do qual foi desapropriado historicamente. Por último, Braga (2019) afirma que a ideia da instituição aberta/instituição fechada envolve reconhecer que qualquer serviço, inclusive os serviços substitutivos que são “instituições para desinstitucionalizar”, por vezes enfrentam períodos de maior fechamento e por vezes de maior abertura, sendo preciso, assim, uma constante reinterrogação por parte dos que produzem os serviços no sentido de refletir se, de fato, estão sendo construídas trocas plurais na relação com o território e se está se produzindo vida e emancipação. Vale ressaltar o que Alverga e Dimenstein (2006) alertam sobre os “desejos de manicômio” que atravessam a direção do cuidado nos serviços substitutivos, expressos através de práticas de dominação e classificação do sofrimento psíquico, sendo necessária esta vigilância para que o processo de desinstitucionalização não se restrinja a meros reparos nos dispositivos assistenciais. 45 Nesse sentido, Rotelli (2001) destaca que a instituição inventada está, portanto, sempre em movimento, direcionada para reconstruir as pessoas como atores sociais, na qual tratar significa ocupar-se aqui e agora para que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento do paciente e que ao mesmo tempo se transforme a sua vida concreta cotidiana. 46 5. CONSTRUÇÕES DE CASOS CLÍNICOS E A CLÍNICA DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO Partindo-se do princípio de que a fala-escuta é central no trabalho clínico e atentando ao que Lacan (1955-1956/1985) propõe em torno da expressão “secretário do alienado”, ao assinalar a posição do analista frente ao psicótico, aconselhando-nos a “tomar ao pé da letra” o que o sujeito nos conta, escolhemos os codinomes dos casos que apresentaremos agora. Tais escolhas se deram tomando a fonética da primeira letra do primeiro nome das pacientes e inventando nomeações segundo o modo como ressoaram aos meus ouvidos. Escrevi na literalidade assim como se dá na escuta do delírio: operar com os efeitos de uma nomeação que repercute ao pé da letra. Ao ler os nomes, percebi que inventei nomes bastante comuns em Natal, que tende a americanizar algumas. Estaria aí já uma tentativa de produzir lugar na cultura, no tecido social, para estas usuárias com histórias de exclusão e encarceramento manicomial? Narramos agora os percursos de construção de caso de desinstitucionalização que se fizeram possíveis nesta pesquisa. Traremos os dois casos, conforme já mencionado, os quais nomeamos caso Eny e Amy. É importante destacar que os caminhos da construção dos casos foram bastante singulares, acolhendo as possibilidades que se colocavam a partir do encontro das usuárias com o cotidiano institucional, os efeitos que se produziam nos profissionais de dentro e de fora do hospital. No caso Eny, não havia um espaço formal de reunião para a construção do caso, conforme indicado por Viganò (2010), tampouco uma formalização de registro e compartilhamento do caso entre os envolvidos no processo. 47 Trata-se do primeiro caso de desinstitucionalização com o qual me envolvi e, portanto, das primeiras frestas e aberturas para um processo mais sistematizado de trabalho com os casos. Nesse momento, as ações de desinstitucionalização aconteciam já de forma coletiva, mas as discussões se situavam, sobretudo, em espaços informais, nos encontros na enfermaria, na sala do serviço social ou da psicologia, sem um horário pré-agendado. Já, no caso Amy, a maioria das reuniões de construção do caso aconteceu de modo online, pela plataforma Google meet, em função de que o caso já chega trazendo consigo o envolvimento de muitos trabalhadores da rede extra-hospitalar, imbuídos da tarefa de cumprir a decisão judicial de uma transinstitucionalização e de que isto ocorria em plena vigênciadas medidas de distanciamento social preconizadas para prevenir a contaminação por COVID-19. Embora houvesse momentos instituídos para discutir o trabalho com Amy entre vários atores das políticas públicas, a dinâmica das reuniões era invadida por lógicas que muitas vezes não seguiam os processos de construção de caso clínico tal qual propusemos na metodologia. Em ambas as situações, tratamos de ir buscando inserir na dinâmica do trabalho coletivo de desinstitucionalização uma ética da construção do caso, pela qual os relatos dos profissionais envolvidos nos processos ganhassem registro em todos nós e fornecessem uma direção compartilhada de trabalho com os casos. Um horizonte a perseguir coletivamente. Essa ética da construção do caso se fez possível acompanhada das itinerâncias da escuta flanerie, a qual de acordo com Pires e Gurski (2010) oferece um espaço para aquilo seria descartado ou negado, para o tropeço, o impensável e o detalhe, e por que não dizer também ao delírio, que historicamente é silenciado. Articulamos isso com os 48 pressupostos que fundamentam a prática de Acompanhamento Terapêutico (AT) e noção de construção do caso clínico para a psicanálise. O caso Eny teve uma importante função na formulação da minha questão de pesquisa, a partir dele que pude perceber a reprodução do silenciamento institucional, na medida em que a fala da paciente era desacreditada e interpretada como delirante pela equipe de saúde mental, bem como testemunhar um processo de desinstitucionalização que foi possível no momento em que o dito delírio ganhou o tom de verdade. No que tange ao caso Amy, escolhê-lo se deu no momento em que me senti tomado como delirante ao investir nos processos de desinstitucionalização, a partir da compreensão que quando o nosso discurso não encontra lugar na realidade compartilhada gera uma sensação muito semelhante do sujeito que ao anunciar sua verdade histórica, seu discurso é inscrito no campo da doença. Dessa forma, talvez compartilhar essas impressões no coletivo de uma dissertação, a qual tem um endereçamento, seja uma forma de tratar o real que também me inunda enquanto trabalhador e pesquisador no campo da saúde mental. Como destacado, no contexto da desinstitucionalização da loucura as práticas devem ser atravessadas por processos de invenção. É necessária uma ruptura com a clínica tradicional, como destaca Palombini (2006, p. 117) “que uma clínica a serviço dos processos de desinstitucionalização coloca em jogo a desinstitucionalização da clínica mesma”. A autora aponta o AT como um dispositivo clínico-político que tem uma incidência muito significativa, com uma proposta de trabalho a céu aberto, atravessando os territórios que se intercruzam na cidade, pondo em análise até mesmo o próprio processo de reforma psiquiátrica ao desvelar o funcionamento da rede de atenção psicossocial e as formas como o laço social responde a desinstitucionalização 49 da loucura, a qual é um caminho construído entre vários olhares, narrativas e fazeres entrelaçados (Simoni e Moschen, 2020). De acordo com Neto e Dimenstein (2016), o AT é uma prática clínica cujo setting está nas ruas, esquinas, nas adjacências do serviço de saúde, assim como nos diferentes espaços sociais por onde o sujeito deseja circular, experimentando o novo e o inusitado, abrindo-se a surpresa e assumindo a dimensão do risco e da invenção. Nesta perspectiva, uma pergunta que também nos acompanhou ao longo desta pesquisa foi: é possível construir um caminho para a desinstitucionalização que conjugue a escuta do delírio em um contexto de internação hospitalar e práticas de AT? Simoni (2012) ao questionar quais as condições para, no encontro entre um pesquisador e posição particular do psicótico na relação com a linguagem, produzirem-se consequências para o método, aponta a constituição de um espaço de acolhimento a alteridade da psicose. É nesse sentido que propusemos a oferta de uma escuta ao discurso delirante como via para a construção de caminhos metodológicos para os processos de desinstitucionalização no Hospital João Machado. De acordo com Santos et al. (2019) o AT abre uma possibilidade de escuta pautada na ética da psicanálise, tendo em vista que o acompanhante assume uma postura de secretariar o sujeito, colocando a singularidade do acompanhado em evidência, possibilitando a emergência da palavra através dos caminhos trilhados, além de viabilizar encontros cotidianos no espaço público que tendem a produzir efeitos importantes na vida dos sujeitos com diagnóstico de psicose. A seguir irei apresentar os dois casos já mencionados aqui, os quais tratam de construções clínicas desinstitucionalizantes, que se sucederam a partir da escuta no contexto de internação hospitalar. 50 5.1 Construção do Caso Eny Trazida pelo SAMU, Eny chega ao hospital para se internar após um incêndio em sua casa, um desastre no qual a causa era desconhecida pela equipe do hospital. Na ficha de admissão hospitalar o médico descreve que Eny estava calma, porém com delírio persecutório e discurso ilógico justificando o incêndio. Mas Eny estava em crise ou se tratava de um incêndio acidental? Não se sabe ao certo, mas o “hospício” seria o lugar onde ela iria ficar por prazo indeterminado, visto que a mesma tinha histórico de internação e também não teria condições de permanecer na casa, ou seja, o hospital nesse caso cumpriria a função de abrigá-la. Essas demandas de internação para abrigamento são muitos frequentes, desde os casos de pessoas em situação de rua ou em que pelo histórico de um transtorno mental ou de internações psiquiátricas são trazidas ao hospital mesmo não estando necessariamente em condição de crise. A Eny já tinha várias passagens pelo hospital, nesta internação tive a oportunidade de conhecê-la. Entretanto, estávamos vivendo um momento atípico com a eclosão de uma pandemia que requeria medidas de afastamento social e relacional para evitar a disseminação do vírus da COVID-19, bem como a recomendação de que os profissionais de saúde usassem Equipamentos de Proteção Individual (EPI) como capote, máscara, gorro e faceshield no atendimento aos usuários. Relembro que nas minhas primeiras tentativas de aproximações Eny recusou conversar, posto que não me conhecia e, além do mais, apresentava-me todo paramentado. Certa vez, em mais uma tentativa de conversa, ela perguntou: como você aguenta tudo isso? Respondo: infelizmente é preciso. Ela diz: pois me deixe ver seu rosto. Nesse momento eu tomo uma posição mais afastada, tiro a máscara e sorrio, ela 51 responde: é até bonito. Essa cena está presente inclusive em um cordel que escrevi intitulado “acolhimento em tempos de pandemia”: De acordo com Souza e Passos (2018) a literatura de cordel é um gênero marginalizado por não fazer parte do canône brasileiro, mas que possui uma importância histórica para alfabetização do povo nordestino, inserindo-se em uma compreensão que o texto literário não é uma atividade de „dizer para informar‟ e que esse se lança para fora da configuração formal corriqueira, provocando também admiração e gosto, estimulando o mundo da fantasia, o mundo do imaginário ou a de um mundo no qual o „real‟ [é] transposto a um mundo imaginativo, de ficção, para além do palpável/concreto. A iniciativa de produzir esse cordel se deu na ocasião de uma atividade de extensão da UFRN que objetivava oferecer supervisão aos trabalhadores da saúde mental de Natal sobre os desafios do cuidado em tempos de pandemia. Apresento a seguir o cordel: Para falar de acolhimento tenho muita alegria Mas fico preocupado com essa tal de pandemia Como ser acolhedor no trabalho hoje em dia? A começar pela máscara, sinônimo de proteção Esconde o rosto da gente, limita qualquer feição 52 Eu acolhia sorrindo, mostrando os dentes“tudinho”, como vai ficar então? Quando estou paramentando, fico irreconhecível O usuário pergunta, como aguento tudo isso Respondo meio acanhado, com o faceshild embaçado, “infelizmente é preciso”!!!. A distância é necessária, para comunicação Uns dois metros que afastam de uma contaminação Como fica o acolhimento, nesse cenário pandêmico, repleto de restrição? Da ética do acolhimento precisamos conversar Como ela se processa no SUS em particular Depois passamos por hospitalidade, que é um conceito chave, criado por Derrida. Acolhimento é uma ação técnico/assistencial, Uma atitude importante de qualquer profissional Reconhece o usuário, que mesmo estando afastado, tem saber fundamental. 53 Não precisa de um local para tudo acontecer, Nem tampouco de um relógio para a hora nos dizer, Acolhimento é vivo, o usuário ativo, você precisa entender. Sobre a hospitalidade citada por Derrida, É um conceito importante na tarefa do cuidar Se acolhe quem chega, não importa quem seja, de maneira singular. Quero dizer agora, para então finalizar, Espero que esses versos consigam te afetar, Que no cenário pandêmico, através do acolhimento, é possível melhorar. Por que será que Eny me levou a compor um cordel? Que efeitos da transferência se produziram aí? Seria um dos possíveis do pesquisador flâneur? Ou do início da montagem de um dispositivo de construção do caso, uma vez que se trata de partir de uma escrita que diga singularmente de uma transferência? O fato é que a interpelação de Eny me coloca em posição de escrever, acessando referências da cultura local, uma cultura que compõem narrativas do vivido de modo bastante particular. Registrar essa cena vivida com Eny em cordel parece dizer da dificuldade posta em operar uma clínica de aproximação, afetiva e política que superasse o novo 54 instituído por uma pandemia que obrigava ao afastamento. A interrogação sobre “como você aguenta tudo isso?” ecoava no meu pensamento, fez-me refletir sobre como sustentar uma narrativa que ultrapassasse o instituído nas possibilidades de cuidado tão restritas, perpetuadas pela lógica hospitalar em tempos de pandemia. Como operar com a dinâmica da transferência quando o corpo do analista é coberto pelo véu da biossegurança? O movimento de me afastar e sorrir foram as formas de oferecer hospitalidade a esses embaraços que apareciam na relação de cuidado. Embaraços que se inscreveram no Cordel e abriram outros caminhos para o trabalho com Eny. Eny estava estável, veio por conta do incidente e a equipe começou a questionar até quando o hospital iria abrigá-la. Na tentativa de promover a desinstitucionalização perguntamos a ela como seria possível a sua saída do hospital, para onde iria haja vista a impossibilidade de voltar para a casa destruída pelo incêndio. Eny sempre fazia menção a um dinheiro que tinha em sua casa, entretanto a equipe entendia como um delírio, já que em outras internações ela sempre referia uma quantia que tinha guardada, e ademais se entendia que mesmo esse valor existindo provavelmente teria sido consumido pelo fogo. Recordo que um profissional da equipe disse: toda internação é assim, ela diz que tem um dinheiro guardado, dessa vez parece até que o dinheiro diminuiu. Respondi: talvez ela tenha gastado né? A gente precisa de dinheiro pra viver. Na verdade o que implicitamente se questionava era como uma psicótica poderia adquirir, acumular e gerir seu próprio dinheiro, ou como ela poderia estar fora do registro delirante, assim como aconteceu no conto Só vim telefonar, em que Neto (2009) destaca ser uma das mais belas descrições literárias do estigma da loucura e da consequente perda da autonomia que ela impõe a quem recebe a sua marca. É como se os discursos e as ações expressas pelo louco cessam de significar em si próprias, tornando apenas sintoma da doença, sendo incapaz de decidir sobre o seu destino em 55 todas as instâncias, que vão desde a liberdade de locomoção até as decisões sobre as formas de tratamento que recebe, o louco é transformado num fantoche que deve ser manipulado pelo poder/saber médico. A repetição de Eny fez furo ao entendimento da equipe, pois decidimos escutar em ato e ir a sua casa para testemunhar os restos e dar legitimidade ao seu discurso. O que se faz com o significante que se escuta no delírio? Escuta ao pé da letra atentando às direções que nesta escuta se abrem para a construção de um lugar concreto para habitar o território, seguindo as suas orientações que diziam: vocês vão encontrar o dinheiro dentro de uma caixa de sapato, na cômoda do meu quarto. O fogo havia consumido partes da estrutura, mas a cômoda estava intacta e, exatamente no lugar descrito por Eny, o dinheiro foi encontrado. É nesse sentido que entendemos a desinstitucionalização como um tecer coletivo a partir da escuta da verdade do sujeito, ainda que interpretado como „delirante”, ocupando a centralidade do cuidado, contra o silenciamento institucional. Delirar era fazer frente, combater os “desejos de manicômio” ,como nos coloca Alverga e Dimenstein (2006), que operam no cotidiano das práticas. A chegada da equipe mobilizou a vizinhança que veio acompanhar do que se tratava, os vizinhos temiam o retorno de Eny, de acontecer outro incêndio e atingir suas casas, diziam: imaginem se o botijão de gás tivesse explodido!?. Então, percebemos que o retorno de Eny passaria necessariamente por uma reconstrução da sua casa e seu “lugar” na comunidade. Conforme se identifica em registro de prontuário, a condição colocada pela vizinhança para o retorno de Eny era a retirada do botijão de gás para maior segurança, o que ela de imediato não aceitou, mas foi convencida pela equipe em substituí-lo por um ebulidor elétrico. O processo de convencimento aconteceu na perspectiva de apresentar para a usuária outra possibilidade, ao qual equilibrasse as suas 56 demandas e também da vizinhança, haja vista que um retorno amigável para território dependia necessariamente dessa negociação. De posse do dinheiro iniciamos o trabalho de desinstitucionalização de Eny, segundo seu desejo nos orientava, a reforma da casa teve seu pleno consentimento, mas sempre nos alertava sobre o cuidado de não gastar tudo. Cada retirada do dinheiro tinha sua autorização e a devida prestação de contas. Algo que surpreendentemente ocorreu foi o apoio da vizinhança na reconstrução da casa, à medida que a obra andava um novo “lugar” para Eny no território também se construía, questionamento do tipo “Será que ela vai voltar boa? E se ela queimar a casa novamente?” eram respondidos com a perspectiva de acolher o fantasma do medo que os assombravam e apresentar a incerteza da aposta “delirante” que estávamos fazendo, que como tudo na vida não é da ordem do previsível, que inclusive nós podemos em algum momento da nossa história ter um rompante que desvie da norma instituída. Nessa linha, Nasio (2001) aponta que há uma constatação clínica de que o paciente psicótico não é globalmente afetado porque delira, do mesmo modo que inversamente um sujeito normal pode viver um episódio delirante, sem que por isso se deva qualificá-lo de “psicótico”. No processo de (re) construção da (o) casa (o) conseguimos os pedreiros, inclusive, um dos vizinhos trabalhou como servente e a esposa ajudava na limpeza da casa. Alguns servidores do hospital também ajudaram no serviço e a Terapeuta Ocupacional do hospital frequentemente supervisionava o andamento das obras. Finalmente chegou o dia em que o retorno de Eny era possível, saímos do hospital até o seu território, mas antes passamos em um mercadinho para fazer compras e abastecer a sua casa reconstruída. Ao chegarmos era notável a sua preocupação em nos receber em 57 sua casa, mostrando seus móveis, objetos e aquilo que estava faltando, provavelmenteconsumido pelo fogo. Na oportunidade, fizemos a prestação de contas do investimento financeiro e entregamos o dinheiro restante para a usuária. Esta foi uma das minhas primeiras experiências de trabalho de desinstitucionalização, no qual pude testemunhar a potência do trabalho feito por muitos, mas também a importância de legitimar a fala dos sujeitos, fazendo o avesso daquilo que insiste em se repetir nos serviços de saúde mental em que não há escuta dos sujeitos psicóticos e suas narrativas são silenciadas e desacreditadas. Aqui se tratou de pensar a desinstitucionalização e a escuta do delírio como compondo um dispositivo capaz de fazê-lo “entre muitos” para parcializar o Outro, colocar em cena no fazer a incompletude do Outro. Foi dessa experiência que formulei minha questão de pesquisa que aponta a ideia de que o delírio ou o “dito” delírio pode ser desinstitucionalizante, um norte de escuta que se opera na medida em que nos utilizamos da hospitalidade do filósofo Derrida (2004), no caso, um ser hospitaleiro com o que é da ordem do estrangeiro, tal qual o delírio se apresenta àqueles sustentados por um discurso neurótico regulamentador. 5.2 Construção do caso Amy As discussões sobre Amy antecedem a minha chegada ao hospital. Uma equipe formada por diferentes serviços da RAPS já pensava a condução do caso, incluindo a própria equipe da penitenciária na qual ela vivia, devido ao homicídio do seu pai. Pela ausência de vagas femininas no hospital de custódia, de forma ilegal e sem assistência 58 em saúde mental, arrumou-se uma cela separada na penitenciária João Chaves onde Amy permaneceu por cerca de 14 anos para o cumprimento da medida de segurança detentiva. No primeiro encontro, em que fui convidado para compor a equipe como representante do Hospital Geral Dr. João Machado, foi exposto o objetivo da criação do grupo de trabalho que consistia em acompanhar a desinstitucionalização da usuária e responder à Promotoria de Justiça no sentido de resolver a questão da ilegalidade de sua permanência no presídio. Que a demanda tenha chegado deste modo já nos chama atenção. É a ilegalidade da permanência de Amy na prisão que é destacada e não a violação de direito da mesma. Parece que se está falando da mesma coisa, mas não. Na primeira forma de situar o problema, o que está no centro da pauta é não colocar o sistema de justiça em ilegalidade, na segunda se trata de reconhecer a cidadania de Amy. De todos os modos, a defesa da legalidade foi o que abriu as portas para todo o trabalho de garantia de direitos e de cuidado de Amy, que está em jogo em um processo de desinstitucionalização. A judicialização é bastante comum nesses processos, já que se trata na maioria das vezes de violações de direitos que atravessam décadas. A construção de uma equipe multiprofissional e multissetorial formada majoritariamente por serviços de base territorial anunciavam que a condução das discussões sobre Amy teria como centralidade o cuidado em saúde mental. Inicialmente, antes mesmo da minha entrada no grupo de trabalho, uma equipe mínima formada por um médico psiquiatra, uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional visitavam a penitenciária para atendê-la. Desde as primeiras conversas na construção do caso, sentimos a necessidade de fazer um levantamento da história da usuária, pois existia (quis dizer existe) certa 59 confusão e muitos boatos sobre o que teria motivado a passagem ao ato com o pai, como se houvesse uma tentativa de legitimar as motivações e atos de Amy, rompendo com a lógica do silenciamento institucional seja do manicômio ou do judiciário que circunscreve a passagem ao ato apenas no registro da loucura/periculosidade, sem supor sentido no ato de Amy como sujeito. Recuperar a história de Amy é um desafio por seu conteúdo traumático, sempre escapa/falta alguma coisa que parece um enigma, há também silenciamentos que interditam circunscrevê-la, haja vista que as equipes relatam de quê ela teria um histórico de abuso sexual impetrado pelo pai e em um momento de crise o homicídio aconteceu, apesar da família negar tais informações. O que se opera nessa questão é a suposição de sentido no ato de Amy como sujeito, sendo um caminho para construção do cuidado em liberdade pela atribuição de legitimidade dessa passagem ao ato e consequentemente construir condições de rompimento com a operação manicomial que realiza o silenciamento do sujeito da experiência sob o argumento da loucura/periculosidade. Há relatos da equipe e da família que Amy vivia sem tratamento adequado, com algumas internações breves no Hospital João Machado, mas que no momento do homicídio ela estava “aparentemente” bem, apesar de não estar fazendo uso da medicação regularmente (segundo a família). Inclusive, isso sustenta as resistências da família de um possível retorno para casa: não saber identificar a precipitação de uma crise e que inesperadamente algo novo aconteça ou a história se repita. Isso faz parte do trabalho de desinstitucionalização, aproximar a família para aprender com Amy o que a move na direção de uma crise, como tentativa de também destituir o dispositivo do medo. 60 Na minha primeira escuta coletiva da família, realizada no CAPS II oeste, foi possível identificar o medo da possibilidade de Amy retornar para casa, apesar disso nunca ter sido comentado pela equipe. Na oportunidade, levantamos estratégias para reconstruir os vínculos familiares, que seriam visitas sem revista policial (era uma queixa da família) e a possibilidade da visita ocorrer fora da cela e até mesmo de se realizar caminhadas pelos arredores da penitenciária, isso tudo com autorização da direção. Entretanto, a família e a própria equipe temiam o encontro com Amy sem as grades, tanto devido a história do homicídio, quanto pelo tempo em privação de liberdade e os sintomas psicóticos presentes. Esse encontro era uma grande aposta para iniciar a desmobilização do dispositivo do medo, seria a primeira oportunidade de um contato, na qual poderia se apresentar a equipe e a família sem interdições. O termo aposta é importante porque não existiam garantias, a equipe e a família tinham ainda a expectativa atravessada pelo sentimento do medo, entretanto, apesar da brevidade do encontro os presentes testemunharam o oposto do que se imaginava, encontraram Amy carente de afeto e abraços. As discussões avançaram e surgiu como proposta a possibilidade de Amy sair da penitenciária para o Hospital Geral Dr. João Machado, que apesar de não ser o lugar “ideal” na proposta do cuidado em liberdade, teria garantido o tratamento e as visitas abertas da família, e assim poderíamos dar continuidade ao trabalho de desinstitucionalização, iniciado desde a discursivização da história de Amy em equipe e em rede, e pela colocação do problema de sua violação de direito como um trabalho coletivo a ser resolvido pelas políticas públicas. Nesse gesto, começa o trabalho da desinstitucionalização, que diz respeito aos movimentos para retirar o sujeito não apenas do confinamento, mas do silenciamento institucional. 61 Entretanto, a chegada de Amy causou desconforto à equipe assistencial da enfermaria feminina devido ao histórico criminal e também a um episódio de agressão a uma técnica de enfermagem quando lá esteve internada há alguns anos. Então, a atitude da equipe foi solicitar ao Núcleo Interno de Regulação do hospital a transferência para o Hospital Severino Lopes. Relembro que essa situação gerou um primeiro embate entre mim e a equipe, no qual recorri ao ofício judicial que determinava a internação no João Machado para argumentar sobre a obrigação legal do acolhimento no hospital. O alvoroço provocado pela chegada de Amy fez com que a equipe se reunisse para discutir sobre o manejo do caso. Isso produziu sons e ruídos abrindo frestas ao fenômenodo silenciamento institucional, trouxe a história de Amy para o trabalho entre muitos, fazendo a equipe problematizar a complexidade do caso como um problema do coletivo que envolveria diferentes dispositivos e outras políticas públicas. A ideia de periculosidade atribuída a usuária causou muita resistência, a equipe questionava a obrigação legal da internação e como seria perigosa a sua permanência. Relembro que inclusive uma técnica de enfermagem pontuou: “ela já tá lá pedindo as coisas pra todo mundo”, respondi com o seguinte questionamento: não seria essa uma reação esperada de uma pessoa que viveu tanto tempo privada das coisas?. É característico da lógica manicomial descontextualizar os atos dos ditos loucos, como se fossem imotivados, desconectados da realidade, despropositados. O delírio é sempre tomado como justificativa e signo dessa desconexão, o qual Neto (2009) aponta que o saber/poder médico provoca no louco a perda da condição de sujeito, privando-o de sua capacidade de distinguir entre o falso e o verdadeiro, a fantasia e a realidade. Na verdade, o delírio é apenas um modo particular de se conectar e não uma desconexão, da mesma forma que os gestos e atos de um sujeito, mesmo no limite as passagens ao ato. Então, começar a discursivizar possíveis conexões entre o que Amy 62 faz e a história que ela teve, os lugares que ela vivenciou é um modo de ir tecendo esta conexão, de ir retirando-a do silenciamento institucional operado pela objetificação da sua existência no registro da loucura e da doença. Apesar de a discussão avançar no sentido de tornar nítida a necessidade do hospital acolher a usuária, por pressão da equipe a direção geral solicitou escolta policial dentro do hospital para vigiá-la. Inicialmente, discordei completamente dessa estratégia, mas surpreendentemente a equipe policial ensinou mais sobre cuidado em saúde mental do que a própria equipe assistencial, pois provaram em ato a importância da escuta e do vínculo para superar qualquer preconceito. Chegar à enfermaria feminina e ver uma equipe policial me causava aversão, comecei a resistir às visitas ao setor porque o meu pensamento é que havia perdido uma disputa importante na luta contra o manicômio. Entretanto, como forma de escapar do ambiente institucional começamos a sair com Amy para caminhar no Parque das Dunas, ainda acompanhado dos policiais, que a cada gesto em direção a Amy provavam aquilo que sustentamos no campo da atenção psicossocial como paradigma de cuidado, mais do que os saberes técnicos que essencializam as condições de saúde mental antes de entrar em contato com as experiências singulares dos sujeitos. Primeiramente, a equipe policial se recusou a ficar dentro da enfermaria para não causar desconforto, apesar de ser uma demanda da equipe de saúde mental, bem como demonstrou afeto no modo de se dirigir a Amy pelo vínculo construído durante o tempo em que ela ficou institucionalizada na penitenciária. Apesar disso, recorrentemente uma representante da equipe de enfermagem colocava nos grupos de whatsapp do hospital que Amy estava delirante (mas não dizia o conteúdo do delírio), como forma de dizer que isso ameaçava a segurança da equipe e que os policiais precisavam acompanhá-la 63 diuturnamente, ao que então, em uma oportunidade, respondi: “mas quem maneja o delírio é a equipe de saúde mental”. A partir desses tensionamentos, na construção do caso foi decidido pela equipe a necessidade dos serviços CAPS, CREAS, Atenção Básica acompanharem Amy com o objetivo de formar vínculo com os dispositivos territoriais e avançarmos com a proposta do cuidado em liberdade. Em umas dessas visitas, a equipe escuta pela primeira vez Amy falar que matou o pai e que esse era o motivo que a impedia de sair de alta. A equipe destaca a importância desse momento e da fala de Amy que não foi à toa: “ponto entre o desejo dela sair do Hospital e o motivo pelo qual ela não sai, é importante ‘dar ouvido’ ao que ela está trazendo” fala de um profissional discutindo o caso). Nesse momento a equipe entende que Amy encontra-se em um estágio (almejando a alta) e a família dela em outro, sendo importante um trabalho a ser realizado com ela sobre o seu lugar na família. Aqui há uma suposição de desejo em Amy, a equipe consegue escutá-la para além da atribuição da loucura, de tantas vezes que a equipe se perguntou sobre as motivações de Amy, ela própria consegue enunciar algo de suas motivações, pois um lugar de sujeito nasce primeiro no discurso do Outro. A equipe do CREAS aponta na construção do caso que a família ainda acha que ela só está bem porque está internada e com acompanhamento profissional especializado vinte e quatro horas do dia, mas se for para casa desinternada não terá o mesmo tipo de acompanhamento e então o seu quadro de saúde não vai ser o mesmo. A família diz que não vai abandoná-la, mas que não tem condições de ficar com ela. Eles não conseguem entender a condição de Amy, de seu quadro, de sua evolução, ainda está presa aos fatos anteriores sem conseguir se deslocar disso (registro de ata de reunião). 64 Recordo de uma cena no território em que a filha não conseguia escutar as histórias desconexas da mãe, questionei: o que você acha do que a sua mãe fala? A filha chorou. Como se o discurso da mãe operasse para ela apenas como um signo da doença e periculosidade. Pensei em como é para os familiares escutar um discurso sem poder supor que algo dele é compartilhado no código vigente. Nesta perspectiva, houve um trabalho no sentido de poder se construir um outro jeito de escutar a mãe, em um movimento de suportar o que não tem lugar no código. Expliquei que aquele jeito estranho de falar era um modo diferente dela ser/estar no mundo. Em visita domiciliar realizada pelo CREAS e Atenção Básica foi constatado mais uma vez que alguns familiares ainda não aceitam muito a aproximação com Amy e diz: “vocês estão procurando problema”. Assim, as equipes chamam atenção para a rapidez que esse processo com a família de Amy está ocorrendo e que esse modo pode estar assustando e se dando de uma maneira forçada. Relata que querer resolver logo não é o caminho e que o medo da família de Amy não é desconstruído da noite para o dia. Apesar dos avanços nos processos de desinstitucionalização, a marca da periculosidade ainda permanece e recorrentemente o delírio surge como signo de periculosidade para justificar a tutela e anular as possibilidades de vida e cuidado para além dos muros das instituições. A partir da escuta a Amy, percebemos o quanto ela manifestava o desejo em ir a praia, até que organizamos essa atividade externa em parceria com sua família e os usuários/profissionais do CAPS oeste, serviço de referência caso Amy retorne para o território onde vive sua família. Nesta atividade, Amy pôde circular livremente pela praia, interagir com os familiares em um ambiente não institucional, comer ginga com tapioca, tomar água de coco e negociar com cada vendedor ambulante que passava por perto. 65 As ofertas dos objetos eram diversas, tudo chamava a atenção de Amy ao ponto dos vendedores já priorizarem o atendimento, iam direto para ela, pois apesar de não comprar tudo que ofereciam, ela queria ver, pegar, perguntar o preço. Recordo que ela comprou uma ginga com tapioca em que a filha pagou, comeu e depois o vendedor voltou para oferecer novamente, ela respondeu: “tá muito ruinzinha essa sua ginguinha com tapioquinha”, todos caíram na gargalhada. Em outro momento senti a emoção de uma cena em que o vendedor ambulante ofereceu panos de prato, a família não tinha mais dinheiro para comprar, ela olhou para mim e disse: compra, Jonas. Respondi: o que você vai fazer com esses panos? Ela respondeu: são para quando eu for morar com minha filha”, respondi: prometo te presentear com panos de prato quando vocêsair do hospital e estamos lutando por isso, infelizmente, agora a gente não tem nem onde guardá-los. Entretanto, no retorno sou interpelado pela equipe questionando como eu tive coragem de levá-la para fora do hospital, tendo em vista que a mesma estava com delírios “pornofônicos”, falando em sexo e que poderia me atacar. Isso me causou muita revolta, pois testemunhei a potência de uma experiência em que Amy pôde se apresentar como sujeito da sua história, com seu carisma destituir o dispositivo do medo que o outro sempre a atribui. Nesse momento me senti também delirante, questionei se somente eu conseguia perceber e dizer de uma realidade sobre Amy totalmente oposta ao registro da periculosidade. Apostar na desinstitucionalização é também criar um delírio em meio ao cotidiano normatizado e delirante pela exclusão dos vistos como anormais. O sentimento de estar delirando surgia por não encontrar na instituição uma forma de compartilhamento da versão que eu construía e escutava da usuária no trabalho da desinstitucionalização. Neste sentido, fazia parte do trabalho “delirar” 66 também um lugar fora da instituição para o sujeito, sustentando um discurso contra- hegemônico. Ser “secretário do alienado” para retomar a indicação lacaniana, “tomando ao pé da letra” a narrativa possível de cada usuário era, de algum modo, um ato delirante considerando a teia dos discursos de “verdade” hegemônicos no hospital. A possibilidade da oferta da escuta na transferência no caso de Amy a levava a me questionar sobre dois filhos que geramos por nomes Davi e Diego, esta é sempre a primeira pergunta quando nos encontramos, e segue: eles estão bem? Você tá cuidando deles? Na primeira vez que ela disse isso, lembro que havia passado um tempo de férias e ela me encontrou na recepção da hospital e disse: Oi, Jonas. Depois vá visitar nossos filhos, faz tempo que você não aparece. Na hora entendi como um convite à escuta, já que estava afastado do trabalho. Ao passar do tempo esse passou a ser o tema inicial das nossas conversas, algumas vezes respondia que eles estavam bem, certa vez perguntei como foi que eles nasceram, segundo ela fizemos amor em um motel depois de um passeio no meu carro, com o tempo passei a trivializar. Aleatoriamente em uma conversa com a família de Amy, na qual eles me questionavam sobre as conversas “sem sentido” que ela trazia, eu disse: para vocês verem ela diz que nós temos dois filhos, Davi e Diego”. Foi quando eles afirmaram serem esses os nomes de dois sobrinhos dela, demonstrando algum sentido no que dizia, no mínimo, de saudades dos sobrinhos. Isso sensibilizou outros membros da família a visitá-la, sendo um importante avanço no trabalho de reconstrução dos vínculos, tendo em vista que o histórico do homicídio e o tempo em privação de liberdade ocasionou um afastamento afetivo da família, ao ponto de somente a filha e uma irmã visitá-la no hospital. Isso aponta que o delírio construído por Amy na nossa relação transferencial serviu de guia para o trabalho de desinstititucionalização e reaproximação com a família que estamos produzindo juntos. 67 Em que pese os avanços no cuidado a Amy, a mesma submeteu-se a um exame de cessação de periculosidade, importante instrumento que possibilitaria pelas vias legais a sua desistitucionalização, mas a justiça decidiu mantê-la em cumprimento de medida de segurança por mais dois anos sem escutar a equipe assistencial. Decidimos enviar um relatório multiprofissional e multisetorial para a justiça contestando essa decisão e sugerindo que Amy cumpra a medida em uma residência terapêutica. A construção desse relatório iniciou no Hospital Geral Dr. João Machado e foi circulando pelos diferentes serviços de saúde e assistência social implicados com o caso. Nesse relatório as equipes colocaram as experiências de atendimentos individuais, atendimentos a família e as atividades externas a instituição que visam a promoção da saúde e da cidadania, que inclusive estão descritas nesse texto, as quais dizem sobre o trabalho de reconexão da existência de Amy com o tecido social. Esse compromisso coletivo de retirar Amy do silenciamento e escutar sobre sua forma própria de estar no mundo ganhou legitimidade e recentemente o juiz decidiu, depois da leitura do relatório, antecipar o exame de cessação da periculosidade que aconteceria somente daqui a dois anos. Isso mostra a potência do trabalho entre muitos como um caminho possível para destituir os modos de silenciar o discurso da loucura e a ideia de periculosidade que historicamente sustenta as práticas de isolamento e discriminação. O exame de cessação da periculosidade já foi realizado e até a presente data de escrita ainda não recebemos o resultado. Em diversos momentos do trabalho, era difícil sustentar as ações fora do hospital. No entanto, esses momentos foram se mostrando cruciais para a continuidade do trabalho. Algo da ordem da escuta em ato no território acontecia, que ganhava leitura a posteriori e ia mostrando a direção a ser perseguida no trabalho. 68 Muitas vezes, nosso trabalho era apresentar e defender uma outra versão acerca de Amy: a de que ela não era perigosa, ou não era apenas isso. Repetidas vezes, nossa posição diante da equipe era a de inventar diferentes formas de mostrar e afirmar essa outra versão possível. Até que, em determinado momento, foi Amy que encontrou as condições de se mostrar para a equipe desse modo. Isso se mostrou tanto nas saídas realizadas e nos relatos que foram feitos dessas experiências, quanto na forma como ela foi se colocando dentro da própria enfermaria, participando de processos coletivos e outras atividades de forma colaborativa. É bem verdade que inclusive nós que apostamos na possibilidade da desinstitucionalização para Amy temos certo receio de que ela se apresentasse perigosa. Entretanto, seguimos sustentando essas apostas e continuamos sendo surpreendidos por elas. 69 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A escuta do delírio, no que consta em sua bizarrice para um mundo ainda transferenciado pela razão, é um desafio, e a construção do caso, tal qual aqui apresentada, faz-se como um dispositivo de resistência frente aos manicômios institucionais vigentes. No trabalho da desinstitucionalização, em suas itinerâncias que se conjugam com a escuta flanerie desta pesquisa, tratou-se de de-lirar ousando andar pelos caminhos indicados por aquilo que estava fora dos sulcos, fora dos caminhos retos da razão manicomial. Nesse sentido, a aposta de trabalho com delírio não foi de confrontá-lo, buscando certa adaptação do sujeito ao discurso compartilhado, mas de levar em conta sua força reconstrutiva na estabilização psicótica, bem como a capacidade de formar laço social e tecer caminhos que apontem saídas da clausura. A perspectiva que orientou essa pesquisa foi de escutar o delírio para delirar um lugar no mundo junto com os sujeitos. De realizar uma travessia do instituído manicomial para a invenção de caminhos de existência no código compartilhado, considerando o singular de cada caso em um trabalho “entre muitos”. Conjugou-se as dimensões clínica e política, apostando na construção coletiva do cuidado em saúde mental que incluísse o louco e seu lugar de anunciação. Em que pese não seguirmos a forma convencional de construção do caso clínico proposto por Viganó e outros teóricos, foi possível a invenção de um dispositivo ético- político que se capilarizou através de reuniões não estruturadas na enfermaria, corredores, internet e no próprio território, o qual operasse um mais além com o delírio. 70 Contudo, a experiência de trabalho coletivo tem apresentando para a equipe do hospital a necessidade de construção de espaços formais de discussão e escrita dos casos, seguindo uma estrutura que possa oficializar as ações de desinstitucionalização,as quais são historicamente desenvolvidas com vistas à promoção da saúde e da cidadania. Inclusive, colocou-se em reunião que seria importante passarmos do “Projeto Terapêutico Imaginário ( PTI)” para o Projeto Terapêutico Singular (PTS), ou seja, trazer para o simbólico da escrita aquilo que produzimos no cotidiano institucional, apesar dos desafios de superar a insistente lógica de cuidado manicomial. 71 REFERÊNCIAS Alverga, A. R. & Dimenstein, M. (2006). A reforma psiquiátrica e os desafios de desinstitucionalização da loucura. Interface - Comunic, Saúde, Educ, 10, 20, 299- 316. Amarante, P. (1995). Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cadernos de Saúde Pública, 11,3, 491-494. Borsoi, P. (2011). A política do sintoma na clínica da saúde mental : aplicações para o semblante-analista. Opção lacaniana online, 5, 1–6. Bursztyn, D. C., & Figueiredo, A.C. (2012). O tratamento do sintoma e a construção do caso na prática coletiva em Saúde Mental. Tempo psicanalítico, 44, 131-145. Braga, C.P. (2019). 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