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<p>PROCESSOS</p><p>PSICOLÓGICOS</p><p>BÁSICOS II</p><p>OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM</p><p>> Identificar a visão de Freud acerca da consciência.</p><p>> Descrever consciência, pré-consciência e inconsciente.</p><p>> Analisar a consciência dos processos do eu.</p><p>Introdução</p><p>Os processos psicológicos medeiam a relação do nosso psiquismo com o que</p><p>nos cerca. Integram, por exemplo, os nossos aprendizados (como quando</p><p>aprendemos a falar, a ler e a andar), as nossas experiências (como quando</p><p>ouvimos uma música preferida e reencontramos pessoas queridas após uma</p><p>longa viagem) e a maneira como nos comportamos (como quando reagimos a</p><p>situações de medo, por exemplo, a um animal silvestre de grande porte cor-</p><p>rendo na nossa direção) e nos relacionamos com as pessoas. Observe como a</p><p>consciência, além de outros processos (como emoções, pensamento, linguagem,</p><p>sensação e percepção), está presente em todos os exemplos citados. Estar</p><p>consciente é dar-se conta dos seus processos e da relação que se estabelece</p><p>com o mundo externo. Quando não somos capazes de elaborar e compreender</p><p>os nossos medos e traumas, é porque não conseguimos alcançar, na dinâmica</p><p>psíquica, as informações que, por algum motivo, ficaram armazenadas no nosso</p><p>inconsciente (como quando temos medo de algum animal específico, mas não</p><p>compreendemos a origem desse sentimento).</p><p>Teoria freudiana</p><p>da consciência</p><p>Esther de Sena Ferreira</p><p>Etimologicamente, o significado de consciência advém de conscientia,</p><p>que representa aquilo/algo que foi compartilhado com alguém. A consciên-</p><p>cia, assim, diz respeito à capacidade de nos reconhecermos em relação ao</p><p>ambiente e ao outro. Esse tema foi especificamente debatido em diferentes</p><p>áreas do conhecimento, como filosofia, neurociência, biologia, medicina, psi-</p><p>quiatria e psicologia. No âmbito das pesquisas psicanalíticas, destacam-se as</p><p>contribuições de Freud, a partir do final do século XIX, para o entendimento</p><p>da consciência, sobretudo o conceito de inconsciente a partir da consciência.</p><p>Para ele, a consciência é parte do conteúdo acessível ao sujeito. Consiste em nos</p><p>darmos conta de tudo o que está ao nosso redor: sentimentos, pensamentos</p><p>e percepções. Já o inconsciente pode ser compreendido como o registro das</p><p>experiências e lembranças traumáticas, bem como dos desejos reprimidos e</p><p>que podem surgir em forma de sintoma. Ansiedade e medo são exemplos da</p><p>influência do inconsciente na nossa vida.</p><p>Neste capítulo, serão abordados os principais aspectos do consciente e do</p><p>inconsciente, com destaque para a estrutura e a dinâmica do id, do ego e do</p><p>superego. Além disso, será apresentada a consciência e os processos do eu.</p><p>Freud e a consciência</p><p>De acordo com os estudos freudianos, a consciência é um grande “mistério”</p><p>para a ciência. Freud (2011b) abordou a consciência a partir do consciente,</p><p>argumentando que ela funciona como um órgão sensorial dos processos de</p><p>pensamento e percepção do mundo externo. Esse órgão, então, tem grande</p><p>papel na discussão sobre a função do inconsciente, visto que este pode mani-</p><p>festar-se por meio da consciência. A dinâmica do funcionamento consciente/</p><p>inconsciente em Freud é detalhadamente abordada nesta seção, tendo as</p><p>observações clínicas freudianas como ponto de partida para a discussão.</p><p>Também são discutidas a dinâmica do aparelho psíquico e as contribuições</p><p>de Charcot para o desenvolvimento do conceito de histeria.</p><p>Pode-se retraçar parte do percurso histórico freudiano sobre a construção</p><p>do inconsciente a partir da obra Estudos sobre a histeria (1980/1893-1895).</p><p>Entre 1888 e 1893, o médico austríaco Sigmund Freud, usufruindo dos acha-</p><p>dos de Charcot sobre os aspectos traumáticos da histeria, afirmava, com</p><p>a sua teoria da sedução, que o trauma vivido pelo paciente histérico era</p><p>de origem sexual. Nesse sentido, os sintomas histéricos poderiam resultar</p><p>de abuso sofrido durante a infância do sujeito (sedução real). Mais tarde,</p><p>o autor renunciou à teoria da sedução e começou a discutir sobre trauma,</p><p>que ocorre na dinâmica psíquica. Ou seja, as experiências negativas vividas</p><p>Teoria freudiana da consciência2</p><p>na infância seriam recalcadas no inconsciente e não se teria acesso a elas</p><p>por um discurso consciente. Assim, Freud afirmava que o surgimento dos</p><p>sintomas histéricos estaria diretamente relacionado às situações prévias</p><p>vividas pelo sujeito. Trata-se de uma relação não tão simples de apreender,</p><p>mas que serviu de base para explicações entre causas e efeitos das crises</p><p>histéricas, contribuindo teoricamente para as discussões sobre o papel do</p><p>inconsciente e as sintomatologias (FREUD, 1996).</p><p>Entre 1893 e 1899, Freud desenvolveu o método da hipnose para promover</p><p>a catarse. O intuito era aliviar os sintomas no momento em que eles eram</p><p>formados, uma vez que o médico observava a dificuldade dos seus pacientes</p><p>em associar o sintoma com algo relativo a si. Assim surgia o conceito de</p><p>resistência, um obstáculo entre o conteúdo recalcado no inconsciente até a</p><p>chegada da consciência. O autor constatou, ainda, que as emoções desponta-</p><p>das pelos eventos traumáticos estavam estreitamente ligadas às lembranças.</p><p>De acordo com Sampaio Primo (2015), Freud fez algumas trocas intelectuais</p><p>com Breuer sobre casos clínicos, o que foi importante para impactar a cons-</p><p>trução sobre a histeria nas obras freudianas. Por muito tempo, o psicanalista</p><p>usou a hipnose como técnica para investigar a histeria, mas acabou abando-</p><p>nando-a quando percebeu que o principal aspecto dos sintomas histéricos</p><p>eram as reminiscências, ou seja, lembranças recalcadas, por tratar-se de</p><p>conteúdo traumático. Os espetáculos de Charcot, as trocas intelectuais com</p><p>Breuer e a prática clínica abriram possibilitaram que Freud trilhasse o seu</p><p>caminho pessoal de investigação. Assim, o médico abandonou a hipnose e</p><p>a teoria do trauma, concluindo que as histéricas sofriam de reminiscências.</p><p>As reminiscências são memórias vagas, quase completamente apaga-</p><p>das, que ocorrem por conta do aparelho psíquico e da sua dinâmica.</p><p>Para compreender isso, a psicanálise discutiu conceitos fundamentais como</p><p>consciente e inconsciente, que são premissas da psicanálise que servem de</p><p>base para discutir a dinâmica psíquica.</p><p>Nesse contexto, a consciência emergiu como um aspecto de extrema</p><p>relevância para os desdobramentos das obras de Freud (2011b), pois é a partir</p><p>dessa noção que as discussões sobre o papel do aparelho e as dimensões do</p><p>inconsciente ganharam corpo. De acordo com Freud (2011b), o sujeito estar</p><p>consciente é um estado relativo. Ou seja, lembranças, pensamentos e emoções</p><p>Teoria freudiana da consciência 3</p><p>podem escapar da nossa percepção rapidamente, mas também podem vir</p><p>a tonar-se novamente conscientes em condições que promovam isso, como</p><p>em conversas, lembranças ou visitas a lugares específicos.</p><p>No entanto, para a compreensão plena do conceito de consciência,</p><p>é preciso reconhecer as diferenças entre o consciente e o inconsciente.</p><p>A teoria psicanalítica aponta que o inconsciente armazena as experiências</p><p>psíquicas, como traumas, emoções e memórias, que podem tornar-se cons-</p><p>cientes como ideias — embora essa não seja uma dinâmica tão simples de</p><p>apreender (FREUD, 2011b). O inconsciente, para Freud, só existe a partir do</p><p>consciente. A consciência é, então, para o médico, a percepção do mundo</p><p>externo, a consciência dos estados afetivos do prazer-desprazer e de uma</p><p>parte dos processos dinâmicos do sujeito (GOMES, 2003). Apesar disso, em</p><p>O inconsciente, Freud (2010) reconhece a complexidade dos processos per-</p><p>ceptivos. Existem dois mundos:</p><p>1. o interno, que está relacionado a todos os conteúdos inconscientes;</p><p>2. o externo, representado pela nossa percepção de mundo e pelos nossos</p><p>valores e experiências.</p><p>Na obra Negação, o autor aponta que aquilo que se percebe não necessa-</p><p>riamente será integrado ao ego e que a grande questão é se os conteúdos do</p><p>ego que estão no ego como representação poderão alcançar a percepção da</p><p>realidade (FREUD, 2014). A questão sobre os conteúdos internos e externos,</p><p>apesar</p><p>da sua complexidade, é fundamental para alcançarmos a compreen-</p><p>são da esfera psíquica. Segundo Coelho Junior (1999), ainda que se trate de</p><p>representações, elas se originam das percepções do mundo. Desse modo,</p><p>a representação garante a realidade, ou pelo menos a representação desta.</p><p>Neste seção, você viu que Freud desenvolveu importantes conceitos,</p><p>como consciente e inconsciente, indispensáveis para se compreender como</p><p>ocorrem as dinâmicas psíquicas e o manejo dos conteúdos recalcados no in-</p><p>consciente. Também foram abordadas as relações freudianas entre consciente</p><p>e inconsciente, que fundamentaram a construção da topografia do aparelho</p><p>psíquico idealizada pelo autor.</p><p>Teoria freudiana da consciência4</p><p>As tópicas do aparelho psíquico</p><p>A psicanálise freudiana teve grande importância pelos conceitos de primeira</p><p>e segunda tópicas. O primeiro modelo foi chamado de teoria topográfica e</p><p>trabalha a dinâmica do aparelho psíquico (inconsciente, pré-consciente e</p><p>consciente). O segundo modelo é o estrutural, que estabelece discussões sobre</p><p>o id, o ego e o superego, instâncias da dinâmica psíquica. Um dos aspectos</p><p>preponderantes da psicanálise é demarcar a diferença entre o consciente e o</p><p>inconsciente, uma vez que, sem essa distinção, torna-se difícil compreender</p><p>as dinâmicas patológicas e do aparelho psíquico.</p><p>Pela teoria freudiana, a primeira tópica sobre a estrutura do aparelho</p><p>psíquico o divide em consciente, pré-consciente e inconsciente. Sobre essas</p><p>concepções, Freud (2011a, p. 326) afirma:</p><p>Ao que é latente, tão só descritivamente inconsciente, e não no sentido dinâmico,</p><p>chamamos de pré-consciente; o termo inconsciente limitamos ao reprimido dina-</p><p>micamente inconsciente, de modo que possuímos agora três termos, consciente</p><p>(cs), pré-consciente (pcs) e inconsciente (ics), cujo sentido não é mais puramente</p><p>descritivo. O pcs, supomos, está muito mais próximo ao cs do que o ics, e, como</p><p>qualificamos o ics de psíquico, tampouco hesitaremos em qualificar o pcs latente</p><p>de psíquico.</p><p>No âmbito da psicanálise, portanto, o entendimento da teoria freudiana</p><p>da consciência envolve distinções entre consciente, pré-consciente e incons-</p><p>ciente, conforme síntese no Quadro 1.</p><p>Quadro 1. Aparelho psíquico freudiano</p><p>Consciente</p><p>A percepção do mundo externo e a compreensão dos</p><p>conteúdos externos. Envolve, também, a percepção de</p><p>sentimentos e dos processos do pré-consciente. Pode</p><p>acessar, além disso, conteúdos internos a partir do</p><p>discurso.</p><p>Pré-consciente É a barreira entre o inconsciente e o consciente. Funciona</p><p>como um depósito de memórias acessíveis.</p><p>Inconsciente</p><p>Contêm elementos que foram reprimidos. Pode, às vezes,</p><p>apresentar conteúdos traumáticos. O acesso pela via</p><p>inconsciente-consciente não ocorre de forma direta.</p><p>Fonte: Adaptado de Freud (2011b).</p><p>Teoria freudiana da consciência 5</p><p>O aparelho psíquico tem diversas formas de manifestar o seu conteúdo.</p><p>O conteúdo manifesto é não consciente, fica recalcado no inconsciente porque</p><p>é inapropriado (como conteúdo sexual ou transgressor de leis normatizadas</p><p>socialmente). Já o conteúdo latente é manifestado por meio dos sonhos</p><p>e devidamente interpretado na análise, chegando a nível consciente (por</p><p>exemplo, sonhos com perdas de familiares representam o medo inconsciente</p><p>de ficar sozinho ou necessidade de estrutura e equilíbrio de si). Veja o caso</p><p>fictício a seguir.</p><p>Luiza, 50 anos, chegou ao consultório do Dr. Luís (doutor em Psica-</p><p>nálise) e relatou o sonho que tivera na noite anterior. Relatou que</p><p>sonhara estar apanhando do pai na infância e que ele a abusava sexualmente.</p><p>Ele não havia finalizado o ato sexual, mas fez tentativas com abraços e toques</p><p>inapropriados. Ela diz não se lembrar de tal ato, mas mencionou que os últimos</p><p>relacionamentos têm sido bastante abusivos (FREUD, 2011c).</p><p>Por meio do relato da cena traumática, vê-se que, a partir da leitura da</p><p>psicanálise, a paciente repete a cena traumática recalcada na infância quando</p><p>entra em relacionamentos abusivos. Porém, ela não elabora esse trauma,</p><p>pois sempre se envolve com homens com o perfil do seu algoz. Nesse sen-</p><p>tido, o sonho se apresenta como conteúdo latente do inconsciente, cuja via</p><p>é o pré-consciente, em uma tentativa de acessar aquilo que não está claro</p><p>à consciência (FREUD, 2011b). É por meio dessa organização psíquica que o</p><p>sujeito consegue elaborar, trabalhar e tornar consciente os seus processos</p><p>internos, atenuando o seu sofrimento psíquico.</p><p>O pré-consciente é a barreira ou uma das áreas da psique. Faz parte do</p><p>inconsciente, mas o consciente pode ter acesso ao conteúdo a partir do manejo</p><p>analítico. O consciente é o contato com o mundo externo e a compreensão</p><p>total deste, apreendendo as percepções sobre as emoções e os pensamentos</p><p>(FREUD, 2011b). No inconsciente, o recalque é o estado daquilo que não é</p><p>consciente, mas que pode se tornar por meio do manejo analítico. O recalque</p><p>é o mecanismo do inconsciente que mantém reservadas memórias.</p><p>Teoria freudiana da consciência6</p><p>Em resumo, existem dois tipos de inconsciente: o latente e o reprimido.</p><p>O primeiro é conteúdo que pode tornar-se consciente; o segundo é o reprimido</p><p>incapaz de tornar-se consciente. No sentido dinâmico, só existem consciente</p><p>e inconsciente juntos. Reafirmando o abordado anteriormente: um depende</p><p>do outro para existir. Por exemplo, na análise, quando o paciente troca um</p><p>nome ou fala algo querendo dizer outra coisa, ele, por meio do ato falho, pode</p><p>ter acessado, mesmo que minimamente, o seu inconsciente (FREUD, 2011b).</p><p>Contudo, na segunda tópica, a própria teoria aponta para a organização</p><p>de instâncias, que são responsáveis pelos processos da dinâmica psíquica: o</p><p>ego, o id e o superego. O ego está relacionado à consciência, dominando as</p><p>excitações do mundo externo. O ego não se trata do consciente, mas de uma</p><p>barreira da psique que é a via entre o id e o superego. Conforme Rosenfield</p><p>(2021), o id, o eu-ego e o superego tornam mais complexa a instância do su-</p><p>perego, cujo funcionamento é consciente e inconsciente. Nessa fase madura,</p><p>Freud distingue diferentes funções do inconsciente.</p><p>O ego é uma parte do id que sofreu alterações em decorrência do</p><p>mundo externo, esforçando-se para tornar possível o princípio da</p><p>realidade. O contrário acontece com o id, cujo regente é o princípio do prazer,</p><p>a satisfação pulsional.</p><p>O ego traz algumas compreensões sobre o consciente, além de conter</p><p>aspectos inconscientes. A angústia é um mecanismo que mantém conectados</p><p>o consciente e o inconsciente. O superego, então, para Freud (2011b), é herdeiro</p><p>do complexo de Édipo. Ele tem um papel importante na independência da</p><p>criança, no corte simbólico com os pais, revelando que o sujeito passa a ter</p><p>mais autonomia e visão sobre as coisas e o mundo (FREUD, 2011b).</p><p>De acordo com a obra freudiana Ego e id, de 1923, o superego vai contra</p><p>as escolhas objetais inconscientes ocorridas no complexo de édipo, no qual</p><p>as meninas trocam o objeto de amor materno pelo paterno e os meninos</p><p>permanecem ligados à figura materna, rivalizando o amor da mãe com o</p><p>pai. A função do superego é instaurar a lei que castra e frustra o indivíduo</p><p>da realização da fantasia erótica, levando-o a fazer outras escolhas obje-</p><p>tais (como os primeiros amores, amigos e demais relações sociais). Isso fica</p><p>bastante claro quando se discute a fantasia que a menina tem com o pai e o</p><p>menino com a mãe. A castração age como interventor para a não realização</p><p>Teoria freudiana da consciência 7</p><p>da fantasia, de modo que a criança se frustra e busca outros objetos para o</p><p>investimento libidinal.</p><p>Na segunda tópica de Freud, o inconsciente deixou de ser tratado como um</p><p>lugar, caracterizando-se como uma das estruturas da psique. Nesse sentido,</p><p>o id só pode tornar-se consciente se tiver representante, como no caso do</p><p>conteúdo onírico. Parte do ego e do superego pode ser consciente, mas as</p><p>suas formas originais são inconscientes. Já o id só pode se tornar consciente</p><p>se for transformado em uma representação</p><p>— as suas formas originais são</p><p>permanentemente inconscientes.</p><p>O ego, id e o superego são instâncias importantes na dinâmica do</p><p>aparelho psíquico do sujeito, pois são responsáveis por toda a orga-</p><p>nização estrutural do pensamento, das emoções e da memória (FREUD, 2011b).</p><p>Nesta seção, você viu como instâncias atuam de forma conjunta com o</p><p>ego, o id e o superego. Essa estrutura nos permite compreender, interpretar,</p><p>elaborar e representar as experiências e os traumas que nos atravessam</p><p>desde a infância.</p><p>Consciência dos processos do eu</p><p>Na obra As pulsões e seus destinos (FREUD, 2013), Freud se defronta com o</p><p>problema do retorno pulsional do eu. O autor alavanca as problemáticas das</p><p>neuroses de transferência e os caminhos pulsionais da dinâmica psíquica.</p><p>Antes de mais nada, é necessário reconhecer que o eu pode ser literal-</p><p>mente inconsciente. Ele tem um traço distintivo que leva a ser consciente ou</p><p>inconsciente, daí a ambiguidade. De toda forma, o nosso conhecimento está</p><p>relacionado à consciência e, como dito anteriormente, só podemos conhe-</p><p>cer o inconsciente ao torná-lo consciente (FREUD, 2011b). Desse modo, para</p><p>compreender o inconsciente, é necessário torná-lo consciente, converter em</p><p>percepções externas aquilo que era apenas uma percepção.</p><p>De forma direta, o eu não é apenas uma parte modificada do id que aparece</p><p>como representante da psique ao mundo externo. Existe uma terminologia</p><p>que pode direcionar isso: o “ideal do Eu” ou “super-eu”. O grande desafio é que</p><p>essa parcela do eu tem um contato mais distante com a consciência. Assim,</p><p>Teoria freudiana da consciência8</p><p>vê-se que o eu tem papel importante na construção do caráter, já que, na fase</p><p>primitiva do sujeito, o investimento objetal e a identificação com o objeto de</p><p>satisfação não se distinguem um do outro. Supõe-se, mais tarde, que esses</p><p>desejos primitivos advêm do id, que sente a necessidade dos impulsos eró-</p><p>ticos. O papel do eu nisso? Afastar ou reprimir esses desejos (FREUD, 2011b).</p><p>Se um tal objeto sexual deve ou tem de ser abandonado (no caso dos</p><p>bebês, a mama é o objeto de desejo), não é raro sobrevir uma alteração do</p><p>eu. Ocorre uma regressão ao mecanismo da fase oral, e o eu facilita o aban-</p><p>dono do objeto. De todo modo, o processo é muito frequente, sobretudo nas</p><p>primeiras fases do desenvolvimento. O caráter do eu se forma a partir do</p><p>abandono dos objetos primários, tarefa importante para essa constituição.</p><p>Nesse sentido, ocorre uma gradação da capacidade de resistência. Mas até</p><p>que ponto as influências da história de vida do sujeito têm impacto nas es-</p><p>colhas eróticas de objeto? Por exemplo, muitas mulheres nas suas relações</p><p>amorosas, elegem perfis que se assemelhem ao pai e repetem a relação que</p><p>tem com a mãe. É claro perceber os traços de caráter do sujeito, os vestígios</p><p>dos seus investimentos objetais (FREUD, 2011c).</p><p>Nessa esteira, o eu pode ser entendido como uma forma de repertório</p><p>verbal que aponta para o comportamento do sujeito, influenciado pelo social</p><p>e por questionamentos que levam ao indivíduo a compreender quem ele é.</p><p>Veja o estudo de caso a seguir.</p><p>A paciente Luana é uma mulher adulta de 45 anos de idade. Reside</p><p>com o marido, é a responsável financeira pelos pais e dá suporte à</p><p>mãe acamada. Tem uma relação difícil com o pai, que sempre exerceu um papel</p><p>autoritário na infância dela. A paciente chegou à análise manifestando angústia</p><p>e bastante ansiedade, apresentando humor deprimido e vontade de fugir das</p><p>responsabilidades.</p><p>Em algumas seções clínicas, Luana apresentou desânimo e culpa por não</p><p>atender totalmente às necessidades dos pais. Acredita ser responsável pelos</p><p>problemas dos outros. Denota uma personalidade difícil, fragilidade emocio-</p><p>nal, baixa autoestima e crença de impotencialidade. Recentemente, tentou</p><p>engravidar, mas, apesar do desejo, não alcançou o seu intento. Ainda, assumiu</p><p>a responsabilidade pela sobrinha, pois o seu irmão se comporta como um</p><p>adolescente e a mãe da menina faleceu no parto.</p><p>No decorrer dos atendimentos, foram trabalhados a responsabilização exa-</p><p>cerbada da paciente com as pessoas e o papel inconsciente exercido para a</p><p>sobrinha, visto que Luana não percebe que assumiu a função materna.</p><p>Teoria freudiana da consciência 9</p><p>Ao longo das sessões, foi feito um trabalho de intervenção direcionado para</p><p>a confrontação da queixa-problema, além da questão que figura de fundo: o</p><p>relacionamento difícil com o pai. As recordações das cenas traumáticas na sua</p><p>infância foram trabalhadas, às vezes com resistência em falar sobre. Porém,</p><p>em outros momentos, conseguiu-se levar à tomada de consciência o impacto</p><p>da relação abusiva na infância e as problemáticas da paciente (FREUD, 2010).</p><p>O cenário e o tempo na análise são relativos. Luana está sendo analisada</p><p>há um ano. É notório um progresso no caso: há uma maturidade no discurso e</p><p>tomada de consciência sobre as suas questões. Contudo, essa evolução se deve</p><p>ao manejo do analista nas sessões, ao processo transferencial estabelecido</p><p>e à implicação da paciente na análise. Ainda há bastante a ser trabalho nos</p><p>encontros, mas hoje Luana consegue delegar as responsabilidades para os</p><p>outros e tem mais responsabilidade afetiva consigo mesma, separando o que</p><p>é seu do que é do outro.</p><p>Os estudos de casos são de extrema relevância para discussões sobre a</p><p>aplicabilidade e o manejo teórico da psicanálise em determinado contexto</p><p>clínico, que nos instiga a refletir sobre a construção do sujeito perante as</p><p>experiências, os traumas e a história de vida.</p><p>Neste capítulo, você viu que a teoria da consciência de Freud envolve</p><p>diversos aspectos, como o estudo do aparelho psíquico, demarcando o cons-</p><p>ciente, pré-consciente e inconsciente. O autor deixou claro que, para haver</p><p>uma consciência, é preciso existir um inconsciente, que, por sua vez, funciona</p><p>como reservatório de emoções, pensamentos e memórias. Os grandes psica-</p><p>nalistas, como Lacan, Adler, Bettelheim, Jung, Pichon-Rivière e Erikson, têm,</p><p>como base das suas discussões, os escritos freudianos. Não é um raciocínio</p><p>fácil de apreender, mas é fascinante para psicanalistas e amantes da temática.</p><p>As muitas constatações de Freud sobre o consciente e o inconsciente</p><p>serviram de base para compreender os traumas, a elaboração de conteúdo</p><p>manifesto e latente, além dos muitos sofrimentos psíquicos que o sujeito</p><p>enfrenta ao longo da vida. De fato, a teoria da consciência, sob as diversas</p><p>perspectivas, teve uma imensa importância para as construções conceituais.</p><p>Os escritos de Freud contribuíram e contribuem diretamente para a prática</p><p>psicanalítica e o trabalho de pesquisadores e entusiastas da temática do</p><p>inconsciente.</p><p>Teoria freudiana da consciência10</p><p>Referências</p><p>COELHO JUNIOR, N. E. Inconsciente e percepção na psicanálise freudiana. Psicologia</p><p>USP, v. 10, n. 1, p. 25-54, 1999.</p><p>FREUD, S. A negação. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.</p><p>FREUD, S. As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.</p><p>FREUD, S. As pulsões e suas vicissitudes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011a.</p><p>FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição</p><p>Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 2).</p><p>FREUD, S. O Eu e o Id," Autobiografia" e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia</p><p>das Letras, 2011b. (Obras Completas, v. 16).</p><p>FREUD, S. O inconsciente (1915). In: FREUD, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de</p><p>metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.</p><p>(Obras Completas, v. 12). cap. 3.</p><p>FREUD, S. Sobre a sexualidade feminina (1931). In: FREUD, S. O mal-estar na civilização,</p><p>novas conferências introdutórias e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia</p><p>das Letras, 2011c. (Obras Completas, v. 18). cap. 4.</p><p>GOMES, G. A teoria freudiana da consciência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 19,</p><p>n. 2, 2003.</p><p>ROSENFIELD, K. H. Inconsciente. In: JOBIM, J. L.; ARAÚJO, N.; SASSE, P. P. (org.). (Novas)</p><p>palavras da crítica. Rio de Janeiro: Makunaima, 2021.</p><p>p. 231-275.</p><p>SAMPAIO PRIMO, J. Amizade, espaço de pensamento e alteridade: uma análise das</p><p>cartas de Freud a Fliess. 2015. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia</p><p>Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>CARMO, L. D. S.; CHAVES, W. C. Freud e o sintoma nas Conferências introdutórias: algumas</p><p>considerações. Natureza Humana, v. 21, n. 1, p. 100-119, 2019.</p><p>FILLA, M. G. Reflexões sobre o Eu na teoria freudiana: limites de aproximações entre Kant</p><p>e Freud. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, v. 24, n. 2, p. 29-52, 2019.</p><p>GEREZ-AMBERTÍN, M. Topologia do aparato psíquico freudiano e do inconsciente (da</p><p>Carta 52 ao isso-inconsciente e da bolsa freudiana à garrafa de Klein em Lacan). Estudos</p><p>de Psicanálise, n. 54, p. 17-23, 2020.</p><p>GUTFREIND, C. A arte de tratar: por uma psicanálise estética. Porto Alegre: Artmed, 2019.</p><p>MOREIRA, J. O. Revisitando o conceito de eu em Freud: da identidade à alteridade.</p><p>Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 9, n. 1, p. 233-247, 2009.</p><p>Teoria freudiana da consciência 11</p>

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