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<p>autora de Problemas de gênero JUDITH BUTLER QUADROS DE GUERRA quando a vida e de luto?</p><p>- CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA</p><p>A Butler como marca de sua obra um transgressor poculiar sobre de Transgressor pautedo pela de do partir do qual questiona toda a da Pecultar porque, nesse processo de Butler como normatividade H humanidade estiveram H. ainda a serviço da preservação de determinadas vidas cm detrimento de Quadros de guerra parte desta ampla Quadros de B peculiar sobre como enquadra nosso olhar sobre OF corpos, seus significados e livro reúne seis resultado de a partir da Guerra dos contra E da tortura dos prisioneiros Da analise do enquadramento do valor dessas vidas surge uma ligação original entre a Guerra as guerras contra todas que nos constrangem Guerra: como para desenvolvimento de uma politica, debate sobre categorias leva à instigante que é uma vida Considerando que não há enquanto mas que toda vida é inseparável das condições de faz emergir questões pertinentes todos dias noticiário também Por quem se vidas merecem luto público quais vidas se apresentam desde sempre como</p><p>Judith Butler Quadros de guerra Quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Lamarão Arnaldo Marques da Cunha Revisão de tradução de Marina Vargas Revisão técnica de Carla Rodrigues edição CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro 2015</p><p>Copyright da autora Judith Butler, 2009 Copyright da edição original Verso, 2009 Copyright da tradução Civilização 2015 Nota da editora Título original: Frames of War: When Is Life Grievable? CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE RJ Quadros de guerra: Quando a vida é de / Judith Sérgio de Lamarão Arnaldo Marques revisão de tradução de Marina revisão técnica de Carla ed. de Civilização Brasileira, 2015. 288 p. A tradução do título original Frames of War como Qua- de: Frames of War dros de guerra é uma tentativa de trazer a multiplicidade Inclui e indice ISBN 978-85-200-0965-9 de sentidos que a palavra original frame carrega, como 1. Guerra 2. Civilização moderna. amplamente discutido pela autora. A preferência por 3. 4. universal "enquadramentos", seguida no texto, aponta para uma 930 opção específica, a teoria do enquadramento formulada 14-17200 CDU: 94 pelo sociólogo Erving Goffman. "Quadros" amplia a pro- posta do texto: trabalhar com molduras que restringem Todos os direitos reservados. É proibido reproduzir, arma- zenar ou transmitir partes deste livro, através de quaisquer e ao mesmo tempo configuram o olhar. A opção por não meios, sem prévia autorização por criar neologismos foi a lógica que acompanhou a tradução Texto revisado segundo novo Acordo da da obra. o When Is Life Grievable? passou a Portuguesa. Quando a vida é passível de de maneira a evitar Direitos desta tradução adquiridos pela a utilização de "enlutável", que a língua inglesa permite EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da com mais facilidade do que a portuguesa e como Judith EDITORA OLYMPIO LTDA. Butler prefere no original. Rua Argentina, 171 - Rio de Janeico, RJ 20921-380 Tel.: (21) 2585-2000 Da mesma forma, preferimos adaptar, e não traduzir Seja um leitor preferencial Record. literalmente, como Cadastre-se receba informações sobre nossos lançamentos vability (passível de luto/não passível de luto/condição e nossas promoções. de luto), precarity/precariousness (condição precária/ Atendimento e venda direta ao precariedade), ou (21) 2585-2002 de ser reconhe- Impresso no Brasil 2015</p><p>cido), (violação/violável/ Sumário condição de violável). Para facilitar a compreensão, in- dicamos a palavra original e sua tradução, na primeira aparição do conceito. Agradecemos o dedicado trabalho de Marina Vargas e de Carla Rodrigues, e a gentil colaboração de Debora Diniz para estabelecimento do texto. Agradecimentos 9 Introdução: Vida precária, vida passível de luto 13 1. Capacidade de sobrevivência, vulnerabilidade, comoção 57 2. Tortura e a da fotografia: pensando com Sontag 99 3. Política sexual, tortura e tempo secular 151 4. o não pensamento em nome do normativo 197 5. A reivindicação da não violência 233 Notas 261 279</p><p>Agradecimentos Estes ensaios foram escritos e revisados entre 2004 e 2008. Embora alguns tenham aparecido em versões an- teriores, foram revisados em profundidade para serem publicados neste livro. Uma versão anterior do Capítulo 1, "Capacidade de sobrevivência, vulnerabilidade, como- ção", foi publicada em inglês e catalão pelo Centre de Cultura de Barcelona, em 2008. "Tortura e a ética da fotografia" foi publicado em uma versão anterior na Society and Space, a revista acadêmica da Royal Geographical Society, e em Linda Hentschel (org.), Bilderpolitik in Zeiten von Krieg und Terror: Medien, Macht und Geschlechterverhältnisse Berlim: b_books, 2008. o Capítulo 2 também se baseia em meu ensaio "Photography, War, Outrage", publicado no PMLA em dezembro de 2005. "Política sexual, tortura e tempo secular" apareceu pela primeira vez no British Journal of Sociology (v. 59, n. 1), em março de 2008. "O não pensamento em nome do normativo" foi escrito com base na minha réplica às várias respostas ao artigo "Sexual politics", no British Journal of Sociology (v. 59, n. 2). "A pretensão da não violência" bascia-se em "Violence and</p><p>QUADROS DE GUERRA AGRADECIMENTOS Non-Violence of Norms: Reply to Mills and Jenkins", Este manuscrito foi concluído um mês depois da publicado em differences (v. 18, n. 2) no outono de 2007. de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos," A argumentação do texto foi elaborada em uma série de e ainda aguardamos para ver quais melhorias concretas seminários que apresentei na École Normale Supérieure em relação à guerra podem acontecer nesse governo. De e na des Hautes Études, em Paris, na primavera certo modo, as motivações para os ensaios então reuni- de 2008. dos surgiram das guerras promovidas pela administração Sou grata pelas discussões que mantive com diver- Bush, mas estou certa de que as reflexões aqui contidas interlocutores ao longo destes últimos anos. Eles me não se limitam às veleidades desse regime. A crítica da inspiraram e mudaram minha forma de pensar: Frances guerra emerge da ocorrência da guerra, mas seu objetivo Bartkowski, Étienne Balibar, Jay Bernstein, Wendy Brown, é repensar o complexo e caráter dos vínculos sociais Yoon Sook Cha, Alexandra Chasin, Tom Dumm, Samera e considerar quais condições podem tornar a violência Esmeir, Michel Feher, Eric Fassin, Faye Ginsburg, Jody menos possível, as vidas mais equitativamente passíveis Greene, Amy Huber, Nacira Guénif-Souilamas, Shannon de luto e, mais Jackson, Fiona Jenkins, Linda Hentschel, Saba Mahmood, Paola Marrati, Mandy Merck, Catherine Mills, Ramona Naddaff, Denise Riley, Leticia Sabsay, Gayle Salamon, Kim Sang Ong-Van-Cung, Joan W. Scott, Kaja Silverman e Linda Williams. Agradeço também a Humanities Research Fellowship da University of California, em Berkeley, e à reitora Janet Broughton, que me ofereceu apoio necessário para con- cluir este texto. Sou igualmente grata a Colleen Pearl e a Jill Stauffer pelo trabalho editorial na preparação destes originais (embora todos os erros sejam enfaticamente meus). Agradeço a Tom Penn, da editora Verso, por ter me encorajado e publicado projeto. *Desde a conclusão de Quadros de guerra e a publicação do livro no Brasil, Dedico este texto aos meus alunos, que me estimulam Obama cumpre scu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos. Em 2009, ganhou Prêmio Nobel da Paz em ao seu empenho e transformam minha maneira de pensar. em diminuir os estoques de armas nucleares e pelos esforços em restabelecer processo de paz no Oriente Médio. (N. da E.) 10 11</p><p>Introdução Vida precária, vida passível de luto* Este livro consiste cinco ensaios escritos em resposta às guerras com foco nos modos cultu- rais de regular as disposições afetivas e éticas por meio de um enquadramento seletivo e diferenciado da violência. De certa forma, o livro é uma continuação de Precarious Life, publicado pela Verso em 2004, especialmente quan- do sugere que uma vida específica não pode ser conside- rada lesada ou perdida se não for primeiro considerada viva. Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou desde começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras. Por um lado, procuro chamar a atenção para pro- blema epistemológico levantado pela questão do enqua- No original, "Precarious life, grievable life". A autora usa dois termos em ingês: precarity, que traduzimos por condição precária, que traduzimos por precariedade. Literalmente, grievable é Como a palavra não é dicionarizada, usamos "passível de luto". (N. da R. Téc.) 13</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO dramento: as molduras pelas quais apreendemos ou, na como precária, e em que condições isso se torna menos verdade, não conseguimos apreender a vida dos outros possível ou mesmo impossível. É claro, não se deduz como perdida ou lesada de ser perdida ou lesa- que se alguém apreende uma vida como precária decidirá da) estão politicamente saturadas. Elas são em si mesmas protegê-la ou garantir as condições para sua sobrevivência operações de poder. Não decidem unilateralmente as e prosperidade. Pode ser, como Hegel e Klein apontam, condições de aparição, mas seu objetivo é, não obstante, cada um à sua maneira, que a apreensão da precarieda- delimitar a esfera da aparição enquanto tal. Por outro de conduza a uma potencialização da violência, a uma lado, problema é ontológico, visto que a pergunta em percepção da vulnerabilidade física de certo grupo de questão é: que é uma vida? o "ser" da vida é ele mes- pessoas que incita desejo de Contudo, quero mo constituído por meios seletivos; como resultado, não demonstrar que, se queremos ampliar as reivindicações podemos fazer referência a esse "ser" fora das operações sociais e políticas sobre os direitos à proteção e exercício de poder e devemos tornar mais precisos os mecanismos do direito à sobrevivência e à prosperidade, temos antes específicos de poder mediante os quais a vida é produzida. que nos apoiar em uma nova ontologia corporal que im- Obviamente, essa constatação afeta pensamento sobre plique repensar a precariedade, a vulnerabilidade, a dor, a "vida" na biologia celular e nas neurociências, já que a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, certas maneiras de enquadrar a vida servem de base para desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem essas práticas assim como para os debates a e pertencimento social. respeito do começo e do fim da vida nas discussões sobre Referir-se à "ontologia" nesse aspecto não significa liberdade reprodutiva e Embora o que tenho a reivindicar uma descrição de estruturas fundamentais dizer possa ter algumas implicações para esses debates, do ser distintas de toda e qualquer organização social meu foco aqui será a guerra por que e como se torna e política. Ao contrário, nenhum desses termos existe mais fácil, ou mais difícil, empreendê-la. fora de sua organização e interpretação políticas. o "ser" do corpo ao qual essa ontologia se refere é um ser que está sempre entregue a outros, a normas, a organizações Apreender uma vida sociais e políticas que se desenvolveram historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns e mini- A condição precária da vida nos impõe uma obriga- mizar a precariedade para outros. Não é possível definir ção. Devemos nos perguntar em que condições torna-se primeiro a ontologia do corpo e depois as significações possível apreender uma vida, ou um conjunto de vidas, sociais que o corpo assume. Antes, ser um corpo é estar 14 15</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO exposto a uma modelagem e a uma forma social, e isso necessário estabelecer alguma distinção entre elas. Os é o que faz da ontologia do corpo uma ontologia social. "enquadramentos" que atuam para diferenciar as vidas Em outras palavras, o corpo está exposto a forças arti- que podemos apreender daquelas que não podemos (ou culadas social e politicamente, bem como a exigências que produzem vidas através de um continuum de vida) de sociabilidade incluindo a linguagem, o trabalho e não só organizam a experiência visual como também desejo que tornam a subsistência e a prosperidade geram ontologias específicas do sujeito. Os sujeitos são do corpo possíveis. A concepção mais ou menos existen- constituídos mediante normas que, quando repetidas, cial da "precariedade" está, assim, ligada à noção mais produzem e deslocam os termos por meio dos quais os especificamente política de "condição precária". E é a sujeitos são reconhecidos. Essas condições normativas alocação diferencial da condição precária que, na minha para a produção do sujeito produzem uma ontologia opinião, constitui o ponto de partida tanto para repensar historicamente contingente, de modo que nossa própria a ontologia corporal quanto para políticas progressistas capacidade de discernir e nomear "ser" do sujeito ou de esquerda, de modo que continuem excedendo e depende de normas que facilitem esse atravessando as categorias de identidade. Ao mesmo tempo, seria um entender a opera- A capacidade epistemológica de apreender uma vida é ção das normas de maneira determinista. Os esquemas parcialmente dependente de que essa vida seja produzida normativos são interrompidos um pelo outro, emergem de acordo com normas que a caracterizam como uma vida e desaparecem dependendo de operações mais amplas ou, melhor dizendo, como parte da vida. Desse modo, a de poder, e com muita frequência se deparam com ver- produção normativa da ontologia cria problema episte- sões espectrais daquilo que alegam conhecer. Assim, há mológico de apreender uma vida, o que, por sua vez, dá "sujeitos" que não são exatamente reconhecíveis como origem ao problema ético de definir que é reconhecer sujeitos e há "vidas" que dificilmente ou, melhor ou, na realidade, proteger contra a e a violên- dizendo, nunca são reconhecidas como vidas. Em cia. Estamos falando, é claro, de diferentes modalidades que sentido, então, a vida excede sempre as condições de "violência" em cada nível desta análise, mas isso não normativas de sua condição de ser reconhecida? Afirmar significa que todas sejam equivalentes ou que não seja isso não significa dizer que a "vida" tem como essência No contexto político do texto, consideramos injury como uma * A autora usa três termos: recognition, aqui traduzido por reconhecimento; das possibilidades de tradução desta palavra no contexto de reivindicação recognizable, entendido como recognizability, sem equivalente de direiros, e injuriable como condição de marca comum a em Para o terceiro termo a tradução optou por condição de ser (N. da R. Téc.) qualquer vida. (N. da R. Téc.) 17 16</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO uma resistência à normatividade, mas apenas que toda "condição de ser reconhecido". Se nos perguntamos como e qualquer construção da vida requer tempo para fazer se constitui a condição de ser reconhecido, assumimos, por seu trabalho, e que nenhum trabalho que ela faça pode meio da própria questão, uma perspectiva que sugere que vencer o próprio tempo. Em outras palavras, trabalho esses campos são constituídos variável e historicamente, nunca está feito definitivamente. Este é um limite inter- de modo independente de quão apriorística seja sua função no à própria construção normativa, uma função de sua como condição de aparição. Se o reconhecimento caracteri- "iterabilidade" e heterogeneidade, sem a qual não pode za um ato, uma prática ou mesmo uma cena entre sujeitos, exercitar sua capacidade de modelagem e que limita a então a "condição de ser reconhecido" caracteriza as con- finalidade de qualquer de seus efeitos. dições mais gerais que preparam ou modelam um sujeito Talvez então, como consequência, seja necessário con- para o reconhecimento os termos, as convenções e as siderar como podemos distinguir entre "apreender" e normas gerais "atuam" do seu próprio modo, moldando "reconhecer" uma vida. "Reconhecimento" é termo um ser vivo em um sujeito reconhecível, embora não sem mais forte, derivado de textos hegelianos e sujeito a re- falibilidade ou, na verdade, resultados não previstos. Essas visões e a críticas durante muitos "Apreensão" é categorias, convenções e normas que preparam ou esta- menos preciso, já que pode implicar marcar, registrar ou belecem um sujeito para reconhecimento, que induzem reconhecer sem pleno conhecimento. Se é uma forma de um sujeito desse tipo, precedem e tornam possível ato conhecimento, está associada com sentir e perceber, do reconhecimento propriamente dito. Nesse sentido, a mas de maneiras que não são sempre ou ainda não são condição de ser reconhecido precede reconhecimento. formas conceituais de conhecimento. o que somos ca- pazes de apreender é, sem dúvida, facilitado pelas normas do reconhecimento, mas seria um erro dizer que estamos Marcos do reconhecimento completamente limitados pelas normas de reconhecimento quando apreendemos uma vida. Podemos apreender, por Como, então, a condição de ser reconhecido deve ser en- exemplo, que alguma coisa não é reconhecida pelo reco- tendida? Em primeiro lugar, ela não é uma qualidade ou nhecimento. Na realidade, essa apreensão pode se tornar uma potencialidade de indivíduos humanos. Dito dessa a base de uma crítica das normas de reconhecimento. o forma pode parecer absurdo, mas é importante questionar fato é que não recorremos simplesmente a normas de re- a ideia de pessoa como Se argumentarmos conhecimento únicas e distintas, mas também a condições que essa condição de ser reconhecido é uma potencialidade mais gerais, historicamente articuladas e reforçadas, de universal e que pertence a todas as pessoas como pessoas, 18 19</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO então, de certo modo, o problema que temos diante de nós um modo de conhecer que ainda não é reconhecimento, já está resolvido. Decidimos que determinada noção par- ou que pode permanecer irredutível ao reconhecimento; e ticular de "pessoa" determinará escopo e o significado inteligibilidade, entendida como o esquema (ou esquemas) da condição de ser reconhecido. Por conseguinte, estabe- histórico geral que estabelece os domínios do lecemos um ideal normativo como condição preexistente Isso constituiria um campo dinâmico entendido, ao menos de nossa análise; de fato, já "reconhecemos" tudo que inicialmente, como um a priori Nem todos os precisamos saber sobre reconhecimento. Não há desafio atos de conhecer são atos de reconhecimento, embora que reconhecimento proponha à forma do humano que não se possa afirmar o contrário: uma vida tem que ser tenha servido tradicionalmente como norma para a condi- inteligível como uma vida, tem de ser conformar a certas ção de ser reconhecido, uma vez que a pessoa é essa própria concepções do que é a vida, a fim de se tornar norma. Trata-se, contudo, de saber como essas normas Assim, da mesma forma que as normas da condição de ser operam para tornar certos sujeitos pessoas "reconhecíveis" reconhecido preparam caminho para reconhecimento, e tornar outros decididamente mais difíceis de reconhecer. os esquemas de inteligibilidade condicionam e produzem o problema não é apenas saber como incluir mais pessoas essas normas. nas normas existentes, mas sim considerar como as normas Essas normas recorrem a esquemas variáveis de inteli- existentes atribuem reconhecimento de forma diferenciada. gibilidade, de modo que podemos ter, e efetivamente temos, Que novas normas são possíveis e como são forjadas? o que por exemplo, histórias de vida e histórias de morte. Com poderia ser feito para produzir um conjunto de condições efeito, há contínuos debates sobre se o feto deveria contar mais igualitário da condição de ser reconhecido? Em outras como vida, ou como uma vida, ou como uma vida humana; palavras, que poderia ser feito para mudar os próprios há outros debates sobre concepção e sobre o que constitui termos da condição de ser reconhecido a fim de produzir os primeiros momentos de um organismo vivo; também resultados mais radicalmente democráticos? há debates sobre o que determina a morte se a morte Se o reconhecimento é um ato, ou uma prática, empreen- do cérebro, ou a do coração, se é resultado de uma de- dido por, pelo menos, dois sujeitos, e que, como sugeriria a claração legal ou de um conjunto de certificados médicos perspectiva hegeliana, constitui uma ação recíproca, então e legais. Todos esses debates envolvem noções contestadas a condição de ser reconhecido descreve essas condições ge- de pessoa e, implicitamente, questões relativas ao "animal rais com base nas quais reconhecimento pode acontecer, humano" e como essa existência conjuntiva (e cruzada) e efetivamente acontece. Parece, pois, que ainda há mais deve ser compreendida. o fato de esses debates existirem dois termos para compreender: apreensão, entendida como e continuarem a existir não significa que a vida e a morte 20 21</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO sejam consequências diretas do discurso (uma conclusão Como sabemos, to be framed (ser enquadrado) é uma absurda, se tomada literalmente). Antes, significa que não expressão complexa em inglês: um quadro pode ser emol- há vida nem morte sem relação com um determinado en- durado (framed), da mesma forma que um criminoso pode quadramento. Mesmo quando a vida e a morte acontecem ser incriminado pela polícia (framed), ou uma pessoa entre, fora ou através dos enquadramentos por meio dos inocente (por alguém corrupto, com frequência a polícia), quais são, em sua maior parte, organizadas, elas ainda de modo que cair em uma armadilha ou ser incriminado acontecem, embora de manciras que colocam em dúvida a falsa ou fraudulentamente com base em provas plantadas necessidade dos mecanismos por meio dos quais os campos que, no fim das contas, "provam" a culpa da pessoa, pode ontológicos são constituídos. Se uma vida é produzida de significar framed. Quando um quadro é emoldurado, di- acordo com as normas pelas quais a vida é reconhecida, versas maneiras de intervir ou ampliar a imagem podem isso não significa nem que tudo que concerne uma vida seja estar em jogo. Mas a moldura tende a funcionar, mesmo produzido de acordo com essas normas nem que devamos de uma forma minimalista, como um embelezamento edi- rejeitar a ideia de que há um resto de "vida" - suspenso e torial da imagem, se não como um autocomentário sobre espectral que ilustra e perturba cada instância normativa a história da própria moldura.4 Esse sentido de que a mol- da vida. A produção é parcial e é, de fato, perpetuamente dura direciona implicitamente a interpretação tem alguma perturbada por seu duplo ontologicamente incerto. Na ressonância na ideia de incriminaçãolarmação como uma realidade, cada instância normativa é acompanhada de falsa acusação. Se alguém é incriminado, enquadrado, em perto por seu próprio fracasso, e com muita frequência torno de sua ação é construído um "enquadramento", de esse fracasso assume a forma de uma figura. A figura não modo que seu estatuto de culpado torna-se a conclusão reivindica um estatuto ontológico determinado e, embora inevitável do espectador. Uma determinada maneira de possa ser apreendida como "viva", nem sempre é reconhe- organizar e apresentar uma ação leva a uma conclusão cida como uma vida. Na verdade, uma figura viva fora das interpretativa acerca da própria ação. Mas, como sabemos normas da vida não somente se torna problema com o por intermédio de Trinh Minh-ha, é possível "enquadrar qual a normatividade tem de lidar, mas parece ser aquilo o enquadramento" ou, na verdade, "enquadrador", que a normatividade está fadada a reproduzir: está vivo, mas o que envolve expor o artifício que produz efeito da não é uma vida. Situa-se fora do enquadramento fornecido culpa individual. "Enquadrar enquadramento" parece pela norma, mas apenas como um duplo implacável cuja envolver certa sobreposição altamente reflexiva do campo ontologia não pode ser assegurada, mas cujo estatuto de visual, mas, na minha opinião, isso não tem que resul- ser vivo está aberto à apreensão. tar em formas rarefeitas de reflexividade. Ao contrário, 22 23</p><p>VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO QUADROS DE GUERRA questionar a moldura significa mostrar que ela nunca tempo todo com o contexto. Na verdade, a poesia deixa conteve de fato a cena a que se propunha ilustrar, que a prisão, quando chega a deixá-la, mesmo quando o pri- já havia algo de fora, que tornava próprio sentido de sioneiro não pode fazê-lo; as fotos circulam na internet, dentro possível, reconhecível. A moldura nunca determi- mesmo quando esse não era seu propósito. As fotos e a nou realmente, de forma precisa que vemos, pensamos, poesia que não conseguem entrar em circulação seja reconhecemos e apreendemos. Algo ultrapassa a moldura porque são destruídas, seja porque nunca recebem permis- que atrapalha nosso senso de realidade; em outras pala- são para deixar a cela da prisão são incendiárias tanto vras, algo acontece que não se ajusta à nossa compreensão por aquilo que retratam quanto pelas limitações impostas estabelecida das coisas. à sua circulação (e muitas vezes pela maneira como tais Certo vazamento ou contaminação torna esse processo limitações ficam registradas nas imagens e na escritura mais falível do que pode parecer à primeira vista. A argu- propriamente ditas). Essa mesma capacidade de circular é mentação de Benjamin sobre a obra de arte na era da re- parte do que é destruído (e se esse fato acaba "vazando", produtibilidade técnica pode ser adaprada para momento relato sobre ato destrutivo circula no lugar do que foi As próprias condições técnicas de reprodução e destruído). o que "escapa ao controle" é precisamente o reprodutibilidade produzem um deslocamento crítico, se que escapa ao contexto que enquadra o acontecimento, não uma completa deterioração do contexto, em relação a imagem, o texto da guerra. Mas se os contextos são aos enquadramentos usados em tempos de guerra pelas enquadrados (não existe contexto sem uma delimitação fontes de mídia dominantes. Isso significa, em primeiro implícita), e se um enquadramento rompe invariavelmente lugar, que, mesmo que alguém pudesse, considerando a consigo mesmo quando se move através do espaço e do cobertura global da mídia, delimitar um "contexto" único tempo (se deve romper consigo mesmo a fim de se mover para a criação de uma fotografia de guerra, sua circulação através do espaço e do tempo), então o enquadramento se afastaria necessariamente desse contexto. Embora a em circulação tem de romper com o contexto no qual imagem seguramente chegue em novos contextos, também é formado se quiser chegar a algum outro lugar. o que cria novos contextos em virtude dessa chegada, conver- significaria compreender este "escapar" e este "romper tendo-se em parte do mesmo processo por meio do qual com" como parte dos fenômenos midiáticos em questão, novos contextos são delimitados e formados. Em outras como a função do enquadramento? palavras, a circulação das fotos de guerra, assim como a o enquadramento que busca conter, transmitir e de- divulgação da poesia do cárcere (no caso dos poetas de terminar o que é visto (e algumas vezes, durante um de que falaremos no Capítulo 1), rompe o período, consegue fazer exatamente isso) depende das 24 25</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO condições de reprodutibilidade para ter Essa pró- imagem nem a poesia possam libertar ninguém da prisão, pria reprodutibilidade, porém, demanda uma constante nem interromper um bombardeio, ncm, de maneira nenhu- ruptura com o contexto, uma constante delimitação de ma, reverter curso da guerra, podem, contudo, oferecer novos contextos, o que significa que "enquadramento" as condições necessárias para libertar-se da aceitação não é capaz de conter completamente que transmite, e se cotidiana da guerra e para provocar um horror e uma rompe toda vez que tenta dar uma organização definitiva indignação mais generalizados, que apoiem e estimulem a seu conteúdo. Em outras palavras, enquadramento não clamor por justiça e pelo fim da violência. mantém nada integralmente em um lugar, mas ele mesmo Observamos anteriormente que um dos sentidos de "ser se torna uma espécie de rompimento perpétuo, sujeito a enquadrado" significa ser objeto de uma armação, de uma uma lógica temporal de acordo com a qual se desloca tática mediante a qual a prova é manipulada de maneira a de um lugar para outro. Como enquadramento rompe fazer uma acusação falsa parecer verdadeira. Algum poder constantemente com seu contexto, esse autorrompimento manipula os termos de aparecimento torna-se impossível converte-se em parte de sua própria definição. Isso nos escapar do enquadramento/armação; alguém é incrimina- conduz a uma maneira diferente de compreender tanto a do, que significa que é acusado, mas também julgado eficácia do enquadramento quanto sua vulnerabilidade à por antecipação, sem provas válidas e sem nenhum meio reversão, à subversão e mesmo à instrumentalização cri- óbvio de retificação. Mas se enquadramento é entendi- tica. o que é aceito em uma instância, em outra é temati- do como um certo "escapar" ou um afastar", então zado criticamente ou até mesmo com incredulidade. Essa parece análogo a uma fuga da prisão. Isso sugere certa dimensão temporal variável do enquadramento constitui, libertação, um afrouxamento do mecanismo de controle igualmente, a possibilidade e a trajetória de sua comoção. com uma nova trajetória de comoção. o enquadra- Assim, a imagem digital circula fora dos muros de Abu mento, nesse sentido, permite e mesmo requer - essa Ghraib, ou a poesia de Guantanamo é recuperada por evasão. Isso aconteceu quando foram divulgadas fotos dos advogados especializados em direitos humanos que pro- prisioneiros de Guantanamo ajoelhados e acorrentados, movem sua publicação em todo o mundo. E desse modo o que provocou grande indignação; aconteceu de novo se estabelecem as condições para surpresa, indignação, quando as imagens digitais de Abu Ghraib circularam repulsa, admiração e descoberta, dependendo de como o globalmente através da internet, facilitando uma reação conteúdo é enquadrado pelas variações de tempo e lugar. o ampla e visceral contra a guerra. o que acontece nesses movimento da imagem ou do texto fora do confinamento momentos? E são apenas momentos passageiros ou são, na é uma espécie de "evasão", de modo que, embora nem a realidade, ocasiões em que enquadramento se revela uma 26 27</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO armação forçosa e plausível, resultando em uma libertação enquadramentos que governam a condição de ser reconhe- decisiva e exuberante da força de autoridades ilegítimas? cido relativa e diferencial das vidas vêm abaixo - como Como relacionar este debate sobre os enquadramentos parte do próprio mecanismo da sua circulação torna-se com o problema da apreensão da vida em sua precariedade? possível apreender algo a respeito do que ou quem está Poderia parecer, princípio, que é um convite à produção vivendo embora não tenha sido geralmente "reconheci- de novos enquadramentos e, consequentemente, de novos do" como uma vida. o que é esse espectro que as tipos de Então apreendemos a precariedade da normas do reconhecimento, uma figura intensificada que vida através dos enquadramentos à nossa disposição, e é vacila entre o seu interior e seu exterior? Como interior, nossa tarefa tentar estabelecer novos enquadramentos que deve ser expulsa para purificar a norma; como exterior, aumentariam a possibilidade de reconhecimento? A pro- ameaça desfazer as fronteiras que delineiam self. Em dução de novos enquadramentos, como parte do projeto ambos os casos, representa a possibilidade de colapso da geral de mídia alternativa, é evidentemente importante, norma; em outras palavras, é um sintoma de que a norma mas uma dimensão crítica desse projeto se funciona precisamente por meio da gestão da perspectiva nos limitássemos a essa forma de ver as coisas. o que acon- da sua destruição, uma destruição que é inerente às suas tece quando um enquadramento rompe consigo mesmo construções. é que uma realidade aceita sem discussão é colocada em xeque, expondo os planos orquestradores da autoridade que procurava controlar o enquadramento. Isso sugere Precariedade e ser ou não passível de luto que não se trata apenas de encontrar um novo conteúdo, mas também de trabalhar com interpretações recebidas Quando lemos a respeito de vidas perdidas com frequência da realidade para mostrar como elas podem romper - nos são dados números, mas essas histórias se repetem efetivamente fazem - consigo mesmas. Por conseguin- todos os dias, e a repetição parece interminável, irreme- te, os enquadramentos que, efetivamente, decidem quais Então, temos de perguntar, que seria necessário vidas serão reconhecíveis como vidas e quais não o serão não somente para apreender caráter precário das vidas devem circular a fim de estabelecer sua hegemonia. Essa perdidas na guerra, mas também para fazer com que essa circulação reitera ou, melhor dizendo, é a estrutura ite- apreensão coincida com uma oposição ética e política às rável do enquadramento. Conforme os enquadramentos perdas que a guerra acarreta? Entre as perguntas que resul- rompem consigo mesmos para poderem se estabelecer, tam dessa colocação estão as seguintes: Como a comoção surgem outras possibilidades de apreensão. Quando esses é produzida por essa estrutura do enquadramento? E qual 28 29</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO é a relação da comoção com julgamento e a prática de Afirmar que uma vida pode ser lesada, por exemplo, ou natureza ética e que pode ser perdida, destruída ou sistematicamente negli- Afirmar que uma vida é precária exige não apenas genciada até a morte é sublinhar não somente a finitude de que a vida seja apreendida como uma vida, mas também que uma vida (o fato de que a morte é certa), mas também sua a precariedade seja um aspecto do que é apreendido no precariedade (porque a vida requer que várias condições que está vivo. Do ponto de vista normativo, que estou sociais e econômicas sejam atendidas para ser mantida como argumentando é que deveria haver uma maneira mais uma vida). A precariedade implica viver socialmente, isto inclusiva e igualitária de reconhecer a precariedade, e que é, fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma isso deveria tomar forma como políticas sociais concretas forma, nas mãos do outro. Isso implica estarmos expostos no que diz respeito a questões como habitação, trabalho, não somente àqueles que conhecemos, mas também alimentação, assistência médica e estatuto jurídico. No que não conhecemos, isto é, dependemos das pessoas que entanto, também estou insistindo, de uma maneira que conhecemos, das que conhecemos superficialmente e das poderia parecer inicialmente paradoxal, que a própria que desconhecemos totalmente. Reciprocamente, isso sig- precariedade não pode ser adequadamente nifica que nos são impingidas a exposição e a dependência Pode ser apreendida, entendida, encontrada, e pode ser dos outros, que, em sua maioria, permanecem anônimos. pressuposta por certas normas de reconhecimento da Essas não são necessariamente relações de amor ou sequer mesma forma que pode ser rejeitada por essas normas. de cuidado, mas constituem obrigações para com os outros, Na realidade, deveria haver um reconhecimento da pre- cuja maioria não conhecemos nem sabemos que nome têm, cariedade como uma condição compartilhada da vida e que podem ou não ter traços de familiaridade com um humana (na verdade, como uma condição que une ani- sentido estabelecido de quem somos "nós". Falando na lin- mais humanos e não humanos), mas não devemos pensar guagem comum, dizer que "nós" temos essas que reconhecimento da precariedade controla, captura obrigações para com os "outros" e que presumimos que ou mesmo conhece completamente que reconhece. sabemos quem somos "nós" nesse caso. A implicação social Assim, apesar de argumentar (e farei) que as normas dessa colocação, contudo, é precisamente que "nós" não do reconhecimento deveriam estar baseadas em uma se reconhece, nem pode se reconhecer, que ele está cindido apreensão da precariedade, não acredito que a precarie- desde o início, interrompido pela alteridade, como afirmou dade seja uma função ou efeito do reconhecimento, nem [Emmanuel] Levinas, e as obrigações que "nós" temos são que reconhecimento seja a única ou a melhor maneira precisamente aquelas que rompem com qualquer noção de registrá-la. estabelecida de "nós". 30 31</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA DE LUTO Indo além e no sentido oposto de um conceito existen- e da manutenção de uma o futuro anterior, "uma cial de finitude que singulariza nossa relação com a morte e vida foi vivida", é pressuposto no começo de uma vida com a vida, a precariedade enfatiza nossa substitutibilidade que mal começou a ser vivida. Em outras palavras, "essa e nosso anonimato radicais em relação tanto a determina- será uma vida que terá sido vivida" é a pressuposição de dos modos socialmente facilitados de morrer e de morte uma vida cuja perda é passível de luto, que significa que quanto a outros modos socialmente condicionados de esta será uma vida que poderá ser considerada vida, e será sobreviver e crescer. Nós não nascemos primeiro e em se- preservada em virtude dessa consideração. Sem a condi- guida nos tornamos precários; a precariedade é coincidente ção de ser enlutada, não há vida, ou, melhor dizendo, há com o próprio nascimento (o nascimento é, por definição, algo que está vivo, mas que é diferente de uma vida. Em precário), o que quer dizer que fato de uma criança seu lugar, "há uma vida que nunca terá sido vivida", que sobreviver ou não é importante, e que sua sobrevivência não é preservada por nenhuma consideração, por nenhum depende do que poderíamos chamar de uma "rede social testemunho, e que não será enlutada quando perdida. A de ajuda". É exatamente porque um ser vivo pode morrer apreensão da condição de ser enlutada precede e torna que é necessário cuidar dele para que possa viver. Apenas possível a apreensão da vida precária. A condição de ser cm condições nas quais a perda tem importância o valor enlutado precede torna possível a apreensão do ser vivo da vida aparece efetivamente. Portanto, a possibilidade de como algo que vive, exposto a não vida desde o início. ser enlutada é um pressuposto para toda vida que importa. Em geral, imaginamos que uma criança vem ao mundo, é mantida no e por esse mundo até a idade adulta e a velhice Para uma crítica do direito à vida e, finalmente, morre. Imaginamos que quando a criança é desejada há celebração no início da vida. Mas não pode É sem dúvida difícil, para aqueles à esquerda, pensar cm haver celebração sem uma compreensão implícita de que um discurso da "vida", uma vez que estamos acostumados a vida é passível de luto, de que seria enlutada se fosse a pensar que aqueles que são favoráveis a mais liberdades perdida, de que esse futuro anterior está estabelecido reprodutivas são "a favor da liberdade de escolha", ao como a condição de sua vida. Em linguagem corrente, passo que aqueles que se a elas são "a favor da luto serve à vida que já foi vivida e pressupõe que essa vida". Mas talvez exista uma maneira de a esquerda re- vida já está terminada. Porém, de acordo com futuro tomar o pensamento sobre a "vida" e fazer uso desse anterior (que também faz parte da linguagem corrente), enquadramento da vida precária para defender uma firme fato de ser passível de luto é uma condição do surgimento posição feminista a favor das liberdades reprodutivas. 32 33</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA DE LUTO Não é difícil ver como aqueles que adotam as chamadas na definição da vida propriamente dita. de con- posições "a favor da vida" podem basear seu ponto de siderar paradigmas variáveis nas ciências da vida, como, vista no argumento de que feto é precisamente essa por exemplo, deslocamento dos modos de ver clínicos vida que não é enlutada, mas que deveria ou que é para os modos de ver moleculares, ou os debates entre uma vida que não é reconhecida como vida por aqueles a aqueles que priorizam as células e aqueles que insistem favor do direito ao aborto. Na realidade, esse argumento que tecido é a unidade mais primária do ser vivo. Esses poderia ter uma ligação bem próxima com a defesa dos debates teriam de ser conectados às novas tendências da direitos dos animais, uma vez que podemos perfeitamente biomedicalização e aos novos modos de administrar a argumentar que animal é uma vida que em geral não é vida, bem como às novas perspectivas na biologia que encarada como vida de acordo com as normas antropocên- vinculam o bios do ser humano ao do animal (ou que tricas. Esses debates se voltam com muita frequência para levam a sério a relação quiasmica implícita na expressão questões ontológicas, indagando se existe uma diferença "o animal humano"). então, de situar nossa significativa entre o estatuto de vida do feto, ou mesmo discussão sobre a guerra nesses últimos campos, o que do embrião, e estatuto da "pessoa", ou se existe uma nos mostraria que a "vida" como tal continua sendo diferença ontológica entre o animal e o "humano". definida e regenerada, por assim dizer, em novos modos Devemos reconhecer que todos esses organismos estão de conhecimento/poder. vivos de uma forma ou de outra. Fazer essa afirmação, Estou certa de que é possível seguir este caminho para contudo, não é fornecer argumentos substanciais para compreender a biopolítica tanto da guerra quanto da liber- uma posição ou para a outra. Afinal de contas, as plantas dade reprodutiva, e de que esses caminhos de investigação são seres vivos, mas os vegetarianos normalmente não seriam necessários para situar O discurso da vida dentro fazem nenhuma a comê-las. De forma mais geral, da esfera da biopolítica e mais especificamente da bio- pode-se argumentar que os próprios processos da vida medicalização. Há também, como Donna Jones mostrou envolvem destruição e degeneração, mas isso não nos diz, recentemente, um elo importante entre discurso sobre a de modo algum, qual tipo de destruição é eticamente rele- vida, a tradição do vitalismo e várias doutrinas do racis- vante e qual não é. Determinar a especificidade ontológica mo. A bibliografia sobre esses importantes temas da vida nessas circunstâncias nos levaria, de modo mais enormemente nos últimos Minha contribuição geral, a uma discussão de biopolítica, preocupada com as pessoal, contudo, não é para a genealogia dos conceitos de diferentes maneiras de apreender, controlar e administrar vida ou de morte, mas para pensar a precariedade como a vida, e como essas modalidades de poder se infiltram algo ao mesmo tempo pressuposto e orientado por esse 34 35</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO discurso, ao mesmo tempo plenamente resolvida por nenhum deter, por assim dizer, os processos da vida propriamente Na minha opinião, não é possível basear os argumentos ditos. Ironicamente, excluir a morte da vida representa a morte da vida. a favor da liberdade reprodutiva, que incluem direito ao aborto, em uma concepção sobre que é vivo e que Por conseguinte, em referência a qualquer coisa viva, não é. As células-tronco são células vivas, ainda que pre- não é possível afirmar antecipadamente que há um direito cárias, mas isso não implica imediatamente que se deva à vida, uma vez que nenhum direito pode evitar todos os adotar uma política em relação às condições nas quais processos de degeneração e morte; essa pretensão é a fun- elas deveriam ser destruídas ou nas quais poderiam ser ção de uma fantasia onipotente do antropocentrismo (uma usadas. Nem tudo que está incluído sob a rubrica "vida fantasia que também busca negar a finitude do anthropos). precária" é, desse modo, a priori, digno de proteção con- Da mesma maneira, e em última instância, não faz tra a destruição. Esses argumentos, porém, ficam difíceis sentido afirmar, por exemplo, que temos de nos centrar particularmente nesse ponto, pois, se alguns tecidos ou no que é característico a respeito da vida humana, uma células vivos merecem ser protegidos contra a destruição, e vez que, se estamos preocupados com a "vida" da vida outros não, isso poderia nos levar à conclusão de que, sob humana, é precisamente aí que não há nenhuma maneira condições de guerra, algumas vidas humanas são dignas sólida de distinguir, em termos absolutos, o bios do animal de proteção enquanto outras não são? Para entender por do bios do animal humano. Qualquer distinção desse tipo que isso é uma inferência enganosa, temos de considerar seria tênue e, uma vez mais, não levaria em conta que, por alguns postulados básicos de nossa análise e constatar definição, animal humano é ele mesmo um animal. Essa como certo antropocentrismo condiciona várias formas não é uma assertiva que diz respeito ao tipo ou à espécie questionáveis de argumentação. de animal que humano é, mas sim reconhecimento de o primeiro postulado é que existe um vasto domínio que a animalidade é uma precondição do humano, e não de vida não sujeito à regulação à decisão humanas, e existe humano que não seja um animal humano. que conceber algo diferente disso é reinstalar um antro- Aqueles que procuram uma base para decidir, por pocentrismo inaceitável no coração das ciências da vida. exemplo, se ou quando aborto pode ser justificado quase o segundo ponto é mas vale a pena ser reafirma- sempre recorrem a uma concepção moral da "pessoa" para do: no vasto domínio da vida orgânica, a degeneração e a determinar quando seria razoável considerar um feto uma destruição fazem parte do próprio processo da vida, que pessoa. As pessoas seriam então entendidas como sujeitos significa que nem toda degeneração pode ser detida sem de direitos, com direito a proteção contra os maus-tratos e a destruição, o que não se aplicaria às não pessoas - 36 37</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA DE LUTO ou pré-pessoas, por assim dizer, Esses esforços buscam resolver as questões éticas e políticas recorrendo a uma É claro que esses argumentos ainda não abordam di- ontologia da pessoa baseada em um relato da individuação retamente a questão de definir em que condições a vida biológica. Aqui, a ideia de "pessoa" é definida ontogeneti- precária passa a ter direito à proteção, e em que outras camente, ou seja, desenvolvimento interno postulado de condições não tem. Uma maneira convencional de co- certo estatuto ou capacidade moral do indivíduo torna-se locar esse problema no âmbito da filosofia moral é: quem a principal medida pela qual a pessoa é julgada. o debate decide e com base em que a decisão é tomada? Mas talvez restringe-se não somente a um domínio moral, mas a uma um conjunto de questões mais fundamentais a serem ontologia do individualismo que não reconhece que a vida, propostas: em que ponto a "decisão" desponta como ato entendida como vida precária, implica uma ontologia so- relevante, apropriado ou obrigatório? Há a questão do cial que coloca essa forma de individualismo em questão. "quem" decide, e dos padrões de acordo com os quais uma Não há vida sem as condições de vida que sustentam, decisão é tomada; mas há também a "decisão" sobre de modo variável, a vida, e essas condições são predomi- escopo adequado da própria tomada de decisão. A decisão nantemente sociais, estabelecendo não a ontologia distinta de prolongar a vida para humanos ou animais e a decisão da pessoa, mas a interdependência das pessoas, envolvendo de abreviá-la são sabidamente controversas precisamente relações sociais reproduzíveis e mantenedoras, assim como porque não há consenso sobre quando e onde a decisão relações com o meio ambiente e com formas não humanas deveria entrar em cena. Em que medida, e com que esforço de vida, consideradas amplamente. Esse modo de ontologia e custo, podemos prolongar a vida vivível para os velhos ou social (para qual não existe nenhuma distinção absoluta doentes terminais? Lado a lado com argumentos religiosos entre o social e o ecológico) tem implicações concretas que afirmam que "não cabe aos humanos" tomar decisões, para a maneira pela qual voltamos a abordar as questões há posições motivadas pela análise de relativas à liberdade reprodutiva e às políticas que argumentam que há limites financeiros para nossa A questão não é saber se determinado ser é vivo ou não, capacidade de prolongar uma vida, ainda mais uma vida nem se ele tem estatuto de "pessoa"; trata-se de saber, na muito menos "vivível". Mas vale observar que, quando verdade, se as condições sociais de sobrevivência e pros- começamos a considerar esses cenários, imaginamos um peridade são ou não possíveis. Somente com esta última grupo de pessoas que estão tomando decisões, e que as questão podemos evitar as pressuposições individualistas, decisões em si são tomadas em relação a um ambiente antropocêntricas e liberais que desencaminharam essas que, de modo geral, tornará ou não a vida vivível. Não se trata simplesmente de uma questão relativa à política sobre manter ou não uma vida ou proporcionar as condições 38 39</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSIVEL DE LUTO para uma vida vivível, pois está implícita em nossas reflexões uma suposição sobre a própria ontologia da No entanto, que talvez seja mais importante é que teríamos de repensar "o direito à vida" onde não há nenhu- vida. Simplificando, a vida exige apoio e condições possi- bilitadoras para poder ser uma vida ma proteção definitiva contra a destruição e onde os laços sociais afirmativos e necessários nos impelem a assegurar Na verdade, quando se toma a decisão de utilizar as condições para vidas vivíveis, e a fazê-lo em bases igua- uma máquina para prolongar a vida de um paciente, ou litárias. Isso implicaria compromissos positivos no sentido de ampliar os cuidados médicos aos mais velhos, essas de oferecer os suportes básicos que buscam minimizar a decisões são tomadas, em algum nível, considerando a precariedade de maneira alimentação, abrigo, qualidade e as condições de vida. Afirmar que a vida é trabalho, cuidados médicos, educação, direito de in e vir precária é afirmar que a possibilidade de sua manuten- e direito de expressão, proteção contra os maus-tratos e ção depende, das condições sociais a opressão. A precariedade essas obrigações e políticas, e não somente de um impulso interno viver. Com efeito, todo impulso tem de ser para sociais positivas (paradoxalmente, porque a precariedade é uma espécie de "desfundamentação" que constitui uma apoiado pelo que está fora de si mesmo, e é por essa razão condição generalizada para o animal humano), ao mesmo que não pode haver nenhuma persistência na vida sem tempo que propósito dessas obrigações é minimizar a pelo menos algumas condições que tornam uma vida precariedade e sua distribuição desigual. Nessa perspectiva, E isso é verdade tanto para o "indivíduo que portanto, podemos compreender as maneiras de justificar a toma decisões" quanto para qualquer outro, incluindo pesquisa com células-tronco quando fica claro que o uso de o indivíduo que "decide" que fazer em relação a em- células vivas pode aumentar as possibilidades de uma vida fetos, células-tronco ou esperma De mais De forma similar, a decisão de abortar um feto fato, aquele que decide ou assegura direitos à proteção pode perfeitamente estar baseada na suposição de que as for- faz no contexto de normas sociais e políticas que enqua- mas de suporte social e econômico necessários para tornar dram o processo de tomada de decisão, e em contextos aquela vida vivível estão ausentes. Nesse sentido, podemos presumidos nos quais a afirmação de direitos possa ser perceber que os argumentos contra determinadas formas de Em outras palavras, as decisões são práticas guerra dependem da afirmação de que os modos arbitrários sociais, e a afirmação de direitos surge precisamente onde de maximizar a precariedade para uns e de minimizá-la para as condições de interlocução podem ser pressupostas ou outros violam normas igualitárias básicas ao mesmo tempo minimamente invocadas e incitadas quando ainda não que não reconhecem que a precariedade impõe certos tipos estão de obrigações éticas aos vivos e entre os 40 41</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO Poderíamos, certamente, fazer afirmando dizer, seres sociais desde o começo, dependentes do que que a ideia de uma "vida poderia embasar aqueles está fora de dos outros, de instituições e de ambientes que desejam estabelecer uma distinção entre vidas que são sustentados e sustentáveis, razão pela qual somos, nesse dignas de serem vividas e vidas que devem ser sentido, precários. Para sustentar a vida como sustentável é Precisamente o raciocínio no qual se apoia certo tipo de necessário proporcionar essas condições e batalhar por sua esforço de guerra para distinguir entre vidas valiosas e renovação e seu fortalecimento. Onde uma vida não tem que são passíveis de luto, de um lado, e vidas sem valor nenhuma chance de florescer é onde devemos nos esforçar e que não são passíveis de luto, de outro. Essa conclusão, para melhorar as condições de A vida precária im- porém, ignora a importante qualificação que os padrões plica a vida como um processo condicionado, e não como igualitários quando considera o que é uma um aspecto interno de um indivíduo ou qualquer vida vivível. A precariedade tem de ser compreendida não outro construto antropocêntrico. Nossas obrigações são apenas como um aspecto desta ou daquela vida, mas como precisamente para com as condições que tornam a vida uma condição generalizada cuja generalidade só pode possível, não para com a "vida em si mesma" ou, melhor ser negada negando-se a precariedade enquanto tal. E a dizendo, nossas obrigações surgem da percepção de que obrigação de pensar a precariedade em termos de igual- não pode haver vida sustentada sem essas condições de dade surge precisamente da irrefutável capacidade de sustentação, e que essas condições são, ao mesmo tempo, generalização dessa condição. Partindo desse pressuposto, nossa responsabilidade política e a matéria de nossas de- contesta-se a alocação diferencial da precariedade e da cisões éticas mais árduas. condição de ser de ser lamentado. Além disso, a própria ideia de precariedade implica uma dependência de redes e condições sociais, o que sugere que aqui não se trata da Formações políticas "vida como tal", mas sempre e apenas das condições de vida, da vida como algo que exige determinadas condições Embora seja uma condição generalizada, a vida precária para se tornar uma vida vivível e, sobretudo, para tornar- é, paradoxalmente, a condição de estar condicionado. -se uma vida passível de luto. Em outras palavras, podemos afirmar que toda vida é Assim, a conclusão não é que tudo que pode morrer ou precária, que equivale a dizer que a vida sempre surge está sujeito à destruição (i.e., todos os processos da vida) e é sustentada dentro de determinadas condições de vida. impõe uma obrigação de preservar a vida. Mas uma obri- A discussão anterior a respeito dos enquadramentos e gação, com efeito, surge do fato de que somos, por assim normas procurou esclarecer uma dimensão dessas con- 42 43</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO dições. Não podemos reconhecer facilmente a vida fora dos enquadramentos nos quais ela é apresentada, e esses bível como tal. Formas de racismo instituídas e ativas no enquadramentos não apenas estruturam a mancira pela nível da percepção tendem a produzir versões icônicas de qual passamos a conhecer e a identificar a vida, mas populações que são eminentemente lamentáveis e de ou- constituem condições que dão suporte para essa mesma tras cuja perda não é perda, e que não é passível de luto. vida. As condições devem ser mantidas, que significa A distribuição da condição de ser passível de que existem não apenas como entidades estáticas, mas luto entre as populações tem implicações sobre por que e como instituições e relações sociais reproduzíveis. Não quando sentimos disposições afetivas politicamente sig- teríamos uma responsabilidade de manter as condições nificativas, tais como horror, culpa, sadismo justificado, de vida se essas condições não exigissem renovação. Do perda e Por que, em particular, houve nos mesmo modo, os enquadramentos estão sujeitos a uma Estados Unidos uma resposta justificada a certas formas estrutura iterável eles só podem circular em virtude de violência perpetrada ao mesmo tempo que a violência de sua reprodutibilidade, e essa mesma reprodutibilidade sofrida por eles ou é ruidosamente lamentada (a icono- introduz um risco estrutural para a identidade do próprio grafia dos mortos do 11 de Setembro) ou é considerada enquadramento. o enquadramento rompe consigo mesmo inassimilável (a afirmação da impermeabilidade masculina a fim de reproduzir-se, e sua reprodução torna-se o local dentro da retórica estatal)? em que uma ruptura politicamente significativa é possível. Se tomamos a precariedade da vida como ponto de Portanto, o enquadramento funciona normativamente, partida, então não há vida sem necessidade de abrigo e ali- mas pode, dependendo do modo específico de circulação, mento, não há vida sem dependência de redes mais amplas colocar certos campos de normatividade cm questão. Esses de sociabilidade e trabalho, não há vida que transcenda enquadramentos estruturam modos de reconhecimento, a possibilidade de sofrer maus-tratos e a especialmente durante os tempos de guerra, mas seus limi- então, analisar alguns dos atributos culturais tes e sua contingência também ficam sujeitos à exposição do poder militar durante esses tempos como se tentassem e à intervenção maximizar a precariedade para os outros enquanto a Esses enquadramentos são atuantes em situações de minimizam para poder em questão. Essa distribuição prisão e tortura, mas também nas políticas de imigração, diferencial da condição de precariedade é, a um só tempo, de acordo com as quais determinadas vidas são percebidas uma questão material e perceptual, visto que aqueles cujas como vidas, ao passo que outras, embora aparentemente vidas não são "consideradas" potencialmente lamentáveis estejam vivas, não conseguem assumir uma forma perce- e, por conseguinte, valiosas, são obrigados a suportar a carga da fome, do subemprego, da privação de direitos 44 45</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO legais e da exposição diferenciada à violência e à do que com frequência não têm opção a não ser recorrer Seria se não impossível, decidir se essa "considera- ao próprio Estado contra qual precisam de proteção. ção" - ou a sua ausência conduz à "realidade material" Em outras palavras, elas recorrem ao Estado em busca ou se a realidade material conduz à ausência de considera- de proteção, mas o Estado é precisamente aquilo do que ção, já que pareceria que ambas acontecem a um só tempo elas precisam ser protegidas. Estar protegido da violência e que essas categorias perceptuais são essenciais para a do Estado-Nação é estar exposto à violência exercida pelo produção da realidade material (o que não quer dizer que Estado-Nação; assim, depender do Estado-Nação para a toda materialidade seja à percepção, mas apenas proteção contra a violência significa precisamente trocar que a percepção carrega seus efeitos materiais). uma violência potencial por outra. Deve haver, de fato, Tanto a precariedade quanto a condição precária são poucas alternativas. É claro que nem toda violência advém conceitos que se entrecruzam. Vidas são, por definição, do Estado-Nação, mas são muito raros os casos contem- precárias: podem ser eliminadas de maneira proposital porâneos de violência que não tenham nenhuma relação ou acidental; sua persistência não está, de modo algum, com essa forma política. garantida. Em certo sentido, essa é uma característica de Este livro aborda os enquadramentos da guerra, isto todas as vidas, e não há como pensar a vida como não as diferentes maneiras de esculpir seletivamente a ex- precária - a não ser, é claro, na fantasia, em particular periência, como algo essencial à condução da guerra. nas fantasias As entidades políticas, incluindo Esses enquadramentos não apenas refletem as condições as instituições econômicas e sociais, são projetadas para materiais da guerra, como são também essenciais para o abordar essas necessidades, sem as quais risco da mor- animus perpetuamente produzido dessa realidade material. talidade é potencializado. Há diversos enquadramentos em questão aqui: o enqua- A condição precária designa a condição politicamente dramento da fotografia, o enquadramento da decisão de ir induzida na qual certas populações sofrem com redes so- para a guerra, o enquadramento das questões da imigração ciais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas como uma "guerra dentro de casa" e o enquadramento da de forma diferenciada às violações, à violência e à morte. política sexual e feminista a serviço do esforço de guerra. Essas populações estão mais expostas a doenças, pobreza, Eu argumento que, assim como a guerra é enquadrada de fome, deslocamentos e violência sem nenhuma proteção. determinadas maneiras a fim de controlar e potencializar A condição precária também caracteriza a condição po- a comoção em relação à condição diferenciada de uma liticamente induzida de maximização da precariedade vida passível de luto, a guerra também enquadra formas para populações expostas à violência arbitrária do Esta- de pensar multiculturalismo e certos debates sobre a 46 47</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO liberdade sexual, temas considerados, em grande medida, em uma estrutura que é incapaz de refletir criticamente separadamente das "relações exteriores". As concepções sobre como os termos da política nacional foram pertur- sexualmente progressistas dos direitos feministas ou das bados e empregados para os propósitos mais amplos da liberdades sexuais foram mobilizadas não somente para guerra. Concentrar novamente a racionalizar as guerras contra populações predominan- nos efeitos ilegítimos e arbitrários da violência estatal, temente mas também para argumentar a incluindo os meios coercitivos de aplicar e desafiar a lega- favor da adoção de limites à imigração para a Europa de lidade, poderia perfeitamente reorientar a esquerda para pessoas procedentes de países predominantemente muçul- além das antinomias liberais nas quais está atualmente manos. Nos Estados Unidos, isso levou a detenções ilegais mergulhada. Uma coligação daqueles que se à co- e ao aprisionamento daqueles que "parecem" pertencer a erção e à violência ilegítimas, assim como a qualquer tipo grupos étnicos apesar de os esforços jurídicos de racismo (não diferencialmente), certamente também para combater essas medidas terem sido cada vez mais implicaria uma sexual que se negaria obstina- bem-sucedidos nos últimos Por exemplo, aqueles damente a ser apropriada como fundamentação racional que aceitam um "impasse" entre direitos sexuais e direi- espúria para as guerras em curso. tos de imigração, especialmente na Europa, não levaram Os enquadramentos por meio dos quais pensamos em consideração como a guerra em curso estruturou e a esquerda precisam ser reformulados à luz das novas fissurou o tema dos movimentos sociais. Compreender os formas de violência estatal, especialmente aquelas que riscos culturais de uma guerra "contra o na medida buscam suspender os constrangimentos jurídicos em nome em que ela assume uma nova forma na política coerci- da soberania, ou que fabricam sistemas quase legais em tiva de imigração desafia a esquerda a refletir além dos nome da segurança nacional. Com muita frequência, não enquadramentos estabelecidos do multiculturalismo e a percebemos que as questões nitidamente "nacionais" são contextualizar suas recentes divisões à luz da violência do moduladas pelas questões de externa, e que um Estado, do exercício da guerra e da escalada da "violência enquadramento similar fundamenta nossa orientação em legal" nas fronteiras ambos os domínios. Tampouco questionamos essa maneira Nos últimos anos, as posturas associadas a políticas de demarcar as divisões entre as questões nacionais c as sexuais progressistas tiveram que fazer frente às reivindi- externas. Se esses enquadramentos colocados em cações de novos direitos para os imigrantes e a novas mu- contato crítico uns com os outros, que tipo de política danças culturais nos Estados Unidos e na Europa. Essas resultaria Isso talvez nos proporcionasse uma manei- formulações de contradição e impasse parecem basear-se ra de militar contra a mobilização de agendas nacionais 48 49</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA DE LUTO "progressistas" (feminismo, liberdade sexual) a favor das negadas tornam as práticas da guerra possíveis, temos de políticas bélicas e de anti-imigração, e até mesmo para a concluir que os enquadramentos de guerra são parte do fundamentação lógica da tortura sexual. Isso significaria que constitui a materialidade da guerra. Assim como a pensar a política sexual com a política de imigração de "matéria" dos corpos não pode aparecer sem uma confi- uma nova maneira e considerar como as populações estão guração que lhe dê forma e vida, tampouco a "matéria" da expostas diferencialmente a condições que colocam em guerra pode aparecer sem uma forma ou enquadramento perigo a possibilidade de sobreviver e prosperar. condicionador e facilitador. Este trabalho procura reorientar as políticas de esquer- A utilização de câmeras, não apenas na gravação e dis- da no sentido de considerar a condição precária como tribuição de imagens de tortura, mas também como parte uma condição existente e promissora para mudanças em do próprio aparato de bombardeio, deixa bem claro que coligações. Para que as populações se tornem lamentáveis, as representações midiáticas já se converteram em modos não é necessário conhecer a singularidade de cada pessoa de conduta Assim, não há como separar, nas que está em risco ou que, na realidade, já foi submetida condições históricas atuais, a realidade material da guerra ao risco. Na verdade quer dizer que a política precisa desses regimes representacionais por meio dos quais ela compreender a precariedade como uma condição compar- opera e que racionalizam sua própria operação. As realida- tilhada, e a condição precária como a condição politica- des perceptuais produzidas por esses enquadramentos não mente induzida que negaria uma igual exposição através conduzem exatamente à política bélica, como tampouco da distribuição radicalmente desigual da riqueza e das políticas dessa natureza criam unilateralmente enquadra- maneiras diferenciais de expor determinadas populações, mentos de percepção. A percepção e a política são apenas conceitualizadas de um ponto de vista racial e nacional, a duas modalidades do mesmo processo por meio do qual o uma maior violência. o reconhecimento da precariedade estatuto ontológico de uma determinada população vê-se compartilhada introduz fortes compromissos normativos comprometido e suspenso. Isso não é mesmo que uma de igualdade e convida a uma universalização mais sólida "vida nua", uma vez que as vidas em questão não estão dos direitos que procure abordar as necessidades humanas fora da polis em um estado de exposição radical, mas básicas de alimento, abrigo e demais condições de sobrevi- sim subjugadas e constrangidas por relações de poder em vência e prosperidade. ficar tentados a chamá- uma situação de exposição forçada. Não é a revogação -las de "necessidades materiais", e elas certamente o são. ou a ausência da lei que produz precariedade, mas sim os Porém, uma vez que reconhecemos que os enquadramentos efeitos da própria coerção legal ilegítima, ou exercício por meio dos quais essas necessidades são afirmadas ou do poder do Estado livre das restrições legais. 50 51</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO Essas reflexões têm implicações também na hora de as possibilidades de doença ou de acidente para um corpo pensar através do corpo, uma vez que não há nenhuma vivo, embora ambas possam ser mobilizadas a serviço dessa condição que possa "resolver" completamente problema ilusão. Esses riscos estão embutidos na própria concepção da precariedade humana. Os corpos passam a existir e da vida corporal considerada finita e precária, que implica deixam de existir: como organismos fisicamente persis- que corpo está sempre à mercê de formas de sociabilida- tentes, estão sujeitos a ataques e a doenças que colocam de e de ambientes que limitam sua autonomia individual. em risco a possibilidade de simplesmente sobreviver. São A condição compartilhada de precariedade significa que características necessárias dos corpos - não podem "ser" corpo é constitutivamente social e interdependente, pensados sem sua finitude e dependem do que está "fora concepção claramente confirmada de diferentes maneiras deles" para serem mantidos -, características que são tanto por Hobbes quanto por Hegel. Todavia, precisamente próprias da estrutura fenomenológica da vida corporal. porque cada corpo se encontra potencialmente ameaçado Viver é sempre viver uma vida que é vulnerável desde o por outros corpos que são, por definição, igualmente pre- início e que pode ser colocada em risco ou eliminada de cários, produzem-se formas de dominação. Essa máxima uma hora para outra a partir do exterior e por motivos hegeliana assume significados específicos nas condições que nem sempre estão sob nosso controle. bélicas a condição compartilhada de pre- Enquanto a maior parte das posições derivadas dos cariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas relatos de Spinoza sobre a persistência corporal enfatiza sim a uma exploração específica de de o desejo produtivo do será que já encontramos vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas um relato de Spinoza sobre a vulnerabilidade corporal "destrutíveis" e "não passíveis de luto". Essas populações ou consideramos suas implicações conatus são "perdíveis", ou podem ser sacrificadas, precisamente pode ser e é minado por muitas fontes: estamos vinculados porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas aos outros não somente através de redes de conexão libi- ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida dinosa, mas também através de modos de dependência e humana como a conhecemos, e não como populações vivas proximidade involuntárias que podem muito bem acarretar que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do consequências psíquicas ambivalentes, incluindo vínculos Estado, a fome e as pandemias. Consequentemente, quando de agressão e de libido Ademais, essa condição essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação, generalizada de precariedade e dependência é explorada e uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua em determinadas formações políticas. Ne- morte, a perda dessas populações é considerada necessária nhuma quantidade de vontade ou riqueza pode eliminar para proteger a vida dos "vivos". 52 53</p><p>QUADROS DE GUERRA VIDA VIDA PASSÍVEL DE LUTO Essa reflexão sobre a distribuição diferencial da pre- incluindo tanto a guerra quanto as formas de violência cariedade e da condição de ser passível de luto constitui legalizada mediante as quais as populações são diferen- uma alternativa aos modelos de multiculturalismo que cialmente privadas dos recursos básicos necessários para pressupõem o Estado-Nação como único enquadramento minimizar a precariedade. Isso parece ser urgente e neces- de referência, e pluralismo como uma maneira adequada sário no contexto do colapso dos Estados do bem-estar de pensar os sujeitos sociais heterogêneos. Embora certos social e naqueles em que as redes sociais de segurança princípios liberais permaneçam cruciais para esta análi- foram destruídas ou tiveram negada a oportunidade de se, incluindo a igualdade e a universalidade, é evidente se materializar. Em segundo lugar, o foco deveria recair que as normas liberais que uma ontologia menos nas políticas identitárias, ou nos tipos de interesses da identidade individual não podem produzir os tipos de e crenças formulados com base em pretensões identitárias, vocabulários analíticos de que necessitamos para pensar e mais na precariedade e em suas distribuições diferenciais, a interdependência global e as redes interconectadas de na expectativa de que possam se formar novas coligações poder e posição na vida Parte do problema capazes de superar os tipos de impasses liberais menciona- da vida contemporânea é que nem todo mundo dos anteriormente. A precariedade perpassa as categorias conta como o multiculturalismo tende a pressu- identitárias e os mapas multiculturais, criando, assim, a por comunidades já constituídas, sujeitos já estabelecidos, base para uma aliança centrada na oposição à violência quando que está em jogo são comunidades não exata- de Estado e sua capacidade de produzir, explorar e dis- mente reconhecidas como tais, sujeitos que estão vivos, mas tribuir condições precárias e para fins de lucro e defesa que ainda não são considerados "vidas". Além disso, não territorial. Tal aliança não requereria em se trata simplesmente de um problema de coexistência, mas relação a todas as questões de desejo, crença ou autoiden- sim de como a política de formação diferencial do sujeito tificação. Constituiria antes um movimento que abrigaria nos mapas de poder contemporâneos procura: (a) mobilizar determinados tipos de antagonismos em curso entre seus os progressistas sexuais contra os novos imigrantes em participantes, valorizando essas diferenças persistentes nome de uma concepção espúria de liberdade e (b) usar e animadoras como o sinal e a essência de uma política as minorias de gênero e as sexuais na racionalização das radical. guerras recentes e das que estão em curso. As políticas de esquerda a esse respeito deveriam, em primeiro lugar, ter como meta o redirecionamento do foco e a ampliação da crítica política da violência do Estado, 54 55</p><p>1 Capacidade de sobrevivência, vulnerabilidade, comoção A pressuposição de uma precariedade generalizada que coloca em questão a ontologia do individualismo implica determinadas consequências normativas, embora não as acarrete diretamente. Não basta dizer que, como a vida é precária, ela deve ser preservada. o que está em jogo são as condições que tornam a vida sustentável, e, portanto, as dissensões morais centram-se invariavelmente em como ou se essas condições de vida podem ser melhores e as condições precárias, amenizadas. Porém, se essa visão implica uma crítica do individualismo, como começar a pensar em de assumir a responsabilidade pela minimização da condição precária? Se a ontologia do corpo serve de ponto de partida para repensar essa responsabilidade é precisamente porque, tanto na sua superficie quanto no seu interior, corpo é um fenôme- 57</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO no social: ele está exposto aos outros, é vulnerável por Desse modo, um determinado ato interpretativo em alguns definição. Sua mera sobrevivência depende de condições momentos assume implicitamente o controle da reação e instituições sociais, que significa que, para "ser" no afetiva primária. A interpretação não surge como um ato sentido de "sobreviver", corpo tem de contar com o espontâneo de uma mente isolada, mas como uma con- que está fora dele. sequência de certo campo de inteligibilidade que ajuda a Como a responsabilidade pode ser pensada com base formar e a enquadrar nossa reação ao mundo invasivo nessa estrutura do corpo socialmente estárica? Como algo (um mundo do qual dependemos, mas que também nos que, por definição, está submetido à habilidade e à força invade, exigindo uma reação de formas complexas e, do social, o corpo é vulnerável. Ele não é, contudo, uma às vezes, ambivalentes). Por isso a precariedade como mera superfície na qual são inscritos significados sociais, condição generalizada se baseia em uma concepção do mas sim o que sofre, usufrui e responde à exterioridade corpo como algo fundamentalmente dependente de, e do mundo, uma exterioridade que define sua disposição, condicionado por, um mundo sustentado e sustentável; a sua passividade e atividade. Evidentemente que a violação reação e, em última instância, a responsabilidade é algo que pode ocorrer e efetivamente ocorre com um se situa nas reações afetivas a um mundo que sustenta e corpo vulnerável (e não existem corpos invulneráveis), Como essas respostas afetivas são invariavelmente mas isso não quer dizer que a vulnerabilidade do corpo mediadas, elas exigem e desempenham o papel de certos possa ser reduzida à possibilidade de violação física. enquadramentos interpretativos; podem também colocar o fato de corpo invariavelmente se defrontar com em questão caráter aceito como verdadeiro desses enqua- mundo exterior é um sinal do predicamento geral da pro- dramentos e, nesse sentido, fornecer as condições afetivas ximidade indesejada dos outros e das circunstâncias que para a crítica social. Conforme já ponderei anteriormente, estão além do nosso controle. Esse "defrontar-se com" é a teoria moral deve se converter em social se quiser uma das modalidades que define corpo. E, no entanto, conhecer seu objeto e atuar sobre ele. Para compreender essa alteridade invasiva com a qual corpo se depara esquema que propus no contexto de guerra, é necessário pode ser, e com frequência é, que anima a reação a esse considerar que a responsabilidade deve concentrar-se não mundo. Essa reação pode incluir um amplo espectro de apenas no valor desta ou daquela vida, ou na questão da emoções: prazer, raiva, sofrimento, esperança, para citar capacidade de sobrevivência de modo abstrato, mas sim na apenas algumas. manutenção das condições sociais de vida, especialmente Essas emoções, eu diria, tornam-se não apenas a sus- quando elas falham. Essa tarefa torna-se particularmente tentação, mas a própria substância da ideação e da grave no contexto da guerra. 58 59</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO Não é fácil se voltar para a questão da responsabili- dade, menos ainda uma vez que termo foi usado para assumo a responsabilidade o que fica claro é que quem fins completamente opostos ao meu propósito aqui. "eu" sou está ligado aos outros de maneiras indissociáveis? Na França, por exemplo, onde os benefícios sociais É possível ao menos pensar em mim sem esse mundo de para os pobres e os novos imigrantes foram negados, outros? Na verdade, pode ser que, através do processo governo apelou para uma nova noção de "responsabi- de assumir responsabilidade, o "eu" se revele, pelo menos lidade", segundo a qual os indivíduos não devem con- parcialmente, um "nós"? tar com Estado, mas apenas com eles mesmos. Uma Mas quem estaria, então, incluído no "nós" que pa- nova palavra acabou sendo cunhada para descrever reço ser ou do qual pareço fazer parte? E por qual "nós" processo de produção de indivíduos autossuficientes: sou afinal responsável? Isso equivale a perguntar a Certamente não me oponho à "nós" eu pertenço? Se identifico uma comunidade de per- que responsabilidade individual, e há situações em que, com tencimento com base em nação, território, linguagem ou certeza, todos devemos assumir a responsabilidade por cultura, e se, então, baseio meu senso de responsabilidade nós mesmos. Entretanto, à luz dessa formulação, despon- nessa comunidade, estou implicitamente defendendo a tam para mim algumas questões críticas: Sou responsável visão de que sou responsável somente por aqueles que, de apenas por mim mesmo? Existem outros por quem sou alguma forma, se assemelham reconhecidamente a responsável? E como, em geral, posso determinar o al- Mas quais enquadramentos implícitos da condição de ser cance da minha responsabilidade? Sou responsável por reconhecido estão em jogo quando "reconheço" todos os outros ou só por alguns, e que critérios devo como "parecido" comigo? Que ordem política implícita usar para estabelecer essa linha produz e regula a semelhança nesses casos? Qual é nossa Esse é, porém, apenas começo das minhas dificul- responsabilidade em relação que não conhecemos, dades. Confesso ter alguns problemas com os pronomes em relação que parecem testar nosso senso de em questão. É apenas como um "eu" - isto é, como um pertencimento ou desafiar normas disponíveis de seme- indivíduo que sou responsável? Ou será que quando lhança? Talvez pertençamos a eles de uma forma diferente, e nossa responsabilidade para com eles não resida, de fato, *Termo desenvolvido para se referir ao processo pelo qual na apreensão de similitudes pré-fabricadas. Talvez essa onde tornados políticas delegadas cidadãos são Es- individualmente responsáveis por tarefas até então os responsabilidade só possa começar a ser internalizada o processo de responsabilização está associado a ao sujeitos. (N. dos T.) Estado vem retirando de si e transferindo a responsabilidade neoliberais, para os por meio de uma reflexão crítica a respeito das normas excludentes de acordo com as quais são constituídos os campos da possibilidade do reconhecimento, campos que 60 61</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE COMOÇÃO são implicitamente invocados quando, por um reflexo cultural, lamentamos a perda de determinadas vidas e uma espécie de dilema, já que a maioria pode perfeita- reagimos com frieza diante da morte de outras. mente votar em uma forma não de poder Antes de sugerir uma maneira de pensar acerca da (conforme fizeram os alemães em 1933, quando elegeram responsabilidade global nesses tempos de guerra, quero Hitler), mas os poderes militares também podem procu- me distanciar de algumas formas equivocadas de abordar rar "instaurar" a democracia anulando ou suspendendo o problema. Aqueles, por exemplo, que fazem guerra em as eleições e outras expressões da vontade popular, por nome do bem comum, aqueles que matam em nome da meios que são patentemente antidemocráticos. Nesses democracia ou da segurança, aqueles que invadem dois casos, a democracia fracassa. rios soberanos de outros países em nome da soberania De que modo essas breves ponderações sobre os riscos todos eles consideram que estão "atuando globalmente" da democracia afetam nossa maneira de pensar sobre a e até mesmo exercendo certa "responsabilidade global". responsabilidade global em tempos de guerra? Primeiro, Nos últimos anos, temos ouvido nos Estados Unidos um devemos desconfiar de invocações de "responsabilidade discurso sobre "levar a democracia" para países onde, global" que pressupõem que um país tenha a responsa- aparentemente, ela não existiria; ouvimos também falar bilidade específica de levar a democracia a outros da necessidade de "instaurar a democracia". Nesses mo- Tenho certeza de que há casos em que a intervenção é mentos, temos de perguntar o significado dessa demo- importante - para impedir um genocídio, por exemplo. cracia que não está baseada na decisão popular nem nas Seria um erro, porém, associar essa intervenção a uma decisões da maioria. Será que um poder pode "levar" missão global ou, ainda, a uma política arrogante por ou "instaurar" a democracia para um povo em relação meio da qual são implantadas pela força formas de gover- ao qual não possui nenhuma jurisdição? Se uma forma no que representam os interesses políticos e econômicos do de poder é imposta a um povo que não a escolheu, isso poder militar responsável por essa mesma implementação. constitui, por definição, um processo não Nesses casos, é provável que queiramos dizer ou, pelo Se a forma de poder imposta for chamada de "democra- menos, eu quero dizer - que essa forma de responsabi- cia", então teremos um problema ainda maior: podemos lidade global é irresponsável, se não ostensivamente con- chamar de "democracia" uma forma de poder político dizer que, nesses casos, a palavra imposto antidemocraticamente? A democracia tem que "responsabilidade" é simplesmente mal-empregada ou caracterizar os meios pelos quais o poder político é al- usada de forma Tenderia a concordar. Mas isso cançado, bem como o resultado desse processo. Isso cria pode não ser suficiente, já que as circunstâncias históricas exigem que demos novos significados à noção de "respon- 62 63</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO sabilidade". Com efeito, temos diante de nós desafio de defendê-las das vidas de outras pessoas, mesmo que isso repensar e reformular uma concepção da responsabilidade signifique eliminar estas últimas. Depois dos atentados global que faça frente a essa apropriação imperialista e de 11 de Setembro, os meios de comunicação divulgaram sua política de imposição. as imagens daqueles que morreram, com seus nomes, Por essa razão, quero retornar à questão do "nós" e suas histórias pessoais, as reações de suas famílias. o pensar primeiramente sobre o que acontece a esse "nós" luto público encarregou-se de transformar essas imagens em tempos de guerra. Que vidas são consideradas vidas em para a nação, que significou, é claro, que o que merecem ser salvas e defendidas, e que vidas não luto público pelos não americanos foi consideravelmen- são? Em segundo lugar, gostaria de perguntar como po- te menor e que não houve absolutamente nenhum luto repensar "nós" em termos globais de forma público pelos trabalhadores ilegais. a fazer frente à política de imposição. Finalmente, e nos A distribuição desigual do luto público é uma questão capítulos que se seguem, quero refletir sobre por que a política de imensa importância. Tem sido assim desde, oposição à tortura é obrigatória e como podemos extrair pelo menos, a época de quando ela decidin um importante sentido da responsabilidade global de chorar publicamente pela morte de um de seus irmãos, uma política que se oponha ao uso da tortura em todas embora isso fosse contra a lei soberana. Por que os gover- as suas nos procuram com tanta frequência regular e controlar Portanto, uma boa maneira de formular a questão quem será e quem não será lamentado publicamente? Nos de quem somos "nós" nesses tempos de guerra é per- primeiros anos da epidemia da aids nos Estados Unidos, guntando quais vidas são consideradas valiosas, quais as vigílias públicas e Names Project (Projeto dos vidas são enlutadas, e quais vidas são consideradas não conseguiram superar a vergonha pública associada passíveis de luto. Podemos pensar a guerra como algo à morte por complicações decorrentes da aids, uma que divide as populações entre aquelas pessoas por vergonha associada algumas vezes à homossexualidade, quem lamentamos e aquelas por quem não lamentamos. especialmente ao sexo anal, e outras vezes às drogas e Uma vida não passível de luto é aquela cuja perda não à promiscuidade. Era importante declarar e mostrar é lamentada porque ela nunca foi vivida, isto é, nunca nomes, reunir alguns resquícios de uma vida, exibir e contou de verdade como vida. Podemos ver a divisão do confessar publicamente as perdas. o que aconteceria se mundo em vidas passíveis ou não passíveis de luto da as vítimas fatais das guerras em curso fossem enlutadas perspectiva daqueles que fazem a guerra com o assim, abertamente? Por que não são divulgados os no- sito de defender as vidas de certas comunidades e para mes de todos os que foram mortos na guerra, incluindo 64 65</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO aqueles que as forças americanas mataram e de quem comportamento antiamericano. Não seria aconselhável jamais conheceremos a imagem, o nome, a história, de veicular provas detalhadas dos atos de tortura pratica- cuja vida nunca teremos um fragmento testemunhal, dos pelos militares americanos. Não seria conveniente alguma coisa para ver, tocar, conhecer? Embora não que soubéssemos que os Estados Unidos haviam violado seja possível singularizar cada vida destruída na guerra, direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Era certamente existem formas de registrar as populações antiamericano mostrar aquelas fotos e tirar conclusões a atingidas e destruídas sem incorporá-las à função icônica partir delas sobre como a guerra estava sendo conduzida. da o comentarista político conservador Bill O'Reilly ponde- o luto público está estreitamente relacionado à indig- rou que as fotos criariam uma imagem negativa do país nação, e a indignação diante da injustiça ou, na verdade, e que tinhamos a obrigação de preservar uma imagem de uma perda irreparável possui um enorme potencial Donald Rumsfeld disse algo parecido, sugerin- político. Foi essa, afinal, uma das razões que levaram do que seria antiamericano exibir as É claro que Platão a querer banir os poetas da República. Ele achava nenhum deles levou em conta que o público americano que, se os cidadãos assistissem a tragédias com muita deveria ter o direito de conhecer as atividades de seus frequência, chorariam as perdas que presenciassem, e esse militares, ou que o direito do público de julgar a guerra luto público e aberto, ao perturbar a ordem e a hierarquia com base em todas as provas documentais faz parte da da alma, desestabilizaria também a ordem e a hierarquia tradição democrática de participação e deliberação. o da autoridade política. Se estamos falando de luto público que, então, estava realmente sendo dito? Parece-me que ou de indignação pública, estamos falando de respostas aqueles que procuravam limitar o poder da imagem nesse afetivas que são fortemente reguladas por regimes de força caso também procuravam limitar poder da comoção, da e, algumas vezes, sujeitas à censura explícita. indignação, perfeitamente conscientes de que isso poderia, Nas guerras em que os Estados Unidos como de fato ocorreu, colocar a opinião pública contra a estão diretamente envolvidos, no Iraque e no Afeganistão, guerra que estava sendo travada no Iraque. podemos ver como a comoção é regulada para apoiar A pergunta sobre quais vidas devem ser consideradas tanto o esforço de guerra quanto, mais especificamente, como merecedoras de luto e de proteção, pertencentes a o sentido de pertencimento nacionalista. Quando as sujeitos com direitos que devem ser garantidos, nos leva fotos da prisão de Abu Ghraib foram divulgadas nos de volta à questão de como a comoção é regulada e de Estados Unidos, os analistas das redes de televisão con- qual é a nossa intenção ao regular a comoção. Recen- servadoras americanas alegaram que mostrá-las seria um temente, o antropólogo Talal Asad escreveu um livro 66 67</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO sobre atentados suicidas no qual a primeira pergunta é estruturada por esquemas interpretativos que não com- que apresenta é a seguinte: Por que sentimos horror e preendemos inteiramente, isso pode nos ajudar a entender repulsa moral diante do atentado suicida e nem sempre por que sentimos horror diante de certas perdas e indiferen- sentimos a mesma coisa diante da violência promovida ça ou mesmo justeza diante de outras? Nas circunstâncias pelo Estado? Ele faz essa pergunta não para dizer que de guerra e de nacionalismo exacerbado, essas formas de violência se equivalem ou que deveriamos imaginamos que nossas existências estejam ligadas a outras sentir a mesma indignação moral com relação a ambas. com as quais podemos encontrar afinidades nacionais que Mas ele acha curioso, e acompanho nisso, que as nos- seriam reconhecíveis para nós e que estariam em confor- sas reações morais reações que primeiro assumem a midade com certas noções culturalmente específicas sobre forma de comoção - sejam tacitamente reguladas por o que é culturalmente reconhecível como humano. Esse certos tipos de enquadramento interpretativo. Sua tesc é enquadramento interpretativo funciona diferenciando que sentimos mais horror e repulsa moral por vidas hu- tacitamente populações das quais minha vida e minha manas perdidas em determinadas circunstâncias do que existência dependem e populações que representam uma em outras. Se, por exemplo, mata ou é morto na ameaça direta à minha vida e à minha existência. Quando guerra, e a guerra é patrocinada pelo Estado, investido uma população parece constituir uma direta à por nós de legitimidade, então, consideramos a morte minha vida, seus integrantes não aparecem como "vidas", passível de luto, triste, desafortunada, mas não radical- mas como uma ameaça à vida (uma representação viva mente injusta. No entanto, se a violência for perpetrada que representa a ameaça à vida). Consideremos como isso por grupos insurgentes considerados ilegítimos, nossa se agrava naquelas situações em que Islã é visto como comoção invariavelmente muda, ou pelo menos é isso bárbaro ou pré-moderno, como algo que ainda não se que Asad supõe. ajustou às normas que tornam o humano Embora Asad nos convide a refletir sobre os atentados Aqueles que matamos não são completamente humanos, suicidas, algo que não fazer agora, também fica evi- não estão de todo vivos, que significa que não sentimos dente que ele está dizendo algo importante sobre a política o mesmo horror e a mesma indignação diante da perda da capacidade de reação moral; cm outras palavras, que o de suas vidas que sentimos com a perda das outras vidas que sentimos é parcialmente condicionado pela maneira que guardam uma semelhança nacional ou religiosa com como interpretamos o mundo que nos cerca, que a forma a nossa própria. de interpretar que sentimos pode alterar, e na verdade Asad se pergunta se os modos de lidar com a morte altera, o próprio sentimento. Se aceitarmos que a comoção são apreendidos de forma diferente, se desaprovamos 68 69</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO com mais veemência e nos sentimos moralmente mais nações como os Estados Unidos Isracl argumentam que indignados com as mortes causadas por atentados sui- sua sobrevivência depende da guerra, um erro sistemático cidas do que com as mortes causadas, por exemplo, por está sendo cometido. um bombardeio aéreo. Mas aqui pergunto se não há Isso acontece porque a guerra procura negar as formas também um modo diferente de considerar as populações, irrefutáveis e contínuas de que todos estamos submeti- de modo que algumas são consideradas desde o princi- dos uns aos outros, vulneráveis à destruição pelo outro pio muito vivas, enquanto outras são encaradas como e necessitados de proteção mediante acordos globais e questionavelmente vivas, talvez até mesmo socialmente multilaterais baseados no reconhecimento de uma preca- mortas (expressão cunhada por Orlando Patterson para riedade compartilhada. Acredito que esse é, claramente, descrever estatuto de um escravo), ou como represen- um argumento hegeliano, e convém reiterá-lo aqui. A tações vivas da ameaça à Entretanto, se a guerra, razão pela qual não sou livre para destruir outro - e ou melhor, se as guerras atuais reafirmam e perpetuam por que as nações não são, definitivamente, livres para uma maneira de dividir as vidas entre aquelas que me- destruírem umas às outras - não é somente o fato de que recem ser defendidas, valorizadas e enlutadas quando isso acarretará outras consequências destrutivas. que é, são perdidas, e aquelas que não são propriamente vidas sem dúvida, verdadeiro. Mas que pode no fim das nem propriamente valiosas, reconhecíveis ou passíveis contas, ainda mais verdadeiro é que o sujeito que sou está de serem enlutadas, então a perda de vidas que não são ligado ao sujeito que não sou, que cada um de nós tem o enlutadas certamente causará uma enorme indignação poder de destruir e de ser destruído, e que estamos unidos àqueles que entendem que sua vida não é considerada uns aos outros nesse poder e nessa precariedade. Nesse vida em nenhum sentido pleno e significativo. Portanto, sentido, somos todos vidas precárias. embora a lógica da autodefesa molde essas populações Depois do 11 de Setembro, vimos desenvolvimento como "ameaças" à vida tal como a conhecemos, elas da perspectiva segundo a qual a "permeabilidade da são populações vivas com as quais coabitamos, o que fronteira" representa uma ameaça nacional, ou mesmo pressupõe certa interdependência entre nós. Como essa uma ameaça à identidade como tal. A identidade, con- interdependência é reconhecida (ou não) instituída (ou tudo, não é concebível sem uma fronteira permeável, ou não) tem implicações concretas para quem sobrevive, sem a possibilidade de se renunciar a uma fronteira. No quem prospera, quem mal consegue se manter vivo, e primeiro caso, temem-se a invasão, a intrusão e a apro- para quem é eliminado ou deixado à morte. Quero insis- priação indevida, e faz-se uma reivindicação territorial tir nessa interdependência precisamente porque, quando em nome da autodefesa. No outro caso, porém, deixa-se 70 71</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO de lado ou se ultrapassa uma fronteira precisamente com porque quem "eu" sou não é nada sem a sua vida, e a intuito de se estabelecer certa relação que vá além das própria vida deve ser repensada como esse conjunto reivindicações territoriais. o temor da capacidade de de relações - complexas, apaixonadas, antagônicas e sobrevivência pode acompanhar os dois gestos, e, se isso necessárias - com os outros. Posso perder esse "você" ocorrer, o que isso nos ensina sobre como nosso sentido e muitos outros vocês específicos, e posso perfeitamente de sobrevivência está inevitavelmente ligado que sobreviver a essas perdas. Mas isso só pode acontecer se eu não conhecemos, que podem muito bem não ser plena- não perder a possibilidade de pelo menos um "você" que mente reconhecíveis segundo nossas próprias normas seja. Se sobrevivo, é exatamente porque minha vida não nacionais ou limitadas? é nada sem a vida que me excede, que se refere a algum De acordo com Melanie Klein, desenvolvemos res- "você" indexado sem o qual eu não posso ser. postas morais em reação a questões relacionadas à ca- o uso que faço aqui de Klein é decididamente não pacidade de Arrisco dizer que Klein está kleiniano. Na verdade, acredito que ela forneça uma certa a esse respeito, mesmo quando frustra sua própria análise que nos impele a seguir em uma direção que ela argumentação ao insistir que, no final das contas, é a ca- própria jamais seguiria ou poderia seguir. Permitam-me pacidade de sobrevivência do eu que está em questão. Por considerar, por um momento, o que acredito ser correto a que o eu? Afinal, se minha capacidade de sobrevivência respeito da visão de Klein, mesmo que tenha de discordar depende da relação com os outros - com um "você" dela em sua avaliação dos impulsos e da autopreservação ou com um conjunto de "vocês" sem os quais não posso e procurar desenvolver uma ontologia social baseada em existir -, então minha existência não é apenas minha sua análise, algo que ela certamente rejeitaria. e pode ser encontrada fora de mim, nesse conjunto de Se a culpa é associada a temores relativos à capacidade relações que precedem e excedem as fronteiras de quem de sobrevivência, então isso sugere que, como resposta sou. Se tenho alguma fronteira, ou se alguma fronteira moral, a culpa se refere a um conjunto pré-moral de me- pode ser atribuída a mim, é somente porque me separei dos e impulsos ligados à capacidade de destruição e às dos outros, e é somente por causa dessa separação que suas consequências. Se a culpa propõe uma questão ao posso me relacionar com eles. Assim, a fronteira é uma sujeito humano, ela não será, em primeiro lugar, sobre função da relação, uma gestão da diferença, uma nego- se levamos uma vida boa, mas sim sobre se a vida é de ciação na qual estou ligado a você na medida da minha todo vivível. Quer seja concebida como uma emoção ou separação. Se procuro preservar sua vida, não é apenas como um sentimento, a culpa nos revela algo a respeito porque procuro preservar a minha própria, mas também de como ocorre o processo de moralização e de como 72 73</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO ele desvia da crise de capacidade de sobrevivência. Se encarar esse pela autopreservação como um de- alguém se sente culpado diante da perspectiva de destruir sejo de preservar-se como ser humano; porém, como é objeto/o outro a quem está ligado, o objeto de amor minha sobrevivência que está ameaçada por meu poten- e apego, isso pode se dever a um instinto de autopre- cial destrutivo, parece que a culpa se refere menos a uma servação. Se destruo outro, estou destruindo aquele qualidade humana do que à vida e, na verdade, à capa- de quem dependo para sobreviver e, portanto, ameaço cidade de sobrevivência. Assim, cada um de nós só sente minha própria sobrevivência com meu ato destrutivo. culpa como um animal que pode viver e morrer; apenas Se Klein estiver certa, então mais provável é que não para alguém cuja vida está estreitamente relacionada a me importe muito com a outra pessoa como tal; ela não outras vidas e que deve negociar seu poder de violar, seria encarada por mim como um outro, separado de de matar ou de preservar a vida, é que a culpa se torna mim, que "merece" viver e cuja vida depende da minha uma questão. Paradoxalmente, a culpa que com tanta capacidade de controlar meu próprio poder de destruição. frequência é vista como uma emoção paradigmaticamente Para Klein, a questão da sobrevivência precede a questão humana, em geral entendida como algo que requer po- da moralidade. Na verdade, pareceria que a culpa não deres autorreflexivos, e que, portanto, estabelece uma estabelece uma relação moral com o outro, mas sim um diferença entre vida humana e vida animal - é movida desejo desenfreado de autopreservação. Na opinião de menos por uma reflexão racional do que pelo medo da Klein, só quero que outro sobreviva para que eu possa morte e pela vontade de viver. A culpa, portanto, contesta sobreviver. o outro é instrumental para minha própria sobrevivência, e a culpa e até mesmo a moralidade são o antropocentrismo que com tanta frequência endossa simplesmente as consequências instrumentais desse desejo considerações sobre os sentimentos morais, instituindo, de autopreservação, que é ameaçado, principalmente, pela em vez disso, anthropos como um animal em busca da minha própria capacidade destrutiva. sobrevivência, mas cuja capacidade de sobrevivência se dá A culpa pareceria, então, caracterizar uma capacidade em função de uma sociabilidade frágil e negociada. A vida humana particular de assumir a responsabilidade por é sustentada não por um impulso de autopreservação, determinadas ações. Sou culpado porque procurei des- concebido como um impulso interno do organismo, mas truir um elo de que necessito para viver. A culpa parece por uma condição de dependência sem a qual a sobre- ser um impulso de autopreservação primário, que pode vivência não é possível, mas que também pode colocar estar estreitamente ligado ao eu, embora, como sabemos, a sobrevivência em perigo, dependendo da forma que a a própria Klein não seja uma psicóloga do eu. Podemos dependência assume. 74 75</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO Se a argumentação de Klein de que a ca- incluindo suas operações de tortura, é uma noção em que pacidade de destruição é o problema do sujeito humano, sujeito Estados Unidos busca se mostrar impermeável, pareceria que é ela também que conecta humano ao definir-se como permanentemente protegido contra inva- não humano. Isso se mostra mais profundamente ver- e radicalmente invulnerável a ataques. o naciona- dadeiro em tempos de guerra, quando a vida sensível de lismo funciona, em parte, produzindo e mantendo uma todos os tipos é exposta a um risco elevado, e me parece determinada versão do sujeito. Podemos chamá-lo de extremamente verdadeiro para aqueles que têm poder imaginário, se assim desejarmos, mas temos de lembrar de desencadear uma guerra, isto é, de se converter em que ele é produzido e mantido por meio de poderosas sujeitos cuja capacidade de destruição ameaça popula- formas de e que aquilo que confere poder à sua ções e ambientes inteiros. Assim, se neste capítulo faço versão do sujeito é exatamente a forma pela qual elas uma crítica primeiro-mundista do impulso destrutivo, são capazes de transformar a própria capacidade de é precisamente porque sou cidadã de um país que siste- destruição do sujeito em algo justo, e sua própria destru- maticamente idealiza sua própria capacidade de matar. tibilidade em algo impensável. Acho que foi no filme Hora do Rush 3 que, quando os A questão a respeito de como essas relações ou inter- personagens principais entram em um em Paris, dependências são concebidas está relacionada, portanto, a taxista, ao perceber que se trata de norte-americanos, se e como podemos expandir nosso senso de dependência manifesta seu entusiástico interesse pela próxima aven- e obrigação políticas para uma arena global além da na- tura Durante trajeto, ele revela uma ção. o nacionalismo nos Estados Unidos tem aumentado, profunda percepção "Os americanos", diz, é claro, desde os atentados de 11 de Setembro, mas não "eles matam pessoas sem nenhum motivo!" É claro que o custa lembrar que este é um país que estende sua jurisdição governo americano oferece todos os tipos de justificativa para além de suas próprias fronteiras, que suspende suas para suas matanças, embora se negue, ao mesmo tempo, obrigações constitucionais dentro dessas fronteiras e que a classificar essas matanças de "matanças". Se levo a se considera acima de muitos acordos Pre- fundo a questão da capacidade de destruição, porém, servam zelosamente scu à autoproteção soberana ao e se volto minha atenção para a questão da precariedade e mesmo tempo em que fazem incursões autojustificadas em da vulnerabilidade, é precisamente porque acredito que outras soberanias ou, no caso da Palestina, recusam-se a seja necessário certo deslocamento de perspectiva para honrar quaisquer princípios de soberania. Quero salientar repensar a global. A noção de sujeito produzida que o movimento de assegurar a dependência e compro- pelas guerras recentes conduzidas pelos Estados Unidos, misso fora do Estado-Nação tem de ser diferenciado das 76 77</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO formas de imperialismo que insistem em reivindicações vida e, consequentemente, também da política. A agres- de soberania fora das fronteiras do Estado-Nação. Essa são, porém, pode e deve estar separada da violência (sendo distinção não é algo fácil de se fazer ou de se assegurar, a violência uma das formas que a agressão assume), e mas creio que coloca um desafio contemporâneo e urgente existem maneiras de dar forma à agressão que atuam a para o nosso tempo. serviço da vida democrática, incluindo "antagonismo" Quando me refiro a uma cisão que estrutura (e deses- e o conflito discursivo, as greves, a desobediência civil e trutura) sujeito nacional, estou me referindo àqueles modos de defesa e deslocamento - tomando emprestada mesmo a revolução. Tanto Hegel quanto Freud compre- endiam que a repressão da destruição só pode ocorrer uma categoria psicanalítica que nos levam, em nome da soberania, a defender uma fronteira em uma deter- realocando a destruição na ação de repressão, o que nos minada situação e a violá-la com total impunidade em leva a concluir que todo pacifismo baseado na repressão outra. o apelo à interdependência é, portanto, também terá apenas encontrado outro espaço para a capacidade um apelo para superarmos essa cisão e nos movermos na de destruição, e de forma alguma terá obtido sucesso em direção do reconhecimento de uma condição generalizada sua eliminação. Pode-se concluir, ademais, que a única de precariedade. o outro não pode ser destrutível se eu não alternativa é encontrar meios de elaborar e controlar a sou, e vice-versa. A vida, concebida como vida precária, capacidade de destruição, dando-lhe uma forma viví- é uma condição generalizada, e sob certas condições po- vel, O que seria uma maneira de afirmar sua existência líticas se torna radicalmente exacerbada ou radicalmente permanente e assumir a responsabilidade pelas formas repudiada. Essa é uma cisão em que o sujeito declara justa sociais e políticas por meio das quais ela se manifesta. sua própria capacidade de destruição ao mesmo tempo em Isso seria uma tarefa diferente tanto da repressão quanto que procura imunizar-se contra a consciência de sua pró- da expressão descontrolada e "liberada". pria precariedade. Faz parte de uma política movida pelo Se faço um apelo para a superação de certa cisão no horror diante da ideia da destrutibilidade da nação ou de sujeito nacional, não é com objetivo de reabilitar um su- seus aliados. Constitui uma espécie de fissura irracional jeito unificado e o sujeito está sempre fora de na essência do nacionalismo. si mesmo, distinto de si mesmo, já que sua relação com o Não se trata de se opor à capacidade de destruição outro é essencial àquilo que ele é (de forma clara, nesse per se, de contrapor esse sujeito cindido do nacionalismo ponto, continuo perversamente hegeliana). Surge, assim, norte-americano a um sujeito cuja psique quer sempre e a seguinte pergunta: como entendemos o que significa unicamente a paz. Admito que a agressão faça parte da ser um sujeito que está constituído em ou conforme suas 78 79</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO relações e cuja capacidade de sobrevivência é uma função implicitamente dividida entre aqueles por quem sentimos e um efeito dos seus modos de se relacionar? um apego urgente e irracional e aqueles cuja vida e morte Com essas considerações em mente, voltemos à questão simplesmente não nos afetam, ou que não consideramos que nos foi colocada por Asad sobre a capacidade de res- vidas. Como devemos compreender poder regulatório posta moral. Se a violência justa ou justificada é praticada que cria esse diferencial no nível da resposta afetiva e pelos Estados, e se a violência injustificada é praticada moral? Talvez seja importante lembrar que a responsa- por atores não estatais ou por atores que se aos bilidade exige capacidade de resposta, e que esta não é Estados existentes, encontramos então uma maneira de um estado meramente subjetivo, mas sim uma maneira explicar por que reagimos com horror a determinadas de responder àquilo que está diante de nós com os re- formas de violência e com uma espécie de aceitação, cursos à nossa disposição. Nós somos seres sociais, que possivelmente até mesmo com justiça triunfalismo, a trabalham cm meio a interpretações sociais elaboradas, outras. As respostas emocionais parecem ser primárias, tanto quando sentimos horror como quando não senti- sem necessidade de explicação, como se fossem anterio- mos. Nossa comoção nunca é somente nossa: a comoção res ao trabalho de compreensão e interpretação. Somos, é, desde o começo, transmitida de outro lugar. Ela nos por assim dizer, contra a interpretação, nos momentos predispõe a perceber mundo de determinada maneira, em que reagimos com horror moral diante da violência. a acolher certas dimensões do mundo e resistir a Mas enquanto permanecermos contrários à interpreta- Entretanto, se uma resposta é sempre uma resposta a um ção nesses momentos, não seremos capazes de apontar estado percebido do mundo, que faz com que determi- a razão pela qual a sensação de horror é experimentada nado aspecto do mundo se torne outro, não? de formas diferenciadas. Não apenas procederemos com Como abordar de novo a questão da resposta afetiva e base nessa não razão, mas a tomaremos como sinal de da valoração moral considerando os enquadramentos nosso louvável sentimento moral inato, talvez até mesmo já em operação de acordo com os quais certas vidas são de nossa "humanidade fundamental". vistas como dignas de proteção, enquanto outras não, Paradoxalmente, a cisão irracional em nossa capaci- precisamente porque não são completamente "vidas" de dade de resposta torna impossível reagir com mesmo acordo com as normas predominantes da condição de horror diante da violência cometida contra todos os tipos ser reconhecido? A comoção depende de apoios sociais de população. Dessa maneira, quando tomamos nosso para sentir: só conseguimos sentir alguma coisa em horror moral como um sinal de nossa humanidade, não relação a uma perda que depende de estru- notamos que a humanidade em questão está, na verdade, turas sociais de percepção, e só podemos sentir comoção 80 81</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO e reivindicá-la como nossa com a condição de que já uma vez que as amarras da interpretação cotidiana se- estejamos inscritos em um circuito de comoção social. jam eliminadas. Pelo contrário, é só desafiando a mídia por exemplo, acreditar na santidade dominante que determinados tipos de vida podem se da vida ou aderir a uma filosofia geral que se oponha a tornar visíveis ou reconhecíveis em sua precariedade. qualquer espécie de ação violenta contra seres sensíveis, e Não é apenas ou exclusivamente a apreensão visual de poderíamos investir sentimentos poderosos nessa crença. uma vida que forma uma precondição necessária para a Mas se algumas vidas não são percebidas como vidas, compreensão da precariedade da vida. Uma outra vida e isso inclui seres sensíveis que não são humanos, então é percebida por intermédio de todos os sentidos, se é a proibição moral da violência será aplicada apenas de de fato percebida. o esquema interpretativo tácito que maneira seletiva (e nossa própria capacidade de sentir distingue as vidas dignas das não dignas de considera- só será mobilizada de maneira seletiva). A crítica da ção funciona fundamentalmente através dos sentidos, violência deve começar com a questão da representati- diferenciando os gritos que podemos ouvir dos que não vidade da vida como tal: que permite que uma vida se podemos, as visões que conseguimos enxergar das que torne visível em sua precariedade e em sua necessidade não conseguimos, da mesma forma que acontece em de amparo e o que nos impede de ver ou compreender relação ao tato e até mesmo ao olfato. A guerra sustenta certas vidas dessa maneira? Em um nível mais geral, o suas práticas atuando sobre os sentidos, fazendo-os apre- problema diz respeito à mídia, na medida em que só é ender o mundo de modo seletivo, atenuando a comoção possível atribuir valor a uma vida com a condição de que diante de determinadas imagens e determinados sons, e esta seja como vida, mas é apenas de acordo intensificando as reações afetivas aos outros. É por isso com certas estruturas avaliadoras incorporadas que uma que a guerra atua minando as bases de uma democracia vida se torna sensata, restringindo que podemos sentir, fazendo-nos Perceber uma vida não é exatamente mesmo que sentir repulsa ou indignação diante de uma expressão de apreender uma vida como Apreender uma vida violência e a reagir com justificada indiferença diante de como precária também não é uma apreensão crua, na qual outra. Para reconhecer a precariedade de uma outra vida, a vida é despojada de todas as suas interpretações habi- os sentidos precisam estar operantes, que significa que tuais, apresentando-se a nós fora de todas as relações de deve ser travada uma luta contra as forças que procuram poder. Uma atitude ética não acontece regular a comoção de formas diferenciadas. A questão assim que os enquadramentos interpretativos habituais não é celebrar a desregulamentação completa da comoção, são destruídos, nem uma consciência moral pura surge, mas investigar as condições da capacidade de resposta 82 83</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO oferecendo matrizes interpretativas para o entendimento em sua receptividade, em seu discurso, seu desejo e sua da guerra que questionem e confrontem as interpretações mobilidade. o corpo está fora de si mesmo, no mundo dominantes, interpretações que não somente atuam sobre dos outros, em um tempo e um espaço que não contro- a comoção, como também ganham a forma da própria la, e ele não apenas existe no vetor dessas relações, mas comoção e assim se tornam também é esse próprio Nesse sentido, corpo Se aceitamos a ideia de que nossa própria sobrevivência não pertence a si mesmo. depende não do policiamento de uma fronteira - a es- o corpo, na minha é onde encontramos uma tratégia de determinado país soberano em relação ao seu variedade de perspectivas que podem ou não ser as nossas. território -, e sim do reconhecimento de nossa estreita modo como sou apreendido, e como sou mantido, de- relação com os outros, então isso nos leva a reconsiderar nossa maneira de conceituar o corpo no campo da pende fundamentalmente das redes sociais e políticas em ca. Temos de considerar se o corpo é corretamente defini- que esse corpo vive, de como sou considerado e tratado, do como uma espécie de entidade limitada. o que torna de como essa consideração e esse tratamento possibilitam um corpo distinto não é uma morfologia estabelecida, essa vida ou não tornam essa vida Assim, as normas como se identificar determinadas aparências de gênero mediante as quais compreendo a mim mesma e ou formas corporais como sendo paradigmaticamente a minha capacidade de sobrevivência não são estipuladas humanas. Na verdade, não estou completamente segura unicamente por mim. Já estou nas mãos do outro quando de que podemos identificar uma forma humana, nem tento avaliar quem sou. Já estou me opondo a um mundo acho que precisemos fazê-lo. Essa visão traz implicações que nunca escolhi quando exerço minha agência. Infere-se no sentido de repensarmos gênero, incapacidades físicas daí, então, que certos tipos de corpo parecerão mais preca- racialização, para nomear apenas alguns dos processos riamente que outros, dependendo de que versões do corpo, sociais que dependem da reprodução de normas corporais. ou da morfologia em geral, apoiam ou endossam a ideia E como a crítica da normatividade de gênero, do capaci- da vida humana digna de proteção, amparo, subsistência tismo e da percepção racista deixou claro, não existe uma e luto. Esses enquadramentos normativos estabelecem de forma humana única. Podemos pensar em demarcar o antemão que tipo de vida será digna de ser vivida, que corpo humano mediante a identificação de seus limites, vida será digna de ser preservada e que vida será digna de ou da forma como está delimitado, mas isso significa ser lamentada. Essas formas de encarar a vida permeiam ignorar fato crucial de que corpo é, de algum modo e e justificam implicitamente as guerras mesmo inevitavelmente, não limitado em sua atuação, As vidas estão divididas entre aquelas que representam 84 85</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE, COMOÇÃO determinados tipos de Estado e aquelas que representam o que limita quem eu sou é o limite do corpo, mas ameaças à democracia liberal centrada no Estado, de limite do corpo nunca pertence plenamente a mim. A tal modo que a guerra possa então ser travada de forma sobrevivência depende menos do limite estabelecido para legítima em nome de algumas vidas, ao mesmo tempo o self do que da sociabilidade constitutiva do corpo. Mas que se pode defender de forma legítima a destruição de ainda que o corpo, considerado social tanto em sua su- outras vidas. perfície quanto em sua profundidade, seja a condição de Essa cisão se presta a várias funções: constitui a ne- sobrevivência, é isso também que, em certas condições gação da dependência e tenta afastar qualquer reconhe- sociais, em perigo nossa vida e nossa capacidade cimento de que a condição generalizada de precariedade de sobrevivência. As formas de coerção física são pre- implique, social e politicamente, uma condição generali- cisamente a imposição indesejável da força aos corpos: zada de interdependência. Embora nem todas as formas estar atados, amordaçados, expostos à força, ritualisti- de precariedade sejam produzidas por arranjos políticos camente humilhados. então perguntar qual e sociais, continua sendo uma tarefa da política mini- fator, se é que ele existe, explica a sobrevivência daqueles mizar a condição de precariedade de forma igualitária. cuja vulnerabilidade física foi explorada dessa maneira. A guerra é precisamente um esforço para minimizar a Evidentemente, fato de o corpo de uma pessoa nunca precariedade para alguns e maximizá-la para outros. pertencer completamente a ela, de não ser delimitado e Nossa capacidade de reagir com indignação depende de um tácito reconhecimento de que existem vidas dignas autorreferencial, é a condição do encontro apaixonado, que foram feridas ou perdidas no contexto da guerra, e do desejo, do anseio e dos modos de se endereçar e de de que nenhum cálculo utilitário pode fornecer a medida endereçamento dos quais depende o sentimento de estar para se avaliar o desamparo e a perda dessas vidas. Mas vivo. Contudo, todo esse mundo de contato físico inde- se somos seres sociais e se nossa sobrevivência depende sejado também do fato de que corpo encontra de um reconhecimento de interdependência (que pode sua capacidade de sobrevivência no espaço e no tempo não depender de uma percepção de semelhança), então social; e essa exposição ou desapropriação é precisamente sobrevivo não como um ser isolado e fisicamente deli- explorada no caso de atos de coerção, constrangimento, mitado, mas como um ser cuja delimitação me expõe violação física e violência indesejáveis. a outros de maneira voluntária e involuntária (às vezes Gostaria de considerar essa questão da capacidade simultaneamente), uma exposição que é a condição tanto de sobrevivência em situação de guerra examinando da sociabilidade quanto da sobrevivência. brevemente a coletânea recém-publicada Poems from 87</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO que inclui 22 poemas que passaram pela Fui humilhado de algemas. censura do Departamento de Defesa Como posso compor versos agora? Como posso escrever Na verdade, a maioria dos poemas escritos pelos presos agora? de foi destruída ou confiscada e certamen- Depois das algemas e das noites e do sofrimento e das Lá- te não foi permitido que eles fossem passados para os grimas, advogados e ativistas pró-direitos humanos que organi- Como posso escrever zaram esse pequeno volume. Aproximadamente 25 mil versos escritos por Shaikh Abdurraheem Muslim Dost Al-Haj afirma que foi torturado e pergunta como pode foram destruídos pelos Quando o Pentágono combinar palavras e fazer poesia depois dessa humilhação. ofereceu suas razões para a censura, alegou que a poesia E são os próprios versos em que questiona sua habilidade "representa um grande risco" para a segurança nacional de fazer poesia que constituem sua poesia. o verso, por- em razão de seu "conteúdo e Isso nos leva a tanto, representa aquilo que al-Haj não consegue entender. especular que forma e conteúdo de poesia podem ser tão Ele escreve o poema e, no entanto, poema nada mais incendiários assim. A sintaxe ou formato de um poe- pode fazer senão indagar abertamente a condição de sua ma podem ser realmente percebidos como uma ameaça possibilidade. Como um corpo torturado pode articular à segurança da nação? Será que os poemas confirma- essas palavras? Al-Haj também pergunta como a poesia vam a tortura? Ou será que criticavam explicitamente pode surgir de um corpo torturado, e como as palavras os Estados Unidos por sua declaração espúria de serem os emergem e Suas palavras passam da condição "defensores da paz" ou pelo ódio irracional que têm do de tortura, uma condição de coerção, ao discurso. Será Mas como essas críticas poderiam ser feitas em que o corpo que sofre torturas é o mesmo que escreve editoriais ou em prosa, que na poesia a faz parecer aquelas palavras? particularmente perigosa? A formação dessas palavras está ligada à sobrevivên- Eis duas estrofes de um poema intitulado "Humiliated cia, à capacidade de sobreviver. Vale lembrar que, no in the Shackles" de de autoria de começo do período de encarceramento, os prisioneiros Sami al-Haj, torturado nas prisões mantidas pelos Estados de Guantanamo gravavam poemas curtos em copos que Unidos em Bagram e Kandahar antes de ser transferido roubavam de suas refeições. Esses copos de isopor não só para de onde foi solto recentementes eram baratos - a própria representação do baixo custo e da baixa qualidade mas também inofensivos, para que os prisioneiros não tivessem acesso a copos de vidro ou 88 89</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE VULNERABILIDADE COMOÇÃO de cerâmica que poderiam facilmente ser utilizados como armas brancas. Alguns usavam pequenas pedras para Com perspicaz ironia Aamer conclui que eles "lutam gravar suas palavras nos copos, passando-os de cela em pela paz". Mas que define esse poema é o número de cela; às vezes, usavam pasta de dente como instrumento perguntas colocadas de forma poética por Aamer, pergun- de escrita. Mais tarde, aparentemente como sinal de um tas que faz em alta, assim como a mistura de horror tratamento mais humanizado, eles passaram a receber e ironia na pergunta no centro do poema: "Matar é tão papel e material mais adequado para a escrita, mas tra- simples assim?" o poema move-se entre a confusão, o hor- balho realizado com esse material acabou, em sua maior ror a ironia cm sua conclusão, expõe a hipocrisia dos parte, sendo militares Ele se concentra na cisão ocorrida na Alguns desses escritos contêm comentários políticos racionalidade pública dos captores do eles torturam bastante ácidos, como é caso deste poema de Shaker nome da paz, eles matam em nome da paz. Embora não Abdurraheem Aamer, que abre a saibamos quais terão sido conteúdo e o formato" dos poemas censurados, este poema parece girar em torno da Paz, eles dizem. repetição de uma mesma pergunta, um horror insistente, Paz de um em direção à exposição. (Na verdade, esses Paz na Terra? poemas lançam mão de recursos líricos característicos Paz de que tipo? do estilo das escrituras corânicas, bem como de aspectos formais da poesia nacionalista árabe, o que significa que Eu os vejo falando, discutindo, brigando... Que tipo de paz eles estão buscando? são citações de forma que, quando um poeta fala, ele Por que eles matam? o que estão planejando? invoca uma história de oradores naquele momento se coloca, metaforicamente falando, na companhia deles.) É apenas conversa? Por que discutem? A cisão irracional que estrutura campo militar da co- Matar é tão simples assim? É esse o plano deles? moção não pode explicar seu próprio horror diante da vio- lação e da perda da vida daqueles que representam Claro que sim! Estado-Nação legítimo, nem seu prazer justificado diante Eles cles discutem, matam da humilhação da destruição daqueles que não estão Eles lutam pela organizados sob signo do Estado-Nação. A vida dos presos em Guantanamo não conta como o tipo de "vidas humanas" protegidas pelo discurso dos direitos Os próprios poemas oferecem um tipo diferente de capaci- 90 91</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE dade de resposta moral, uma espécie de interpretação que pode, sob certas condições, contestar e detonar as cisões Mas talvez mais curiosos sejam os versos que se encontram dominantes que perpassam a ideologia nacional e militar na metade do poema de al-Noaimi: norte-americana. Os poemas ao mesmo tempo constituem e expressam uma capacidade de resposta moral a uma As lágrimas da saudade de outra pessoa me lógica militar que restringiu a capacidade de resposta mo- Meu peito não consegue abrigar a imensidão desse ral à violência de maneiras incoerentes injustas. por podemos expressa verbalmente Assim, perguntar: que comoção é De quem será a nostalgia que comove poeta? Trata- esses poemas, e que conjunto de interpretações eles -se da saudade sentida por outra pessoa, de forma que libertam sob a forma de emoções, incluindo a ansiedade as lágrimas não parecem ser suas ou, pelo menos, não e a raiva? A força esmagadora do luto, da perda e do iso- exclusivamente suas. Talvez pertençam a todos aqueles lamento transforma-se em um instrumento poético de que estão no campo, ou a mais alguém, mas pesam sobre e mesmo em um desafio à soberania individual. ele; ele encontra esses sentimentos alheios dentro de si, Ustad Badruzzaman Badr sugerindo que, mesmo nesse isolamento mais radical, ele sente o mesmo que os outros. Não conheço a sintaxe do o redemoinho de nossas lágrimas árabe original, mas em inglês "My chest cannot take the Move-se depressa em direção a ele vastness of emotion" ["Meu peito não consegue abrigar a consegue resistir à força dessa imensidão desse sugere que a emoção não é apenas dele, mas que possui uma magnitude tão grande consegue resistir, e ainda assim essas palavras que pode não ter origem em uma única pessoa. No verso chegam até nós, como sinais de uma insondável "As lágrimas da saudade de outra pessoa", poeta é, por Em um poema intitulado "I write my hidden longing" ["Es- assim dizer, dessas lágrimas que estão nele, crevo meu anseio oculto"], de Abdulla Majid al-Noaimi, mas que não são exclusivamente cada estrofe está estruturada em ritmo de dor e súplica: Portanto, que esses poemas nos dizem sobre a vulnera- bilidade e a capacidade de sobrevivência? Eles questionam Minha costela está quebrada, e não encontro ninguém para os tipos possíveis de expressão nos limites do pesar, da hu- me curar milhação, da ânsia e da raiva. As palavras são gravadas em Meu corpo está fraco, e não vejo alívio nenhum à minha copos, escritas em papel e registradas em uma superfície, em um esforço de deixar uma marca, um vestígio de um ser vivo - um sinal formado por um corpo, um sinal que carrega 92 93</p><p>QUADROS DE GUERRA CAPACIDADE DE COMOÇÃO a vida do corpo. E mesmo quando corpo não sobrevive, o corpo respira, respira a si mesmo nas palavras, e en- as palavras sobrevivem para dizê-lo. Isso também é poesia contra aí certa sobrevivência provisória. Mas quando a como prova e como suplica, uma poesia na qual cada palavra é finalmente destinada ao Os copos passam de cela respiração se transforma em palavras, o corpo passa a ser de outro, na forma de um apelo. Na tortura, a vulnera- em cela; os poemas são levados para fora do campo. São súplicas. Esforços para restabelecer uma conexão social com bilidade do corpo à sujeição é posta à prova; a condição mundo, mesmo quando não há nenhuma razão concreta de interdependência é submetida a abusos. o corpo para acreditar que essa conexão seja possível. que existe em sua exposição e proximidade em relação No da coleção, Ariel Dorfman compara os aos outros, às forças externas, a tudo aquilo que pode escritos dos poetas de Guantanamo aos dos escritores subjugá-lo e dominá-lo, é vulnerável aos maus-tratos; chilenos sob o regime de Pinochet. Embora claramente os maus-tratos são a exploração dessa vulnerabilidade. consciente das formas por meio das quais a poesia expressa Isso, porém, não significa que a vulnerabilidade possa as condições do campo, Dorfman chama a atenção para ser reduzida à condição de violável. Nesses poemas, algo mais a respeito dos poemas: corpo é também aquilo que continua vivo, que respira, que tenta esculpir sua respiração na pedra; sua respira- que sinto é que a fonte básica desses poemas de Guan- ção é precária - ela pode ser interrompida por força da tánamo é a aritmética simples, quase primeva, do inspirar tortura infligida pelo outro. Mas se esse estatuto precário e do expirar. A origem da vida, a origem da linguagem e pode se converter em condição de sofrimento, ele tam- a origem da poesia estão todas ali, na primeira respira- bém serve como a condição de capacidade de resposta, ção, cada respiração como se fosse a primeira, a anima, de uma formulação da comoção entendida como um que inspiramos, O que expiramos, que ato radical de interpretação diante de uma submissão nos separa da extinção, minuto após minuto, que nos indesejada. Os poemas abrem caminho por meio das mantém vivos enquanto inalamos e exalamos universo. ideologias dominantes que racionalizam a guerra recor- E a palavra escrita nada mais é do que uma tentativa de rendo a invocações justificadas de paz; eles desconcertam tornar essa respiração permanente e segura, gravada na e expõem as palavras daqueles que torturam em nome pedra ou estampada em um pedaço de papel ou assinalada da liberdade e matam em nome da paz. Nesses poemas, em uma tela, de modo que sua cadência perdure além de ouvimos "a cadência precária da solidão". Isso revela nós, sobreviva à nossa respiração, rompa as algemas da duas verdades distintas sobre o corpo: como corpos, solidão [las cadenas precarias de la soledad], transcenda estamos expostos aos outros, e embora isso possa ser a nosso corpo transitório e toque alguém com suas condição de nosso desejo, também cria a possibilidade da 94 95</p>