Prévia do material em texto
<p>Portugal Hoje: o</p><p>medo de existir</p><p>BULHOSA</p><p>LIVREIROS</p><p>Amoreiras -m 21 381 22 53/4 IF] 21 381 22 53</p><p>l 2l"?99 41 94/5</p><p>bulhosa</p><p>Portugal, Hoje: O Medo de Existir</p><p>José Gil</p><p>Relógio D'Água Editores</p><p>Rua Sylvio Rebelo, n.° 15</p><p>1000-282 Lisboa</p><p>tel. 21 847 44 50</p><p>fax: 21 847 07 75</p><p>www.relogiodagua.pt</p><p>relogiodagua@relogiodagua.pt</p><p>Título: Portugal, Hoje: o Medo de Existir</p><p>Autor: José Gil</p><p>Revisão técnica: Helder Guégués</p><p>Capa: Relógio D'Água Editores sobre fragmento de pintura de Turner, Chichester Canal; Sample Study, c.1828</p><p>© Relógio D'Água Editores, Novembro de 2004</p><p>3." Edição: Janeiro de 2005</p><p>Composição e paginação: Relógio D'Água Editores</p><p>Impressão: Rolo & Filhos, Artes Gráficas, Lda.</p><p>Depósito Legal n.°: 221971/05</p><p>Portugal, Hoje O Medo de Existir</p><p>Argumentos</p><p>Como convém televiver</p><p>«É a vida.» Esta frase com que o apresentador da RTP termina amiúde o Jornal da</p><p>Noite dá o tema do ambiente mental em que vivemos. «Dar o tom» significa muito</p><p>mais do que «sugerir» ou «indicar» uma direcção de leitura. Na realidade, constitui</p><p>por si só toda uma «visão do mundo» e, mais importante, toda uma visão de nós</p><p>mesmos, da nossa vida enquanto (tele)espectadores do mundo.</p><p>Depois de assistirmos às notícias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viação,</p><p>mortos palestinianos e israelitas, descobertas de centenas de vítimas taliban</p><p>asfixiadas em contentores no Afeganistão, surge uma notícia que, como uma luz</p><p>divina, redime todo o mal espalhado pela Terra: nasceu um bebé panda no Zoo de</p><p>Pequim! O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho cúmplice aos</p><p>telespectadores. Depois das imagens de futebol, remata enfim, com um tom sábio:</p><p>«É a vida!»</p><p>É a vida, pois. Que mais quereis? É a vida lá fora, não há nada a fazer, é assim, vivei</p><p>a vossa com paz e serenidade, não há nada a temer, é lá longe que tudo acontece e,</p><p>no entanto, estou aqui eu para vo-lo mostrar inteiro, o mundo, ide, ide às vossas</p><p>ocupações que a vida continua.</p><p>8 José Gil</p><p>com este tom destinado a sossegar os espíritos, o apresentador envia-nos várias mensagens</p><p>precisas: 1. A vida é uma mistura de bem e de mal, o homem está entre a besta e o anjo, e</p><p>isto constitui a essência do mundo, que foi, é, e será sempre feito dessa mesma massa; 2. a</p><p>frase impõe uma norma: eis o que se pode, e portanto, deve pensar do que acabámos de ver</p><p>em todo o planeta. Norma metafísico-moral, ou melhor, norma ligeiramente eivada de</p><p>metafísica que assim recolhe e reúne num só, todo o tipo de observações, reflexões,</p><p>pensamentos que as imagens televisivas suscitariam. É, pois, uma norma para o</p><p>pensamento: diz-nos como e o que pensar do mundo: e segundo a maneira de pensar,</p><p>pensamo-nos também a nós face ao mundo, mas como se estivéssemos dentro dele, como</p><p>sua parte integrante. Cria-se aqui uma pequena transcendência, imperceptível mas</p><p>indelével, que constitui o efeito profundo do imperativo metafísico-moral: o telespectador é</p><p>colocado dentro do mundo mas ao mesmo tempo acima dele, como</p><p>se o vivesse não o vivendo. «E a vida», a nossa, a de todos, aquela que vivemos - e,</p><p>no entanto, a vida é um espectáculo de imagens a que vós acabais de assistir. De</p><p>fora, porque ele está fora de nós.</p><p>Estamos fora da vida, dentro dela: «é a vida!...» É esta mistura confusa de</p><p>transcendência-imanência da nossa vida à Vida que provoca um nevoeiro no</p><p>espírito.</p><p>Um terceiro aspecto parece não menos importante: 3. a norma neutraliza quaisquer</p><p>veleidades de um discurso que se desvie deste bom senso que ela irrecusavelmente</p><p>revela. A norma impõe limites imperceptíveis (porque internos) ao pensamento e,</p><p>certamente também, à acção. Tudo o que vimos, a barbárie, o excesso, a crueldade</p><p>mais insuportável são compensados, reequilibrados pelo sorriso, e o golpe do</p><p>Portugal, Hoje: O Medo de Existir</p><p>panda: é o que nos diz o metadiscurso final (a frase) do apresentador. Ou seja, aquilo, o</p><p>crime e o sangue, não é a vida ainda; só começa a pertencer à sua esfera com o surgimento</p><p>do bebé panda.</p><p>Inocula-se assim, no seio das imagens, uma outra dose de nevoeiro: o que vistes não é o</p><p>que vistes, mas o que só agora estais a ver, que é o que vistes menos o que julgastes ver</p><p>porque o bebé panda vo-lo retirou.</p><p>Mas não só as imagens perdem significado. Também o discurso é desfalcado das últimas</p><p>implicações de sentido que encerram. Quando o discurso de Bush representava uma ameaça</p><p>real de guerra contra o Iraque, nós não nos sentíamos implicados, porque «a vida é assim»,</p><p>as palavras e as intenções bélicas do presidente americano entravam no equilíbrio geral da</p><p>vida, segundo a sabedoria do bom senso. Não haveria guerra no Iraque como não há</p><p>propriamente ameaças, hoje, de um conflito futuro no Irão. Uma espécie de caricatura de</p><p>harmonia preestabelecida regula assim, noite após noite do jornal televisivo, o curso da</p><p>história, recolocando o fiel da balança no justo meio, que selecciona sem dúvida a parte</p><p>melhor, a mais justa, aquela que é mais metade do que a simples metade.</p><p>Não se trata, a bem dizer, do «curso da história»: dado o cariz metafísico da norma, as</p><p>imagens apresentam antes a essência do mundo e não o movimento da história, o qual se</p><p>esbate num horizonte longínquo, de onde se manifesta apenas um pulsar ténue de signos-</p><p>índices («sim, lá estão os atentados palestinianos... a expulsão dos fazendeiros brancos no</p><p>Zimbabwe...»).</p><p>Ao supor a harmonia preestabelecida segundo o bom senso (o mal e o bem equitativamente</p><p>repartidos no mundo), a norma impõe limites negativos ao pensamento (exclui o excesso,</p><p>10 o desequilíbrio, o anormal), sem que se veja bem como induz ao mesmo tempo uma</p><p>certa orientação na maneira de pensar. Ou seja: a norma oferece também conteúdos</p><p>positivos?</p><p>Ela diz o que se deve pensar como essência de todos os acontecimentos do mundo. No</p><p>desfile caótico das imagens</p><p>- triplamente caótico: como imagens de caos; quer dizer como caos de imagens, como</p><p>imagens vindas das regiões mais heteróclitas do sentido; como imagens que se aparelham</p><p>linearmente como se se anulasse assim o caos narrativo, uniformizando-lhe o sentido,</p><p>roubando-lhes a singularidade, criando um outro caos, o do afundamento do significado</p><p>das imagens - a frase final do apresentador introduz ordem, segurança, uma realidade</p><p>pensável. No entanto, o que se deve pensar aparece revestido numa categoria tão geral e</p><p>totalizante, que nenhum dos enunciados possíveis extraídos das imagens se poderia</p><p>desenvolver autonomamente, seguindo a sua linha própria. «É a vida» engloba-o, e apaga a</p><p>relevância eventual deste ou daquele enunciado ou imagem concreta. Por isso, ao querer</p><p>significar tudo, não significa nada. É uma frase vazia, despida de conteúdo. Mas gorda e</p><p>pretensiosa, que se quer mostrar pletórica de sentido. Pura injunção formal, nada diz, senão</p><p>limites e regras para não pensar. Tanto mais que a sua função designativa esconde</p><p>subtilmente a carga performativa que traz consigo. «É a vida» não está apenas a indicar o</p><p>que se acaba de ver no cortejo de imagens, mas vem no fim de cada ritual como um gesto</p><p>terminal que fecha a sessão enquanto a designa, escapando-lhe assim. É que «é a vida»</p><p>pertence à Vida como as outras imagens, os outros gestos, os outros comentários dos</p><p>repórteres em directo, como os discursos e as imagens dos observadores convidados - a</p><p>série de palavras, gestos, deslocamentos no palco da TV de pessoas que entram e saem,</p><p>participando ou não no Telejornal -, e tudo isto faz parte da vida e com ela se mistura.</p><p>Enunciado performativo ambíguo pois, por um lado, ao fechar o ritual, o apresentador</p><p>exclui-se da vida (as imagens desapareceram, só ele resta no palco), e por outro, inclui-se</p><p>nela, mais fortemente mesmo do que se exclui. Só naquele instante, naquele tempo mínimo</p><p>em que se exibe</p><p>potências virtuais em direcção à sua</p><p>actualização presente. Por isso a inscrição faz o presente, um presente de sentido,</p><p>não situado no tempo cronológico, que dá sentido à existência individual ou à vida</p><p>colectiva de um povo.</p><p>Assim, há «boas inscrições» que correspondem a uma ética do desejo. E há «más</p><p>inscrições». Há as que formam e aumentam o poder de vida e há as que o destroem.</p><p>O trauma neurótico rói e desgasta, o paranóico delira inscrições mundiais ou</p><p>cósmicas destruidoras.</p><p>A inscrição abre os corpos. Se a potência de vida aumenta, a inscrição incorpora-se</p><p>no desejo de tal maneira que a sua «marca» ou «selo» desaparece. Se se mutila ou</p><p>esmaga o desejo, fica apenas um corpo-objecto marcado a ferros corpo aprisionado.</p><p>Quando o corpo se fecha, há não-inscrição.</p><p>A inscrição é pois a condição da produção do desejo e do real (ou da sua destruição).</p><p>A não-inscrição suspende o desejo, e vai provocar, mais cedo ou mais tarde,</p><p>violência física. Equivale a uma «má inscrição».</p><p>Entre uma boa e uma má (não-)inscrição, outras situações se desenham. Portugal</p><p>forjou uma bem específica, para seu uso próprio.</p><p>Retomemos o exemplo que já evocámos: o luto. Faz-se o luto de uma morte, de um</p><p>amor, de um acontecimento irremediável, ou recusa-se a fazê-lo, deixando, por</p><p>exemplo, o quarto do morto intocado e intocável, procurando esquecer</p><p>50</p><p>o amor perdido por meio de toda a espécie de diversões, etc. Neste último caso a</p><p>não-inscrição acabará quase certamente por explodir em manifestações de violência.</p><p>Estes dois casos não são os únicos possíveis. Para que a não-inscrição tenha efeitos</p><p>violentos é preciso, em primeiro lugar, que o que se pretende não inscrever se revista</p><p>de importância e valor. Caso contrário a não-inscrição pode ser desviada, encoberta,</p><p>atenuada, passar despercebida nas suas consequências</p><p>É o que acontece em Portugal. Na verdade, não se pode afirmar em absoluto que</p><p>Portugal seja «o país da não-inscrição». Porque se arranjaram álibis para não</p><p>inscrever, criaram-se simulacros de inscrições - para que tudo ficasse num meio-</p><p>termo indefinido, e os portugueses se convencessem de que estavam a inscrever</p><p>quando estavam precisamente a fugir à inscrição. Digamos que o português não faz</p><p>o luto, deixa os objectos do quarto do morto no mesmo lugar, mas desloca-os</p><p>ligeiramente, ou desloca-os mesmo a todo o momento, mantendo, paradoxalmente, o</p><p>aspecto geral do quarto sempre idêntico.</p><p>Explico-me: o nevoeiro português não envolve os indivíduos numa espécie de sonho</p><p>letárgico, longe das realidades práticas em que ele se encontraria mergulhado</p><p>continuamente. Já vimos que o nevoeiro se acompanha de consciência clara e que a</p><p>sombra branca é inconsciente. O português não é o Bernardo Soares, totalmente</p><p>sonhador; mas também não é apenas o Este vês da Tabacaria, preocupado só com o</p><p>lado pragmático da vida. Será talvez um Esteves que sem dar por isso,</p><p>constantemente se desapegasse do que constantemente o mantém apegado às</p><p>pequenas coisas.</p><p>Para bem se compreender este movimento tem de se considerar a escala do espaço e</p><p>dos objectos em que evolui o</p><p>51</p><p>português. Até há muito pouco tempo (a situação começa a mudar), o português</p><p>conhecia somente um certo grau da escala que vai do infinitamente pequeno ao</p><p>macroscópico: o grau do «pequeno», das «pequenas coisas». O «pequeno» difere do</p><p>mínimo que é microscópico, e do máximo ou mesmo do grande (puro conceito que,</p><p>quando se sensibiliza em imagem, tem como limite superior a serra da Estrela, com</p><p>2.000 metros de altitude. Para além desta medida o tamanho torna-se</p><p>incomensurável, como uma abstracção nevoenta). O «pequeno», para o português, é,</p><p>na realidade, o que para outros povos representa o «médio». É no meio dos</p><p>pequenos objectos que ele se sente à vontade, é neles que investe enchendo a casa de</p><p>mil bibelôs, fotografias, cobrindo as paredes com coisas pequenas, quadros, cromos,</p><p>ex-votos, etc.</p><p>O «pequeno» representa o tamanho perfeito, adequado ao seu investimento afectivo.</p><p>Alvo electivo da sua ternura, tamanho-fétiche que apela ao seu carinho irreprimível,</p><p>o pequeno contém em si as potencialidades de expressão que dele naturalmente</p><p>decorrem e que depois se transferem para todos os adjectivos e nomes próprios:</p><p>pequenino, pequenito, pequerrucho, etc. Como se o «pequeno» fosse a raiz dos</p><p>diminutivos afectivos, a essência que percorre o conjunto inteiro das nuances dos</p><p>«inhos» e «itos» declinando as inúmeras espécies da pequenez.</p><p>O português revê-se no pequeno, vive no pequeno, abriga-se e reconforta-se no</p><p>pequeno: pequenos prazeres, pequenos amores, pequenas viagens, pequenas ideias</p><p>(«pistas»... que se abrem aos milhares a cada pequeno ensaio). Mais, a pulsão do</p><p>pequeno dá ensejo à formação de pequenos mundos afectivos em que as relações</p><p>simbióticas se desenvolvem com uma força extraordinária. O português</p><p>52</p><p>habita numa espécie de bola de afecto que faz com que cada separação mínima de</p><p>um ente querido pareça enorme, longa e longínqua. Separar-se um dia, dois, uma</p><p>semana ou mesmo umas horas pode suscitar uma dor imensa, uma imensa saudade.</p><p>Aquela tia que ficava a dizer adeus, adeus, adeus, abanando sem fim o lenço à janela</p><p>para a sobrinha que ia todas as manhãs para o trabalho ali ao lado, pelo passeio, até</p><p>ao virar da esquina... Pequenos mundos: daí a visão curta, a repulsa instintiva pelos</p><p>projectos a médio e longo prazo, a territorialização gregária. (Outro exemplo: os</p><p>milhões de telemóveis utilizados pelos portugueses.)</p><p>A pequenez é a negação do excesso, e a nossa maneira de «estar certo» ou «ser</p><p>certinho» - o nosso «justo meio». Finalmente, o ser pequeno é a estratégia</p><p>portuguesa de permanecer inocente, continuando criança.</p><p>Espaços exíguos em que o corpo se sente à vontade; tempos breves que permitem a</p><p>mudança. Tudo isto contribui para que se cultive activamente em Portugal uma</p><p>modalidade única de não-inscrição.</p><p>Circular por entre as pequenas coisas, investir nelas e logo desinvestir, conectar-se e</p><p>a seguir desconectar-se dá a ilusão de movimento, de liberdade, de um desejar</p><p>diverso, rico e múltiplo. Dá a ilusão de uma continuidade de movimento que traz</p><p>consigo a inscrição de todos os presentes pontuais num tempo único (fora do tempo)</p><p>como «tempo» do sentido de uma vida. Movimento realmente ilusório, pois esse</p><p>saltitar de uma pequena coisa para outra não faz senão escamotear o sentido de uma</p><p>inscrição que prolonga outra inscrição.</p><p>Assim se constrói um álibi de inscrição. Cria-se um circuito em que a inscrição (por</p><p>exemplo, de um pequeno prazer) parece efectuar-se na pequena coisa, no acto que a</p><p>53</p><p>elegê; logo depois o desejo salta para outra pequena coisa, desapegando-se dela com</p><p>a mesma facilidade com que a outra se apega. Forma-se a ilusão de um tempo</p><p>contínuo de inscrição, quando de contínuo e homogéneo apenas se extrai a não-</p><p>inscrição entre dois investimentos descontínuos em duas pequenas coisas. E assim</p><p>se vai, de uma tarefa a outra, de um empreendimento a outro, de um afecto a outro,</p><p>de um pensamento a outro. Sempre saltitando, em trânsito permanente para parte</p><p>nenhuma.</p><p>Realmente nenhuma inscrição se opera no real. Mas esse vazio não se vê, pois a</p><p>visibilidade da vida é feita de um sem número de pequenos actos, pequenas</p><p>realidades, pequenas coisas.</p><p>Três consequências maiores decorrem do movimento no circuito do «pequeno»</p><p>(objecto, amor, amizade, ideia, acção): 1. O enclausuramento do sentido - o salto de</p><p>uma coisa a outra não chega a ser um desprendimento. Porque a escala continua</p><p>pequena e porque o sentido se esgota no investimento pontual na pequena coisa,</p><p>nenhum Acontecimento vem dar sentido ao movimento (da vida e do mundo). O</p><p>sentido não vai mais longe do que o circuito empírico da existência, ou seja, do que</p><p>o que oferece a complacência de um viver permanente</p><p>em «estados de coisas». Os</p><p>sentidos que extraímos da experiência são também pequenos, porque a experiência</p><p>reduz-se precisamente à zona que delimita e define a «pequenez».</p><p>A este encolher, limitar, aprisionar do sentido no circuito empírico das pequenas</p><p>coisas e dos pequenos prazeres, chamaremos o enclausuramento do sentido.</p><p>Não vemos mais longe do que a ponta do nariz, quer dizer, mais longe do que as</p><p>nossas fronteiras, a nossa região, a nossa cidade, a nossa família e, por fim, mais</p><p>longe do</p><p>à</p><p>54</p><p>que os limites do nosso corpo. Não vemos mais longe do que a vida imediata, colados a um</p><p>falso presente sem passado (as narrativas míticas dos Reis e dos Descobrimentos já não</p><p>alimentam o nosso presente) nem futuro (a Europa, como nosso futuro, são trevas em que</p><p>ninguém pensa, nem quer pensar).</p><p>2. A ilusão de liberdade que já evocámos. É que além do movimento constante, ele próprio</p><p>moderado, nem muito acelerado, nem muito lento, com que o indivíduo saltita, o pequeno</p><p>designa ainda o espaço de deslocamento do corpo. É o seu verdadeiro território onde, como</p><p>já disse, se move plenamente à vontade. Ou seja, dentro dele não sente limites. Julga-se</p><p>assim existir no infinito. Não passa, é certo, de um pequeno infinito, mas por ele vivido</p><p>como ilimitado, sem entraves. Como um genuíno habitante, não do reino da Baviera, mas</p><p>do nosso país fechado de Liliputh. Daí, e porque a linguagem é equívoca quando se trata de</p><p>adjectivar, não se olhando à escala, universalizando em qualquer escala, o facto de os</p><p>portugueses nunca aferirem o seu tamanho (em nada, nem na qualidade dos vinhos, nem na</p><p>qualidade das realizações científicas, literárias, nem na qualidade da paisagem, dos</p><p>incêndios florestais, dos acidentes rodoviários, da propagação da sida - puras abstracções</p><p>estatísticas) com realidades outras, mas sim sempre consigo mesmos. Eis mais um</p><p>aspecto da não-inscrição.</p><p>A este fenómeno, por enquanto aparentemente indestrutível, apesar dos golpes que</p><p>vem sofrendo, chamaremos o síndroma de Liliputh.</p><p>3. Uma outra consequência da construção do mundo da «pequenez» traduz-se no uso</p><p>da fala.</p><p>A fala - ou a escrita - representa uma condição essencial da inscrição. Uma mãe</p><p>pode investir toda a sua ternura</p><p>55</p><p>no acto de amamentar o bebé. Para que esse acto se inscreva como relação (de «boa</p><p>inscrição») tanto nela como no bebé é preciso que ela lhe fale enquanto amamenta.</p><p>Se o desejo se inscreve num outro desejo é porque a fala (apaixonada) o diz de mil</p><p>maneiras. Aliás, falar é desejar: ao dizer-se no espaço público, aberto, o desejo</p><p>expande-se e conecta-se com outros desejos, para além mesmo da linguagem. Não é</p><p>por acaso que nas cerimónias de inscrição (comemorações, inaugurações) a fala</p><p>acompanha os actos. Não porque se reduza à função de veículo ou de simples meio</p><p>de inscrição mas porque a fala constitui o duplo de todos os tipos de inscrição não-</p><p>verbal. Tem por vocação interna inscrever no espaço público, e enquanto tal ela é, já</p><p>por si, uma pré-inscrição (como expressão de um afecto, de uma obra, de um</p><p>pensamento).</p><p>Conversar, dialogar, são pois maneiras de construir um plano de inscrição de falas e</p><p>pensamentos. Qualquer coisa, no domínio da fala, de equivalente àquele espaço</p><p>público anónimo e autónomo (espaço de transformações) a que já nos referimos.</p><p>(«Que fazem dois homens que, não se conhecendo, metem conversa, num café?»</p><p>pergunta Louis Ferdinand Céline. «Procuram um tom comum».) O plano de</p><p>inscrição das falas constrói-se como plano de forças (o «tom») com uma</p><p>independência própria: só a partir da sua existência a conversa pode desenvolver-se,</p><p>fluir sem esforço, como que movida por uma mola interior.</p><p>Os portugueses não sabem falar uns com os outros, nem dialogar, nem debater, nem</p><p>conversar. Duas razões concorrem para que tal aconteça: o movimento saltitante</p><p>com que passam de um assunto a outro e a incapacidade de ouvir. Não se pode dizer</p><p>que a segunda decorra da primeira, porque o inverso também é verdade. Resultam as</p><p>duas do</p><p>56</p><p>facto de as falas não conseguirem atinar com um «tom» comum. Porquê?</p><p>Paradoxalmente (ou perversamente), porque o que se procura é precisamente a</p><p>discordância (não a discórdia) e, antes de tudo, ouvir o som da sua própria voz</p><p>pequeninamente, a afirmação autista de si, na fala pronunciada sem a preocupação</p><p>de ser ouvida ou ser compreendida (porque essa crença nem sequer se põe em</p><p>dúvida, desde que eu me oiça). Produz-se assim uma algazarra insuportável, com</p><p>todos a falar ao mesmo tempo, cada um com a sua veemência particular sem dar a</p><p>devida atenção aos outros, seus «interlocutores».</p><p>Dois exemplos triviais: as mesas-redondas com vários homens políticos de partidos</p><p>diferentes que algumas rádios emitem regularmente tornam-se a partir de um certo</p><p>momento da discussão absolutamente ensurdecedoras. Cada um fala isoladamente</p><p>ao mesmo tempo que os outros, que falam também, eventualmente de temas</p><p>diferentes. Todos se esganiçam uns diante dos outros, como se o facto de ser ouvido</p><p>e compreendido não tivesse importância. Já não há «mensagens», há apenas</p><p>«barulho». Tem de concluir-se que interessa somente o acto de falar, fundando-se,</p><p>certamente, na crença mágica de que falando e continuando a falar se força o</p><p>auditório a aceitar os seus argumentos. Ou, mais prosaicamente, elevar a voz e ser o</p><p>último a falar equivale a ganhar a discussão.</p><p>O segundo caso reporta-se à forma como um terceiro interrompe um diálogo (em</p><p>todas as situações: num guichet de atendimento, quando surge um desconhecido e</p><p>questiona o funcionário, imediatamente este deixa de atender a pessoa com quem</p><p>fala para responder ao intruso; numa conversa de grupo, numa discussão livre): os</p><p>cortes, as interferências abruptas que mudam num ápice a direcção da</p><p>57</p><p>conversa são, por assim dizer, bem-vindos. Saltita-se de um assunto para outro, o</p><p>que proporciona um pequeno prazer.</p><p>Este tipo de trocas e baldrocas verbais tem efeitos no pensamento. A inatenção, a</p><p>falta de concentração exercitam-se na contínua dispersão - vivíssima, porém - das</p><p>palavras. E quando se busca um «fio condutor», uma visão de conjunto, não se</p><p>recorre à análise, visa-se a síntese (tão ao gosto português de pensar) - melhor, visa-</p><p>se um modo sincrético de pensamento. Por isso pensamos tão pouco, e de forma</p><p>rotineira, geral e superficial.</p><p>Mas a consequência maior da incapacidade de falar com o outro, e de o ouvir, é a</p><p>impossibilidade de encontrar o «tom» que construirá o plano de inscrição das</p><p>expressões verbais. O tom dá a intensidade adequada a partir da qual todo o tipo de</p><p>fala (intensiva) é possível sem quebrar a conversa. Em Portugal ninguém procura o</p><p>tom.</p><p>Por isso, o que se diz não se inscreve, não constitui acontecimento. Qualquer</p><p>promessa é vã. Não há superfície de inscrição possível para as palavras que</p><p>deveriam construir o acontecimento. O saltitar contínuo, a interrupção necessária, a</p><p>dispersão, a impunidade da fala autista impedem que o desejo (a fala) se inscreva</p><p>produzindo efeitos no real.</p><p>Assim se explica o duplo regime que vigora em serviços de toda a ordem. Ora se</p><p>tenta inscrever freneticamente tudo, absolutamente tudo em actas, para que nada se</p><p>perca, ora reina a maior negligência nos arquivos que ninguém consulta nem</p><p>consultará (espera-se).</p><p>A este fenómeno, de incapacidade de construção de um plano de inscrição da fala,</p><p>convém chamar o esvaziamento da palavra.</p><p>Como em muitos outros domínios, estamos a viver tempos de mudança. Não é</p><p>verdade que a pequenez continue a ser a</p><p>59</p><p>única bitola pela qual são medidos o espaço físico e o espaço mental. Até porque o</p><p>primeiro muda mais depressa do que o segundo. Poderíamos citar mil exemplos de</p><p>espaços físicos, estreitos, esconsos, em correspondência íntima com o espaço do</p><p>corpo: estradas, casas, pontes,</p><p>jardins, cubículos de certos bairros (como em Alfama</p><p>ou na Bica, em Lisboa), a que o corpo é obrigado a ajustar-se, etc., etc. Tudo isso</p><p>está a mudar. Auto-estradas rasgaram o espaço das comunicações rodoviárias, as</p><p>antigas estradas que mal davam para dois carros vão desaparecendo pouco a pouco.</p><p>O espaço do corpo expandiu-se e, com ele, a arquitectura e o urbanismo (ao primeiro</p><p>projecto para Lisboa, em 1904, de um edifício alto de dez andares - 45 metros -</p><p>chumbado pela Câmara, que o reduziu a dois andares, seguiu-se em 1971 a primeira</p><p>realização efectiva de um arranha-céus, o Sheraton-Avis).</p><p>Mas esta expansão tem também qualquer coisa de artificial, de puramente</p><p>importado. Da pequenez passou-se aos projectos megalómanos (um Manhattan do</p><p>outro lado do Tejo, um elevador altíssimo em Alfama sem enquadramento</p><p>urbanístico, etc.). Os múltiplos efeitos - na esfera da pintura, da escultura, da</p><p>arquitectura, da arte em geral das transformações da escala tradicional revelam-se</p><p>complexos, se bem que se possa afirmar com um certo grau de certeza que os novos</p><p>edifícios, o novo espaço físico alargado, são e serão, por muitos anos ainda,</p><p>habitados e utilizados por unidades mentais encolhidas, «pequeninas». Também é</p><p>verdade que, mesmo imposto de fora, mesmo em desfasagem com a paisagem</p><p>espiritual e cultural, o alargamento do espaço material tem e terá cada vez mais</p><p>efeitos na expansão do espaço do corpo e da consciência dos portugueses. As</p><p>consequências são portanto ambíguas, as mudanças complexas, não-lineares e</p><p>imprevisíveis.</p><p>No salto brusco da pequenez para o colossal há a ânsia desmesurada em fazer de</p><p>Portugal (e sobretudo de Lisboa) uma metrópole cosmopolita como Paris ou Nova</p><p>Iorque. Sonho provinciano, como diria Fernando Pessoa (falando da vontade</p><p>portuguesa de cosmopolitismo). No entanto, nele passa uma força real que acaba por</p><p>obrigar os corpos e as mentes a ultrapassarem os seus limites - mais uma vez, em</p><p>direcções talvez imprevisíveis.</p><p>De que tamanho somos, nestes tempos de mudança? Que se levante a questão</p><p>significa que ainda não ajustámos a nossa estatura real à imagem que dela</p><p>possuímos. com tantas imagens de nós todos os dias a indicar-nos uma medida, não</p><p>atinamos com o tamanho certo. Este, aliás, só se alcançará quando finalmente nos</p><p>abrirmos a outros povos, a outros países. O nosso verdadeiro tamanho medir-se-á</p><p>então pelas trocas constantes que com eles tivermos. Constataremos que possuímos</p><p>um tamanho variável, e que essa variabilidade necessária é função da capacidade de</p><p>sermos nós (de nos expressarmos, de criarmos) sem dependermos de imagens</p><p>forjadas por puro auto-espelhamento. Variabilidade própria do nosso tamanho que</p><p>se exprimirá (em condições ideais) na sua máxima potência (porque estamos agora</p><p>muito longe desse alvo). Deixaremos finalmente de perguntar «de que tamanho</p><p>somos nós, portugueses?», porque deixaremos de ter problemas de identidade.</p><p>Da economia dos afectos</p><p>De onde vem o retraimento que, ainda por vezes, nos tolhe no desejo de</p><p>permanecermos pequenos? As causas são tantas e tão variadas (históricas,</p><p>sociológicas, psicológicas) que o seu estudo exigiria outras concepções da</p><p>causalidade nas ciências humanas. Limitemo-nos a indicar certos lugares</p><p>privilegiados da manifestação da pequenez.</p><p>Portugal continua a ser, em muitos aspectos importantes, uma sociedade fechada,</p><p>aberta à superfície, e fechada no interior. Actualmente, a reacção à abertura que se</p><p>traduz pelo apego cada vez mais desesperado aos modelos antigos que legitimavam</p><p>o fechamento não produz novas ideias, novos modos de adaptação, novos discursos</p><p>éticos. Agarramo-nos ao que já conhecemos e ao que nos habituámos - e que em nós</p><p>se sedimentou - como a uma tábua de salvação contra os flagelos que entram pela</p><p>porta meio aberta (em breve, escancarada) ao mundo.</p><p>Na verdade, já nem aqueles modelos têm um papel predominante na vida nacional.</p><p>Restam deles comportamentos reflexos, herdados, perdidos e que se retomam</p><p>pontualmente. Por exemplo, a família está em desagregação, nas grandes cidades.</p><p>As separações, os divórcios com todas as</p><p>61</p><p>sequelas que arrastam; a adolescência cada vez mais ameaçada, os pais que já não</p><p>sabem lidar com os filhos; a solidão crescente das mulheres, jovens e menos jovens;</p><p>o abandono dos velhos; a baixa da taxa de natalidade; o desaparecimento da</p><p>sociedade rural, a falta de emprego, etc., etc. - tudo isso contribuiu para o</p><p>desaparecimento da antiga família, regida por normas tradicionais ancestrais.</p><p>Família que, de um ponto de vista geral - com todos os conflitos e disfunções que</p><p>lhe são inerentes - constituía um núcleo de base que agia positivamente para a</p><p>manutenção do equilíbrio do campo social.</p><p>Esse tipo de família gerou comportamentos, automatismos, maneiras de se</p><p>relacionar material e espiritualmente tão poderosos que condicionaram globalmente</p><p>o que se poderia chamar a afectividade social. Ou seja, o modo espontâneo,</p><p>imediato, com que se estabelecia uma relação social qualquer, seguia um padrão</p><p>determinado, o familiarismo, em que a afectividade familiar representava um eixo</p><p>essencial.</p><p>O familiarismo envolvia por dentro o mundo português, desde a família popular até</p><p>ao Estado (Salazar mandava ao embaixador português em França caixas de ananases</p><p>escrevendo-lhe, creio - cito de cor - que eles «vinham da nossa quinta». O império</p><p>era uma quinta, com propriedade rústica de um agregado familiar, o povo</p><p>português).</p><p>O tratamento público que uma pessoa dispensava a outra copiava a relação familiar.</p><p>No fundo, o modo como cada indivíduo se dispunha a tratar outro em qualquer</p><p>situação implicava a amenidade, a proximidade, a familiaridade, a intimidade</p><p>imediatas com que se aborda um parente. Nos anos 80 ainda, um funcionário de um</p><p>banco lisboeta atendia longamente uma senhora do Minho que lhe contava</p><p>62</p><p>toda a história da família, antes de chegar ao assunto. A longa fila por detrás dela</p><p>esperava pacientemente, sem protestar, sabendo o que estava a acontecer. E o</p><p>empregado escutava-a e compreendia-a, já não como um estranho...</p><p>Os portugueses eram todos parentes. O familiarismo induzia uma vasta</p><p>promiscuidade social, a famosa «gregaridade» lusitana. É claro que outras clivagens</p><p>- verticais, hierárquicas ou de classe - atenuavam este efeito, mas enquanto</p><p>consequência da atmosfera política opressiva (era uma maneira dela se abrigar,</p><p>insuflando afectividade pessoal numa vida materialmente, intelectualmente,</p><p>espiritualmente e existencialmente pobre), atravessava as próprias diferenças sociais.</p><p>com estilos e intensidades diferentes, reinava na alta burguesia como no povo.</p><p>Assim se constitui, na grande esfera da afectividade social, uma estrutura envolvente</p><p>que reproduzia a todos os níveis o modelo afectivo-relacional da célula familiar.</p><p>Claro que uma tal estrutura se desenvolvia em inúmeras variantes, mas a sua força</p><p>envolvente era omnipresente e quase sem falhas. No fundo, fornecia também um</p><p>estranho coadjuvante ao poder político.</p><p>Primeiro, criava uma espécie de cadeia contínua de corpos afectivos que, porque</p><p>podiam exprimir o seu íntimo (familiar), sentiam menos a opressão cívica e política,</p><p>assim como a ausência de um espaço público.</p><p>Em segundo lugar, nessa corrente afectiva em que todos eram irmãos (uma espécie</p><p>de irmandade social nua) vivia-se inconscientemente qualquer coisa como uma</p><p>democracia dos afectos: todos iguais porque todos humanos, nos mesmos</p><p>sentimentos à flor da pele. Não afirmo que este fenómeno tenha resultado da</p><p>repressão política, como uma compensação simétrica à humilhação e à desigualdade.</p><p>63</p><p>Tendo também esse sentido, constituía antes de mais um terreno que favorecia</p><p>consideravelmente o poder político. Porque essa suposta democracia afectiva, longe</p><p>de libertar e dar direitos, seguia o modelo do familiarismo que</p><p>fechava, aprisionava,</p><p>encolhia os espíritos numa célula em que eles cultivavam a ilusão da igualdade e da</p><p>fraternidade. Ilusão tanto mais fácil de fabricar quanto a célula era atapetada com</p><p>afectos.</p><p>(O «pá!» como tratamento fraterno é um índice - que se vai perdendo - desse tipo de</p><p>familiarismo igualitário. Que parece mesmo escapar ao fechamento, e abrir para</p><p>uma</p><p>subjectivação colectiva. «O pá», ou o «pá» com uma certa entoação no fim das</p><p>frases é um tratamento sedutor de aproximação, de reconhecimento de uma</p><p>igualdade, para além do estatuto social - o nosso Presidente da República, Jorge</p><p>Sampaio, empregava constantemente o «pá». No entanto, o «pá» designa um sujeito</p><p>que não é irmão, nem parente, nem camarada de uma corporação ou de grupo</p><p>associativo. Enquanto tratamento relacional generalizado, resulta da introdução</p><p>linguística de um factor impessoal na linguagem familiarista e, no seio do</p><p>fechamento, de um «fora» democrático.</p><p>Há qualquer coisa deste tipo no mecanismo de funcionamento da «malta» - também</p><p>em vias de extinção. A «malta» não é a horda selvagem, mas também não se molda</p><p>ao familiarismo. A «malta» era (é ainda) um grupo etário que se prolongava pela</p><p>idade adulta - supostamente transgressivo, supostamente marginal, mas inofensivo,</p><p>obediente à ordem geral que, brincando à matilha nómada e anárquica, procurava</p><p>escapar à disciplina colectiva que a todos esmagava.)</p><p>com tudo isto, a relação social não precisava de espaço público: o afecto exibia-se</p><p>publicamente, o familiarismo</p><p>64</p><p>comentava, substituía (e roubava) tudo o que era suposto funcionar no espaço</p><p>público, a livre expressão, a livre associação, a criação livre. O familiarismo</p><p>subvertia a ordem da subjectivação nos domínios público/privado. No espaço</p><p>público manifestava-se o privado, porque o público tinha desaparecido, e com ele, a</p><p>cidadania, o direito de cada indivíduo a tornar-se um sujeito público, etc.</p><p>Em terceiro lugar, a democracia dos afectos não era realmente afectiva. Não existia</p><p>de maneira total e eficaz. A descrição pertinente do fenómeno exigiria que se</p><p>entrasse em mecanismos de uma grande complexidade. Por exemplo, que sujeito se</p><p>produzia assim no espaço público-privado do familiarismo? Como funcionava,</p><p>enquanto dispositivo de subjectivação, o gregarismo português?</p><p>Se o analisássemos mais profundamente, constataríamos que o «sujeito afectivo» se</p><p>exprimia publicamente em muito menor escala do que afirmámos. Que se reduzia</p><p>muito mais a um indivíduo fechado (mesmo «afectivo») do que a um cidadão.</p><p>Que o substrato emocional-sentimental desse ser social tendia a constituir estratos</p><p>imaginários que o isolavam em si próprio frente a outrem, construindo muitas vezes</p><p>um «eu» delirante e megalómano.</p><p>Por outro lado, o espaço em que se exercia o familiarismo comportava uma extensa</p><p>zona de sombra. Uma zona de clandestinidade do desejo. com efeito, não nos</p><p>referimos aqui à clandestinidade política, mas a um outro tipo de existência furtiva.</p><p>No tempo do salazarismo e, paradoxalmente, em parte contra a democracia afectiva</p><p>do sujeito individual-social, criou-se uma outra vida de expansão dos afectos. Mais</p><p>do que afectos, tratava-se, no fundo, de desejo. A clandestinidade,</p><p>65</p><p>nas condições do regime político-moral do Estado Novo, obrigava o desejo a</p><p>distorções, a estratégias, a intensificações que levariam a um longo estudo. Digamos</p><p>apenas que o próprio espaço urbano se fracturava em dois, desenvolvendo-se na</p><p>zona clandestina uma outra cidade, com outros sujeitos, outros códigos de</p><p>comportamento, vivendo como que uma liberdade ao avesso e uma vida amorosa</p><p>intensíssima.</p><p>(Um exemplo entre mil: durante a meia hora que demorava a travessia do Tejo, entre</p><p>as mulheres que vinham do Barreiro para trabalhar em Lisboa, e que se compunham</p><p>e maquilhavam no barco, ainda ensonadas, e os homens que tomavam</p><p>invariavelmente à mesma hora o mesmo cacilheiro, nasciam mil intrigas, sexuais e</p><p>amorosas, fora do casamento que duravam anos. A urgência do desejo era</p><p>amplificada pela clandestinidade geral que o Estado moral repressivo impunha.)</p><p>Indiquemos um último aspecto da afectividade social do tempo da ditadura:</p><p>curiosamente, a família e a relação social regida pelo familiarismo surgiam como os</p><p>únicos lugares de possível inscrição do indivíduo. Não que aí acontecesse de facto</p><p>qualquer coisa que transformasse a experiência pessoal, ou que fizesse brotar sentido</p><p>para a existência individual ou colectiva. Se alguma coisa nascia (um conflito, uma</p><p>catástrofe, uma alegria, um êxtase), era logo abafada, logo lhe eram retiradas as</p><p>condições para que crescesse e produzisse sentido. Porque, para nada havia saída</p><p>(um «fora»).</p><p>No entanto, o ambiente afectivo reinante, a textura afectiva da atmosfera entre as</p><p>pessoas era tão pregnante que se criava a ilusão de uma inscrição. Era ali, na família,</p><p>que a vida tomava sentido. Eram os laços pessoais, sentimentais,</p><p>66</p><p>que alicerçavam a amizade, ou o simples contacto entre os seres, que «contava na vida». Ou</p><p>seja, aquele estranho efeito do afecto activo (como a alegria e o amor) que consiste em dar</p><p>a ilusão da imortalidade (por isso o último desejo e a última esperança do moribundo é</p><p>sentir-se amado), como se de uma inscrição eterna se tratasse, agia fortemente no</p><p>familiarismo português. Porque sentíamos afectos (ternura, carinho, preocupação dos outros</p><p>por nós, doçura, solidariedade, etc.), estávamos salvos. De quê? Precisamente, do</p><p>desaparecimento sem deixar rasto, da existência que se sabe sem vestígios no futuro,</p><p>apagando-se assim toda a sua presença no presente. Salvos da não-inscrição, quer dizer,</p><p>radicalmente, da morte.</p><p>Mecanismo que se assemelha ao do neurótico obsessivo que crê que os seus</p><p>pensamentos valem por acções (o desejo de agir equivale a uma acção efectuada).</p><p>A «democracia afectiva», o familiarismo estão a afastar-se a olhos vistos da vida</p><p>portuguesa.</p><p>Numa sociedade em transição, nada veio ainda ocupar o lugar desse tipo de</p><p>afectividade social. À medida que se instala e sedimenta a democracia política, a</p><p>subjectivação correspondente (o sujeito dos direitos democráticos) não se constituiu</p><p>ainda, nem os direitos de cidadania, nem os simples reflexos de civismo foram</p><p>interiorizados pelo português do pós-25 de Abril.</p><p>Nesta situação instável, os corpos e os espíritos não se abriram ao novo espaço que a</p><p>liberdade política devia criar. A abertura produziu-se a um nível formal e os corpos</p><p>continuaram fechados. Porque, como acabámos de ver, a democracia dos afectos do</p><p>tempo do salazarismo, longe de abrir os corpos, mantinha-os semicerrados,</p><p>adormecidos numa ilusão de laço afectivo formador e criativo, mas efectivamente,</p><p>67</p><p>clandestino e imaginário - porque o espaço público não dava vazão ao desenvolvimento e</p><p>ao trabalho do desejo.</p><p>O 25 de Abril não libertou os corpos, senão formalmente, como não alargou o horizonte</p><p>dos espíritos, senão teoricamente. Não foram os extraordinários e temerários princípios de</p><p>liberdade substancial que os vários «processos revolucionários» propuseram e quiseram</p><p>inscrever (pelo menos na Constituição), que transformaram o espaço dos corpos encolhido</p><p>e enquistado pelo medo e os hábitos de submissão interiorizados durante décadas. A</p><p>democracia formal criou as condições para a sua transformação mas não a realizou. Depois</p><p>de várias experiências voluntaristas de abertura - logo abortadas ou engolidas pela prática e</p><p>pelo discurso políticos - os corpos e os espíritos voltaram aos velhos padrões</p><p>arquissedimentados.</p><p>Simplesmente, agora os corpos afectivos aparecem esgotados pelo investimento contínuo e</p><p>intenso no «trabalho revolucionário». Mais recentemente, a partir do fim dos anos</p><p>80 - a afectividade social de antigamente e o familiarismo sofreram golpes decisivos com a</p><p>desestruturação</p><p>da família e com um acontecimento único, talvez, na história de Portugal, o</p><p>enriquecimento súbito, possível, para uma grande parte dos cidadãos, e a saída definitiva da</p><p>situação geral de pobreza em que o país vivera durante séculos. Ainda que a pobreza</p><p>continue a atingir, hoje, mais ou menos dois milhões de portugueses...</p><p>Para compreendermos melhor este último factor de transformação das mentalidades, num</p><p>processo ainda em curso de abandono da pequenez e da conquista de uma outra dimensão,</p><p>consideremos um pequeno exemplo: a modificação brusca de uma economia familiar de</p><p>poupança para uma economia de consumo desenfreado.</p><p>68</p><p>O corte operou-se com o cavaquismo, e com a torrente de dinheiro que choveu sobre</p><p>Portugal vinda da Comunidade Europeia. «Enriquecei!», eis a palavra de ordem da</p><p>política económica cavaquista, que ecoou aos ouvidos dos portugueses como uma</p><p>libertação.</p><p>Libertação de quê? Se nos lembrarmos do que a economia de poupança salazarista</p><p>tinha, durante muitos anos (reforçando hábitos ancestrais), produzido nos</p><p>comportamentos das famílias, seremos capazes de formar uma ideia mais exacta da</p><p>profunda modificação que então começou.</p><p>A poupança não foi apenas uma técnica, por assim dizer, artesanal, de amealhar,</p><p>nem, certamente para o povo, de «acumular capital». Foi uma estratégia de</p><p>sobrevivência, entre as condições mínimas para subsistir «dignamente» enfrentando</p><p>eventuais desgraças futuras (doenças, acidentes), aumentos de despesas (filhos,</p><p>festas, etc.) num país em que não existiam praticamente segurança social e apoio à</p><p>saúde; e a ambição de se elevar a um nível de vida um pouco melhor. A poupança</p><p>não se praticava unicamente nas classes populares, abrangia quase sem excepção as</p><p>classes médias.</p><p>Que significava poupar? Restringir o desejo ao mínimo indispensável para criar um</p><p>«pé-de-meia». O que impressiona, hoje, é a obsessão, a continuidade obstinada, a</p><p>paixão quase, com que se poupava. Poupava-se na comida, na roupa, na casa, nos</p><p>divertimentos, nos prazeres da vida de toda a ordem. Umas calças podiam durar dez</p><p>ou vinte anos mesmo, e os sapatos outros tantos; remendavam-se camisas, cerziam-</p><p>se saias, guardavam-se os restos da véspera e da antevéspera para as refeições do dia</p><p>seguinte. Aproveitavam-se as águas usadas da cozinha para as verter na sanita,</p><p>economizando gastos da companhia. Não se deixavam inutilmente luzes acesas, etc.</p><p>etc.</p><p>69</p><p>Economia familiar de medos e esperança, com os seus pequenos potlatchs nas</p><p>celebrações cerimoniais, nascimentos, casamentos, festas do calendário religioso.</p><p>Não é difícil imaginar as consequências de um tal regime de vida. Redução do</p><p>espaço de expansão dos corpos, dos movimentos próprios de exploração, de</p><p>investimento afectivo, de liberdade corporal, de espontaneidade do desejo. Controlo</p><p>permanente, autodisciplina mutiladora da vontade de vida (e da vida da vontade).</p><p>Além do desenvolvimento de um certo egoísmo social que limita a generosidade e a</p><p>solidariedade, tão largas em geral nas sociedades de pobreza.</p><p>Mas também, o desenvolvimento de um espírito cauteloso, prudente, desconfiado. O</p><p>tempo subjectivo foi assim submetido e moldado a estes imperativos, a poupança</p><p>impunha uma vigilância permanente sobre os gastos, uma desconfiança arreigada</p><p>quanto ao que o futuro podia reservar. Os portugueses criaram desta forma dois</p><p>pares de olhos para verem melhor, para se esconderem atrás de uma máscara</p><p>avaliando e descortinando calmamente o avesso do visível (e as segundas intenções</p><p>dos outros - sociedade docemente paranóica). Cultivaram também um certo tempo</p><p>de prudência, de não-precipitação, uma lentidão que dava ensejo a nunca se deixar</p><p>apanhar pelo imprevisto.</p><p>Curiosamente, este tempo subjectivo não implicava uma vasta duração, com a</p><p>capacidade de tecer planos e projectos a longo prazo. Porque a poupança era uma</p><p>actividade continuamente periódica, o tempo subjectivo formou-se também de</p><p>buracos, de esperas vazias onde nada acontecia. Um tempo envolvente, que não se</p><p>escoava, que não pulsava (senão, a um ritmo semelhante àquele, saltitante, dos</p><p>comportamentos de superfície). Um tempo eternamente «adiado», e</p><p>«territorializado» no adiamento.</p><p>70</p><p>A economia da poupança correspondeu, pois, um encolhimento brutal do espaço do</p><p>corpo, agora abrigado na sua adequada pequenez, e um estreitamento do horizonte</p><p>da consciência, e da inteligência cada vez mais condenada às estratégias da</p><p>«esperteza» e do «desenrasque». Encolhimento e estreitamento que, sedimentando-</p><p>se a pouco e pouco, anquilosaram e enquistaram corpos e espíritos, para finalmente</p><p>neles se incorporarem e com eles se confundirem.</p><p>Compreende-se como a nova ordem cavaquista veio, primeiro, perturbar, depois</p><p>revolucionar estes hábitos rígidos do homem português. À lógica da poupança</p><p>seguiu-se, sem mediações, a lógica do consumismo e do desperdício. À pequenez</p><p>tradicional sucedeu uma escala variável que vai do grande ao descomunal. Mas nem</p><p>por isso o espaço e o tempo físicos, que assim mudavam, deram lugar a um novo</p><p>espaço do corpo e a um tempo subjectivo expandido.</p><p>Por exemplo, vêem-se hoje casos deste tipo: um casal (de novos-ricos, ainda há</p><p>pouco de recursos modestos) manda construir uma grande vivenda e, ao lado, um</p><p>quarto e uma cozinha de pequenas dimensões. Vivem nestes, e a grande casa fica</p><p>vazia. Justificam o seu comportamento dizendo que «é para não sujar a casa».</p><p>O «enriquecei!» cavaquista provocou talvez as primeiras brechas profundas na</p><p>experiência do espaço e do tempo do povo português desde há séculos. Se não a</p><p>modificou ainda, iniciou um processo que, vindo de fora, atingiu estratos de hábitos</p><p>e mentalidades que começaram enfim a deslocar-se. Porque foi o próprio espaço</p><p>exterior - rodoviário, urbanístico, territorial - que sofreu transformações radicais. Ao</p><p>mesmo tempo, os corpos portugueses foram, muito lentamente, adquirindo novos</p><p>gestos, perdendo velhas estereotipias. Eles próprios vão modificando o seu</p><p>metabolismo interno.</p><p>71</p><p>O horizonte do espírito e do pensamento leva mais tempo a abrir-se e a alargar-se.</p><p>Curiosamente, o processo de transformação representa uma violência que irrompe</p><p>de fora para dentro, repentinamente, artificialmente. A União Europeia já entrou em</p><p>nós e modificou o nosso mapa geográfico, as nossas leis, a nossa economia, fez</p><p>desaparecer muitos comportamentos ancestrais, perturbou a nossa afectividade</p><p>social, deslocando-a, pervertendo-a, abolindo-a em múltiplos casos. Mas se a Europa</p><p>entrou em nós, nós ainda não entrámos na Europa. Às transformações económicas e</p><p>tecnológicas que a Comunidade Europeia impõe ao nosso país, nós respondemos</p><p>com uma resistência (sobretudo passiva) que se apoia em velhas estratégias de</p><p>«inteligência de sobrevivência», que têm décadas, talvez séculos. Moldadas em</p><p>estratos inconscientes, elas condicionam os principais reflexos de defesa,</p><p>constituindo uma verdadeira barreira ao «desenvolvimento».</p><p>Por isso o país não se desenvolveu realmente, durante estes anos de riqueza que nos</p><p>foi oferecida de bandeja (claro, com contrapartidas destrutivas, se nada fosse feito).</p><p>Não operámos nem revoluções radicais na educação (condição primeira do</p><p>desenvolvimento), nem criámos planos de reorganização da economia, da</p><p>administração, de reforma fiscal, de investigação científica ou da saúde. Perdemos</p><p>estamos a perder - uma oportunidade única. E o nosso frágil tecido económico</p><p>esboroa-se dia após dia. Portugal arrisca-se a desaparecer.</p><p>Assiste-se, neste momento inicial do século xxi, a um esforço desesperado para</p><p>afirmar Portugal, quer dizer, para que Portugal subsista, inscrevendo-se na Europa.</p><p>Isto passa, fundamentalmente, pela inscrição da nossa imagem no espaço</p><p>internacional (não pela inscrição do nosso trabalho,</p><p>72</p><p>da nossa criação, no plano da produção e criação</p><p>dos outros países). Interessa-nos menos,</p><p>por exemplo, estabelecer trocas, intercâmbios, misturas, osmoses, canais de comunicação</p><p>permanentes com culturas das nações europeias, do que saber que as nossas produções têm</p><p>grande eco «lá fora». O «lá fora» continua longe de nós.</p><p>Ora, todo esse esforço redundará em puro benefício vão, em simples gratificação do ego</p><p>nacional, enquanto não inscrevermos também as culturas estrangeiras na nossa própria</p><p>cultura. Como o poderemos fazer se não conseguimos sequer inscrevermo-nos a nós, na</p><p>nossa terra, na nossa história e na nossa existência? É porque somos o país da não-inscrição</p><p>que tanta dificuldade tem em se inscrever na Europa; e que com tão fracas forças se lhe</p><p>opõe, enquanto aquela irreversivelmente se inscreve com violência no nosso território.</p><p>A entrada de Portugal na União Europeia - de dentro para fora - processa-se, pois,</p><p>através de mil ambiguidades. No meio da grande perturbação actual que a destruição</p><p>do país arcaico provoca, agarramo-nos a automatismos afectivos, à tentação da</p><p>corrupção (esperteza) por velhos hábitos de impunidade de classe, à inércia, ao</p><p>compadrio (vestígios degenerados da antiga democracia afectiva), enfim não já ao</p><p>familiarismo, que explodiu como meio envolvente, mas à família desfeita ainda</p><p>pertinente como ideal imaginário que se remenda todos os dias com a ajuda de</p><p>psiquiatras, psicólogos, psicanalistas.</p><p>A economia afectiva dos corpos mudou, enquanto os modelos mentais</p><p>correspondentes não desapareceram ainda. O mapa material (demográfico,</p><p>comunicacional, urbanístico) do nosso país modificou-se e, com ele, o mapa dos</p><p>nossos investimentos afectivos. A paisagem é um corpo. Mas o</p><p>73</p><p>horizonte espiritual do nosso povo inteiro, dos nossos homens políticos e dos nossos</p><p>governantes, com excepção de certos artistas e homens de cultura, continua a ser o de</p><p>antigamente, não tendo sequer integrado as transformações da cartografia do espaço físico e</p><p>do tempo.</p><p>Afectivamente, andamos perdidos. Como toda a Europa, mas à nossa maneira. Talvez um</p><p>pouco menos do que a Europa, porque conservamos, intactos, alguns dos padrões e estratos</p><p>arcaicos a que nos agarramos.</p><p>Enquanto continuarmos a caminhar de dentro para fora é provável que o horizonte mental</p><p>se alargue por choques sucessivos, acabando por fazer deslizar o pensamento pelas vias</p><p>largas que nos unirão à Europa. Até que as fronteiras da nossa nacionalidade se</p><p>desvaneçam e Portugal se torne um pequeno território desaparecido de um antigo e</p><p>desbotado mapa-mundo.</p><p>De que é que se tem medo?</p><p>Um escritor italiano que conhece muito bem Portugal dizia há uns anos: «uma</p><p>estranha semiótica rege este país. Um português pergunta a outro: "Aonde vais este</p><p>fim-de-semana?" O outro responde: "Fico por aí..."»</p><p>«Por aqui», «por aí» designam lugares indeterminados, trajectos aleatórios, sem</p><p>direcção nem fronteiras, mas bem precisos para os portugueses. Curiosamente, o</p><p>«por aí» refere-se a um pequeno território de deambulação (física e mental), ao</p><p>mesmo tempo invisivelmente enclausurado e internamente livre. Nesse espaço</p><p>reduzido, o sujeito vai passear ao acaso, cheirar o ar, deixar vir a si as coisas</p><p>visíveis, sentar-se num café a ler o jornal, provocar sem dúvida calmos encontros</p><p>esperadamente inesperados com outros que também andam «por aí». (Uma outra</p><p>expressão típica do viver desta estranha pseudocontigência do deambular lusitano é:</p><p>«se calhar...»)</p><p>A ausência de fronteiras confere ao deambular um carácter aventuroso, mas sem</p><p>risco. O mapa mental correspondente aos trajectos a efectuar possui uma textura</p><p>plástica, móbil. O pensamento tanto pode ir para a esquerda como para a direita,</p><p>oscila, perde-se por instantes, esquece-se,</p><p>75</p><p>acorda novamente, hesita, embala-se, durante horas, neste movimento composto de</p><p>pequenas sequências - estadias mínimas - continuamente descontínuas. É um ritmo</p><p>estranho, em que mal se toca nas coisas, em que mal se pensa nelas: o pensamento</p><p>passa por entre, mesmo quando com elas entra em contacto.</p><p>Quando se trata de outros corpos, o contacto directo parece conter uma ameaça.</p><p>Uma diplomata francesa que tinha vivido longos anos na China e, mais tarde, em</p><p>Portugal, dizia que os portugueses eram «os chineses do Ocidente». E explicava: os</p><p>chineses nunca vão directamente ao assunto, dão voltas e mais voltas antes de lá</p><p>chegar e sempre em termos velados. Os portugueses fazem o mesmo: aproximam-se</p><p>indirectamente, percorrem espirais, caminhos ínvios e barrocos até abordar</p><p>claramente a questão.</p><p>Tanta precaução indicia uma recusa do enfrentamento. Neste aspecto, a sociedade</p><p>portuguesa situa-se nos antípodas das sociedades mediterrâneas, por exemplo</p><p>(Albânia, Grécia, Córsega, Sardenha, Líbano, Líbia, etc.), enquanto sociedades de</p><p>vendetta. Nestas, em que os valores axiais são a honra e o pudor, o enfrentamento</p><p>constitui um comportamento ético: recusá-lo é perder a honra, o bem mais precioso,</p><p>que dá direito a ser um homem dentro da comunidade.</p><p>Portugal foi também um país em que múltiplas comunidades rurais se regeram por</p><p>esses mesmos valores, talvez com menos violência do que no Mediterrâneo.</p><p>Qualquer coisa aconteceu, no entanto, que transformou as estruturas judiciárias</p><p>arcaicas e, com elas, os reflexos de enfrentamento directo.</p><p>Transformou e, em diversos planos, inverteu os comportamentos éticos. Debaixo da</p><p>precaução, da cautela, da</p><p>76</p><p>descofiança, habita o medo. Como se, à maneira de certas teorias do contrato social,</p><p>o laço de sociabilidade e o Estado se tivessem instaurado para esconjurar o medo, a</p><p>insegurança e a vulnerabilidade que reinariam no estado de natureza. Em Portugal,</p><p>esse mesmo mecanismo teria em parte falhado: daí a fraqueza histórica do nosso</p><p>Estado, a permanência, a infiltração e a disseminação do medo por todo o campo</p><p>social. Correndo até por debaixo da película finíssima que o separa das atitudes</p><p>supostamente construídas para o combater - a prudência, o evitamento do conflito</p><p>aberto, a afabilidade das relações sociais. Digamos como hipótese, que o contrato</p><p>social abortou parcialmente, não conseguindo formar-se um Estado com o</p><p>«monopólio exclusivo da violência», ou seja, suficientemente forte para fazer</p><p>respeitar a lei severamente e sobre todo o território. De maneira que - ao invés do</p><p>que aconteceu nos Estados fortes da Europa, em França sobretudo - a protecção das</p><p>populações, a paz e a segurança não puderam ser satisfatoriamente asseguradas pelo</p><p>Estado português.</p><p>Suponhamos, então, que, nestas condições, tivessem sido os próprios indivíduos,</p><p>clãs e facções a resolver abdicar da violência, não só para dar a um terceiro termo (o</p><p>Estado) o direito exclusivo de a exercer, mas também criando uma sociedade civil</p><p>cuja segurança resultasse do próprio mecanismo de engendramento do laço social: a</p><p>violência em parte transformada em medo, o medo da violência em parte</p><p>metabolizado em brandura, doçura, amenidade. O que não implica civismo, mas uma</p><p>inversão da violência e da agressividade primeiras (ou ainda, da tendência à</p><p>afirmação da potência), sem que isso signifique necessariamente a interiorização de</p><p>uma lei (que reja o comportamento cívico). Para tanto, certamente muito contribuiu</p><p>a</p><p>77</p><p>religião cristã (Nietzsche, na Genealogia da Moral, descreveu mecanismos deste</p><p>tipo: por exemplo, como nasce o «homem bom»).</p><p>Teríamos assim uma sociedade civil não violenta à superfície mas com um medo</p><p>disseminado protegendo os indivíduos contra uma violência subjacente só</p><p>parcialmente sublimada, quer dizer, transformada e investida em outros objectos.</p><p>Isto explicaria vários aspectos da sociedade portuguesa: o mito dos «brandos</p><p>costumes» que reina à superfície escondendo uma violência real subterrânea; a força</p><p>e a fragilidade (conforme as circunstâncias) da sociedade civil, pouco elaborada em</p><p>termos de instituições</p><p>e muito forte na afectividade social imediata e na cultura</p><p>popular (porque o Estado e as classes ricas não criaram condições para o</p><p>desenvolvimento de culturas próprias); a função extraordinária, ainda hoje, do medo,</p><p>como afecto paralisante da agressividade social.</p><p>Devemos também ter em consideração o medo segregado pelo Estado Novo, uma</p><p>vez que veio reforçar os dispositivos já interiorizados e vocacionados para acolher e</p><p>estratificar mais cargas de temor, desde os comportamentos de obediência e</p><p>submissão, às finas estratégias para o esconjurar e que, por isso mesmo, alimentam a</p><p>sua existência em estado latente.</p><p>O medo entranhado, o medo incorporado, o medo sem objecto (contrariamente à</p><p>definição de Freud, que lhe dá um objecto, diferentemente da angústia) e, no</p><p>entanto, ubíquo, companheiro de todos os instantes, doença que se agarra à pele do</p><p>espírito e por isso não se vê, podendo-se mesmo não sentir como se em nós não</p><p>estivesse inscrito. Este foi indubitavelmente o medo produzido pela sociedade</p><p>salazarista. Falo do homem comum, não do oposicionista,</p><p>78</p><p>sempre claramente ameaçado pelo poder. O medo exsudado pelo salazarismo é um</p><p>exemplo típico do nevoeiro ou sombra branca.</p><p>O medo herda-se. Porque interiorizado, mais inconsciente do que consciente, acaba</p><p>por fazer parte do «carácter dos portugueses» (ditos «tristes, taciturnos,</p><p>acabrunhados»), integra-se no «impensado genealógico» (Nicolas Abraham) que</p><p>passa de pais para filhos, de geração em geração.</p><p>Hoje, trinta anos depois do fim do regime do medo, convivemos ainda com ele. A</p><p>sociedade portuguesa, os portugueses não perderam o medo, ainda que (ou talvez</p><p>por isso) as novas gerações pouco saibam do passado salazarista.</p><p>Ora, uma das características desse medo, é a de, aparentemente, não se inscrever.</p><p>Ou de se inscrever metamorfoseando-se de tal maneira que se torna irreconhecível.</p><p>Para tanto contribuiu, mais uma vez, o modo como o 25 de Abril (e o processo que</p><p>se lhe seguiu) varreu das consciências o regime anterior. (Não seria, por exemplo, e</p><p>por si só, a transformação em monumentos da memória - em vez do abandono a que</p><p>foram votados - dos edifícios emblemáticos prisionais destinados aos presos</p><p>políticos que poderia sustentar uma inscrição duradoira do medo.)</p><p>O medo salazarista e o nosso não se inscrevem porque não são conscientes. As</p><p>pessoas não se sabem inteiramente com medo, ainda que sintam muitas vezes</p><p>«medos». Aliás fala-se livremente nos «medos» (das crianças, e também dos</p><p>adultos), mas raramente no medo com que se vive.</p><p>O medo é uma estratégia para nada inscrever. Constitui-se, antes de mais, como</p><p>medo de inscrever, quer dizer, de existir, de afrontar as forças do mundo</p><p>desencadeando as suas próprias forças de vida. Medo de agir, de tomar decisões</p><p>diferentes da norma vigente, medo de amar, de criar,</p><p>79</p><p>de viver. Medo de arriscar. A prudência é a lei do bom senso português.</p><p>O medo que reinava no antigo regime passou a um outro registo, sem desertar dos</p><p>corpos. Menos disseminado, circula agora horizontalmente, por assim dizer.</p><p>Enquanto na velha atmosfera de medo, este, por toda a parte infiltrado, circulava de</p><p>cima para baixo, na vertical, manifestando-se universalmente na relação hierárquica</p><p>de obediência, hoje, como não podia deixar de ser, com a instauração da</p><p>democracia, o medo joga-se no enfrentamento possível da competitividade. No</p><p>Estado autoritário segue a via piramidal, do cume para a base; no Estado</p><p>democrático os seus trajectos inflectem-se para o plano horizontal.</p><p>Não desapareceu na relação de submissão hierárquica, subsiste, claro, mas com</p><p>muito menos força. Outro, diferente, surgiu e estendeu-se por toda a superfície</p><p>social. O medo do rival, do colega, dos outros candidatos ao mesmo lugar, à</p><p>carreira, ao emprego, quer dizer, o medo de todos os outros. Medo</p><p>extraordinariamente agravado pela subavaliação que o indivíduo faz de si mesmo,</p><p>julgando-se sempre abaixo do nível exigido, nunca à altura do que se lhe pede.</p><p>O esmagamento a que os portugueses foram sujeitos durante o salazarismo</p><p>manifesta aqui um dos seus efeitos. Ninguém se julga capaz, toda a gente se sente</p><p>inferior à norma ideal de competência. O que não deixa de ser, em inúmeros casos,</p><p>real, mas que contribui também para que a incompetência aumente por falta de</p><p>audácia, de coragem, de capacidade para se reconhecer o que se é. Aqui o medo</p><p>desdobra-se e age, imaginariamente, transformando-se em temor de ser apontado</p><p>publicamente como incompetente. Esconde-se, criando um ecrã onde se dá</p><p>continuidade aos velhos expedientes, próprios da sociedade autoritária, para</p><p>80</p><p>parecer o que não é. A maioria dos esforços vão no sentido de manter essa máscara,</p><p>em vez de investir no desenvolvimento da inovação.</p><p>Trata-se afinal, sempre, de relações de poder, como diria Foucault. O medo é medo</p><p>do poder, mas também da impotência própria diante do poder. Medo de não saber e</p><p>de ser desmascarado. Medo de ter medo. Medo de parecer ter medo, de parecer</p><p>fraco, incapaz, ignorante, medíocre.</p><p>Em tantas sociedades, em que coexistem vários níveis de desenvolvimento e de</p><p>instrução, tudo isto existe, mas em Portugal (com uma população e aglomerados</p><p>populacionais reduzidos ou compostos por pequenos grupos) reforça-se e agudiza-</p><p>se, como já o dissemos, sob o poder extraordinário que entre nós possui a imagem de</p><p>si. A imagem de si (ideal, imaginária, ditada pela norma não menos imaginária do</p><p>político-social-moral-psicologicamente correcto) impõe regras de comportamento,</p><p>interioriza interditos, autocensura o indivíduo. Constitui um limite severo à livre</p><p>expressão, ao pensamento e à acção livres. Sair das fronteiras definidas pela norma</p><p>equivale a arriscar-se a adoptar uma imagem de si autodestrutiva - de tal maneira</p><p>esta sociedade não dispõe nem propõe alternativas de vida à única norma dominante.</p><p>É preciso lembrar que a imagem de si, forjada pela lei, inconsciente ou</p><p>semiconsciente, age sem cessar, como uma espécie de panóptico a que os indivíduos</p><p>não podem fugir. Está no ar, na atmosfera, quer dizer, no olhar dos outros e, pior, no</p><p>olhar interior do superego que todos corrói.</p><p>É por isso que, quando se forma uma concreção de poder que combina velhas</p><p>estruturas hierárquicas com a relação paranóica democrática, é esta que geralmente</p><p>alimenta aquelas, abrindo o espaço para o exercício de poder de</p><p>81</p><p>pequenos déspotas (que podem surgir na administração, nos poderes públicos, nas</p><p>empresas, nas escolas, nos partidos políticos), sempre prontos a pôr logo em</p><p>funcionamento dispositivos panópticos que constróem a imagem de si. Por essa</p><p>razão, a tentação do pequeno despotismo se tornou tão fácil e permanente na</p><p>sociedade portuguesa actual.</p><p>A imagem de si, enquanto produto específico do panóptico português, tem um efeito</p><p>devastador, absorve as forças vitais do indivíduo, desenvolvendo uma entropia</p><p>imparável. O medo de «não estar à altura» impera, arruinando as potencialidades</p><p>criativas; medo que implica e arrasta outros, como o de ser avaliado, de ser julgado,</p><p>de «ir a exame».</p><p>Repare-se como o processo de integração na Comunidade Europeia de pequenos</p><p>países em «vias de desenvolvimento», como Portugal, retoma velhos procedimentos</p><p>próprios das sociedades «disciplinares» (segundo a terminologia de Foucault) -</p><p>quando o que se pretende é atingir níveis de produção e de competitividade que</p><p>correspondam a sociedades pós-modernas.</p><p>A avaliação generalizou-se como meio de alcançar esses níveis, quer dizer, de</p><p>desenvolver competências e induzir o desejo de formação profissional. Como é que</p><p>se chegou a esta aberração? Sob a política de avaliação há a ideia de que a</p><p>emulação, a competição, a concorrência constituem a essência das motivações</p><p>humanas, ou seja, que a imagem de si (com as suas componentes necessárias ao</p><p>embate das vontades</p><p>no mercado do trabalho: «agressividade», «espírito de</p><p>vencedor», confiança em si, «auto-estima», etc. - toda uma panóplia de qualidades</p><p>compondo o padrão de subjectividade ideal do novo mundo capitalista) representa o</p><p>factor decisivo desencadeador do desejo de desenvolver e ultrapassar os outros.</p><p>82</p><p>Importaram-se modelos estrangeiros da psicologia social e individual mais sumária,</p><p>mais estritamente funcional, para os aplicar a sujeitos de sociedades, em muitos</p><p>aspectos, arcaicas. O resultado é o falhanço desses modelos em Portugal. Porquê?</p><p>Porque esses modelos de subjectivação dirigem-se sobretudo a estrangeiros</p><p>dessubjectivados, ou melhor, subjectivados segundo funcionalidades tecnológicas</p><p>extremas de onde se exclui o máximo do que, da subjectividade trivial, poderia</p><p>impedir o rendimento mais elevado.</p><p>Em Portugal dá-se precisamente o contrário. A imagem de si subjectiva e os sujeitos</p><p>avaliados estão ainda sob o poder de modelos arcaicos de subjectivação. A imagem</p><p>de si culpabiliza, e as avaliações e os exames diminuem as poucas forças internas</p><p>capazes de mobilizar os indivíduos, porque estes sofrem fundamentalmente de</p><p>qualquer coisa como uma desvalorização do seu ser, de uma falta ontológica que faz</p><p>com que estejam convencidos, no seu foro mais íntimo, de que «não estão à altura»,</p><p>de que são inferiores aos outros (os de «lá de fora»). Este complexo, dito de</p><p>inferioridade, não desapareceu ainda da alma dos portugueses.</p><p>Eis porque as avaliações - e quer-se agora tudo avaliar: as escolas, as universidades,</p><p>as empresas, os hospitais, as rentabilidades de toda a espécie - não vão transformar a</p><p>sociedade portuguesa. Longe de lhe insuflar força anímica, retiram-lhe energia,</p><p>envergonham-na sem a estimular.</p><p>No entanto, o processo está em vias de se aplicar aos pormenores mais ínfimos: não</p><p>é que, aqui há uns anos, um comentador político avaliava com notas de zero a vinte</p><p>a acção dos homens políticos, deputados, ministros, mesmo o presidente da</p><p>República? Não é que os jornais avaliam quotidianamente os comportamentos das</p><p>personalidades públicas</p><p>83</p><p>numa escala de «altos» e «baixos»? Prática pedagógico-política que impõe mais do que</p><p>supõe um padrão, uma imagem de si que, afinal, ninguém possui nem define. Mas que,</p><p>enquanto processo político de avaliação, contribui para sedimentar velhos estratos de medo,</p><p>quando não alimentam outros, novos, que vão juntar-se aos primeiros. Se a sociedade</p><p>portuguesa demora tanto, depois do 25 de Abril, a acordar, a fazer nascer em si potentes</p><p>forças de vida, se ela continua entravada, pouco dinâmica, pouco produtiva, é porque</p><p>recusa, por prudência, a intensidade e o excesso. Porque se encontra minada, corroída,</p><p>essencialmente, pelo medo.</p><p>Há pois que considerar o medo não tanto como um sentimento ou uma «paixão» (como se</p><p>dizia no século xvIII, ou mais geralmente como um afecto que atinge uma maioria de</p><p>indivíduos de um grupo social determinado, mas como um sistema que condiciona directa e</p><p>decisivamente mecanismos macrossociais. Sistema de relações afectivas em imediata</p><p>conexão com a máquina produtiva e com o poder. O medo impede certas forças de se</p><p>exprimirem, inibe, retira e separa o indivíduo do seu território, retrai o espaço do corpo,</p><p>estilhaça coesões de grupo - tudo isto tem efeitos mediatos e imediatos nos processos de</p><p>produção económica, social, artística, de pensamento. Quebra-os, desacelera-os, esfarela-</p><p>os.</p><p>Um afecto não é apenas uma experiência isolada da consciência do sujeito. Constitui</p><p>antes uma célula em agenciamento múltiplo com outras células, outros afectos - e</p><p>com espaços, tempos colectivos, engrenagens e cadeias sociais de produção.</p><p>Enquanto agente motivador ou inibidor do trabalho, o afecto (em qualquer</p><p>sociedade, nas mais arcaicas como nas mais desenvolvidas) faz parte do sistema</p><p>produtivo.</p><p>84</p><p>Se o (actual) povo português fosse um povo de intensidades e não de sentimentos e</p><p>de medo (como Fernando Pessoa caracterizava o povo espanhol contrapondo-o ao</p><p>português), há muito que teríamos saído do estado de iliteracia e de fragilidade</p><p>económica em que vivemos. Em vez disso, sofremos de muitos defeitos próprios das</p><p>sociedades do terceiro mundo: absentismo no trabalho, inércia, dificuldades na</p><p>formação e na aprendizagem, lentidão, falta de competitividade. Como se</p><p>tivéssemos sido atingidos por uma doença que nos deixa diminuídos, meio</p><p>exangues, com um défice de força vital.</p><p>É o medo que nos tolhe e, directa e indirectamente, nos inibe de expandirmos a</p><p>nossa potência de vida, e mesmo a nossa vontade de viver. De certo modo, pode</p><p>perguntar-se se a própria não-inscrição, toda essa actividade saltitante do «toca e</p><p>foge», esse constante desassossego dos portugueses, não provém do medo. Porque</p><p>este arranca o indivíduo ao seu solo, desapropria-o do seu território e do seu espaço,</p><p>deixa-o a sobrevoar o real, em pleno nevoeiro.</p><p>Enquanto dispositivo mutilador do desejo, o medo predispõe à obediência. Amolece</p><p>os corpos, sorve-lhes a energia, cria um vazio nos espíritos que só as tarefas,</p><p>deveres, obrigações da submissão são supostos preencher. O medo prepara</p><p>impecavelmente o terreno para a lei repressiva se exercer.</p><p>Mas, uma vez mais, os portugueses imprimiram uma torção à relação com a lei que,</p><p>sob a aparência de lhe escapar, reforça os seus efeitos de poder. Esse medo</p><p>incorporado deveria conduzir a uma severa e rigorosa obediência à lei, mas não é o</p><p>que acontece. O português adquiriu, dentro de certos limites, reflexos de não</p><p>obediência à lei. Não obediência não significa desobediência, pelo contrário, é uma</p><p>85</p><p>maneira de escapar ao ditame estrito dentro do próprio âmbito da lei. Escapa, pois,</p><p>não escapando à lei geral.</p><p>É o que o povo chamou a prática do «desenrasque» que, em esferas mais elevadas,</p><p>conduz à beira (quando não ao âmago) da corrupção.</p><p>Trata-se, no fundo, de não cumprir a lei, mas seguindo uma espécie de</p><p>jurisprudência muito particular. Como a lei admite sempre um espaço de tolerância,</p><p>espaço deixado neutro pela possibilidade de diferentes interpretações do seu</p><p>significado, o português aproveitou imediatamente essa margem de indefinição para</p><p>aí salvaguardar a sua tendência à não-acção, ao não cumprimento da lei; ou para agir</p><p>furtivamente, agir não agindo, porque nada na lei qualifica a sua acção de ilegal, se</p><p>bem que indirectamente (moralmente, ou politicamente) possa vir a ter</p><p>consequências desse tipo. (Isto, digamos, no melhor dos casos, porque em matéria</p><p>de corrupção real, a não aplicação da lei é uma realidade gritante no nosso país em</p><p>que grassa a corrupção mais descarada.)</p><p>O que faz então o português esperto? Nada. «Anda por aí.» Reserva-se o direito</p><p>(privado e, por isso, humano por essência) de não obedecer à lei. É a sua tendência à</p><p>não-inscrição que opera. Faz desse espaço de tolerância um espaço de não-inscrição</p><p>por excelência. Daí a verdadeira repugnância em cumprir as leis - que não deriva de</p><p>um qualquer espírito de rebeldia ou de negação do poder, mas da vocação lusitana</p><p>para o não-acontecimento. De resto, essa repugnância está tão entranhada que não só</p><p>do lado do cidadão, mas também do lado do poder ela se manifesta. Em Portugal</p><p>não se cumpre a lei quando se pode, mas pouco se faz para a fazer cumprir.</p><p>O que se explica, também, porque saímos de uma sociedade autoritária,</p><p>profundamente marcados pela temporalidade</p><p>86</p><p>que lhe era própria e que se estendeu a todo o campo social, a todos os projectos</p><p>individuais ou colectivos: o tempo do adiamento. Os portugueses eram seres</p><p>adiados, o que convinha inteiramente à não-inscrição.</p><p>Sabemos que, nesse aspecto, Portugal está a mudar em consequência da pressão da</p><p>União Europeia. Agora somos obrigados, sob pena de graves sanções económicas, a</p><p>cumprir certas leis - sempre controlados por instâncias supranacionais.</p><p>Mas até aqui</p><p>- e ainda hoje - subsiste um regime de permissividade, de negligência e</p><p>desorganização no que respeita aos mecanismos de inspecção e coacção do</p><p>cumprimento efectivo da lei. Regime que atinge todos os domínios, desde a validade</p><p>dos atestados médicos até à fuga ao fisco.</p><p>De tal modo a não-acção forma um sistema de um lado e de outro da norma, que o</p><p>exercício do poder, em Portugal, só se tornou possível pela existência de um não-</p><p>poder real, de uma impotência primordial que atravessa todos os dispositivos de</p><p>poder (político, jurídico, policial, social, familiar, cultural); e que tem como</p><p>elemento correspondente o hábito de não agir do lado do sujeito-cidadão obediente.</p><p>Dos dois lados, não se inscreve o que se anuncia que se vai fazer, porque o que se</p><p>fizer tem, desde o início, a estampilha da não efectuação - ou de efectuação fictícia,</p><p>ou parcial, ou desviada, «desvirtuada», aparente, etc.</p><p>Daqui se conclui a fragilidade do Estado. O poder real, em Portugal, não é o poder</p><p>económico, nem o poder político, nem é exercido (no seu sentido lato), pela UE, ou</p><p>pelo governo, ou pelas instituições, grupos e pessoas da sociedade civil. Todo esse</p><p>tipo de relações, enquanto gigantesco dispositivo entrópico de não-inscrição, forma</p><p>uma rede que</p><p>87</p><p>a todos apanha e que de todos absorve a energia. Existe, em circulação, no nosso</p><p>país, muito menos poder do que aquele de que os portugueses são capazes (de</p><p>possuir, deter, manipular, transformar, criar).</p><p>Mas o medo está lá, para tudo regular. Assim se compreende que a zona de</p><p>comportamentos que escapa à lei, longe de permitir transgressões, incitar ao</p><p>desacato, fazer eclodir excessos, experiências intensas ou anormais, conduza à</p><p>resignação, à inércia, à complacência relativa a todas as normas, ao consenso</p><p>forçado do político e socialmente correcto. Essa zona reduz-se, afinal, a uma zona de</p><p>submissão.</p><p>Num tal sistema, em que a não-acção é a regra, não se imagina um Estado e uma</p><p>administração sem burocracia. Porque esta constitui o melhor meio de adiamento e</p><p>paralisação da acção. Ou, mais precisamente, à maneira das «soluções de</p><p>compromisso» como Freud caracterizava os sintomas, ao adiar indefinidamente o</p><p>agir, a burocracia toma a aparência da acção, criando a ilusão da sua efectuação.</p><p>Assemelha-se, de facto, a uma solução de compromisso: por um lado, a burocracia</p><p>adia os processos que procuram solução num tempo que pode alargar-se tanto que as</p><p>datas-limite caducam e a acção jamais terá lugar; por outro, enquanto dura o</p><p>processo através da circulação dos gestos burocráticos, tem-se a sensação de</p><p>movimento, de progresso no trajecto que levará enfim à solução final. Este</p><p>movimento, composto de pequenas acções preparatórias, induz a crenças na acção -</p><p>quando, de facto, esta só chegará (se algum dia chegar), no fim do circuito.</p><p>(Toda uma tragédia nacional, subterrânea, muda, pontua historicamente este</p><p>fenómeno: quantos morreram porque</p><p>tiveram de esperar anos ou meses nas listas de espera dos hospitais para serem</p><p>operados? Quantos viram as suas vidas arruinadas pelas demoras da justiça, da</p><p>administração, dos serviços do Estado em múltiplos domínios? Há uma injustiça</p><p>imanente do poder passado e presente que nenhum sentido da História poderá jamais</p><p>resgatar.)</p><p>Seria necessário analisar os diferentes tipos de burocracia, nos diversos sectores da</p><p>vida do Estado, para se ter uma ideia exacta da sua função na nossa sociedade. No</p><p>entanto, é desde logo claro que quando existe recusa de enfrentamento e condutas</p><p>generalizadas de evitamentos de conflitos, a burocracia surge como a via que</p><p>permite ao mesmo tempo exprimir indirectamente a violência conflitual, e impedi-la</p><p>de se exercer literalmente ou fisicamente. (Por isso, em Portugal, se dá tanta</p><p>importância e valor a «dar a cara», é um sinal de coragem. Paradoxalmente, o «não</p><p>dar a cara» pode não significar cobardia mas prudência, ou mais prosaicamente,</p><p>estar em conformidade com o comportamento normal.)</p><p>Neste sentido, a burocracia representa uma espécie de sintoma social da recusa do</p><p>conflito e da acção. O que concorda perfeitamente com o que dissemos sobre o</p><p>efeito entrópico do medo. Que «actividade» pode ser mais desgastante, mais</p><p>exasperante pelo sentimento de impotência que faz nascer, do que submeter-se</p><p>permanentemente aos passes, às mediações, às esperas infindáveis da burocracia?</p><p>Kafka disse tudo sobre a burocracia nas sociedades disciplinares. com uma</p><p>evidência luminosa, mostrou que nem era preciso dar um conteúdo à lei, para pôr</p><p>um sujeito ou um povo a obedecer. Para tanto basta a burocracia com a violência</p><p>anónima dos seus regulamentos, das suas falsas e contínuas inscrições, das suas</p><p>sequências obrigatórias e</p><p>89</p><p>absurdas. Segue-se uma devastadora subjectivação dessubjectivada: a do cidadão</p><p>Joseph K., nu, esvaziado de tanto agir sem resultado, de tanto esperar, de tanto</p><p>querer saber de que é acusado, ou melhor, de querer saber quem ele enquanto</p><p>culpado em nome de uma lei que se revela, afinal, vazia.</p><p>A burocracia, o juridismo pertencem curiosamente àquele mesmo fundo que</p><p>engendra a deambulação barroca do «ando por aí». O desejo de flutuar, de não entrar</p><p>na vida real; e o frenesim de tudo regimentar - o mínimo gesto, o mínimo sopro de</p><p>existência - submetendo-os a uma regra. O juridismo paranóico de certos chefes e</p><p>subchefes anseia por abolir toda a margem de tolerância na interpretação das leis:</p><p>«só assim se mudará o país», classificado imediatamente de «república das bananas»</p><p>onde tudo é permitido, onde tudo se consegue «à balda». Daí a necessidade</p><p>imperativa e maníaca de notar, de registar o menor desvio, a mínima falta, como se a</p><p>vida virtuosa e a cidadania perfeita resultassem do mais rigoroso cumprimento da</p><p>lei.</p><p>Entre o laxismo da não acção e a tentação do despotismo jurídico, o que escolher?</p><p>Assim formulada, a questão está mal posta. E, no entanto, muitas vezes foi com</p><p>estas duas opções apenas que os governos que se sucederam depois do</p><p>25 de Abril perspectivaram as suas políticas.</p><p>Há, primeiro, que erradicar o medo da sociedade portuguesa. Conquistar a</p><p>maioridade, dessubjectivando-se ao enfrentar o acontecimento. Fazer explodir a</p><p>imagem de si. Porque todos nós andamos «pr'aqui» como Álvaro de Campos que</p><p>dizia que «nunca conhe[ceu] quem tivesse levado porrada./ Todos os meus</p><p>conhecidos têm sido campeões em tudo».</p><p>Queixume, Ressentimento, Invejas</p><p>Não é só o medo, a burocracia, o apego a privilégios e hábitos antigos, que entravam</p><p>o movimento e a dinâmica da sociedade portuguesa. Outros factores, às vezes</p><p>imperceptíveis mas não menos eficazes, retiram energia e forças aos indivíduos e</p><p>aos grupos sociais.</p><p>Nunca, ou muito raramente, os relatórios e inquéritos se referem a esses factores</p><p>microscópicos. No entanto, um sector de empresa, de um banco, de uma</p><p>administração, de um escritório, de um hospital, de uma escola, de um ministério ou</p><p>de outra macroinstituição qualquer não escapam à acção corrosiva de certas</p><p>«relações interpessoais».</p><p>com efeito, aqueles factores intervêm a esse nível. E contudo, como se sabe, a</p><p>causalidade microscópica pode ter efeitos catastróficos (ou de sucesso) a uma escala</p><p>mil vezes superior. A meteorologia existe também nos pequenos grupos: tal como o</p><p>voo da borboleta, um espirro pode causar danos irreparáveis no funcionamento de</p><p>um escritório administrativo.</p><p>E como dos espirros não rezará nunca nenhum relatório oficial - servindo, quando</p><p>muito, de matéria para romance</p><p>- infinitas injustiças são cometidas todos os dias no mundo</p><p>91</p><p>à conta de espirros e golpes baixos inconfessáveis, que ficarão para sempre impunes</p><p>no cômputo do Juízo Final...</p><p>Um dos exemplos cuja acção difusa e insinuante pode comprometer o trabalho de</p><p>um grupo ou mesmo a marcha geral de zonas inteiras do trabalho social é a inveja.</p><p>Não</p><p>sendo característica especialmente portuguesa, mas encontrando-se em todo o</p><p>tipo de sociedade, tem em Portugal um terreno de eleição. Por várias razões: porque</p><p>o nosso país continua a ser, em muitos domínios, uma sociedade fechada; porque,</p><p>enquanto tal, o elemento pessoal e humano ainda pesa mais do que a estrutura</p><p>impessoal, sendo assim, os efeitos da inveja só indirectamente, através das pessoas,</p><p>atingem a instituição e, portanto, raramente se descobre a relação entre a causa e a</p><p>consequência; porque uma sociedade em que tudo se faz para encobrir os conflitos,</p><p>não combatendo frontalmente o adversário, convém particularmente bem ao trabalho</p><p>da inveja; porque um dos laços mais fortes da sociabilidade política (que substitui,</p><p>em parte, o laço de cidadania, muito fraco) é o queixume - cuja relação com a inveja</p><p>é das mais estreitas; enfim, uma última razão parece decisiva para dar às invejas um</p><p>lugar privilegiado na sociedade portuguesa actual: o facto de esta sair de um regime</p><p>de desvalorização, humilhação e mutilação das forças de vida do indivíduo. Na</p><p>escala do «pequeno homem», impedidas de se desenvolver e expandir, essas forças</p><p>voltaram-se contra si próprias. De um modo muito específico: não directamente</p><p>contra o sujeito (o que poderia suscitar reflexos suicidários), mas contra o «outro»</p><p>(com um «o» pequeno), já que o «Outro» (O Estado Novo, Salazar) era, por</p><p>definição, intocável e quase sagrado.</p><p>Quem era o «outro»? Uma instância indefinida que designava todos os outros</p><p>indivíduos da colectividade em</p><p>92</p><p>geral e nenhum em particular; mas que podia subitamente encarnar-se em tal ou tal</p><p>pessoa concreta. O «outro», afinal, eram todos, era o país.</p><p>Assim cresceu, de maneira desmesurada, um sentimento complexo, misto de ódio,</p><p>ressentimento, desprezo, asco, indignação resignada contra «o país». Sentimento tão</p><p>espalhado que quase se pôde considerar, durante um tempo, como um traço da</p><p>identidade lusitana.</p><p>O ressentimento e o ódio alimentavam o queixume, num discurso recorrente até à</p><p>exaustão: «este país é uma merda», «está entregue aos bichos», etc. E, de cada vez, o</p><p>sujeito da enunciação excluía-se do conjunto nomeado, como se lhe não pertencesse.</p><p>Era uma maneira (um gesto linguístico mágico) de se separar, de se diferenciar de</p><p>todo aquele mal detestado em que se encontrava mergulhado. Por outro lado,</p><p>nomeava-se assim o inominável: o mal, a doença metastásica que atacara o país.</p><p>É neste contexto de forças que se deve situar a inveja. Forças poderosas de</p><p>ressentimento resultantes do esmagamento das forças de vida e da sua transformação</p><p>em forças de morte. com uma semi-reviravolta: não se voltaram inteiramente contra</p><p>si mesmo, encolheram, comprimiram-se, adaptaram-se à escala da humilhação - e</p><p>puseram-se a circular enclausuradas, sob as formas várias do ressentimento, da</p><p>abjecção, da inveja.</p><p>Formou-se deste modo uma sociedade paradoxal, em que um dos aspectos</p><p>importantes dos laços de sociabilidade consistia em recusar esse mesmo aspecto da</p><p>relação política. Em guerra espiritual e verbal contra o país, os indivíduos juntavam-</p><p>se como cidadãos para conspurcar e amaldiçoar o país. E assim mantinham a</p><p>comunidade nacional cada vez mais coesa. Tubo de escape perverso que dava a</p><p>93</p><p>volta para se conectar de novo com o motor, alimentando-o com os seus gases</p><p>venenosos. (Complementar, inverso e simétrico deste, um outro fenómeno se</p><p>desenvolveu ao mesmo tempo, nas camadas cultas da população: a crença na</p><p>genialidade pessoal, com as mais diversas expressões megalómanas. O número de</p><p>artistas, escritores, pintores, estudantes, intelectuais que se julgavam génios durante</p><p>o salazarismo era incontável. Fenómeno de compensação imaginária, habitual em</p><p>todas as ditaduras, ao que parece: nos países de Leste, recentemente libertados, os</p><p>génios imaginários pululam, como ainda hoje em Portugal.)</p><p>Situar a inveja neste contexto significa considerá-la dentro de um meio em que todas</p><p>essas forças (de ressaibiamento, de queixume, de ódio) se contaminaram umas às</p><p>outras. É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É</p><p>no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que</p><p>pretende ser maior. Na «democracia afectiva» do salazarismo, o nivelamento fazia-</p><p>se sempre por baixo: o sentimentalismo definia o ser humano reduzido, pequeno,</p><p>infantilizado. Compreende-se assim que o 25 de Abril tenha aberto uma panela de</p><p>pressão de invejas e ressentimentos subitamente prontos a cultivar-se e aplicar-se</p><p>sem entraves. O salto brusco do estatuto social, sem passar pelas etapas intermédias</p><p>habituais, que as revoluções ou mudanças profundas de regime político permitem, ia</p><p>lançar toda uma série de gente na corrida aos postos superiores, aos «tachos», aos</p><p>privilégios de toda a ordem; e, atrás dela, como flechas certeiras, seguiam milhares</p><p>de invejas.</p><p>Como vimos, agimos quase sempre indirectamente. Sendo a inveja, já por si, um</p><p>meio indirecto de influenciar, os seus</p><p>94</p><p>mecanismos são, no nosso país, duplamente dissimulados, confundindo-se</p><p>facilmente com um comportamento normalmente valorizado e aceite. Dificilmente</p><p>se atribuirá, por exemplo, a demissão de tal ministro que estava a produzir obra, à</p><p>inveja do primeiro-ministro que não suportava que lhe fizessem sombra - porque o</p><p>ministro era mais mediático, mais brilhante, mais popular, etc. Considerar-se-ão</p><p>outras razões mais elevadas - razões de Estado ou de Partido - e não se aludirá</p><p>sequer às mesquinhas motivações da inveja.</p><p>Mais precisamente, a generalidade da acção da inveja em Portugal é tão vasta que,</p><p>tal como o medo, constitui um sistema. Não se trata, pois, de uma relação a dois</p><p>(que pode também ocorrer e ser decisiva), mas de uma relação colectiva implicando,</p><p>de cada vez, um número variável de indivíduos ou de grupos. Os efeitos do sistema</p><p>das invejas não é visível: ora paralisante, ora desacelerador de uma dinâmica, ora</p><p>descarrilador, provocando acidentes em catadupa, adiamentos sucessivos, etc.</p><p>Como é que a inveja pode ganhar uma força tão grande que chega a entravar o</p><p>trabalho de um grupo?</p><p>Note-se, antes de mais, que a inveja implica uma relação de forças. Joga-se, na</p><p>inveja, uma luta pelo poder de que sairá um dominante e um dominado. Por isso a</p><p>inveja entra na categoria das «relações de influência».</p><p>com efeito, não basta considerar o que o sujeito vive quando se sente invejoso. A</p><p>inveja, enquanto sentimento, tende imediatamente a agir sobre o invejado. Não é por</p><p>acaso que «as invejas» pertencem ao vocabulário da bruxaria. Como sistema de</p><p>práticas e representações que visam dar inteligibilidade a certos fenómenos de</p><p>influência, a feitiçaria percebeu e interpretou relações subtilíssimas de que a acção</p><p>da inveja faz parte (em particular o «mau-olhado»).</p><p>95</p><p>É possível descodificar de modo racional este tipo de influência, alargando o campo</p><p>da racionalidade com conceitos novos adequados aos mecanismos de captura,</p><p>domínio e subjugação que a inveja supõe. «Pequenas percepções», «osmose»,</p><p>«devir-outro», «formas de forças» constituem alguns desses conceitos.</p><p>Sem entrar na etnografia das invejas e dos seus efeitos, limitemo-nos a tentar</p><p>elucidar o facto de uma inveja súbita poder ter consequências temíveis.</p><p>Uma condição prévia deve existir para que a inveja seja eficaz: que a futura vítima</p><p>se encontre em estado de receptividade inconsciente, quer dizer, de vulnerabilidade</p><p>particular (o que a terminologia da feitiçaria portuguesa designa por «ter o corpo</p><p>aberto»). Como se define esse estado de vulnerabilidade? Pela indeterminação da</p><p>vontade e dos desejos do sujeito, pela hesitação mínima quanto às opções afectivas a</p><p>tomar. Como se diz comummente, o indivíduo «não sabe o que quer», ou «não tem</p><p>uma personalidade firme». Ou ainda: o seu poder sobre si é frágil, pouco definido; o</p><p>sozinho proferindo a frase, a Vida se reequilibra e ganha o sentido do bom</p><p>senso, a consistência e a existência reais que lhe são dadas pela conivência imposta ao</p><p>telespectador. Ele dirige-se directamente a nós implicando-nos nessa Vida de que ele é um</p><p>elemento, e o exemplo mais irrecusável, com o seu sorriso competente e sedutor, as</p><p>palavras que nos entram pela cabeça dentro para nos fazer suportar o mundo... Ele, o</p><p>apresentador, agora despojado de imagens, penetra subitamente no mundo real que é o</p><p>nosso, nas nossas casas diante da televisão, e conecta-o com subtileza com o mundo das</p><p>imagens, para dar forma a uma nova entidade: «a Vida», em que estamos todos.</p><p>A este nível também (nível do ritual da comunicação das notícias) constrói-se um nevoeiro</p><p>que nos envolve e não nos deixa distinguir com clareza o real do «irreal» (chamemos assim,</p><p>provisoriamente, ao que nos fica do estatuto de realidade das imagens do telejornal, depois</p><p>do tratamento a que foram submetidas e que acabámos de descrever). E, mais uma vez, o</p><p>nevoeiro é invisível, pois tudo parece nítido, claro, com contornos bem definidos. No</p><p>entanto, como vimos, basta perguntar pela função daquela frase do apresentador para</p><p>verificarmos que ela segrega múltiplas camadas de confusão que se não vêem, mas que lhe</p><p>condicionam radicalmente o sentido. Como um inconsciente que se alojasse no seio das</p><p>representações mais conscientes. Como uma sombra branca.</p><p>Uma consequência maior da criação do nevoeiro (ou do «irreal» imperceptível) é o</p><p>afastamento do real apresentado</p><p>- mesmo em directo - do presente do telespectador; que será contaminado em seguida por</p><p>esse regime de irrealidade.</p><p>Onde se situa o Iraque, Israel, a China da televisão? Quando eles são notícia, vai</p><p>imediatamente para lá um repórter que nos fala em directo. Estão pois ao nosso lado, aqui</p><p>mesmo, em tempo real. Uma tal proximidade é puramente factual: é uma componente da</p><p>imagem, não do seu valor, da sua importância ou do seu alcance para a existência do</p><p>telespectador. Essas, por mais «directos» que venham da China ou do Zimbabwe, situam-se</p><p>do lado de cá da imagem, na vizinhança real dos corpos portugueses. Mais: se é verdade</p><p>que o sentido final das imagens depende de todo aquele dispositivo discursivo e ritualístico</p><p>que culmina na frase última do apresentador, então é logo no princípio que elas entram num</p><p>circuito próprio de espaço e de tempo que elimina completamente o presente real e o</p><p>directo. Ou melhor, o directo não se opõe ao «irreal» que provém da distância e do passado,</p><p>pelo contrário, ele fornece, por contraste, o álibi necessário para que as imagens sejam</p><p>percepcionadas como pertencentes ao mundo da «vida».</p><p>E qual o tempo e o espaço desse mundo, e dessas imagens? São imagens de um perto que</p><p>está longe, e de um próximo afastado no tempo. O directo oferece-nos operto-longe da</p><p>realidade das imagens: aquele Zimbabwe das imagens instantâneas, imediatas, situa-</p><p>se em África... mas o presente em directo daqueles africanos a correr não coexiste,</p><p>não coincide com o meu presente aqui, sentado diante da televisão. Porquê? Porque</p><p>nada da minha vida se liga ao Zimbabwe.</p><p>No fundo, os africanos (ou os brancos fazendeiros) que se arranjem.</p><p>A lonjura que impregna a percepção próxima é, por natureza, conservadora,</p><p>paralisante, «territorializante». Cria barreiras, limita o espaço ao local, ao regional,</p><p>afasta os homens que se situam além-fronteiras para uma esfera indefinida de sub-</p><p>humanidade inconsistente. Os chineses? Mas quem são, afinal? São como nós, sim,</p><p>mas... enfim, vi-os na televisão... Tien-An-Amen... Pois.</p><p>Se a percepção dos Chineses não fosse enevoada e longínqua, mas próxima, ao</p><p>ponto de mexer com a minha vida, então esta deixaria de ser, também, para mim,</p><p>estática e um pouco ausente como ela é.</p><p>Mas eu próprio pouco sei dessa ausência. Não me reconheço nela. Porque o perto-</p><p>longe das imagens da China ou da Palestina entram na mesma atmosfera nevoenta</p><p>do meu presente. Paradoxo: por um lado, a televisão fabrica-me representações de</p><p>um mundo longínquo; por outro, esse é o mundo adequado ao meu mundo. É o que</p><p>me convém: se as imagens do mundo não me dizem respeito, ou me dizem só</p><p>longinquamente respeito, então está tudo bem assim, porque a minha imagem</p><p>também só enevoada me diz respeito. Eu nem me apercebo do «longe», do</p><p>«afastamento», da «ausência de mim a mim». Não há paradoxo, porque não há</p><p>consciência dele. Não há sobressalto de pensamento. Tudo se mistura, talvez. Mas</p><p>não «é a vida»?</p><p>Lembremo-nos que esta expressão vem de longe, e de uma outra zona discursiva:</p><p>costumava terminar os comentários e análises de António Guterres, o primeiro-</p><p>ministro socialista. com uma leve carga de resignação, ela pretendia exprimir uma</p><p>velha sabedoria cristã: aceitemos os males do mundo, os dissabores, tudo o que vai</p><p>contra a nossa vontade, porque isso resulta de uma lógica e de um poder que nos</p><p>ultrapassam. E já que a lógica do tempo histórico é imbatível, aproveitemos então</p><p>para, na nossa pequena esfera, tirarmos pequenos benefícios individuais. O</p><p>sentimento de responsabilidade por uma comunidade, por um país, parece ter</p><p>desaparecido.</p><p>Em política esse tipo de transferência de regras morais de conduta para a esfera</p><p>governativa pode ser extremamente perigoso. A resignação leva à impotência, a</p><p>passividade à inércia e ao imobilismo: o governo de Guterres caiu porque não</p><p>governou, ponto final. O de Durão Barroso não terminou, por razões de</p><p>conveniência pessoal do primeiro-ministro. O governo de Santana Lopes vive só de</p><p>pequenos (ou grandes) gozos que a governação propicia.</p><p>O país da não-inscrição</p><p>Em Portugal nada acontece, «não há drama, tudo é intriga e trama», escreveu</p><p>alguém num grqffiti ao longo da parede de uma escadaria de Santa Catarina que</p><p>desce para o elevador da Bica. Nada acontece, quer dizer, nada se inscreve na</p><p>história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico. Talvez por</p><p>isso os estudos mais sólidos e com maior tradição em Portugal sejam os que se</p><p>referem ao passado histórico, numa vontade desesperada de inscrever, de registar</p><p>para dar consistência ao que tende incessantemente a desvanecer-se (e que, de</p><p>direito, se inscreveu já, de toda a maneira - mas onde?). Curiosamente, aquele</p><p>graffiti tentava inscrever a impossibilidade de inscrever...</p><p>Discutiremos mais adiante a legitimidade de falar dos «portugueses», como uma</p><p>entidade una e indiferenciada o que põe imensos problemas. Vamos supô-los em</p><p>parte resolvidos. Notemos apenas, por ora, que todos os portugueses falam</p><p>constantemente dos «portugueses» que «são assim» ou «assado». Mesmo como</p><p>ficção, ou ilusão da opinião, essa entidade existe e merece que se pense nela.</p><p>A não-inscrição portuguesa difere das outras de outros países pela sua generalidade</p><p>e pelos mecanismos com que procede. Por exemplo, depois da Segunda Guerra</p><p>Mundial, os Alemães negaram-se a inscrever, na sua existência como na sua</p><p>história, o in Reich e o nazismo, reduzidos, durante décadas, nos manuais de</p><p>História dos liceus, a um «episódio» referido em dez ou vinte linhas. Esse «branco»</p><p>ou lacuna invisível, ou não-inscrição, está (ainda) a ter efeitos imprevisíveis na</p><p>sociedade alemã, não sendo sem dúvida alheio à subida do neonazismo.</p><p>O 25 de Abril recusou-se, de um modo completamente diferente, a inscrever no real</p><p>os 48 anos de autoritarismo salazarista. Não houve julgamentos de Pides nem de</p><p>responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, um imenso perdão recobriu com um</p><p>véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a</p><p>exaltação afirmativa da «Revolução» pudesse varrer, de uma penada, esse passado</p><p>negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações,</p><p>os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou.</p><p>Mas não se constrói</p><p>seu poder de afirmação não se manifesta; a sua vontade de poder é débil, etc.</p><p>Resumindo, é alguém facilmente influenciável.</p><p>Ora, essa constitui a condição geral dos portugueses. Num tal terreno, é</p><p>compreensível que a inveja prolifere: a fragilidade dos corpos, a debilidade dos</p><p>espíritos apelam naturalmente para a acção das invejas.</p><p>Digamos que um sujeito assim formado (melhor: «sempre por formar») compõe um</p><p>sistema instável, ou metastável (cuja instabilidade produz movimento incessante</p><p>definindo uma estabilidade na instabilidade permanente): a mais pequena impressão,</p><p>o mais ínfimo estímulo provocam grandes mutações na organização geral do</p><p>sistema. Um</p><p>áL</p><p>96</p><p>olhar de inveja, uma entoação de voz imperceptível, uma palavra anódina, uma</p><p>pequena percepção qualquer que emane da inveja atravessa as finas defesas da</p><p>vítima e vem imprimir-se no inconsciente do invejado. Às vezes basta que alguém</p><p>manifeste em público satisfação, contentamento de si, uma ponta de orgulho (logo</p><p>qualificada de arrogância) por qualquer coisa que tenha feito, para se tornar um alvo</p><p>imediato de invejas. Mais: como o sabem bem os etnólogos que estudaram as</p><p>invejas, estas podem desencadear-se independentemente da vontade e da consciência</p><p>do invejoso. Eu posso «lançar» invejas sem que eu próprio dê por isso.</p><p>Assim começa o processo de captura. Inveja-se uma pessoa porque ela ostenta algo</p><p>(um dom, um bem, riqueza, beleza, coragem, inteligência, etc.) que falta ao sujeito e</p><p>que este quereria possuir. «Lança-se» a inveja, e a acção da força que o olhar ou a</p><p>palavra transporta imprime-se no espírito da vítima. Capta-o, submete-o. O invejado</p><p>passou do estado livre ao de aprisionado: está doravante «sob influência».</p><p>Interessa-nos mostrar dois aspectos do sistema das invejas:</p><p>1. Que a inveja pode adquirir paradoxalmente uma transcendência, ultrapassando a</p><p>relação dual, e passando a circular em grupo, como uma realidade independente dos</p><p>elementos do grupo.</p><p>2. Que o sistema de não-inscrição convém particularmente bem ao desenvolvimento</p><p>do sistema das invejas.</p><p>Que existem grupos de inveja que funcionam com invejas, no regime da inveja</p><p>(captura, nivelamento, entropia), na obsessão da inveja - decorre quase</p><p>automaticamente das condições sociais propícias à eclosão e à proliferação das</p><p>invejas.</p><p>97</p><p>Primeira condição, o fechamento do grupo. Voltado para si próprio, sem «fora», o</p><p>seu ar estagna e a sua atmosfera homogeneíza os comportamentos latentes, prontos</p><p>para o ressentimento e a agressividade. A diversidade, o imprevisto e o acaso</p><p>desaparecem. Enquanto nada da hostilidade subterrânea transparece senão</p><p>indirectamente, instala-se em cada indivíduo um desassossego que o torna cada vez</p><p>mais vulnerável.</p><p>A atmosfera é, nestes casos, essencial à circulação da inveja. As condições</p><p>meteorológicas manifestam então uma sensibilidade extrema e invisível ao mínimo</p><p>apelo à definição de territórios de subjectivação. Num escritório administrativo, por</p><p>exemplo, o mapa do que é «meu» e me é permitido e interdito, do «meu tempo» e</p><p>dos meus objectos, distribui rapidamente os subespaços para todos. Nada se mostra à</p><p>superfície das relações, mas cada um tem o seu mapa territorial em que as</p><p>prerrogativas de uns e de outros estão delineadas ao milímetro. À mínima ameaça de</p><p>invasão de um terreno alheio, precipitam-se os mecanismos de subjectivação da</p><p>inveja.</p><p>Isto pode acontecer em grupos pequenos, fechados, isolados ou que se fecham e se</p><p>isolam no meio de sociedades abertas (os dois casos ocorrem actualmente no nosso</p><p>país); pode acontecer entre duas ou três pessoas num grupo aberto: basta que, por</p><p>constrangimento súbito, vindo do exterior ou do interior, se estabeleça entre elas</p><p>uma relação osmotizante, formando um grupo mínimo fechado; numa palavra, pode</p><p>acontecer sempre que um laço preferencial se ate entre duas forças que drenem com</p><p>elas um mesmo desejo por um objecto. Nasce então a rivalidade que exacerba o</p><p>fechamento do campo.</p><p>A constituição do grupo de inveja não resulta unicamente da generalização a todos</p><p>os elementos do grupo de uma</p><p>98</p><p>relação entre dois indivíduos (sucedendo isso, amiúde, por contágio, em atmosferas</p><p>fechadas e deletérias). Mais finamente, a própria possibilidade da extrapolação da</p><p>inveja ao grupo inteiro está já contida na relação a dois. Porque a inveja opera sub</p><p>rosa, ao abrigo dos olhares e das consciências, ela encerra em si, virtualmente, e</p><p>paradoxalmente, uma espécie de autonomia prestes a formar-se em campo «aberto»</p><p>(se bem que fechado e clandestino tem a liberdade da clandestinidade e da</p><p>transgressão). Ao projectar-se sobre o outro, a inveja produz sempre uma espécie de</p><p>efeito de ricochete, como se o invejoso ficasse também minimamente prisioneiro da</p><p>inveja que lançou. Esta volta-se, pois, contra o seu agente (ao ponto de vir</p><p>assombrá-lo nos sonhos), adquirindo um começo de autonomia que a atmosfera</p><p>contagiante acaba por perfazer, dando-lhe um aspecto transcendente. O grupo ganha</p><p>uma atmosfera específica (com as características próprias de densidade, viscosidade,</p><p>velocidade de partículas, vectores de fluxos) que permite denominá-lo grupo de</p><p>invejas. Existindo na atmosfera, agora a inveja subsiste por si, evolui por si, ataca</p><p>por si. Como um vírus.</p><p>Por conseguinte, passou a ter uma existência social. Um dos seus efeitos possíveis</p><p>imediatos é a paralisação de toda a dinâmica do novo. O que surge como diferente</p><p>aparece como uma ameaça à igualdade que a inveja protege. Igualdade niveladora</p><p>por baixo, como vimos, porque impede a expressão da singularidade: toda e</p><p>qualquer manifestação de originalidade é considerada superior, e rejeitada. O rumor,</p><p>a calúnia, as estratégias múltiplas de exclusão que se desenvolvem no quadro do</p><p>funcionamento do grupo acabam por vencer e eliminar o elemento novo que</p><p>irrompia.</p><p>Um exemplo impressionante porque geral: a ausência de intensidade na admiração,</p><p>em Portugal ou, talvez mesmo, a</p><p>99</p><p>falta de verdadeira admiração na relação com uma obra, um autor, um</p><p>acontecimento. Se alguém exprime uma admiração desmedida, ou «excessiva», o</p><p>seu entusiasmo é logo considerado suspeito. Como se aquela expressão elevasse o</p><p>sujeito admirativo a um nível superior intolerável. Ora, precisamente, a admiração</p><p>dá força, induz intensidades: por osmose, o admirador participa das virtudes do</p><p>admirado.</p><p>Por isso a admiração é quase sempre de fachada. Os portugueses não sabem admirar,</p><p>porque não sabem perder a cabeça de admiração. Esta, bem codificada numa</p><p>linguagem adaptada, não admite ir além de um limiar consensual. Porém,</p><p>paradoxalmente, a codificação da linguagem admirativa não admite limites na</p><p>adjectivação: «fabuloso», «uma das melhores obras de ficção do século»,</p><p>«prodigioso de invenção», etc. O elogio excessivo cumpre a estranha função de</p><p>desrealizar a obra que pretende caracterizar, colocando-a em píncaros tão altos que</p><p>se torna uma pura figura de retórica - o que realmente é. Como se os portugueses</p><p>temessem ser levados pela força real da admiração</p><p>- e nessa viagem se perdessem, quer dizer, se revelassem sem forças para tanto.</p><p>2. Numa sociedade regida pela não-inscrição, a inveja parece visar precisamente o</p><p>contrário, a efectuação, a acção no real. No entanto, a inscrição da inveja não passa</p><p>de um simulacro de inscrição.</p><p>Em primeiro lugar, não esqueçamos que tudo aconteceu na sombra, por entre os</p><p>grandes comportamentos e acontecimentos da vida social. É fora do espaço das</p><p>instituições e do poder que a inveja quer exercer um outro tipo de domínio.</p><p>Em segundo lugar, a inveja não inscreve, marca. E que marca quer ela imprimir no</p><p>sujeito invejado? Precisamente</p><p>100</p><p>te, a marca do contrário da inscrição no real. O que a inveja (ou o «mau-olhado», na</p><p>expressão do discurso da feitiçaria) pretende é fazer vir à tona o efeito da</p><p>sua acção</p><p>clandestina: mostrar a todos a desgraça, o infortúnio que atingiu a vítima, obrigar a</p><p>que esta apareça marcada pela má sorte e, de certo modo, excluída do curso do</p><p>tempo social normal.</p><p>Neste sentido, a marca surge mesmo como o avesso da inscrição. Enquanto esta cria</p><p>e abre o real, aquela destrói e tende a liquidá-lo. É, no fundo, o desejo de impedir</p><p>que o outro (o adversário, o invejado) se inscreva, produza, sobressaia que guia o</p><p>invejoso. A marca visa a captura e a apropriação.</p><p>Assim, a inveja entra perfeitamente na lógica da não-inscrição (aliás, vimos já como</p><p>a paralisação de um grupo de invejas significa a absorção do poder próprio do grupo</p><p>de inscrever e de se inscrever no real).</p><p>Uma outra força de afecto que contribui para a inércia da vida social é o queixume.</p><p>Já tratámos longamente dos seus efeitos noutro sítio. Basta-nos agora assinalar o seu</p><p>desaparecimento progressivo durante o regime de Cavaco Silva e a época de fartura</p><p>que o acompanhou.</p><p>Anteriormente, os dois regimes habituais do queixume (contra «o país», e contra «a</p><p>vida» que «só trazia desgraças» ao indivíduo e às famílias) convergiam, quase</p><p>coincidiam. Nomeava-se desta forma um mal específico do país, doença profunda da</p><p>nação; e queixava-se do rol de desgraças que tombava sobre as pessoas. Num ponto</p><p>obscuro, metafísico, as duas séries encontravam-se.</p><p>Tudo mudou, com o cavaquismo. Enquanto o tema do «povo que não presta», «não</p><p>trabalha», da «falta de competência» inscrita no código genético dos portugueses</p><p>101</p><p>continuou - e continua - a sobreviver, se bem que de modo menos constante e</p><p>agressivo, o queixume privado quase desapareceu. Para ocupar o seu lugar</p><p>desenvolveu-se, neste princípio do século xxi, o protesto, a indignação, a</p><p>contestação.</p><p>O que constitui sem dúvida um born sinal. Sinal de que o povo tomou mais</p><p>consciência dos seus direitos, mais consciência de que o Estado é ele, e de que os</p><p>governos retiram a sua legitimidade da sua vontade. Sinal talvez de que o português,</p><p>individual e colectivamente, ganhou vergonha de se queixar, quer dizer, de passar</p><p>sempre para os outros ou para qualquer instância metafísica («o destino») a</p><p>responsabilidade dos seus actos. (Aqui, um estudo linguístico daria resultados</p><p>interessantes. Por exemplo, durante muitos anos da década de 80, empregava-se</p><p>constantemente o verbo «assumir». Assumia-se tudo e nada se fazia. Hoje fala-se</p><p>menos em assumir, o vocábulo quase se sumiu da fala popular e da escrita</p><p>jornalística. Resta saber se esse desaparecimento corresponde a uma tomada efectiva</p><p>das responsabilidades...)</p><p>Que força ética resta àqueles que não param de se queixar, achando-se vítimas da</p><p>sociedade e dos outros, da infância e da má sorte, e fazem disso o sentido das suas</p><p>vidas? Habitados pelo ressentimento, permanentemente ressabiados, vivem</p><p>efectivamente no ciclo mortífero do ressentimento -» inveja -» vingança indirecta.</p><p>Quer dizer, julgando lutar para reconquistar o pequeníssimo e ridículo poder a quem</p><p>julgam que o roubou, são apanhados por um movimento obsessivo que os torna</p><p>efectivamente impotentes.</p><p>Mais uma vez: estas descrições de afectos, das suas causas e dos seus efeitos</p><p>pretendem não se reduzir a meros exercícios fenomenológicos. Mas ambicionam</p><p>mostrar como os</p><p>102</p><p>afectos, enquanto forças individuais, interpessoais e colectivas, constituem sistemas</p><p>poderosos em que se joga, às vezes decisivamente, a dinâmica e o trabalho de um</p><p>grupo.</p><p>O vazio e o pleno</p><p>Se nós somos «os chineses do Ocidente», nem um pouco nos assemelhamos aos</p><p>japoneses. É porque não conhecemos o vazio nem por ele nos sentimos atraídos.</p><p>Há talvez uma barreira que contribui para isso, a fascinação-repulsa que sentimos</p><p>pela ausência. A ausência não é o vazio, contraria-o mesmo, em certo sentido. A</p><p>ausência diz-se de uma presença, enquanto o vazio não se reporta a um cheio. O</p><p>vazio é primeiro, está aquém da ausência de tudo. Quando toda a presença</p><p>desaparece e deixa de haver lugar a preencher por uma coisa, então surge o vazio</p><p>primordial, de onde sairão as forças para, precisamente, criar, agir, pensar. Do vazio</p><p>nascem os pensamentos únicos, nunca anteriormente pensados, como dele nasce a</p><p>obra (eventualmente, de arte) absolutamente original. Para que ocorram, é preciso</p><p>saber produzir o vazio.</p><p>Os portugueses são particularmente sensíveis à ausência, o que os faz</p><p>constantemente ansiar pelo pleno. O pleno manifesta-se a todos os níveis da vida</p><p>individual e colectiva. Pleno de palavras, pleno de pensamentos, pleno de agitação,</p><p>de movimentos, pleno de sentimentos em mil cadeias ininterruptas que se cruzam</p><p>sem cessar. Se a imagem do</p><p>104</p><p>português fosse a de um indivíduo em movimento contínuo, não teríamos um povo</p><p>excepcionalmente activo, afirmativo? Ora, não é essa a figura que ressalta das</p><p>descrições e análises precedentes.</p><p>Não existe, no entanto, contradição entre a ideia de um povo que age pouco, ou</p><p>insuficientemente, e a de um povo agitado porque constantemente impulsionado</p><p>pelo horror do vazio. Por um lado, como vimos, o vazio não significa lacuna; por</p><p>outro, quando surge a ausência da presença e a impossibilidade de a preencher,</p><p>recorre-se, para a compensar, à própria ausência de si a si.</p><p>A ausência de si a si supõe uma certa modalidade da consciência com que se habita</p><p>o mundo. Já nos referimos, acima, ao que chamámos «nevoeiro» ou «sombra</p><p>branca»: uma consciência das coisas nítida, clara, mas de âmbito restrito e</p><p>inconsciente. Como se o campo da consciência tivesse sido em larga medida</p><p>esburacado (por buracos negros) e absorvido pelo inconsciente, mas permanecesse</p><p>com o sentimento de completude e autonomia. Consequentemente, o nevoeiro não</p><p>constitui apenas um estado de consciência, mas sobretudo um dispositivo de defesa</p><p>contra a ausência e, mais longinquamente, contra o vazio.</p><p>Quando o português é vítima de uma injustiça, numa relação hierárquica por</p><p>exemplo, e que não pode protestar nem «desabafar» com colegas e amigos; quando</p><p>enfrenta uma situação de impasse afectivo (por exemplo, de duplo impasse: sofrer</p><p>violência doméstica e nada dizer para «salvar a família»; ou queixar-se e «destruí-</p><p>la»); quando é reduzido ao silêncio pela imensa culpabilidade que lhe caiu em cima</p><p>em caso de falhanço profissional, amoroso, na qualidade de mãe ou de pai, como</p><p>ministro ou como amante (e a nossa sociedade é um terreno que fervilha de</p><p>105</p><p>culpabilidade), a reacção imediata é entrar no nevoeiro. Não equivale exactamente a</p><p>enfiar a cabeça na areia como a avestruz, quer dizer, a negar, com um gesto brusco,</p><p>a realidade inteira, mas aproxima-se disso.</p><p>com efeito, o mecanismo é outro. Nega-se e não se nega a visão real das coisas. O</p><p>nevoeiro deixa a percepção aparentemente intacta (o que constitui todo o seu lado</p><p>paradoxal), e ao mesmo tempo transforma-a profundamente. As formas que</p><p>continuam a ser vistas (outras desaparecem do campo do interesse vital da</p><p>percepção) perdem forças, ganhando uma neutralidade e distância que permitem ao</p><p>indivíduo suportar uma solidão não solitária. Entra então num torpor da consciência,</p><p>num estado de entorpecimento de que se não dá conta - e que, mais uma vez,</p><p>acompanha a visão nítida do mundo.</p><p>O que mudou foi a sua força de vida. Melhor: as variações no estado de</p><p>entorpecimento da consciência operam-se sobre um fundo geral de estuporização</p><p>colectiva permanente ou quase. É preciso dizer que o povo português vive nesse</p><p>estado há longo tempo, sem dúvida muito antes do salazarismo. O português pode</p><p>mergulhar mais ou menos no nevoeiro, mas este é o seu meio ambiente.</p><p>O entorpecimento da consciência tem consequências imediatas no pensamento que,</p><p>por seu turno, entorpece sem remorsos. Por isso se diz que se pensa pouco em</p><p>Portugal. Há como que uma ligeira estupidez reinante, um vapor de burgessismo que</p><p>se nos cola à pele.</p><p>Já que o entorpecimento do pensamento se forma ao mesmo tempo que o</p><p>burgessismo, este torna-se característico daquele. O burgessismo é uma variante</p><p>típica lusitana da grosseria. Digamos que, tal como todos estes traços que vamos</p><p>desfiando, a grosseria não encerra a essência da</p><p>106</p><p>lusitanidade, nem pretende ser genética, mas varia em intensidade e pregnância</p><p>segundo as épocas.</p><p>Hoje, com o alastramento planetário do kitsch como género universal do gosto, era</p><p>inevitável que a grosseria se acentuasse no nosso país arcaico, tão próximo do pós-</p><p>modernismo.</p><p>O que é a grosseria? Resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um</p><p>fundo visceral sem forma. Cavaco Silva, comendo um bolo a falar aos microfones.</p><p>A um dito fino, alguém responde com uma obscenidade: longe de produzir um efeito</p><p>rabelaisiano (em que o fundo se eleva, tal qual, a formas sublimes, ou a uma paródia</p><p>do sublime), a grosseria destrói a finura e o requinte da ironia, esmagando-a numa</p><p>papa viscosa e repugnante.</p><p>Como é que isto acontece? Curiosamente, o entorpecimento, além de retirar</p><p>agilidade ao pensamento (e capacidade de captar o subtil), estabelece uma conexão</p><p>imediata com o interior visceral, excrecional, excremencial, e a consciência. Quando</p><p>este interior sobe à superfície (do gesto, da linguagem), não consegue adquirir forma</p><p>nem expressão elaborada. Aliás, a sua «comunicação» é uma saída, uma emissão,</p><p>um jacto, como um espasmo corporal.</p><p>Tudo isto compõe um homem arrogante. O pior, na grosseria, não é a ruína da</p><p>forma, mas a arrogância em julgar-se fornia: violência característica do burgesso; o</p><p>qual, por isso, não chega a destruir completamente a forma, erigindo os seus</p><p>borborigmos em linguagem única e livre.</p><p>(Uma história breve - que me asseguraram ser verídica</p><p>- ilustra bem a violência da arrogância. Nos anos 40, Raoul Duffy veio a Portugal.</p><p>Um dia, ao atravessar o Tejo num passeio de barco, gostou da paisagem, abriu a</p><p>pasta e começou a pintar. Passado um tempo, um homem que</p><p>107</p><p>observava o seu trabalho exclamou: «Isso é uma merda! Não é assim o nosso Tejo!»</p><p>E agarrou nos papéis de Duffy, amarfanhou-os e atirou-os à água.)</p><p>O entorpecimento é um modo particular de escapar à ausência de si a si, e de si ao</p><p>mundo. Representa a defesa última contra essa ausência, já que o entorpecido entra</p><p>numa espécie de plenitude letárgica onde não há lugar para o vazio.</p><p>O fenómeno é geral, mais profundo do que parece. Por exemplo, a temporalidade</p><p>contínua do entorpecimento subjaz à descontinuidade da agitação à superfície. Mas</p><p>esta também é atacada de pasmo e estupor, na infinidade de pequenos pathos de</p><p>prazer que o português retira da vida. Somos um povo sempre em busca de</p><p>pequenos prazeres: um povo de pequenos gozadores em cujo panteão de valores o</p><p>gozo físico, sensual, sensorial ocupa um lugar proeminente. Precisamos de</p><p>preencher a nossa existência do máximo de gozo (melhor, de gozos), para que ela</p><p>ganhe sentido tangível. Não se vendo que, dessa maneira, é o próprio processo de</p><p>construir sentido que se vai minando.</p><p>com efeito, o que são esses pequenos gozos que fazem de nós pequenos gozadores?</p><p>Apenas pathos pontuais que nascem e se esgotam em si mesmos, em curta duração.</p><p>Não chegam a constituir acontecimentos, porque não se desligam do estado dos</p><p>corpos que se desfazem momentaneamente no prazer. Aliás as experiências-limite</p><p>de prazer (ou de dor), se existem, não têm expressão cultural que lhes dê sentido. Ou</p><p>que permita que, a partir delas, se forje sentido.</p><p>Tudo isto entra no mesmo plano de não-inscrição que atravessa a existência dos</p><p>portugueses. Compõe-se assim a estranha imagem de um povo com um fundo de</p><p>barbárie envolvido por inúmeras camadas de cultura (desde o paganismo</p><p>108</p><p>grego e latino aos celtas e árabes) que não conseguem transformar completamente</p><p>esse fundo em civilização.</p><p>Qualquer coisa de não formado, de tosco, de não acabado pertence ainda à cultura</p><p>portuguesa de hoje. Qualquer coisa que, no entanto, perdeu a força diante da</p><p>extraordinária produção cultural popular, que foi absorvendo o fundo bárbaro sem</p><p>nunca o esgotar, sem nunca o transferir para formas civilizacionais.</p><p>Manifesta-se isso, entre outros sintomas, na extraordinária pregnância das</p><p>representações e práticas mágico-religiosas em Portugal. Não é só Vilar de Perdizes,</p><p>o país inteiro, as grandes cidades como Porto e Lisboa, que cultivam essa religião do</p><p>povo. com elas combate-se e preserva-se o fundo bárbaro que raramente irrompe em</p><p>massa, antes permanece latente ou escondido, mas não menos violento.</p><p>(A brutalidade e a incrível extensão da violência doméstica; a criminalidade</p><p>passional; o trabalho infantil - contradizem a afirmação de uma violência latente.</p><p>Não é latente, é manifesta e exercida quotidiana e clandestinamente.)</p><p>Entorpecimento, gozo, violência do grosseiro. E, por cima, à superfície, a</p><p>proliferação progressiva de formas de cultura (nomeadamente popular), com que se</p><p>procura preencher a ausência (e proteger-se contra o vazio). Nos interiores das casas,</p><p>as pequenas coisas cobrem paredes, mesas, janelas, o mais pequeno espaço numa</p><p>prateleira de um vão de escada, e os pensamentos saltitam estabelecendo relações</p><p>extrínsecas ou insignificantes, ocupando constantemente a consciência, quando não</p><p>a atafulha o entorpecimento. No interior como no exterior reina o pânico do vazio.</p><p>O medo do vazio impede o nosso lado bárbaro de se ligar ao cosmos (com</p><p>excepções geniais: Fernando Pessoa,</p><p>109</p><p>Herberto Hélder). Donde, a existência de um terreno propício para o</p><p>desenvolvimento universal de um discurso irrecusável que dá a norma ideal dos</p><p>valores da cultura portuguesa: o discurso que coloca o homem no centro do mundo,</p><p>o discurso do humanismo. Cristão (apesar das suas raízes históricas laicas),</p><p>marxista, socialista, ateu, o humanismo é proteiforme na sua unidade consensual,</p><p>marca as fronteiras dentro das quais as ideias são boas, verdadeiras, e os homens</p><p>dignos de pertencer à comunidade humana, e fora das quais começa a barbárie, a</p><p>injustiça, a opressão.</p><p>É desnecessário descrever a universalidade do discurso humanista em Portugal. Não</p><p>é só politicamente correcto, está mesmo para além da política e mesmo da ética; não</p><p>é só o que articula uma à outra, mas o que legitima essa articulação. Constitui, pois,</p><p>uma espécie de discurso-fundamento que diz como pensar o homem no mundo,</p><p>porque pressupõe um saber (o mais profundo saber) sobre o ser e a essência do</p><p>homem. Se um qualquer discurso político pretende ser aceite por todos - com uns</p><p>laivos de progressismo - arranjará uma maneira de afirmar o humanismo como sua</p><p>doutrina fundamental. Se os dilemas da bioética se revelarem demasiado difíceis de</p><p>resolver, recorre-se ao humanismo. Se o urbanismo das cidades-dormitório ou a</p><p>arquitectura dos centros comerciais desumaniza, lá está o humanismo para que os</p><p>especialistas e os tecnocratas não esqueçam o homem. É o humanismo que nos</p><p>move na missão de socorrer, ajudar, salvar, lutar contra todos os flagelos que</p><p>assolam a humanidade. É o humanismo que dá força e vida ao combate pelos</p><p>Direitos do Homem.</p><p>É falso dizer que o fim das grandes narrativas - e o fim da utopia comunista - deixou</p><p>a esquerda portuguesa (como</p><p>ÈSto.</p><p>110</p><p>as europeias) desorientada, perdida, sem ideias. Nós temos o humanismo, que é a</p><p>nossa narrativa maior. E quem ousaria opor-se à prevalência do discurso humanista,</p><p>sob pena de cair na extrema e impensável barbárie de ser contra o homem! Não foi</p><p>isso mesmo que levou Heidegger ao nazismo...? Etc.</p><p>Mas que homem? Que tipo de homem?</p><p>Interrogações que abrem dúvidas no unanimismo à volta do humanismo. Uma</p><p>atenção mais aguda descobre um curioso fenómeno: quando a função do discurso</p><p>humanista se exerce para resolver problemas e fechar discussões</p><p>em que se estava a</p><p>esquecer o homem, ninguém pergunta mais nada, mais nenhuma questão se levanta,</p><p>como se o apelo ao homem acabasse com todas as dificuldades. Quer dizer, como se</p><p>o conhecimento que se tem do homem reduzisse a zero a ignorância que fez nascer o</p><p>problema. Ora, é do homem que nós não conhecemos quase nada. É, no fundo da</p><p>nossa ignorância, quanto ao ser humano, que geralmente nasce o problema. Que</p><p>sabemos nós do seu psiquismo, do seu corpo, das relações que se atam entre o corpo</p><p>e a psique; que sabemos nós dos fenómenos sociais, da causalidade do crime, da</p><p>guerra, do mal? (Lembremo-nos do tom de desespero da carta de Einstein a Freud</p><p>sobre o mal-estar da civilização...)</p><p>Em resumo, o apelo à tomada de consciência do valor central do homem, em vez de</p><p>fechar os problemas com falsas soluções, deve abrir mil outros debates: que homem</p><p>queremos, quando (com as novas tecnologias, com a engenharia genética) se</p><p>deparam múltiplos futuros alternativos? E estes são ainda puras simulações</p><p>grosseiras... O que é bom e mau para o homem? E se o descentramento do homem</p><p>no universo representasse um bem? Não foi Lévi-</p><p>111</p><p>-Strauss que afirmou que uma das desgraças maiores - do ponto de vista de uma</p><p>ecologia do espírito - que as sociedades não primitivas trouxeram ao homem foi o de</p><p>o situar no centro do universo? E de, assim, desvalorizar a natureza e os outros seres</p><p>vivos, arrancando-lhes o homem para o colocar num lugar de eleição? Uma boa</p><p>crítica descentralizadora do discurso humanista não traria afinal benefícios ao</p><p>homem?</p><p>Em Portugal, o discurso humanista ajuda a não pensar. Panaceia universal para todos</p><p>os males, vive do círculo que acabámos de descrever. O apelo à acção para o bem do</p><p>homem e da humanidade supõe aquilo mesmo que queremos saber: o que é o</p><p>homem? Que homem podemos forjar no futuro? O que é «bom» para o homem e</p><p>para a mulher? Como o conhecimento da natureza humana, e do que para ela é bom</p><p>e mau, nos escapa, mas está pressuposto nas ideias humanistas, o discurso que as</p><p>exprime é vazio. E o apelo ao «Homem», excepto em casos-limite evidentes (fome,</p><p>devastações, massacres, etc. - e nestes casos não é sequer necessário recorrer ao</p><p>«Homem»), revela-se ineficaz e retórico. Quando já não lhes convém, quando deixa</p><p>de lhes servir de álibi, forças poderosas varrem de uma penada o discurso</p><p>humanista.</p><p>Trauma, terror e medo</p><p>Vivemos numa sociedade normalizada, consensual, que esconde, sob uma fachada</p><p>(cada vez menos) brilhante, uma insegurança profunda. A «auto-estima» (expressão</p><p>horrível, que diz o que diz), a que, parece, tanto se aspira, recobre a falta real de uma</p><p>sólida autoconfiança. Continuamos a acreditar pouco em nós, apesar de, ainda há</p><p>pouco, antes da recessão económica, ostentarmos inúmeras razões para nos</p><p>sentirmos orgulhosos, contentes, valorizados.</p><p>E porque não o somos? Porque continua vivo, no fundo de nós, o pequeno mas</p><p>insistente, permanente e obsessivo temor e tremor que nos impede de ser um povo</p><p>alegre? Será que não vencemos ainda o antigo mal-estar em que vivia o povo</p><p>português? Que mal-estar?</p><p>A «normalização» a que vem sendo submetida a sociedade portuguesa não incide</p><p>apenas - nem principalmente no processo de regularização da vida política</p><p>democrática, após os sobressaltos que se seguiram ao 25 de Abril. A normalização</p><p>de que aqui se trata é um movimento muito mais geral e profundo. Caracteriza-se</p><p>negativamente, como vimos, pela homogeneização dos comportamentos, pela</p><p>supressão de possibilidades de vida (criação de novos possíveis</p><p>113</p><p>de subjectivação), e positivamente, pela aceitação universal deste estado de coisas.</p><p>Um traço essencial da normalização é a ausência de alternativas, a afirmação de uma</p><p>única norma em todos os domínios (desde a governação à vida privada). Ausência</p><p>de alternativas que por sua vez são acompanhadas pelo desaparecimento da norma.</p><p>A sociedade portuguesa está normalizada por uma regra invisível. Onde está ela?</p><p>Ela, que prescreve uma só política? Uma só moral? Uma só maneira de agir, de</p><p>sentir, reagir, pensar? Mas como definir a norma, se o pensamento e a acção, a</p><p>política e a moralidade vigentes se vivem com a naturalidade e a crença das</p><p>evidências indiscutíveis? Que outra política económica seria possível para o nosso</p><p>país? Como não aderir à moeda única? Como recusar a Constituição europeia?</p><p>Aliás, as evidências estendem-se aos problemas de toda a humanidade</p><p>- quem não condena a clonagem de seres humanos (a não ser um ou dois cientistas</p><p>excêntricos)? Quem não adere aos princípios da tolerância e da solidariedade entre</p><p>os povos? Quem não é pela liberdade? Ou pela justiça social?</p><p>A democracia tornou-se uma questão de bom senso. É a via única. Impõe-se</p><p>universalmente e impõe-se em Portugal, misturando-se com o mais fino tecido das</p><p>mentalidades que querem o consenso e fogem dos conflitos, valorizando acima de</p><p>tudo a paz da mediania, o equilíbrio do justo meio</p><p>- numa palavra, o bom senso.</p><p>Por isso, em Portugal, talvez mais do que noutros países, também normalizados, se</p><p>dê menos pela falta de norma. Vivemos num espaço (mental, social, de vida)</p><p>circunscrito por limites, mas onde não se distingue o que nos limita. Mais uma vez,</p><p>é naturalmente, espontaneamente, que pensamos de uma só maneira, caminhamos</p><p>por uma só via, como se fosse evidente que só estas existem. Porque as outras</p><p>114</p><p>«possíveis» pertencem ao passado e verificaram-se impossíveis; e as que se</p><p>apresentam como diferentes e reais levam directamente à exclusão social. As</p><p>alternativas actuais não são impossíveis, muito simplesmente não existem.</p><p>Paradoxalmente, estas características da normalização portuguesa assemelham-se a</p><p>certos efeitos descritos por Hannah Arendt nos regimes totalitários. Nestes, que ela</p><p>distingue dos regimes autoritários «tradicionais» (ditadura, despotismo, tirania), a</p><p>via única visa a transformação do género humano, e a evidência da legitimidade da</p><p>política totalitária funda-se no facto de esta realizar uma lei da Natureza ou da</p><p>História. Contrariamente à tirania, no Estado totalitário existem leis, mas ele «pode</p><p>prescindir do consensus júris porque promete libertar a efectuação da lei de toda a</p><p>acção e de toda a vontade humanas, e promete a justiça sobre a terra porque pretende</p><p>fazer do próprio género humano a incarnação da lei»1.</p><p>Estamos longe, é claro, do Estado de direito dos regimes democráticos. Aqui</p><p>cumprem-se as leis, ali «o seu [do regime totalitário] desafio às leis positivas é,</p><p>assegura ele, uma forma mais elevada de legitimidade que, inspirando-se nas</p><p>próprias fontes [a Natureza e a História], pode desembaraçar-se de uma legalidade</p><p>mesquinha»2.</p><p>Se parece descabido, ou mesmo monstruoso, comparar, no plano político, o regime</p><p>totalitário com o regime democrático em que vivemos, já não o é tanto quando se</p><p>traça um paralelo entre os princípios «ideológicos» (na terminologia de Hannah</p><p>Arendt) do totalitarismo e os efeitos socioeconómicos do capitalismo vigente e da</p><p>globalização.</p><p>H. Arendt, Lê Système totalitaire, Seuil, Points, p. 207.</p><p>2 Idem, p. 205.</p><p>115</p><p>Há certamente um «totalitarismo» próprio das «sociedades de controlo» (Foucault,</p><p>Deleuze) actuais. A aplicação das novas tecnologias a todo o tipo de serviços, por</p><p>exemplo, implica o imperativo de cumprir os regulamentos, sob pena de exclusão. A</p><p>globalização acentua e generaliza este tipo de padrões únicos de comportamento - na</p><p>necessidade de responder às exigências da produtividade do trabalho, de seguir as</p><p>vias impostas pela funcionalidade dos serviços de saúde, de educação, de lazeres.</p><p>Um exemplo emblemático já utilizado em Portugal, nos serviços prisionais, a</p><p>pulseira magnética de localização a distância que o prisioneiro levará consigo</p><p>sempre que se ausente da prisão. (Em breve seremos todos prisioneiros em</p><p>liberdade, controlados a</p><p>distância.) O cidadão só pode submeter-se e aderir, em</p><p>nome da lógica funcional do sistema de regulamentação da vida social, pública e</p><p>privada. Caso contrário, surge, automaticamente também, a ameaça da exclusão.</p><p>A exclusão, neste tipo de regime que tende a controlar o conjunto dos</p><p>comportamentos do indivíduo, não significa apenas tal ou tal efeito determinado</p><p>(como o desemprego), mas atinge todos os aspectos da vida individual. O</p><p>regulamento estipula que se corte a água, quando não se paga a conta nas datas</p><p>fixadas. Mas quem já não pode pagar a água está na iminência de não poder pagar a</p><p>electricidade, a renda, a escola das crianças, os transportes, a alimentação. Exige-se</p><p>uma integração tão completa do indivíduo, que o mínimo desvio é sinal de</p><p>catástrofe, quer dizer, de perigo de exclusão total.</p><p>A exclusão total não é só um fantasma das grandes cidades altamente desenvolvidas,</p><p>tornou-se uma realidade de todos os dias e muito mais vasta. A norma que marca a</p><p>fronteira entre a integração e a exclusão não diz: «Ou tudo</p><p>116</p><p>ou nada» (porque tudo, só muito poucos o têm), mas indica a separação que faz de um</p><p>homem integrado um ser social normal e de um excluído um pária, alguém que é visto</p><p>como vivendo em condições sub-humanas - e que, por isso mesmo, vai perdendo qualquer</p><p>coisa da «essência do género humano». Ou seja, a exclusão não é apenas «social», ou «do</p><p>mercado do trabalho», ou «racial», ou «cultural», ou «psicológica», mas atinge o cerne da</p><p>humanidade do homem. (Que ausência de humanidade não é por nós sentida no arrumador</p><p>toxicodependente, sujo, esfarrapado, que se arrasta de carro para carro?)</p><p>Assim, é de maneira natural e democrática que se cria um padrão único de humanidade.</p><p>Não estamos muito longe do totalitarismo descrito por Hannah Arendt - um totalitarismo</p><p>não político, mas não menos destruidor, a longo prazo.</p><p>Em Portugal vive-se numa situação particular, de transição das sociedades</p><p>«disciplinares» para as de controlo, cada vez mais apanhada pela rede geral da</p><p>globalização. Como todos os estados de transição, este mostra-se extremamente</p><p>complexo, heterogéneo, com múltiplos traços arcaicos que coexistem e lutam ainda</p><p>contra as novas regras que definirão a sociedade futura. Limitamo-nos aqui a evocar</p><p>o problema da invisibilidade da norma numa tal situação.</p><p>Sucintamente:</p><p>1. As normas da sociedade tradicional «disciplinar» que correspondiam a hierarquias</p><p>de poder político e social tendem a ser substituídas por normas únicas, de que se não</p><p>conhecem as fontes de autoridade nem as fronteiras que elas marcam.</p><p>2. Enquanto na sociedade «disciplinar» e autoritária (salazarismo) a hierarquia</p><p>constituía uma rede de burocracia e</p><p>117</p><p>de pequenos despotismos - a distância do ditador ao povo transferia-se imaginariamente</p><p>para cada um dos patamares do poder na sua relação ao cidadão -, na nova sociedade de</p><p>transição a autoridade da hierarquia tende a desaparecer em benefício de uma «norma</p><p>única», quer ela emane do sistema tecnológico de controlo, quer dos progressos da</p><p>globalização.</p><p>3. Nas sociedades autoritárias, o medo é o «princípio de acção» (H. Arendt, citando</p><p>Montesquieu). No caso português, o medo era difuso, sem objecto preciso (a não ser para a</p><p>«Oposição»), ubíquo, impregnando o espaço, invadindo os corpos e os espíritos sem que os</p><p>indivíduos se apercebessem disso. (A autoridade e o objecto do medo encarnavam-se, nas</p><p>ocasiões necessárias, no ditador e nas instituições repressivas.)</p><p>O estado de transição actual da sociedade portuguesa, com a passagem rápida de um regime</p><p>autoritário para um regime em que a disciplina emana do sistema orgânico da</p><p>funcionalidade tecnológica, cria uma situação em que o novo «princípio de acção» surge</p><p>como um prolongamento natural do medo. É também invisível e ubíquo, inelutável e único.</p><p>E é, como veremos, uma certa forma transformada de terror.</p><p>Que não se esqueçam, porém, as diferenças (paradoxalmente, aqui, elas contribuem para as</p><p>convergências). O suporte político do medo foi a ditadura: o suporte do «princípio de</p><p>acção» actual, em democracia, não sendo (ainda e sobretudo) o desejo e a liberdade,</p><p>subentende-os. É porque eles existem e se inscrevem na própria prática e princípios</p><p>democráticos que a sua supressão automática e efectiva (em benefício do seu contrário, a</p><p>norma única), se torna mais enigmática e, de certo modo, inconscientemente aterradora.</p><p>118</p><p>Convém distinguir o medo do terror. Segundo Freud, o medo caracteriza-se pelo</p><p>conhecimento do seu objecto, contrariamente à angústia. Mas se, com Ferenczi,</p><p>atribuirmos ao terror também a ignorância do seu objecto, não seria exagerado</p><p>considerar o «medo» segregado pelo regime salazarista como uma forma atenuada</p><p>de terror.</p><p>O trauma sidera, produz um «branco psíquico», «uma dor sem conteúdo de</p><p>representação [que] é inatingível pela consciência»3. «Um choque inesperado, não</p><p>preparado e esmagador, age por assim dizer como um anestésico. Mas como é que</p><p>isso se produz? Aparentemente, pela paragem de toda a espécie de actividade</p><p>psíquica, em conjunto com a instauração de um estado de passividade desprovido de</p><p>toda a resistência. A paralisia total da motilidade implica também a paragem da</p><p>percepção, ao mesmo tempo que a paragem do pensamento. A consequência desta</p><p>desconexão da percepção é que a personalidade fica sem nenhuma protecção. Contra</p><p>uma impressão que não é percebida, não há defesa possível. Esta paralisia total tem</p><p>por consequência: que o curso da paralisia sensorial será e ficará duravelmente</p><p>interrompido; 2.°) que durante esta, aceitar-se-á sem resistência toda a impressão</p><p>mecânica e psíquica; 3.°) que nenhum traço mnésico subsistirá destas impressões,</p><p>mesmo no inconsciente, de tal forma que as origens da comoção são inacessíveis à</p><p>memória»4.</p><p>Retenhamos desta descrição do «trauma psíquico» o seguinte: este suprime a</p><p>percepção das suas causas, não se inscrevendo mesmo no inconsciente; e deixa o</p><p>indivíduo</p><p>3 Sandor Ferenczi, Journal clinique, Janv.-Oct. 1932, Payot, p.78.</p><p>4 S. Ferenczi, «Réflexions sur lê traumatisme», in Psychananalyse IV, Oeuvres Completes, Payot, p. 143.</p><p>119</p><p>totalmente indefeso, à mercê de qualquer pressão ou influência.</p><p>Extrapolemos para o plano dos regimes políticos: os sistemas totalitários provocam</p><p>um efeito semelhante de sideração, vulnerabilidade e «branco psíquico». Como nota</p><p>Hannah Arendt, a tirania cria «um deserto de medo e de suspeita, sem leis nem</p><p>barreiras». «Este deserto não é de modo nenhum um espaço vital para a liberdade,</p><p>mas deixa ainda algum lugar aos movimentos e acções que o medo e a suspeita</p><p>inspiram aos seus habitantes»5. O «terror total» liquida todo esse espaço: «Em</p><p>comparação com o que se passa no interior do seu círculo de ferro [do terror</p><p>totalitário], mesmo o deserto da tirania, na medida em que é ainda uma espécie de</p><p>espaço, aparece como uma garantia de liberdade. O sistema totalitário [...] destrói a</p><p>única condição prévia essencial de toda a liberdade: muito simplesmente, a</p><p>faculdade de se mover que não pode existir sem espaço»6.</p><p>Sideração, supressão da motilidade e da percepção, o terror não deixa espaço para a</p><p>mínima liberdade, provocando um efeito de não-inscrição, de vazio psíquico que se</p><p>presta a um preenchimento de qualquer tipo.</p><p>De uma maneira geral, o terror nasce de uma operação a que chamarei «duplo-</p><p>esmagamento». Se, depois de uma primeira injustiça violenta que esmaga o sujeito,</p><p>se procura «limpar», e ao mesmo tempo «inscrever», essa primeira violência com</p><p>uma segunda injustiça (criando assim uma memória do irrepresentado, do</p><p>imemorável) provoca-se um efeito de terror. O adulto que, não querendo confessar à</p><p>criança que a puniu injustamente, a pune novamente para</p><p>H. Arendt, op. cit., p. 212.</p><p>6 Idem.</p><p>120</p><p>confirmar a justeza do seu castigo - está a praticar</p><p>o duplo-esmagamento. Assim</p><p>força a criança à obediência. Obediência sem motivo, sem justificação, obediência</p><p>pela obediência - eis o que engendra o duplo-esmagamento. Obediência ao poder</p><p>incompreensível e à sua aplicação arbitrária.</p><p>O terror «branco» segregado pela sociedade de controlo elimina o espaço entre as</p><p>pessoas não porque provoque efeitos de massificação (como na sociedade totalitária</p><p>de Hannah Arendt), mas porque o espaço se mostra agora completamente aberto,</p><p>virtualizado e portanto, de certo modo, fechado. Não há mais separações entre</p><p>público e privado, mas também não há mais espaço de encontro ocasional ou de</p><p>intervenção colectiva criadora. De facto, tudo se encontra hipercontrolado, com vias</p><p>de circulação pré-determinadas e condicionadas pela racionalidade tecno-social.</p><p>O «branco psíquico» (que noutros contextos se chamava «lavagem de cérebro») é</p><p>preenchido (mas não eliminado) pela presença de mil imagens redutoras da</p><p>liberdade, da Natureza (em vias de extinção), de um novo corpo feminino e</p><p>masculino. De um outro modo, a norma única pressupõe cada vez mais um só</p><p>padrão do «género humano».</p><p>Um dos efeitos mais subtis, poderosos e esquizofrenizantes do novo tipo de controlo</p><p>que vai tomando posse da nossa vida quotidiana é a organização do espaço. Como já</p><p>foi observado (Toni Negri, Michael Hardt, Império), é um espaço sem Fora: tudo se</p><p>passa cada vez mais em vastos recintos de centros comerciais, de auditórios, de salas</p><p>de conferências interactivas.</p><p>Mas, curiosamente, este espaço sem fora não se divide em territórios bem definidos,</p><p>bem compartimentados e</p><p>121</p><p>reguiados. É um espaço vago e fluente, onde os corpos circulam livremente, sem</p><p>trajectos visíveis pré-determinados. O carácter paradoxal (e brutal) deste tipo de</p><p>espaço que se generaliza por todo o planeta manifesta-se na desfasagem entre o</p><p>movimento dos corpos e o seu fechamento, que o acompanha. São corpos evoluindo</p><p>num espaço «liso», sem obstáculos, aparentemente sem regras, onde o aleatório e o</p><p>imprevisto parecem possíveis. Na realidade, a esse movimento exterior «livre» não</p><p>corresponde nenhuma abertura, nenhuma expansão interior dos corpos (afectivos).</p><p>Eles movem-se livremente, fechados sobre si, isolados, incapazes de estabelecerem</p><p>uma comunicação. (Tal como o prisioneiro com a sua pulseira electrónica: sob</p><p>controlo permanente, e dentro de limites rígidos, ele é livre de ir a casa, ao café, etc.)</p><p>O espaço do corpo - o território que, como uma pele, prolonga o corpo para além</p><p>dos seus contornos, o abre afectivamente e o leva a misturar-se com o espaço</p><p>exterior e os outros corpos - volta-se para dentro, paralisa-se, recolhe-se numa</p><p>carapaça que o impede de se expandir e dilatar-se. No novo espaço liso das</p><p>sociedades de controlo, os movimentos corporais desenvolvem-se sem entraves</p><p>exteriores, mas fortemente inibidos na sua espontaneidade e no seu desejo. É um</p><p>movimento motivado apenas pela norma única e pelos padrões que todos seguem, de</p><p>facto, é um movimento de corpos-«fortalezas vazias», segundo a expressão de</p><p>Bruno Betelheim. É o corpo afectivo que se esvaziou.</p><p>Trata-se, pois, de uma situação nova, diferente da descrita por Hannah Arendt. O</p><p>espaço de circulação está disponível (e a «liberdade» também), mas perdeu a</p><p>qualidade, a singularidade e a abertura. Já não é um espaço de possíveis, mas de</p><p>circulação de zombies. A abertura</p><p>122</p><p>exterior não só não corresponde a uma abertura interior, mas impede-a. O espaço</p><p>interior dos corpos já não tenta sequer atingir os outros, introduzindo-se no fora.</p><p>Interiormente petrificado, deixa-se levar dentro de um corpo «livre», fluente e vazio.</p><p>Porquê «petrificado»? Porque, com a desfasagem e paragem de trocas e osmoses</p><p>entre interior e exterior, produziu-se um efeito semelhante ao do trauma psíquico de</p><p>Ferenczi: movemo-nos e nada se inscreve. O «branco psíquico», próprio do terror,</p><p>tornou-se um horizonte permanente do nosso quotidiano. Nada se inscreve, nem os</p><p>massacres do Kosovo, nem o sofrimento dos angolanos nas imagens de horror que</p><p>vemos na televisão.</p><p>Porque nada se inscreve, o terror é latente, a disponibilidade para o terror alarga-se e</p><p>ocupa uma superfície cada vez mais vasta no nosso inconsciente. Se os massacres do</p><p>Kosovo quase nos deixaram indiferentes, por outro lado os espaços do nosso</p><p>quotidiano enchem-se de terrores nascentes. Síndromas do pânico, como lhes chama</p><p>a psiquiatria do stress contemporâneo: pequenos terrores no escritório, na empresa,</p><p>no jornal, na universidade, terror de não estar à altura, de ser apontado a dedo, de ser</p><p>punido, de perder o emprego, de engordar, de não engordar, de não saber (educar os</p><p>filhos, ser mulher, ser alegre e dinâmica, atraente e sexy, etc.,etc.).</p><p>A nossa pele crivou-se de minúsculos terrores eventuais. Não há um possível</p><p>quotidiano das sociedades actuais de controlo que não suponha uma forma de</p><p>microterror.</p><p>Enquanto sociedade de transição, entre um regime de medo e um regime que produz</p><p>um certo tipo de terror (da exclusão), Portugal, antes mesmo de ter conquistado e</p><p>construído a liberdade da democracia, está já a perdê-la,</p><p>123</p><p>entrando na sociedade globalizada de controlo. Antes mesmo de possuir um espaço</p><p>público começou já a edificar o espaço «liso» (democrático) e fechado do urbanismo</p><p>dos grandes centros comerciais e dos debates no ciberespaço. Assim, Portugal reúne</p><p>condições privilegiadas para o exercício do duplo-esmagamento: 1. O medo difuso</p><p>anterior está a transferir-se para os comportamentos de ansiedade diante da</p><p>possibilidade da exclusão - ansiedade difusa também, que redobra o medo</p><p>interiorizado vindo da ditadura; 2. O medo difuso, que ficou sem objecto depois do</p><p>25 de Abril, continuando no entanto activo (por inércia, e porque várias vezes</p><p>reactivado), ao combinar-se com a nova angústia da sociedade de exclusão em que</p><p>estamos a entrar fixou-se precisamente nesse novo sentimento. É agora medo da</p><p>angústia, medo do terror pressentido, da eventualidade de já não se sabe o quê (que</p><p>esconde o que desapareceu: o não existir, no não-espaço da exclusão).</p><p>O duplo-esmagamento de que hoje sofre o português decorre naturalmente deste</p><p>processo: Portugal saiu do salazarismo com medo, quer dizer, saiu com medo de</p><p>sair. A suavidade do «processo revolucionário», a complacência que se manifestou</p><p>com os dignitários e os sicários do antigo regime, a maneira como se obliterou a</p><p>guerra colonial, etc., etc., testemunham esse medo. O refluxo ou normalização que</p><p>se seguiu aos excessos «revolucionários» instalou-se em nome do bom senso</p><p>democrático. E o medo, sedimentado, invisível, permaneceu. Logo depois, veio a</p><p>entrada na Comunidade Europeia e a mundialização (cujo rosto primeiro foram os</p><p>flagelos planetários - sida, violência criminal, droga, desemprego - antes dos</p><p>benefícios que nos tornarão iguais aos outros) que trouxeram com elas um outro</p><p>género de medo.</p><p>124</p><p>O medo de sair (da sociedade autoritária do medo) fez com que nunca realmente se</p><p>saísse do medo. Como se voltou à velha tendência nacional de não conflitualidade</p><p>social e política, ela infiltrou-se naturalmente na ausência de conflito inerente à</p><p>sociedade globalizada de controlo. O salazarismo havia obtido a supressão dos</p><p>conflitos com a repressão, mas a passagem actual para a mundialização reactiva a</p><p>tendência, democraticamente, graças à existência da norma única (que é ausência de</p><p>norma e de autoridade visíveis).</p><p>O duplo-esmagamento está em curso, apaga-se o medo com o medo, todos os medos</p><p>antigos que o 25 de Abril não exorcizou desaparecem quando neles se enxerta o</p><p>medo da exclusão, tanto mais incompreensível quanto ele surge numa sociedade</p><p>livre, democrática, que se edificou contra o antigo regime autoritário. Como diz</p><p>Ferenczi, é uma sideração que apaga as representações, mesmo inconscientes. Assim</p><p>nos vamos livrando</p><p>dos restos de salazarismo que se apegavam aos corpos, assim</p><p>nos redimimos dos antigos medos da ditadura.</p><p>Ausência de excessos, mediania em tudo, limitações legitimadas pelos «costumes»,</p><p>quer dizer, pela própria coesão da sociedade civil - tudo isto que era sustentado pelo</p><p>regime de Salazar é hoje suportado pela norma única invisível do bom senso. Não há</p><p>outra via. O medo, de perder todos os benefícios materiais que a entrada na União</p><p>Europeia proporcionou, enxertou-se no sedimento de temor que já existia,</p><p>transformando-o. Nasceu um novo objecto em que se investiu, inconscientemente, o</p><p>medo do medo, o pequeno terror, a exclusão, o próprio terror de ser excluído, ou de</p><p>vir a ser objecto de conflito (que comporta a ameaça de exclusão). Ameaça que</p><p>existe disseminada no interior do</p><p>125</p><p>real, sem que se saiba quem é o responsável, sem que o real se desrealize. É pois</p><p>sempre mais conveniente continuarmos a não assumir responsabilidades, a não</p><p>afrontar opiniões contrárias, a fugir aos problemas e a não pensar mais além das</p><p>soluções que entram no quadro de todas as integrações. Sobretudo, recusar os</p><p>conflitos.</p><p>Tudo isto define o centro, o espaço nuclear da norma invisível, da moralidade</p><p>aceitável, a esfera do possível e do desejável. O espaço da «auto-estima»</p><p>(autocomplacente) para além do qual só há excesso e violência.</p><p>Esse centro ocupa toda a superfície social, desde o governo à vida privada. De tal</p><p>maneira se revela forte e evidente a norma única que, se uns populares ameaçam</p><p>cortar estradas em forma de protesto, o governo aparece logo na televisão,</p><p>indignado, como se fosse ele a vítima de uma injustiça. Se um jornalista critica o</p><p>governo, isso pode parecer tão intolerável aos governantes que estes acabam por</p><p>obter a sua demissão da televisão. A norma é a estabilidade social, a não</p><p>conflitualidade, o bom senso. Assim pensa, para nosso bem, o nosso presidente da</p><p>República, suprema voz moralizadora da vida política e cívica da nação.</p><p>A auto-estima esconde hoje, nos portugueses, um duplo medo, o de não conseguir</p><p>entrar nesse centro da normalização e o de ser dele expulso. Assim, é o próprio</p><p>centro que constitui os seus limites - por isso, estes são invisíveis.</p><p>A auto-estima festiva esconde o verdadeiro «princípio de acção»: o medo de, ele</p><p>próprio, se tornar terror, medo do medo vir à tona, de ser visto por todos e se</p><p>transformar em trauma e sideração. Porque uma coisa é certa, dentro do espaço</p><p>normalizado do autocontentamento que às vezes se aparenta não se estão a formar</p><p>novas relações, novas unidades sociais ou uma nova «comunidade», nenhuma</p><p>prática</p><p>126</p><p>real correspondente ao discurso humanista que, em Portugal, acompanha a globalização.</p><p>Pelo contrário, é à erosão das práticas comunitárias da velha sociedade portuguesa, das</p><p>solidariedades, do associativismo, da entreajuda, que assistimos, ao mesmo tempo que</p><p>assistimos à aceleração da competitividade, dos desafios ameaçadores, do desemprego e da</p><p>exclusão. E se outras formas de coesão social nascem aqui e ali, a erosão do arcaico é dez</p><p>vezes mais rápida do que a formação que tende a substituí-lo. Enquanto tudo se vai</p><p>desmoronando no interior de nós, vamos dançando no palco televisivo e no espaço</p><p>mediático dos grandes feitos (desde Lisboa-capital da cultura ao prémio Nobel e ao Euro</p><p>2004). Mas o medo ou terror (branco, invisível) do terror (negro, reconhecível) continua a</p><p>minar-nos o inconsciente, a inibir-nos, a acautelar-nos, a proteger-nos do exterior, a</p><p>impedir-nos de criar outras formas de pensar e de existir.</p><p>O «branco psíquico» é inconsciente, a sociedade portuguesa não é um espaço visível</p><p>de terror. De certo modo, o terror não se vive sequer, pois os medos traumáticos</p><p>foram varridos por um outro trauma. Mas, apesar de não se sentir o terror como uma</p><p>grande atmosfera envolvente, ele irrompe em inúmeros afloramentos locais,</p><p>desaparecendo aqui para reaparecer noutro momento e noutras circunstâncias.</p><p>E ondeante, rápido - e vai estando cada vez mais ali, quotidiano e não banal,</p><p>constante na sua irrupção imprevisível. O seu carácter aparentemente esporádico,</p><p>aparentemente excepcional, só ajuda a compreender melhor a sua natureza,</p><p>necessária ao sistema tão desejado da «auto-estima» festiva (e de exclusão) que está</p><p>actualmente a moldar a sociedade portuguesa. Medos, microterrores quotidianos,</p><p>múltiplos, como bubões de uma peste anunciada, que arrancam a pele.</p><p>O trauma português e o clima actual</p><p>Mas tratar-se-á realmente de terror, ou mesmo de microterrores, o que se passa na realidade</p><p>actual da sociedade portuguesa? A situação do país leva-nos a ser mais precisos.</p><p>Consideremos as recentes ameaças à liberdade de expressão que se verificaram dois meses</p><p>depois da nomeação de Santana Lopes como primeiro-ministro. Pressões políticas sobre um</p><p>canal de televisão privado obrigaram um comentador - Marcelo Rebelo de Sousa - a</p><p>demitir-se do seu cargo. O ministro dos Assuntos Parlamentares - Gomes da Silva - nega</p><p>descaradamente o facto, como o faz o presidente (e primeiro accionista) da empresa</p><p>proprietária do dito canal. O primeiro-ministro afirma a sua confiança no ministro,</p><p>enquanto o presidente da República, sempre preocupado com os problemas do país, não</p><p>exige do primeiro-ministro que ele demita Gomes da Silva (era o mínimo que devia ter</p><p>feito). Entretanto o governo prepara uma central de informação para, como afirma, facilitar</p><p>a comunicação entre o governo e os cidadãos, entre os diferentes órgãos governativos, etc.</p><p>Trata-se de se apropriar, de domar a comunicação social e de criar, afinal, um órgão de</p><p>propaganda mediática da política governamental. Por outro</p><p>128</p><p>lado, o governo nomeia gestores-presidentes de empresas que detêm o poder sobre</p><p>vários jornais de larga circulação, como o Diário de Notícias. Um outro ministro -</p><p>Morais Sarmento - afirma que o governo deve controlar os programas dos canais</p><p>públicos de televisão. Tudo isto, e o mais que não referi, provocou um tumulto geral</p><p>nos meios da imprensa e nos partidos da oposição, o que mostra que a democracia</p><p>está (ainda) viva em Portugal. Mas além da palavra «perigoso» que serve para</p><p>caracterizar o processo em curso de «berlusconização» (outra palavra geralmente</p><p>usada) da comunicação social, não se analisaram nem se denunciaram as ameaças</p><p>reais que esta situação representa contra a liberdade de expressão.</p><p>É necessário ligar toda esta série de acontecimentos à natureza específica do regime</p><p>de governação que Santana Lopes está a impor ao país, e articulá-la com a própria</p><p>natureza da sociedade nas suas relações com a política.</p><p>Como foi isto possível? Como se pode chegar a um ponto, de tal modo avançado, de</p><p>um processo que visa normalizar, controlar, impondo uma censura à comunicação</p><p>social, desfigurando as regras da democracia, sem que avisos prévios, medidas</p><p>preventivas, protestos públicos tenham surgido? Esta situação cai-nos em cima</p><p>abruptamente, como se viesse do céu e não de um terreno há muito preparado para</p><p>que ela acontecesse. Forma-se nas condições mais insólitas, mais incoerentes, como</p><p>se o governo de Santana Lopes, leviano, um pouco extravagante, incompetente, mas</p><p>de boa vontade, que age impunemente mas, por isso mesmo inocente (um pouco</p><p>como uma criança que faz mal sem intenção), não pudesse senão constituir o solo</p><p>mais desfavorável, mais inconcebível para que nele florescesse tal conjunto de</p><p>medidas e acções que põem em risco a democracia.</p><p>129</p><p>Por isso, muitos portugueses julgam ainda que nada disto tem importância (não foi</p><p>aproveitando-se dessa ideia que o PP de Paulo Portas afirmou que esses</p><p>acontecimentos - e nomeadamente a demissão de Marcelo Rebelo de Sousa - eram</p><p>irrelevantes para o país?)</p><p>Mais uma vez, como foi isto possível? Consideremos dois factores decisivos: a. A</p><p>ausência de espaço público, no sentido acima definido,</p><p>e a importância que os média</p><p>tomaram em Portugal, b. A verdadeira natureza do trauma que afectou o nosso país e</p><p>os seus efeitos actuais.</p><p>A ausência de espaço público fez com que os média preenchessem esse espaço</p><p>deixado vazio pelo salazarismo, espaço entre os indivíduos, entre os cidadãos e as</p><p>instituições, entre as próprias instituições e grupos da sociedade civil e do Estado. O</p><p>enorme buraco negro que os separava foi ocupado pelos media. O buraco continua a</p><p>existir na realidade de todos os dias, no anonimato da vida quotidiana dos</p><p>portugueses que não comunicam entre si. Mas existe agora um palco possível onde</p><p>pode surgir a presença valorizada, única, do ser social e mesmo privado. Aceder à</p><p>televisão é aceder à presença, ao lugar do valor social por excelência. No fundo, só</p><p>existe o que se apresenta nos média e, nomeadamente, na televisão. É o espaço</p><p>exclusivo, prepotente, despótico da presença pública. Quem lá não entra tende a</p><p>desaparecer da vida pública (e, nesse sentido, não somos nós todos uns potenciais</p><p>desaparecidos da vida pública?). Mas, quem entrar tem a sua existência pública</p><p>assegurada (mesmo que precária, durante «um quarto de hora de eternidade»).</p><p>É uma outra forma actual de exclusão. Ora acontece que, devido à inexistência do</p><p>espaço público em Portugal, os média tornaram-se uma força decisiva quase única,</p><p>quase sem rival. Mais do que noutros países, onde existem outros</p><p>130</p><p>meios de expressão, no nosso, sem aberturas públicas alternativas, os média fecharam o</p><p>círculo do seu próprio poder de modo quase perfeito. Eles constituem o espaço (quase)</p><p>exclusivo de protesto e denúncia do seu próprio poder, é impossível utilizá-los de maneira</p><p>sistemática para os denunciar. Quem detém o poder mediático detém assim todo o poder</p><p>mediático. Como dizia um dirigente de um canal televisivo, a televisão tanto pode fazer</p><p>eleger um presidente da República como pode promover um produto comercial. Daí a</p><p>tensão que pode nascer entre o poder político e o poder mediático; daí a tentação política</p><p>geral (como se viu em Itália, mas que agora se manifesta em Portugal), de controlar os</p><p>média para deter todo o poder político. Hoje, assiste-se a esta situação trivial mas aberrante:</p><p>o exercício do poder político, nas sociedades mediocráticas, passa pelo controlo dos média.</p><p>As vontades dissidentes, as linhas de fuga múltiplas que tentam escapar à rede pública</p><p>mediática são esmagadas, rompidas, as vozes que fogem à norma são caladas.</p><p>Numa sociedade em que o espaço público não existe, como lugar de expressão</p><p>individual e colectiva (como dimensão essencial da existência), a televisão veio</p><p>compensar a ausência de presença pública do indivíduo. Por um lado, através dos</p><p>seus «representantes», dos políticos e das «estrelas» que têm a sua preferência, e em</p><p>que projectam o seu desejo de aparecer. Por outro, porque aquela enorme frustração</p><p>da antiga imagem de si do português tem agora a oportunidade de se inverter,</p><p>transformando a inferioridade em valor e superioridade. A fulgurância, a aura da</p><p>presença mediática são tais, que muitos homens políticos (e não só) compreenderam</p><p>que a sua carreira deveria ser feita, mesmo dentro dos partidos, através dos meios de</p><p>comunicação social.</p><p>131</p><p>Um desses homens foi o actual primeiro-ministro, Santana Lopes. É inútil retraçar as</p><p>etapas públicas que marcaram a sua irresistível ascensão política - foram todas</p><p>marcadas por acontecimentos televisivos. Lembremos apenas um, que nos interessa</p><p>pelo seu carácter paradigmático quanto ao efeito dos média nos mecanismos de não-</p><p>inscrição, no próprio seio da vida democrática.</p><p>Este primeiro-ministro, que nunca terminou nenhum dos cargos que assumiu,</p><p>começou por se demitir de secretário de Estado do Governo de Cavaco Silva por não</p><p>estar de acordo com o silêncio do secretário-geral do seu partido (o PSD) (e não do</p><p>primeiro-ministro), (o famoso «tabu» de Cavaco), e ninguém protestou contra esta</p><p>justificação aberrante, que escondia um outro silêncio. O chefe do governo aceitou a</p><p>demissão. Caucionou-se com a autoridade, o silêncio e a aberração, o silêncio da</p><p>aberração. O ex-secretário de Estado entra então para a comunicação social. Passou</p><p>de um palco para outro. Sedimenta-se e justifica-se ainda mais a aberração, apaga-se</p><p>o silêncio. Para o público é como se não se tivesse demitido, continua no espaço de</p><p>imagem da nossa sociedade, e é por uma lógica desse espaço que dele não se exclui.</p><p>Porque conserva um capital de imagem, enquanto o tiver será vendável, qualquer</p><p>que seja o palco - político, cultural, científico, desportivo.</p><p>O que nos interessa é o mecanismo que recobriu e apagou a aberração da sua</p><p>demissão por uma outra que foi a de continuar no poder (desta vez mediático), no</p><p>espaço do não-silêncio (a comunicação social) por excelência. É uma outra forma de</p><p>duplo-esmagamento do público (dos cidadãos). Que agora aceita a demissão sem</p><p>problemas, porque a aberração deixou de existir.</p><p>132</p><p>O duplo-esmagamento está sempre a ocorrer na vida política portuguesa e o poder</p><p>mediático a contribuir poderosamente para a sua eficácia. com o aparecimento na</p><p>televisão de alguém que por uma razão ou outra deveria ter desaparecido da vida</p><p>política (por qualquer escândalo) apaga-se essa primeira razão, baralham-se as</p><p>consciências dos telespectadores-cidadãos, impõe-se a aceitação do prevaricador, do</p><p>indigno, do intolerável. Cria-se uma espécie de descaramento político que vem</p><p>precisamente do facto de, depois de recusar dar a cara, a apresentar ao público</p><p>como se nada fosse, despudoradamente.</p><p>A governação actual de Santana Lopes vive largamente desse descaramento político,</p><p>cuja aceitação (e portanto, eficácia) vem já de trás (por exemplo de Durão Barroso</p><p>que com a sua obstinação permaneceu secretário-geral do PSD apesar de sérios</p><p>reveses que teriam levado outros a demitir-se logo). Descaramento sem vergonha,</p><p>que reduz ao mínimo aquele muro de decência e de moral que tem regulado o</p><p>comportamento dos políticos, sem que haja uma regra que delimite claramente a</p><p>zona do que é permitido politicamente e a zona em que a moralidade (quer dizer, a</p><p>dignidade pessoal, a correcção, o respeito pelos concidadãos, numa palavra, a</p><p>civilização) impede certo tipo de atitudes.</p><p>A governação de Santana Lopes deu um passo decisivo para que a fronteira entre</p><p>estas zonas desapareça definitivamente. É uma governação despudorada, marcada</p><p>certamente pela suas origens, em que o descaramento não é um traço de carácter, ou</p><p>mesmo, um estilo pessoal, mas sim uma estratégia de acção política. Acontece</p><p>também que é assim o estilo do primeiro-ministro, como se tem visto nas suas</p><p>intervenções. A impunidade nasce do duplo-esmagamento</p><p>133</p><p>que constitui o descaramento. Como bem diz a palavra, trata-se de uma lavagem</p><p>(um «branqueamento») da cara que lava também os cérebros dos outros, limpando-</p><p>os das memórias inconvenientes.</p><p>O duplo-esmagamento, aqui, não produz terror, mas produz certamente uma não-</p><p>inscrição. Ao aceitarmos o descaramento com que certas medidas são tomadas,</p><p>estamos a aceitar o desaparecimento de toda a ética da vida política. E estamos a</p><p>deixar que novamente o nevoeiro nos envolva e que o terreno propício para a não</p><p>inscrição se desenvolva. Estamos a aceitar que este se estratifique no nosso</p><p>inconsciente, e assim se justifique o declínio da democracia.</p><p>Se este tipo de duplo-esmagamento não produziu microterrores (que virão muito</p><p>depois), ele prolifera agora através do duplo efeito do controlo da televisão pelo</p><p>poder e do controlo dos territórios existenciais pela televisão. Santana Lopes</p><p>compreendeu perfeitamente a importância do capital simbólico que a imagem</p><p>mediática confere. O prestígio, o carisma de origem «divina» que afecta os gestos, a</p><p>imagem, as palavras do sujeito mediático encerra uma mais-</p><p>- valia simbólica que o torna puro, imediatamente</p><p>atraente e «belo». A imagem</p><p>transforma (pelo menos tendencialmente) o antipático em simpático, o repulsivo em</p><p>aceitável. A aura mediática muda o facto em direito e valor.</p><p>com tanta magia assim ganha, o homem político mediático corre o risco de julgar</p><p>que tudo pode, que as maiores asneiras, erros, desgovernações (como tem</p><p>acontecido com Santana Lopes, enquanto presidente da Câmara de Lisboa e como</p><p>primeiro-ministro) lhe serão imediatamente perdoados ou melhor, que eles serão</p><p>afectados de uma espécie de «impunidade», de «ligeireza», de «irrelevância» que</p><p>não contarão no balanço final eleitoral - porque, afinal, não se</p><p>134</p><p>inscreverão na memória popular. A isto chama-se também populismo, demagogia</p><p>imanente (que se enraíza endemicamente no nosso país, no «nacional porreirismo»,</p><p>naquele gregarismo «da malta», a que nos referimos acima e que traduz a força</p><p>extraordinária da cultura popular portuguesa que atravessou as barreiras de classe e</p><p>de estatuto, num país «provinciano» em que nem a nobreza nem a burguesia</p><p>conseguiram produzir culturas verdadeiramente autónomas, duradouras e</p><p>consistentes).</p><p>O segundo factor que contribuiu para que o risco actual da liquidação da liberdade</p><p>de expressão pelo santanismo se tenha tornado uma realidade (e não um puro</p><p>fantasma), leva-nos de novo à génese da nossa passividade de cidadãos livres.</p><p>Porque é que deixámos chegar as coisas a este ponto? Porque é que uma maioria da</p><p>população não se indigna e protesta ao ponto de obrigar o governo de Santana Lopes</p><p>a mudar de direcção? De onde vem a nossa anestesia, a nossa complacência,</p><p>enquanto povo, perante actos que fazem perigar a democracia?</p><p>Suponhamos que as causas vêm de longe. Suponhamos que sofremos um trauma</p><p>«inaugural» (constantemente reactivado através da história e, nomeadamente,</p><p>através do salazarismo) que nos «fez assim». Esse trauma «inaugural», provocado e</p><p>reactivado, ou que reactiva de tal maneira o medo que este se tornou um trauma, foi</p><p>precisamente o trauma da não-inscrição. Já o afirmámos acima, mas convém</p><p>precisar: não se trata de um trauma que não é inscrito, mas da não-inscrição que se</p><p>torna trauma. Significa isto que não é tal ou tal acontecimento que não se inscreve,</p><p>mas a própria existência, a não-inscrição traumática impõe a não-existência real, a</p><p>não-inscrição da existência como tal.</p><p>135</p><p>O que foi o salazarismo? Um imenso sugadouro daquilo que torna a existência um</p><p>dom da vida natural (zôê) para a vida social, a maneira de viver (bios).Um buraco</p><p>negro que engoliu a existência no espaço público. Por isso o mal salazarista era</p><p>difuso mas essencial e «metafísico», atingindo a existência do português enquanto</p><p>indivíduo e enquanto povo. O mal era a impossibilidade da expressão das forças da</p><p>vida, uma extraordinária chapa de chumbo que veio tapar os canais e redes de</p><p>expressão da sociedade portuguesa.</p><p>Mas o trauma foi tão subtil que não foi sequer sentido como tal. De modo inédito, a</p><p>chapa de silêncio não desabou bruscamente sobre a vida social, foi-se só insinuando</p><p>e impregnando imperceptivelmente, de tal modo que quando o povo sentiu a</p><p>mudança não sabia já quando e como ela tinha começado. Assim se disseminou esse</p><p>mal que acabrunhava a generalidade dos portugueses. Para estes, não vinha do</p><p>regime político, vinha da «índole», do «carácter», da «essência» da portugalidade</p><p>(como o fado, num certo discurso nacionalista da «opinião»). O mal insinuou-se</p><p>subrepticiamente em nome da moral cristã e do bom senso de todos os</p><p>comportamentos (codificados no lema «Deus, Pátria e Família»). Como, então,</p><p>rebelar-se contra ele, se não se sabia de onde vinha, se ele nos pertencia enquanto</p><p>essência da vida portuguesa? Virarmo-nos contra o mal era equivalente a virarmo-</p><p>nos contra nós próprios (suicídios de intelectuais e artistas; expressões artísticas</p><p>como o «abjeccionismo» em literatura; o eterno queixume da vida, do estado das</p><p>coisas, dos outros) - ou entrar na clandestinidade da luta política (o que de certa</p><p>maneira era uma mutilação).</p><p>Salazar conseguiu transformar a existência em trauma. Como tal a existência estava</p><p>para além do limite do sofrimento tolerável - tornou-se uma não-existência, um tem-</p><p>136</p><p>pó de anulação da existência individual. Existir era participar no mal, na doença</p><p>metafísica que tinha invadido toda a vida portuguesa.</p><p>O efeito mais impressionante do mal segregado pela existência foi a transformação</p><p>insensível do terror em medo. Por isso o medo português era sem objecto. Tinha-se</p><p>medo de quê? De nada que fosse tangível. De existir, porque existir era ter medo.</p><p>Existia-se para ter medo de existir, o círculo fechava-se tão bem que o próprio terror</p><p>que sustinha o medo foi recoberto, deixando de se ver. O salazarismo não formou</p><p>um regime de terror, não era um campo de concentração, a polícia até era</p><p>relativamente «branda», etc. - este discurso dos defensores da «situação» parecia</p><p>verosímil. A vida continuava, com a aparência de uma vida normal, aparência que</p><p>foi de tal modo interiorizada que chegou a ser vivida como realidade.</p><p>Porém, a anulação total de si (do self, ou melhor, do último reduto de onde jorra a</p><p>potência de vida, o «narcisismo primário» como lhe chama a psicanálise, o conatus</p><p>de Espinosa) que o terror provoca transformou-se, no salazarismo, em medo</p><p>generalizado e sem objecto, incrustado na própria potência de existir. Medo</p><p>inconsciente de existir, viver com esse medo. Preservar o tempo de existência (zôê)</p><p>para manter a anulação da existência (bios). Assim, o programa político-existencial</p><p>do salazarismo não levava logicamente ao holocausto (como o nazismo), mas a um</p><p>círculo, em forma de impasse, na própria preservação da existência. Por isso, para</p><p>isso, ia-se vivendo.</p><p>A consequência maior foi terem-nos cortado as nossas fontes de vida, vivermos</p><p>existências separadas da nossa existência. Existência cindida, dividida em dois, uma</p><p>real, infectada pelo mal essencial que nos corroía, outra,</p><p>137</p><p>Kk1</p><p>“imaginária», onde se projectavam todos os fantasmas da frustração existencial. De</p><p>certo modo, o salazarismo foi uma espécie de sida da existência social.</p><p>Paradoxalmente, é sob este sedimento que perdura na sociedade portuguesa que o</p><p>santanismo está a florescer. O cavaquismo foi o período da reviravolta (superficial,</p><p>mas com efeitos profundos, já que a aparência constituía grande parte do nosso ser)</p><p>que fez desaparecer parcialmente o queixume, a autoflagelação em que se comprazia</p><p>o português. Pela primeira vez, ao mesmo tempo que o dinheiro, surgiu a ideia da</p><p>«auto-estima». Enfim a felicidade («gente feliz com lágrimas») era possível, os</p><p>portugueses eram um povo com imensas virtudes, imensa criatividade, imensas</p><p>potencialidades. Era um dever nacional desenvolver a auto-estima.</p><p>Foi no fim deste contexto num tempo ambíguo de recessão-retoma económica (de</p><p>fim de euforia-angústia-começo do fim da angústia), que o santanismo apareceu. E</p><p>com ele novas condições de subjectivação se formaram. Condições que se</p><p>enxertavam, na perfeição, nos velhos sedimentos de mentalidades que não se</p><p>desvaneceram ainda.</p><p>Digamos, sucintamente, que o santanismo nos propõe novamente uma cena</p><p>mediática, imaginária, essencialmente espectacular. Numa mistura de discursos,</p><p>decisões incoerentes e oportunistas em que se mistura o elogio do 25 de Abril (da</p><p>democracia, dos valores da liberdade) com a leviandade de iniciativas que parecem</p><p>caprichos ou nascidos de humores variáveis segundo os momentos, Santana Lopes</p><p>dá-nos uma imagem da governação - e do comportamento político e cívico de que</p><p>ele, enquanto primeiro-ministro nos dá o exemplo - que se adequa curiosamente aos</p><p>antigos comportamentos que herdámos do salazarismo.</p><p>138</p><p>Por exemplo, aquela não-existência do trauma inaugural entra sem dificuldades de</p><p>maior no molde pós-moderno que nos oferece Santana Lopes.</p><p>Docemente sem</p><p>escrúpulos, suavemente cínico, gozador da vida empírica imediata, amigo dos</p><p>amigos semelhantes - esta imagem do comportamento cívico do cidadão não</p><p>convém como uma luva àquela não-existência que desde sempre devora a nossa</p><p>vontade de viver de portugueses? Trata-se agora simplesmente não de não-existência</p><p>ou de existência ausente a si mesma, mas do avesso da luva, da presença factícia de</p><p>uma existência ávida de imagem, de jogo e de leveza irresponsável. Mais uma vez,</p><p>mas sob um outro regime de subjectivação, entrámos num tempo de não-inscrição.</p><p>Nada tem realmente importância, a impunidade populista vive do pronto a esquecer</p><p>e do apagamento imediato que sofre qualquer acontecimento. São tantos os</p><p>acontecimentos mediáticos que depressa caminhamos para o não-acontecimento. Os</p><p>duplos-esmagamentos que culminam agora na espectacularização mediática que</p><p>apaga tudo reduzem a existência à pura imagem da presença, arrancam o indivíduo</p><p>da vida real transportando-o para um plano virtual. O que é próprio do santanismo,</p><p>com toda a sua avidez pelo controlo dos meios de comunicação social, não é trazer a</p><p>vida para o palco mediático, mas moldar a vida à imagem, os comportamentos ao</p><p>capital de mediatização, produzir acontecimentos cuja importância se deverá medir</p><p>pelo seu grau de eficácia mediática.</p><p>Só que Santana Lopes não é realmente um pós-moderno. É também um homem que</p><p>herdou medos, hesitante, que entra em pânico quando se trata de ser realmente</p><p>primeiro. Por natureza, estaria destinado a ser sempre segundo, quando as</p><p>circunstâncias o levam a ser primeiro (a sua vontade</p><p>139</p><p>reduplica-se e pode transformá-lo numa falsa espécie de superprimeiro). As</p><p>primeiras imagens televisivas, que o apresentavam logo após a sua nomeação como</p><p>primeiro-ministro, revelavam um homem temeroso, que parecia seguir quase</p><p>servilmente o que julgava ser a vontade do Presidente da República. Depois - e o</p><p>processo está em curso</p><p>- «soltou-se» e começou a descobrir os prazeres do poder. A sua falsa «leveza», no</p><p>entanto, permite muita estratégia obscura, muito menos leve de poderes económicos</p><p>e de eminências pardas que eventualmente imporiam políticas de controlo</p><p>desastrosas. Tão desastrosas que podem levar a formas insuspeitadas de autocracia</p><p>política ou de ditadura mediática no seio da democracia.</p><p>Se não afastarmos agora o nevoeiro que ameaça novamente toldar o nosso olhar,</p><p>poderá ser demasiado tarde quando nos apercebermos que, sem dar por isso, nos</p><p>encurralaram num beco, por um período indeterminado. Não pelo regime santanista,</p><p>que pode ser breve, mas por outro qualquer que aproveite uma série de</p><p>circunstâncias (económicas, sociais, psicológicas) para operar uma derrapagem da</p><p>democracia para um sistema autocrático de tipo desconhecido.</p><p>Quis apenas mostrar quão frágil, em certos aspectos, é a nossa democracia. Duas</p><p>forças nos restam, que noutros domínios e em pequenas bolsas da vida social se</p><p>desenvolvem imperceptivelmente, e que são próprias do melhor que possui o nosso</p><p>«génio» (como se dizia antigamente). Uma é a nossa capacidade de fluir «entre»</p><p>dois estratos, entre duas forças que nos prendem, outra é o nosso sentido lúcido do</p><p>real, do pensamento claro (que, paradoxalmente, vem do empirismo imanente à</p><p>cultura popular e da desconfiança secular que o povo sempre nutriu contra os</p><p>governantes).</p><p>140</p><p>com essas forças, podemos fazer nascer as forças de vida que fervilham em nós e</p><p>dar-lhes expressão, porque a aprendizagem da democracia é também uma</p><p>aprendizagem da expressão.</p><p>Setembro de 2004</p><p>Notas finais</p><p>Tratando o pequeno escrito acima apresentado um tema difícil de classificar, impõe-</p><p>se acrescentar algumas observações:</p><p>1. O objecto do texto aproxima-se mais do que os historiadores chamam</p><p>«mentalidades» do que de qualquer outra matéria disciplinar. Mas recorre-se a</p><p>apontamentos etnográficos, a factos e anedotas triviais, a conceitos psicanalíticos e</p><p>filosóficos, a outros da ciência política, etc. Digamos que, epistemologicamente, o</p><p>campo explorado é indefinido, com uma transversalidade no trajecto de certas</p><p>noções que pode ter as suas vantagens.</p><p>2. É difícil falar de «mentalidades», que são afinal forças sedimentadas no campo</p><p>social e nos comportamentos (mas o que não se disse foi evidente: a que</p><p>profundidade estão os diversos estratos? Qual a sua resistência à mudança? etc.).</p><p>Não se procurou caracterizar o ethos português, a «portugalidade», mas quando se</p><p>pode descrever tal traço persistente no comportamento de um povo (falando-se então</p><p>na «hospitalidade», ou na «agressividade» de tal ou tal comunidade humana), é</p><p>porque as «mentalidades não foram ainda recobertas e substituídas por</p><p>comportamentos cívicos,</p><p>142</p><p>jurídicos, políticos interiorizados - o que tende a acontecer nas sociedades urbanas</p><p>altamente desenvolvidas. Então as «mentalidades», os comportamentos</p><p>sedimentados, equivalem a regras sociais e institucionais e devem ser tratados como</p><p>tais, e não como características da «psicologia dos povos». Foi nesse sentido que se</p><p>tratou cada exemplo que foi dado, cada facto-anedota descrito.</p><p>3. Porque se procurou apenas desenterrar alguns desses estratos que perduram na</p><p>sociedade portuguesa contemporânea, o título engana. O tema não é «Portugal»,</p><p>claro, mas um ou dois aspectos dessa entidade vasta, só possível de abordar, aliás,</p><p>por um número muito limitado de perspectivas.</p><p>4. Enfim, contrariamente ao que pode parecer, nenhum pressuposto catastrofista ou</p><p>optimista quanto ao futuro do nosso país subjaz ao breve escrito agora publicado. Se</p><p>não se falou «no que há de bom», em Portugal, foi apenas porque se deu relevo ao</p><p>que impede a expressão das nossas forças enquanto indivíduos e enquanto</p><p>colectividade. Seria mais interessante, sem dúvida, mas também muito mais difícil,</p><p>descobrir as linhas de fuga que em certas zonas da cultura e do pensamento já se</p><p>desenham para que tal aconteça. Procurou-se dizer o que é, sem estados de alma,</p><p>mas com a intensidade que uma relação com este país supõe.</p><p>índice</p><p>Como convém televiver 7</p><p>O país da não-inscrição 15</p><p>O espaço não público 24</p><p>Que conhecimento da democracia? 36</p><p>O pequeno infinito 48</p><p>Da economia dos afectos 60</p><p>De que é que se tem medo? 74</p><p>Queixume, Ressentimento, Invejas 90</p><p>O vazio e o pleno 103</p><p>Trauma, terror e medo 112</p><p>O trauma português e o clima actual 127</p><p>Notas finais 141</p><p>OBRAS DO AUTOR</p><p>Un'Antropologia delleforze, Einaudi, 1983</p><p>La Corse, entre Ia liberte et Ia Terreur, Éditions de Ia Difference,</p><p>l.aed. - 1984;2.aed. - 1991</p><p>Metamorphoses du corps, Éditions de Ia Difference, 1985 A Crucificada, Relógio D'Água, 1986</p><p>Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Relógio D'Água,</p><p>1987</p><p>Corpo, Espaço e Poder, Litoral Edições, 1988 Cemitério dos Desejos, Relógio D'Água, 1990 O</p><p>Espaço Interior, Presença, 1994 Os Monstros, Quetzal, 1994</p><p>Salazar: a Retórica da Invisibilidade, Relógio D'Água, 1995 A Imagem-Nua e as Pequenas</p><p>Percepções, Relógio D'Água, 1996 Metamorfoses do Corpo, Relógio D'Água, 1997 Diferença e</p><p>Negação na Poesia de Fernando Pessoa, Relógio</p><p>D'Água, 1999</p><p>Movimento Total - O Corpo e a Dança, Relógio D'Água, 2001 A Profundidade e a Superfície -</p><p>Ensaio sobre O Principezinho de</p><p>Saint-Exupéry, Relógio D'Água, 2003</p><p>NESTA COLECÇÃO</p><p>i. RUMOR CIVIL Nuno Brederode Santos</p><p>13. UM A DÉCADA António Barreto</p><p>2. O SEXO DOS ANJOS Júlio Machado Vaz</p><p>14. ESTILHAÇOS Júlio Machado Vaz</p><p>3. DOMINGOS, SÁBADOS E OUTROS DIAS Júlio Machado Vaz</p><p>4. UM NÓMADA NO OÁSIS Miguel Sousa Tavares</p><p>5. AVENIDA DE CEUTA, N.° l Carlos Amaral Dias e Fernando Alves</p><p>6. OS FRATRICIDAS Edgar Morin</p><p>7. SEM EMENDA António Barreto</p><p>8. ESTA DITOSA PÁTRIA Vasco Pulido Valente</p><p>9. A DERIVA DOS CONTINENTES Clara Pinto Correia</p><p>um «branco» (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as</p><p>forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os mesmos ou outros</p><p>estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer.</p><p>Quando o luto não vem inscrever no real a perda de um laço afectivo (de uma força),</p><p>o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso.</p><p>Num outro aspecto ainda, a não-inscrição parece mais grave por não se ter liquidado</p><p>a si própria, já que a herdámos também do salazarismo.</p><p>Se, num certo sentido, se disse até há pouco (hoje diz-se menos) que «nada mudou»</p><p>apesar das liberdades conquistadas, é porque muito se herdou e se mantém das</p><p>antigas inércias e mentalidades da época da ditadura: desde o medo, que sobrevive</p><p>com outras formas, à «irresponsabilidade» que predomina ainda nos</p><p>comportamentos dos portugueses.</p><p>com efeito, no tempo de Salazar «nada acontecia» por excelência. Atolada num mal</p><p>difuso e omnipresente, a existência individual não chegava sequer a vir à tona da</p><p>vida. E o que era uma vida, nesse tempo? Aquilo que ditava o ideal moral do</p><p>salazarismo: uma sucessão de actos obscuros, com tanto mais valor quanto se faziam</p><p>modestos, humildes, despercebidos... Onde inscrevê-los, se não havia espaço</p><p>público e tempo colectivo visíveis; onde, senão na eternidade muda das almas,</p><p>segundo a visão católica própria de Salazar?</p><p>Nisso, como em tantos outros aspectos, o Portugal de hoje prolonga o antigo regime.</p><p>A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa</p><p>imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação,</p><p>decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua</p><p>existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade - reduzindo-nos a</p><p>crianças, crianças grandes, adultos infantilizados.</p><p>O 25 de Abril abriu um processo complexo de luta intensa contra a não-inscrição,</p><p>pelo menos num plano restrito, com os governos provisórios a tomarem medidas</p><p>«definitivas», a criarem «factos (leis, instituições) irreversíveis» antes de caírem, na</p><p>ânsia desesperada de deixarem obra feita, indestrutível, com a qual contribuiriam</p><p>para a construção da nova sociedade. Simplesmente, o substrato da não-inscrição</p><p>continuava vivo, e toda essa actividade frenética e delirante para inscrever a</p><p>Revolução - escrevendo a História - não fazia mais do que alimentar a</p><p>impossibilidade de inscrever, essa sim, inscrita no mais profundo (ou à superfície</p><p>inteira) dos inconscientes dos portugueses.</p><p>Foi assim que o discurso político se tornou dominante na vida portuguesa. Num</p><p>certo momento ele transvasou para a sociedade civil, identificando todo o poder</p><p>com££ o poder político. As únicas oportunidades para inscrever o que quer que</p><p>fosse da existência individual ou colectiva deviam necessariamente passar pelo</p><p>poder político.</p><p>Foi assim também que a vida social portuguesa, agora pacificada, normalizada, viu a</p><p>não-inscrição reassumir os seus privilégios em todo o seu esplendor. Tal ministro</p><p>que se aproveita ilegalmente de uma lei para escapar ao fisco demite-se para voltar à</p><p>tona incólume, meses ou anos depois; o escândalo que mancha a acção de um</p><p>governante, longe de o afastar definitivamente da política, pode ser mesmo a ocasião</p><p>para começar uma carreira com um futuro ainda mais brilhante (um posto mais bem</p><p>remunerado ou (com prestígio internacional, etc.). Nada tem realmente importância,</p><p>nada é irremediável, nada se inscreve.</p><p>E se tudo se desenrola sem que os conflitos rebentem, sem que as consciências</p><p>gritem, é porque tudo entra na impunidade do tempo - como se o tempo trouxesse,</p><p>imediatamente, no presente, o esquecimento do que está à vista, presente.</p><p>Como é isto possível? É possível porque as consciências vivem no nevoeiro.</p><p>O que é o nevoeiro? Ele é a causa da não-inscrição ou esta existe por efeito daquele?</p><p>É impossível responder a esta questão. Existiria antes uma dupla causalidade</p><p>recíproca a partir de um trauma «inicial», ele próprio resultado da convergência e da</p><p>acumulação de muitos pequenos acontecimentos traumáticos que fugiram à</p><p>inscrição (histórica, social e individual). Qualquer coisa como um Alcácer-Quibir</p><p>que se recusa a aceitar e de onde nasceu o nevoeiro. Não o da lenda, que é futuro e</p><p>lugar de epifania, mas uma neblina presente que se apodera do interior da</p><p>consciência e a rói, sem que ela dê por isso. Um «branco psíquico», ou melhor, uma</p><p>multiplicidade de brancos psíquicos atravessam a consciência clara, de tal maneira</p><p>que, sem que ela se aperceba, formam-se as maiores obscuridades e confusões. É o</p><p>branco psíquico inconsciente esfarelando, fragmentando a consciência em mil</p><p>bocados, cada um deles, no entanto, plenamente consciente no seu campo próprio.</p><p>Explicam-se assim, por exemplo, os inúmeros regimes de consciência clara que</p><p>habitam a consciência de um português. Regimes que se entrechocam, se sobrepõem</p><p>e nunca se excluem. É certamente o que torna possível a facilidade de passagem de</p><p>um regime de consciência a outros (heteronímia), num português. Um exemplo</p><p>trivial: logo que pára diante de um semáforo que está no vermelho, o condutor</p><p>«desliga», põe-se a pensar noutra coisa, separa-se da situação concreta, sonha. Para</p><p>voltar à realidade alguns segundos depois, com o buzinar dos carros atrás. É o que</p><p>explica ao mesmo tempo a esperteza e a estupidez propriamente lusitanas, a</p><p>coexistência do chico esperto e do burgesso (muito próximos um do outro como dois</p><p>extremos que se tocam e quase se confundem) como o mostram bem as expressões</p><p>populares «carapau de corrida» ou «esperteza saloia». Esperteza que consiste em</p><p>saltar de uma ideia para outra, pertencendo a um contexto diferente ou oposto (ou a</p><p>outro regime de consciência), como se se tratasse de um único e mesmo contexto.</p><p>Numa anedota antiga que exprimia a rivalidade entre duas aldeias vizinhas da Beira</p><p>Baixa, os habitantes de uma contavam que os da outra eram tão espertos que um dia</p><p>um deles disse aos compatriotas: «Tive uma ideia para ir à Lua. Basta que um de nós</p><p>suba para os ombros do primeiro, que um terceiro suba para os ombros do segundo,</p><p>e assim de seguida até fazer a escada mais alta possível em direcção à Lua. E</p><p>quando já não houver mais gente, faz-se subir o primeiro que está no chão até ao</p><p>topo, depois o segundo que ficou com os pés no chão sobe também, e assim sempre,</p><p>sem parar, até chegar à Lua. Não faltarão nunca homens.»</p><p>Este tipo de humor transferiu-se para o teatro de revista e, de uma maneira geral,</p><p>para a cultura de massa da televisão. O riso obtido, explorando a esperteza estúpida</p><p>dos outros, revela um traço típico do burgesso português: é que, para ele, há sempre</p><p>um burgesso mais burgesso do que ele.</p><p>A anedota da Beira Baixa ilustra a coexistência de ideias incompatíveis numa</p><p>consciência clara que as une e faz delas «pensamento». O que supõe o nevoeiro</p><p>invisível ou sombra branca.</p><p>É o que explica, em parte, também, certos aspectos do Código Penal português, a</p><p>sua incrível ligeireza nas penas por crimes de rapto, violação ou homicídio. O</p><p>espírito «machista» que inspirou a redacção dessas leis apoia-se na leviandade geral</p><p>com que se avalia a gravidade desses crimes. Crimes considerados menores porque</p><p>pouco ou nada se inscreveu (aconteceu).</p><p>Mas é sem dúvida na esfera da relação com a morte e os mortos que melhor se</p><p>mostra a recusa portuguesa de inscrever. De certo modo, é neste plano que se joga</p><p>toda a não-inscrição dos acontecimentos, porque é ele que condiciona e determina a</p><p>relação dos vivos com a vida.</p><p>Seria útil apoiarmo-nos, aqui, num estudo dos rituais fúnebres dos portugueses, e</p><p>numa etnologia comparada com outros ritos do mesmo tipo da zona mediterrânea e</p><p>europeia. Infelizmente, tais estudos estão por fazer.</p><p>Limitemo-nos a constatar um aspecto que pode iluminar a atitude geral dos</p><p>portugueses</p><p>15. NO LOGO Naomi Klein</p><p>16. PESSOAL... E TRANSMISSÍVEL Carlos Vaz Marques</p><p>17. O MUNDO DEPOIS DA GUERRA</p><p>NO IRAQUE</p><p>Vários</p><p>18. AL-QAEDA E O SIGNIFICADO DE SER MODERNO</p><p>John Gray</p><p>19. NO INTERIOR DA AL-QAEDA, REDE GLOBAL DO TERROR Rohan Gunaratna</p><p>20. Trinta Anos de Democracia E DEPOIS .PRONTO Clara Pinto Correia</p><p>10. OS FILHOS DE ROUSSEAU Maria Filomena Mónica</p><p>11. CONVERSAS NO PAPEL Júlio Machado Vaz</p><p>12. PERSPECTIVAS DA</p><p>GUERRA CIVIL e A GRANDE MIGRAÇÃO Hans Magnus Enzensberger</p><p>Se não encontrar nas livrarias o livro que procura desta Editora, pode adquiri-lo no endereço</p><p>www.relogiodagua.pt.</p><p>«Tratando o pequeno escrito acima apresentado um tema difícil de classificar, impõe-se</p><p>acrescentar algumas observações:</p><p>O objecto do texto aproxima-se mais do que os historiadores chamam "mentalidades" do</p><p>que de qualquer outra matéria disciplinar. Mas recorre-se a apontamentos etnográficos, a</p><p>factos e anedotas triviais, a conceitos psicanalíticos e filosóficos, a outros da ciência</p><p>política, etc. Digamos que, epistemologicamente, o campo explorado é indefinido, com</p><p>uma transversalidade no trajecto de certas noções que pode ter as suas vantagens.</p><p>(...) Enfim, contrariamente ao que pode parecer, nenhum pressuposto catastrofista ou</p><p>optimista quanto ao futuro do nosso país subjaz ao breve escrito agora publicado. Se não se</p><p>falou "no que há de bom", em Portugal, foi apenas porque se deu relevo ao que impede a</p><p>expressão das nossas forças enquanto indivíduos e enquanto colectividade. Seria mais</p><p>interessante, sem dúvida, mas também muito mais difícil, descobrir as linhas de fuga que</p><p>em certas zonas da cultura e do pensamento já se desenham para que tal aconteça.</p><p>Procurou-se dizer o que é, sem estados de alma, mas com a intensidade que uma relação</p><p>com este país supõe.»</p><p>Das Notas Finais</p><p>789727 088171</p><p>RELÓGIO D'AGUA</p><p>relativamente à morte: a velocidade de esquecimento do morto por parte</p><p>dos vivos. Ela é tal que, uma vez acabada a cerimónia fúnebre e enterrado ou</p><p>cremado o cadáver, a saída do território do cemitério opera um corte brusco.</p><p>Excepto para os familiares e amigos íntimos, esse retomar do contacto com a vida,</p><p>com a sua versatilidade, com o sol ou a chuva, as pequenas contingências do tempo,</p><p>da circulação, dos encontros, dos horários, etc., desviam imediatamente o espírito (já</p><p>moldado e vocacionado para a não-inscrição) da concentração pesada na morte a que</p><p>fora obrigado. Que a dor e o sofrimento irrompam espontaneamente naqueles a</p><p>quem um forte laço afectivo unia ao morto, não está aqui em causa. Verifica-se</p><p>apenas que colectivamente só o rito deu existência ao morto entre os vivos: ele só</p><p>«viveu» à tona da vida durante o tempo da cerimónia fúnebre. Socialmente, nada se</p><p>fez da dor, nada vindo do morto se prolongou na vida colectiva. Lembremo-nos que,</p><p>aliás, os sinais de luto, as vestes negras, as tiras pretas na manga do casaco, quase</p><p>desapareceram da nossa sociedade. Só individualmente, mudo e isolado,</p><p>permaneceu o sofrimento ao abrigo do extraordinário dispositivo de não-inscrição e</p><p>de esquecimento instalado no quotidiano da vida. Não é a missa do sétimo dia que</p><p>manterá «viva a lembrança» do defunto, para além desse último esforço colectivo.</p><p>Significa isto que a vida portuguesa não comporta verdadeira tragédia. Se a morte</p><p>nela se não inscreve, se não há morte trágica, nenhum outro acontecimento</p><p>conseguirá realmente produzir sentido. Porque a morte, como acontecimento</p><p>irremediável e necessariamente trágico (ontologicamente trágico, como desinscrição</p><p>radical de uma existência na vida), deve inscrever-se na vida para que esta se torne</p><p>possível e faça sentido para os vivos. Todo o cerimonial do luto visa precisamente</p><p>reinscrever nos vivos o morto, sob a condição de ele ser bem inscrito no reino dos</p><p>mortos (morto e enterrado de maneira a tornar-se um «antepassado», que dá força</p><p>aos vivos).</p><p>Se nada disto for realizado, se nenhuma inscrição se efectuar e os mortos não forem</p><p>devidamente sepultados e tratados, eles não mais pararão de assombrar os vivos.</p><p>Ora, em Portugal, a falta de presença dos mortos, para não dizer a sua total ausência</p><p>na vida dos vivos, é de uma evidência irrecusável.</p><p>Eis o que explica, talvez, a extraordinária importância de que se revestem, hoje</p><p>ainda, as representações e práticas mágico-religiosas no nosso país. Porque os</p><p>mortos não têm lugar entre os vivos (e isso porque a morte não se inscreve na vida),</p><p>nem entre os mortos, circulam num limbo na qualidade de «almas errantes» que não</p><p>cessam de perturbar os homens.</p><p>Estas crenças poder-se-iam traduzir em linguagem metapsicológica: teríamos então</p><p>um branco psíquico, uma não-inscrição que se transmitiria de geração em geração</p><p>(um «impensado genealógico», diriam Maria Torok e Nicolas Abraham). Bem</p><p>compreender o que aqui se joga levar-nos-ia mais longe do que a etnologia, sendo</p><p>necessário recorrer a uma hauntology (como dizem os americanos) ainda por</p><p>elaborar.</p><p>O nevoeiro é o plano invisível de não-inscrição. Pode parecer estranho defini-lo</p><p>como um plano e não como um volume, mas não se trata de conceber a melhor</p><p>analogia de</p><p>formas, mas sim de funções: o nevoeiro, ou sombra branca, não constitui, por</p><p>exemplo, um «meio» ou uma atmosfera. Estas são vividas pelo sujeito enquanto</p><p>aquele designa um estrato inconsciente que se aloja na consciência (na linguagem,</p><p>nas imagens, nos afectos, nas sensações). É um plano porque é um buraco, uma</p><p>lacuna, um branco onde faltou uma inscrição na consciência e no discurso. O que</p><p>provoca transformações radicais no comportamento e no pensamento do sujeito.</p><p>Não se pense, porém, que o nevoeiro implica uma mistura indefinida de ideias, ou</p><p>um espírito obscurecido, enevoado por qualquer confusão mental. Já vimos que não</p><p>é assim; ao contrário, é porque existe não-inscrição que a consciência adquire uma</p><p>nitidez particular. Como veremos, a consciência que resulta da não-inscrição vai</p><p>conduzir o indivíduo português a familiarizar-se com espaços crepusculares, com o</p><p>«entre-dois» de todas as alternativas que se erguem no seu caminho. Não implica</p><p>isso que ele entre numa «atmosfera subliminar», ou ganhe não sei que textura</p><p>amorfa da consciência. Num certo sentido, é o contrário que sucede: o sujeito é</p><p>levado a elaborar estratégias precisas de pensamento e de acção, de tal maneira que</p><p>se podem desenhar mapas dos percursos que traçou.</p><p>O espaço não público</p><p>Certamente que a sociedade portuguesa está a mudar, e que se modificou</p><p>grandemente depois do 25 de Abril. Porque se ouve dizer, então, tantas vezes, que</p><p>«está tudo na mesma»?</p><p>Consideremos uma realidade mal definida a que se acordou chamar «espaço</p><p>público». Durante o salazarismo, foi reduzido ao mínimo, mutilado, até acabar por</p><p>desaparecer sob os golpes da censura e dos interditos à liberdade de expressão e de</p><p>associação. Foi engolido pela ditadura, que a mantinha uma fachada caricatural de</p><p>liberdades públicas, através dos jornais e da rádio censuradas, da propaganda pró-</p><p>situacionista e nacionalista não muito agressiva - diferente da do nazismo e da do</p><p>fascismo italiano - criando</p><p>• um clima de anestesia e de obediência generalizadas. O espaço de expressão, das</p><p>trocas livres de ideias, fechou-se e extinguiu-se, dentro do país e nas relações com o</p><p>estrangeiro. O que ainda se podia fazer no domínio das artes, do pensamento criativo</p><p>em todas as áreas, foi cortado cerce e nesses anos sinistros, os que pretendiam</p><p>produzir livremente voltavam-se para dentro de si, ou funcionavam em pequenos</p><p>grupos rebeldes, sempre inquinados, envenenados pelo medo, pela claustrofobia e o</p><p>sufoco, enfim por esse mal difuso, essa doença da vida, invisível e indefinível que</p><p>atacava as existências impedindo-as de crescer e de se expandir.</p><p>Mais do que tudo, o salazarismo foi uma doença que pôs de rastos o povo português.</p><p>Doença do espírito (e dos corpos) e, enquanto tal, raramente tomada em</p><p>consideração pelos historiadores e sociólogos da época. Hoje, celebra-se mesmo</p><p>Salazar em biografias e fotobiografias de autores de «esquerda». Mais uma</p><p>consequência lógica da não-inscrição.</p><p>Trinta anos depois do estabelecimento da democracia, como funciona o espaço</p><p>público em Portugal?</p><p>A constatação imediata é a de que não existe. Está por fazer a história do que, nesse</p><p>plano, se abriu e quase se formou durante os anos «revolucionários» do pós-25 de</p><p>Abril, para depois se fechar, desaparecer e ser substituído pelo espaço dos média</p><p>que, em Portugal, não constitui um espaço público.</p><p>Como definir esse espaço aberto de expressão e de trocas, essencial para que a</p><p>liberdade e a criação circulem num campo social? Determinemos primeiro como se</p><p>manifesta a sua ausência na sociedade portuguesa.</p><p>Não há debate político: nem sequer na televisão que cria um espaço artificial, com</p><p>regras predeterminadas que limitam a espontaneidade das intervenções, o acaso, e a</p><p>participação desse «fora» que faz toda a riqueza da expressão pública. Nos jornais e</p><p>na rádio, os debates confinam-se a trocas de opiniões e argumentos entre homens</p><p>políticos, sempre de um partido, visto que no mundo da política não há lugar para</p><p>independente, ou entre comentadores, pretensos «opinion makers» que dialogam</p><p>constantemente entre si, em círculo fechado. Muitos dos políticos são também</p><p>comentadores, fazem o discurso e o metadiscurso, o que suscita um circuito</p><p>abafador e redundante: sempre as mesmas vozes e a mesma escrita nos mesmos</p><p>tons, com os mesmos argumentos, com o mesmo plano de sentido, como se as ideias</p><p>políticas se reduzissem a um empirismo sociológico de estratégias partidárias.</p><p>Se a política é «chata» em Portugal, se os portugueses estão «fartos dos políticos»,</p><p>isso não se deve apenas à sua</p><p>incompetência, mas também ao próprio universo do</p><p>debate político em que nada de novo, de inovador, de diferente, de forte, de original</p><p>e estimulante surge para abalar os espíritos. O discurso político tem por função</p><p>legitimar políticas ou projectos políticos e o metadiscurso confirmar essas</p><p>legitimações. Confirmar, confirmar: eis para que se acumulam toneladas de</p><p>argumentos e de pseudo-ideias mais ou menos subtis.</p><p>Quanto a uma abertura para fora - quando o peso da Europa Comunitária nas</p><p>decisões do governo português é maior do que nunca - pode perguntar-se qual é a</p><p>presença da questão europeia nos «debates» políticos nacionais?</p><p>Não há espaço público porque este está nas mãos de umas quantas pessoas cujo</p><p>discurso não faz mais do que alimentar a inércia e o fechamento sobre si próprios da</p><p>estrutura das relações de força que elas representam. Os lugares, tempos,</p><p>dispositivos mediáticos e pessoas formam um pequeno sistema estático que trabalha</p><p>afanosamente para a sua manutenção.</p><p>A situação não se apresenta com melhor aspecto noutros sectores da vida pública</p><p>portuguesa. Apesar das exposições, do seu número e da sua importância, a arte não</p><p>tem espaço público. Não são as raríssimas revistas especializadas (com uma</p><p>periodicidade hiperdesfasada relativamente ao que se passa); não são os livros</p><p>publicados sobre arte; não são os poucos (e de repente, muitos) colóquios que se</p><p>realizam que conseguem construir um tal espaço. As pessoas vão às exposições e</p><p>aos espectáculos, «gostaram» ou «não gostaram», e voltam para casa, quer dizer,</p><p>para outras preocupações. A crítica sofre idêntico destino: se há efeitos, se há</p><p>feedback, ficam no fundo dos espíritos, no segredo das almas solitárias. Os pintores,</p><p>os escultores raramente falam entre si sobre a sua arte. A arte é uma questão privada.</p><p>Não entra na vida, não transforma as existências individuais. Expõe-se em vitrinas</p><p>(como durante tantos anos as exposições, espectáculos, concertos de artistas</p><p>estrangeiros se produziam nas «montras» da Gulbenkian, que apresentavam o que se</p><p>fazia «lá fora» na época da ditadura).</p><p>com diferenças insignificantes, passa-se o mesmo com a literatura (em particular</p><p>com a ficção; o caso da poesia é precisamente muito diferente). Quando se</p><p>organizam fóruns periódicos para se discutir «os livros do mês», ou qualquer outro</p><p>tipo de tema, acabam por se revelar lugares fechados, onde o público vai como a um</p><p>qualquer espectáculo. Estranhamente a nossa literatura também não modifica nem</p><p>sequer desloca as vidas dos leitores: enquanto noutros países um escritor pode ter</p><p>um real impacto na colectividade o que acontecia mesmo com um autor médio como</p><p>Montherlant em França, por exemplo, para não falar nos grandes, um tom Wolfe nos</p><p>Estados Unidos, um Giinther Grass na Alemanha, um Beckett em França, um ítalo</p><p>Calvino na Itália, etc. - alguém já ouviu dizer que a leitura de Saramago influenciou</p><p>a sua vida? Ou que a maneira de pensar de Lídia Jorge modificou a visão que os</p><p>portugueses (leitores) têm da história. A literatura não entrou no espaço público,</p><p>porque não há espaço literário que exista por si. Não há uma comunidade literária</p><p>como não há uma comunidade artística ou científica ou filosófica. Há nomes, há</p><p>mediatização de alguns desses nomes, há a grande preocupação de ser reconhecido no</p><p>estrangeiro e, sobretudo, de transportar para Portugal o reconhecimento internacional: como</p><p>se a resistência ao reconhecimento nacional fosse tão grande que só pela violência</p><p>irrecusável de uma mensagem vinda de fora fosse possível aos portugueses cederem e</p><p>acolherem o seu compatriota (e lhe reconhecessem valor). Compatriota exilado, pois, no</p><p>seu próprio país.</p><p>Curiosamente, é por meio de comunicações pela net que os cientistas, laboratórios e</p><p>institutos de investigação portugueses estabelecem redes e entram em intercâmbio com o</p><p>estrangeiro. Entretanto, as comunicações intranacionais rareiam.</p><p>O espaço público, no sentido em que empregamos esta expressão algo inadequada,</p><p>não é o lugar da «opinião pública» nem de manifestações colectivas, políticas ou</p><p>outras. Mais mesmo do que um espaço de comunicação, é um lugar de</p><p>transformação anónima dos objectos individuais de expressão. É a palavra «público»</p><p>que não convém: porque esse espaço de transformações contém zonas de sombra,</p><p>pontos imperceptíveis de ligação de forças, linhas invisíveis que traçam trajectos de</p><p>energia. Este espaço «público», sendo aberto, não se expõe necessariamente à luz.</p><p>A sua característica primeira é a de constituir uma exterioridade, um «fora» para os</p><p>sujeitos (individuais ou colectivos) que nele penetram. Na sociedade francesa, por</p><p>exemplo, um escritor publica um livro que entra no espaço público e imediatamente</p><p>sofre um tratamento múltiplo, as mais das vezes imprevisível, que o transforma. As</p><p>leituras diferentes ou divergentes de que é objecto, as maneiras como vai de um a</p><p>outro leitor, de um a outro crítico, como o seu sentido se expande em várias</p><p>direcções, como o «público» se apodera de alguns dos seus aspectos e negligencia</p><p>outros, o que ele traz de novo à linguagem (literária e não só), tudo isso ultrapassa</p><p>em muito o que se costuma chamar a «recepção» de uma obra, e alcançando uma</p><p>zona transliterária da «vida» forma o conjunto dos efeitos do espaço público sobre</p><p>um livro - ou, mais geralmente, sobre um objecto de arte, ou sobre uma ideia</p><p>lançada e apanhada no circuito dinâmico das forças desse espaço.</p><p>Aí, o livro ou a obra de arte perde a sua marca de origem, a «função autor» dissolve-</p><p>se, o objecto ganha um anonimato que faz com que já não pertença a um, mas</p><p>simultaneamente a todos e a ninguém. Quando é devolvido ao seu autor está</p><p>irreconhecível, transformou-se consideravelmente. Ganhou poderes insuspeitados,</p><p>forças desconhecidas atravessam-no. Diz-se então que houve «desnaturação»,</p><p>«desfiguração» etc., ou, pelo contrário, «revelação da sua essência», «descoberta do</p><p>seu sentido autêntico». Expressões que pressupõem sempre uma essência eterna ou</p><p>uma «verdade essencial» da obra. Ora desta, o que mostra o espaço público é o seu</p><p>poder de se transformar, de devir, de se tornar múltipla através de uma infinidade de</p><p>forças. É essa a sua «verdade essencial» e é o espaço público que a põe à prova e a</p><p>revela.</p><p>Neste sentido, ele constitui o «fora» de um dentro social e psíquico que se arrisca</p><p>sempre, nas sociedades fechadas, a enquistar. Fora absolutamente imprevisível que</p><p>existe por si (e forma no entanto o fora daquele dentro específico), pensa por si,</p><p>metaboliza o que lhe vem do interior e reflui intempestivamente sobre este último.</p><p>Espaço de des-subjectivação: o autor das metamorfoses que a obra sofre não é um</p><p>sujeito, mas uma espécie de máquina anónima de devires.</p><p>Por isso o espaço público torna-se a condição imprescindível para que o «dentro»</p><p>respire. Qualquer coisa deve sempre vir de fora, de um fora ilimitado e intensivo,</p><p>para que o dentro se possa exprimir. Insisto: trata-se de um espaço de diálogo e de</p><p>comunicação, é um plano de expressão, de contaminação e de circulação de forças.</p><p>Existe, não tendo ele próprio expressão, mas dando expressão a todas as vozes que</p><p>nele se projectam. A maior gratificação que pode receber um artista é saber que a</p><p>sua obra entrou no espaço anónimo em que, transformando-se multiplamente, vai</p><p>fazer nascer outras vozes, outras escritas, outros pensamentos. Ter a felicidade de</p><p>saber que a sua obra deixou de ser sua, precisamente pelo seu imenso poder de</p><p>devir-outra.</p><p>Vê-se que o espaço público falta cruelmente em Portugal. Quando há diálogo, nunca</p><p>ou raramente ultrapassa as «opiniões» dos dois sujeitos bem personalizados (cara,</p><p>nome, estatuto social) que se criticam mutuamente através das suas crónicas nos</p><p>jornais respectivos (ou no mesmo jornal). O «debate» é necessariamente</p><p>«fulanizado», o que significa que a personalidade social</p><p>dos interlocutores entra</p><p>como uma mais-valia de sentido e de verdade no seu discurso.</p><p>E uma espécie de argumento de autoridade invisível que pesa na discussão: se é X</p><p>que o diz, com a sua inteligência, a sua cultura, o seu prestígio (de economista, de</p><p>sociólogo, de catedrático, etc.), então as suas palavras enchem-se de uma força que</p><p>não teriam se tivessem sido escritas por um x qualquer, desconhecido de todos.</p><p>Mais: a condição de legitimação de um discurso é a sua passagem pelo plano do</p><p>prestígio mediático - que, longe de dissolver o sujeito, o reforça e o enquista numa</p><p>imagem «em carne e osso», subjectivando-o como o melhor, o mais competente, o</p><p>que realmente merece estar no palco do mundo.</p><p>A não existência de um espaço anónimo de devir das ideias e das obras retira, além</p><p>do poder de criação, o dispositivo necessário (a mediação) que des-subjectiva o</p><p>discurso e impede o choque dos «sujeitos». Se, na maioria dos casos, a crítica, em</p><p>Portugal, descamba no insulto pessoal, no embate imediato de dois «fulanos» - ou</p><p>no elogio sobrevalorizante - é por ausência de um terceiro termo que medeie a</p><p>relação dos dois interlocutores. O elogio desrealizante tem idêntica origem: agora</p><p>não é o choque que se procura, mas o seu avesso, a osmose admirativa máxima, sem</p><p>mediação, com o outro - duas vertentes de um mesmo tipo de relação.</p><p>Muitas consequências derivam deste funcionamento do espaço (não) público, por</p><p>ausência do plano anónimo de circulação de forças.</p><p>Desde logo, é a própria criação literária (ou outra) que se encontra entravada.</p><p>Primeiro, porque as relações entre a obra e a crítica estão minadas pela «função</p><p>autor», pela «personalização», pelo medo de «dizer mal» (que tantas vezes se</p><p>confunde com a crítica); em segundo lugar, porque o laço entre o público e a obra</p><p>não se pode manifestar senão através do crítico - que nunca traduz a recepção real</p><p>por parte dos leitores, constituindo mesmo estes uma realidade mal definida. Enfim,</p><p>e sobretudo, é o processo criativo que exige esse espaço de transformação da obra e</p><p>que, no caso português, nunca se obtém.</p><p>Basta pensar que todo o escritor utiliza a língua criando um plano artificial (do</p><p>«como se») em que a linguagem flui segundo regras próprias, reconstruindo uma</p><p>naturalidade muito mais genuína e pertinente do que a da fala comum. É, pois, a</p><p>própria escrita literária que, mal se constitui, apela para um público anónimo, um</p><p>«povo» (como dizia Paul Klee). É a obra que pede para se transformar. O «como se»</p><p>implica a mutação do autor numa instância imperceptível e impessoal, capaz de</p><p>impedir o enquistamento da linguagem numa subjectividade egótica, deixando-a</p><p>tomar livremente as direcções dos devires a que a obra se submeterá no espaço</p><p>público das suas transformações.</p><p>É certo que a falta de um tal espaço contribuiu para que a literatura portuguesa</p><p>enveredasse pelos caminhos que tomou durante este meio século que acaba de</p><p>passar - desde o neo-realismo que supunha um plano imaginário que a obra deveria</p><p>formar; às múltiplas tentativas de agarrar o real (qualquer que seja a sua definição),</p><p>com o «abjeccionismo», os primeiros livros de Cardoso Pires ou Luísa Costa Gomes</p><p>experimentando escritas estrangeiras, as construções metafóricas da língua de Lobo</p><p>Antunes, o «realismo mágico» de Saramago - adivinhando-se sempre nestas escritas</p><p>a procura de um plano mediador entre a linguagem e a vida. Situação que,</p><p>paradoxalmente, acabou talvez por funcionar, na medida em que ao leitor também</p><p>faltava essa mediação</p><p>- um «fora» entre si e a sua leitura, entre si e a sua vida.</p><p>Não se pode dizer que algum dia se formou um tal espaço anónimo, na sociedade</p><p>portuguesa. Por diversas razões históricas, não se chegou nunca a constituir, nem</p><p>mesmo no campo político da República, antes do seu derrubamento, um espaço de</p><p>des-subjectivação e criação (ele existia sim, mas na cultura popular). Encontramo-</p><p>nos hoje numa situação particular, característica talvez da sociedade portuguesa:</p><p>antes de acedermos a esse espaço - próprio da modernidade - e com ele</p><p>experimentarmos os processos típicos da criação moderna (a des-subjectivação ou</p><p>«morte do homem», a destruição dos ideais e dos valores da tradição, o</p><p>descentramento do mundo à volta do homem: na ficção literária, além das tentativas</p><p>de Almada Negreiros, talvez só Rui Nunes tenha sistematicamente tomado essa via),</p><p>estamos já a tentar moldarmo-nos às figuras do novo espírito que nos vai lentamente</p><p>invadindo, o da idade pós-moderna.</p><p>Ora, acontece que, por uma série de razões, esta adaptação do velho ao novo, este</p><p>salto sem mediação do pré-moderno ao pós-moderno nos convém quase</p><p>perfeitamente. Somos, nesse sentido, como veremos mais adiante, os melhores</p><p>exemplos europeus de arcaicos pós-modernos.</p><p>A análise do espaço mediático exigiria, por si só, longos estudos. Como vimos, longe de</p><p>criar uma zona de respiração e um fora, os média simplesmente amplificaram a</p><p>comunicação social para novamente a fechar. A televisão e a imprensa estão em princípio</p><p>abertas ao país e ao planeta inteiro; acontece que o que deles nos chega é filtrado pela auto-</p><p>distorsão a que os seus meios se obrigam.</p><p>A função dos média consiste em abrir o espaço da «comunicação social» (que difere do</p><p>«espaço público»); ora, nem mesmo a este nível se edificou um sistema que desse voz a</p><p>«sujeitos colectivos de enunciação», sempre enquadrados em programas, fórmulas</p><p>expressivas de representação, tempos de antena e limitações jornalísticas que pervertem</p><p>radicalmente o que deveria ser um plano de comunicação, um fórum em que os cidadãos</p><p>pudessem discutir problemas, levantar questões, pensar e agir sobre a sua sociedade.</p><p>A televisão portuguesa é como toda a gente sabe (e com raríssimas excepções, que toda a</p><p>gente também conhece) uma pura miséria, uma máquina de fabricação e sedimentação de</p><p>iliteracia. E a rádio e a imprensa (sempre com as excepções que há em tudo) fecham</p><p>constantemente as aberturas mínimas, as fendas e brechas por onde algum ar fresco, alguma</p><p>força livre pudessem passar ainda.</p><p>Em dois aspectos, estes meios de comunicação contribuem grandemente para a situação</p><p>geral de não-inscrição: primeiro, pela sua aparência de espaço público, o espaço mediático</p><p>dá-se como anónimo, ou melhor, como uma realidade anónima, uma espécie de elemento</p><p>pertencente ao aparelho de Estado, tal como os tribunais ou as escolas. A esse título os</p><p>média fazem parte integrante da vida do cidadão. Como uma instituição do Estado, estão ao</p><p>serviço do cidadão (e muita obra, muito «jornalismo de investigação» foram feitos pelos</p><p>jornais que deveriam ter sido realizados pelos órgãos do Estado); por outro lado escapam-</p><p>lhe na medida em que a todos transcende. Deveriam ser um dispositivo essencial do poder</p><p>público dos cidadãos: nesse sentido diferem dos aparelhos de Estado. A televisão, a rádio, a</p><p>imprensa escrita têm vocação para construir o real quotidiano das comunicações</p><p>concretas, não apenas das «notícias».</p><p>O espaço público deveria ser aberto, mas fechando-se, limitando-se, permite que o</p><p>telespectador, o ouvinte e o leitor sejam imediatamente absorvidos pela sombra</p><p>branca ou dupla realidade com que se deparam. Por um lado estão ali, o mundo</p><p>agora, o seu país, a sua cidade ou a sua aldeia, numa abertura virtual de imagens sem</p><p>fim; por outro é apenas aquilo, com o sentido com que deve ser já pensado, as</p><p>notícias, os comentários semanais dos comentadores, os pensamentos que</p><p>confirmam o meu pensamento antes de o ter, a minha existência reduzida a uma</p><p>massa pastosa que engole as imagens e nunca treme realmente com o que vê ou com</p><p>o que lê.</p><p>É desta forma que a minha vida se insere na vida do mundo, não se inscrevendo</p><p>nela. O espaço público, essencial à democracia, foi-me roubado. Roubado pelo</p><p>sistema partidário, pelo sistema representativo, pelo sistema mediático</p><p>transcendente.</p><p>De uma vida nada se inscreve, nela nada sucede por efeito dos</p><p>«acontecimentos» mundiais ou nacionais que o espaço dos média «reportam» ou</p><p>«comunicam». E, pois, um acontecimento «para se comunicar» não para eclodir no</p><p>curso da minha vida. Nada mudou. A sombra branca estende-se e cobre o mundo</p><p>inteiro que é Portugal.</p><p>Que conhecimento da democracia?</p><p>Certos efeitos imediatos de tudo isto verificam-se na prática da democracia no nosso</p><p>país.</p><p>• As ditaduras opõem-se ao progresso do conhecimento ) em geral e ao das ciências</p><p>humanas em particular. Não há investigação, avanço no domínio científico sem</p><p>discussão, trocas de ideias, imaginação sem entraves, elaboração livre de modelos,</p><p>etc. O que supõe necessariamente liberdade de pensamento, de trabalho e de opinião</p><p>- tudo o que a ditadura reprime por princípio.</p><p>Não há pois progresso científico sem liberdade e o próprio conhecimento dos</p><p>mecanismos políticos, sociais, jurídicos que regem a democracia, quer dizer, o</p><p>próprio conhecimento da democracia implica não só a investigação das ciências</p><p>humanas como o aprofundamento da prática democrática.</p><p>Estabelece-se aqui uma relação recíproca de causa e efeito que se desenvolve em</p><p>avalanche - por mútua acumulação. Quanto melhor conhecermos o funcionamento</p><p>da democracia, quanto mais for partilhado esse conhecimento, mais probabilidades</p><p>teremos de participar e aceitar uma prática democrática. E quanto mais essa prática</p><p>se desenvolver, aprofundando-se na acção, mais problemas ela levantará, mais</p><p>conhecimento exigirá não só dos mecanismos da democracia, mas de tudo o que eles</p><p>envolvem do conhecimento do homem: o aprofundamento prático da democracia</p><p>puxa pelo desenvolvimento do conhecimento nas ciências humanas.</p><p>Poderia utilizar um exemplo simples: não há democracia sem justiça. A justiça é</p><p>mesmo considerada por alguns como Rawls - como o principal pilar da democracia.</p><p>Ora, em múltiplos casos penais a justiça recorre à psiquiatria, à psicanálise ou a</p><p>outras ciências humanas para afinar o grau de responsabilidade do acusado, etc.</p><p>Existem casos tão complexos psicologicamente que a própria noção de</p><p>responsabilidade jurídica pode ser posta em causa. O que pedirá um maior</p><p>conhecimento das motivações, no domínio psicológico. Se este se alcançar, então o</p><p>estudo dos casos penais futuros, semelhantes, será facilitado. E tudo isto em nome</p><p>de um tratamento cada vez mais justo do arguido o que se insere nos próprios</p><p>princípios da democracia.</p><p>A instauração do regime democrático em Portugal trouxe uma dinâmica do tipo que</p><p>acabámos de descrever. Simplesmente, em relação a outros processos históricos</p><p>(como em Espanha, por exemplo), a nossa dinâmica sofre de múltiplos entraves que</p><p>dão força a inércias e lentidões tais que se pode mesmo duvidar da existência de</p><p>uma «dinâmica» .</p><p>Porquê, essa dúvida? Porque continua a haver um certo divórcio entre conhecimento</p><p>e democracia e, mais especificamente, entre conhecimento da democracia e prática</p><p>democrática.</p><p>Somos mais livres, mais democráticos do que em 1974? Certamente que sim. Sê-lo-</p><p>emos, e em que campos, mais do que depois da entrada na Europa e na União</p><p>Monetária? Conhecendo melhor a nossa sociedade, os nossos direitos e obrigações</p><p>políticas, poderemos afirmar que o povo português interiorizou na sua prática</p><p>política aquelas regras mínimas que definem a democracia (regras de liberdade; de</p><p>igualdade; de justiça)? A resposta é, mais uma vez, «sim».</p><p>Porém, qualquer coisa nos deixa irremediavelmente insatisfeitos. «Sim, sim», mas...</p><p>é como se o ganho em democracia ou em conhecimento da democracia que</p><p>alcançámos sofresse de uma falha essencial. Como se houvesse um défice</p><p>democrático em Portugal (que nós sentimos de maneira confusa - e de que, afinal,</p><p>talvez o défice democrático da Madeira seja apenas um sintoma, o nosso sintoma...).</p><p>Um diagnóstico sumário é bastante para pôr em evidência o divórcio parcial, ainda</p><p>existente no nosso país, entre conhecimento e democracia:</p><p>A ausência de um espaço de transmissão horizontal e vertical de conhecimentos no</p><p>campo social. Horizontalmente, traduz-se pela falta de canais de comunicação entre</p><p>os membros de uma comunidade científica, por exemplo. Verticalmente, pela falta</p><p>de mediações entre camadas sociais que permitam que o conhecimento</p><p>especializado seja filtrado, traduzido em termos simples (vulgarizado»), transmitido</p><p>e sedimentado na «cultura geral» popular. Por várias razões, esse espaço não existe</p><p>em Portugal.</p><p>Os trabalhos académicos e outros não circulam na opinião pública. Deve-se aqui</p><p>introduzir uma noção diferente de «cultura de massa», de «opinião pública», e de</p><p>«cultura geral». Trata-se de «conhecimento geral», como subcategoria integrando a</p><p>«cultura geral». O conhecimento geral é o conjunto de conhecimentos científicos</p><p>reduzidos à sua expressão mais simples e que se disseminam na cultura popular.</p><p>Noções como «Big bang», «neurose» ou «complexo de inferioridade», «ADN» ou</p><p>«átomo» entraram na linguagem do conhecimento do povo francês, inglês ou</p><p>alemão.</p><p>Em Portugal, o nível de conhecimento geral é extremamente baixo. As razões, mais</p><p>uma vez, são múltiplas, das quais destacamos a falta de uma comunidade científica</p><p>que se imponha à comunidade em geral. O eco dos trabalhos académicos não</p><p>ultrapassa os círculos especializados, não existindo planos mediadores que levem</p><p>esses conhecimentos até ao homem comum (há que referir a pobreza dos programas</p><p>dos média neste campo; assim como a baixa «taxa de aprendizagem» dos</p><p>conhecimentos dispensados no ensino primário e no secundário).</p><p>b. Um terceiro índice do divórcio indicado: a lentidão da «aprendizagem da</p><p>democracia», segundo a expressão consagrada, pelo povo português. Os progressos</p><p>no campo da história, do direito, da sociologia do nosso país não tiveram</p><p>equivalência na prática da democracia, repercutindo-se timidamente no</p><p>conhecimento geral que o povo tem dos mecanismos do Estado em que vive. Mais:</p><p>depois do surto que se seguiu ao 25 de Abril, os ânimos voltaram a uma espécie de</p><p>apatia, tanto no campo político como, digamos, no da cidadania. As universidades,</p><p>que vivem em círculo fechado, mas também o regime partidário, as suas práticas e</p><p>os seus discursos, o «autismo» dos governos e a sua visão medíocre do futuro, a</p><p>falta de imaginação e a falta de coragem políticas contribuíram largamente para que</p><p>os reflexos herdados da ditadura demorassem (e demorem) a dissolver-se. Refiro-me</p><p>ao medo, à passividade, à aceitação sem revolta do que o poder propõe ao povo.</p><p>Como se, tal como antigamente, a força de indignação, a reacção ao que tantas vezes</p><p>aparece como intolerável, escandaloso, infame na sociedade portuguesa (tolerado,</p><p>aceite, querido talvez pela maneira como as leis e regras democráticas se</p><p>concretizam na sociedade, quer dizer no húmus das relações humanas), se voltasse</p><p>para dentro num queixume infindável quanto à «república das bananas» ou «a</p><p>trampa» que decididamente constituiria a essência eterna de Portugal, em vez de se</p><p>exteriorizar em acção.</p><p>Gostaria de insistir num ponto: o legado do medo que nos deixou a ditadura não</p><p>abrange apenas o plano político. Aliás, a diferença com o passado é que o medo</p><p>continua nos corpos e nos espíritos, mas já não se sente. Um aspecto desse legado</p><p>deixou uma marca profunda num campo específico: no saber, na hierarquia do</p><p>poder-saber que Salazar promoveu, cultivou e utilizou em proveito directo do poder</p><p>autocrático que instaurou. O efeito desse medo hierárquico faz-se ainda hoje sentir.</p><p>Por exemplo, o direito à cultura e ao conhecimento ainda não chegou ao sentimento</p><p>da população portuguesa. Que esse direito existe e que cada português deveria vê-lo</p><p>para si cumprido - todos o sentem, mas como parte do que idealmente lhes é devido</p><p>pela justiça (que, aí, nunca se cumpre). Essa aspiração não é, pois, uma exigência</p><p>tão evidente para os portugueses que estes, iliteratos e analfabetos, saiam para a rua</p><p>em manifestação pelo direito à cultura. Porquê? Porque o 25 de Abril não conseguiu</p><p>abolir a divisão instruído sem instrução que correspondia mais ou menos ao par</p><p>poder-saber/pobreza-ignorância do tempo do salazarismo. Porque na sociedade</p><p>portuguesa actual, o medo, a reverência, o respeito temeroso, a passividade perante</p><p>as instituições e os homens supostos deterem e dispensarem o poder-saber não foram</p><p>ainda quebrados por novas forças de expressão da liberdade. Numa palavra, o</p><p>Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede</p><p>a crítica. Vivemos numa sociedade sem espírito crítico - que só nasce quando o</p><p>interesse da comunidade prevalece sobre o dos grupos e das pessoas privadas.</p><p>Mas não somos livres? O poder que nos governa não é livre e igualmente eleito por</p><p>todos os cidadãos? Estaremos nós a praticar, de forma perversa, mais uma variedade</p><p>do queixume?</p><p>Não se pode, hoje, dissociar direitos democráticos e direitos de cidadania. A</p><p>cidadania política, que engloba as eleições livres com o direito universal de escolher</p><p>os seus representantes, não se concebe sem os direitos sociais, iguais para todos -</p><p>direitos à educação, à saúde e todo o tipo de serviços sociais.</p><p>Numa outra linguagem, poderia dizer, com Espinosa, que o fim de todo o Estado - e</p><p>toda a organização dos homens em Estados é fundamentalmente democrática, para</p><p>Espinosa - é assegurar a liberdade do cidadão, entendendo por liberdade o máximo</p><p>possível da expressão, em sociedade, do seu conatus, quer dizer, da sua potência de</p><p>vida.</p><p>Ora, há diversas expressões, diversos graus de liberdade. Há sociedades e homens</p><p>mais ou menos livres.</p><p>Portugal conhece uma democracia com um baixo grau de cidadania e de liberdade.</p><p>Dou a esta última palavra um sentido próximo do sentido espinosista. Sabemos</p><p>pouco quero dizer, raros são aqueles que conhecem - o que é um pensamento livre.</p><p>Raramente no nosso pensamento se exprime o máximo da nossa potência de vida.</p><p>Dito de outro modo: estamos longe de expressar, de explorar, e portanto de conhecer</p><p>e de reivindicar os nossos direitos cívicos e sociais de cidadania, ou seja, a nossa</p><p>liberdade de opinião, o</p><p>42</p><p>direito à justiça, as</p><p>múltiplas liberdades e</p><p>direitos individuais no</p><p>campo social.</p><p>Não pretendendo expor</p><p>as razões que</p><p>impediram o</p><p>aprofundamento mais</p><p>rápido da prática</p><p>democrática - em todos</p><p>os campos - no nosso</p><p>país, avanço agora com</p><p>algumas hipóteses</p><p>sobre o que mantém o</p><p>divórcio entre</p><p>conhecimento e</p><p>democracia.</p><p>Referir-me-ei apenas a</p><p>três fenómenos:</p><p>a. a ausência de um «espaço público» na sociedade portuguesa.</p><p>Mais uma vez, a característica essencial do «espaço público» é de constituir uma</p><p>exterioridade, um «fora». Fora que não existe em Portugal.</p><p>Porque não existe, Portugal é uma sociedade ainda fechada, cercada, uma fortaleza</p><p>onde algumas bolsas de actividade procuram um fora que as alimente. É isso que faz</p><p>com que se perpetue, contra todas as mudanças que o país tem vindo a conhecer,</p><p>uma espécie de força entrópica ou de buraco negro que suga a possibilidade de</p><p>produzir sentido. O sentido novo que se produz é escasso - a estagnação do sentido</p><p>contribui para a paralisação da democracia, para a repetição formal dos gestos</p><p>democráticos adquiridos (de que o ritual do 25 de Abril é o exemplo, de ano para</p><p>ano, cada vez mais patético).</p><p>O buraco negro é o espaço de ausência do espaço público. E o que separa as</p><p>instituições umas das outras, o que separa os indivíduos que se reúnem para um</p><p>acontecimento cultural e que voltam para casa, depois, sem que nada tenha ficado</p><p>entre eles, sem que o acontecimento tenha repercussões posteriores na sua vida</p><p>pública e privada.</p><p>Em vez do espaço público impera a televisão. Esta última poderia ser um meio</p><p>extraordinário de criação de de-</p><p>43</p><p>democracia. Mas é o contrário, e em múltiplos sentidos, que não podem ser aqui</p><p>analisados.</p><p>b. o segundo fenómeno que contribui para o divórcio entre democracia e</p><p>conhecimento é a não-inscrição. Em Portugal nada se inscreve, quer dizer, nada</p><p>acontece que marque o real, que o transforme e o abra. É o país por excelência da</p><p>não-inscrição.</p><p>A não-inscrição surge, talvez, como o factor mais importante para o que podemos</p><p>chamar a estagnação actual da democracia em Portugal. Apesar das liberdades</p><p>conquistadas herdámos antigas inércias: irresponsabilidade, medo que sobrevive sob</p><p>outras formas, falta de motivação para a acção, resistência ao cumprimento da lei,</p><p>etc., etc.</p><p>Dir-se-á que as gerações que nasceram depois do 25 de Abril já o esqueceram, e que</p><p>a não-inscrição foi uma feliz característica da nossa «revolução». Ter-se-ia que</p><p>descrever e caracterizar os mecanismos que produziram o «esquecimento» ou a</p><p>«ignorância» do passado das gerações novas. Talvez descobríssemos uma das razões</p><p>fortes que explicam a sua apatia. Teríamos de recorrer, aqui, a analogias com o</p><p>«impensado genealógico», a «cripta» e a «incorporação», noções que a corrente</p><p>psicanalítica de Nicolas Abraham e Maria Torok elaborou e explorou: a não-</p><p>inscrição do nosso passado salazarista teve efeitos de incorporação inconsciente do</p><p>espaço traumático, não-inscrito, nas gerações que se seguiram. É como se lhes</p><p>tivessem retirado um solo, um elemento essencial do seu psiquismo e da sua</p><p>existência, antes mesmo delas nascerem. O que significa que a não-inscrição não</p><p>ocorreu apenas no plano político mas em todos os planos da vida social e individual.</p><p>A leviandade suscitada pela não-inscrição permite que a lei não se cumpra ou que</p><p>dela se escape, que os programa</p><p>44</p><p>45</p><p>não se realizem, que não se pense nunca a longo prazo, que as fiscalizações não se</p><p>façam, que a administração não se transforme realmente, que os projectos de</p><p>reforma não se executem, que os governos não governem. Nada tem realmente</p><p>existência. A não-inscrição induz um tempo social particular, só o presente pontual</p><p>existe; à sua frente está o futuro que se fará sentir apenas com o surgimento-</p><p>repetição do presente. O futuro, sobretudo o futuro longínquo, não existe, não tem</p><p>consistência, não se prevê. Porquê? Porque nada há para se inscrever, nem uma ideia</p><p>para o país, nem um destino individual.</p><p>Vivemos até aqui demoradamente. Mas a temporalidade mudou desde os tempos da</p><p>ditadura: esta fazia dos portugueses seres adiados; hoje, em democracia, numa</p><p>sociedade normalizada, à superfície das coisas, o presente eterno que foi o nosso já</p><p>esconde mal as mutações que se vão operando, o adiamento transformou-se em</p><p>espera, a espera em ansiedade e a ansiedade aspira cada vez mais ao real.</p><p>Em contrapartida, somos um país de burocratas em que o juridismo impera, em</p><p>certas zonas da administração, de maneira obsessiva. Como se, para compensar a</p><p>não-acção, se devesse registar a mínima palavra ou discurso em actas, relatórios,</p><p>notas, pareceres - ao mesmo tempo que não se toma, em teoria, a mais ínfima</p><p>decisão, sem a remeter para a alínea x do artigo y do decreto-lei n.° tal do dia tal de</p><p>tal mês do ano tal.</p><p>A não-inscrição continua hoje, o que acontece, no nosso país, é sem consequência.</p><p>Nada tem efeitos reais, transformadores, inovadores, que tragam intensidade à nossa</p><p>vida colectiva. Nestas condições, como participar no aprofundamento da democracia</p><p>- à qual a não-inscrição resiste sempre?</p><p>c. Portugal tem uma sociedade normalizada. Significa isto que a vida individual e</p><p>social do português encontra limites internos aquém dos que são a priori necessários</p><p>para se estabelecer uma vida em comum. Limites que passam despercebidos, mas</p><p>impedem os indivíduos de experimentar ou criar alternativas em zonas essenciais da</p><p>existência. Se empregássemos a terminologia de Foucault e Deleuze, diríamos que</p><p>Portugal</p><p>está em fase de transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade</p><p>de controlo (noutros termos ainda: está entre uma modernidade em que nunca entrou</p><p>completamente e uma pós-modernidade que nos vai aos poucos invadindo).</p><p>A normalização da sociedade portuguesa actual resulta da tensão, e consequente</p><p>neutralização, destes dois pólos: o pólo disciplinar que perpetua velhos reflexos de</p><p>obediência, suscitando subjectividades pré ou protomodernas, e o pólo de controlo,</p><p>em que os mecanismos regulamentares decorrem directamente do funcionamento</p><p>tecnológico dos serviços e as subjectividades correspondentes tornam-se, por assim</p><p>dizer, dispositivos programados, como um elo da cadeia das novas tecnologias que</p><p>controlam gestos, comportamentos, corpos, afectos. O biopoder das sociedades de</p><p>controlo fabrica subjectividades pré-formatadas.</p><p>Digamos que o velho Portugal rural e pré-industrial fechado sobre si e sobre o seu</p><p>império colonial pertencia à categoria das sociedades disciplinares com as suas</p><p>instituições correspondentes (escola, prisão, fábrica, exército, Estado autoritário,</p><p>etc.). A entrada de Portugal na Europa leva-o na direcção das sociedades de</p><p>controlo.</p><p>Como consequência desta tensão, os hábitos de obediência e submissão que os</p><p>portugueses trouxeram do autoritarismo salazarista mal começaram a desintegrar-se</p><p>fora</p><p>46</p><p>logo apanhados pelas tecnologias de controlo que surgiam. Que tipo de subjectividades está</p><p>a resultar desta situação? Apesar de demasiado complexas, variadas e mutantes para serem</p><p>descritas e classificadas rapidamente, um traço, no entanto, parece dominante: são</p><p>subjectividades passivas que desposam a ilusão da actividade e da iniciativa. Ilusão, porque</p><p>apenas se lhes oferece uma direcção única, a do controlo. É, aliás, o que os discursos</p><p>político, económico, social, cultural das instituições e dos media não cessam de nos dizer.</p><p>Não há outras vias (políticas, económicas, sociais), não há outra maneira de viver, de</p><p>educar, de instruir, de tratar, de organizar o lazer, de viajar, de se divertir, de amar. A</p><p>abertura à Europa e ao mundo oferece-nos nesta sociedade normalizada a tecnociência ao</p><p>serviço da globalização.</p><p>Cercados por este «fora» que disponibiliza um sentido único, os hábitos antigos de</p><p>«dentro», quer dizer, da obediência disciplinar, depressa se moldam ao controlo dos</p><p>dispositivos tecnológicos que se vão estendendo a todo o campo social. O horizonte dos</p><p>possíveis encolheu terrivelmente. Mas não se dá por isso, porque o próprio desejo de o</p><p>alargar desapareceu. O sentido único manifesta-se nos mesmos tom e plano do pensar da</p><p>classe política, da esquerda e da direita; no mesmo tipo de crítica artística ou literária que</p><p>praticam indivíduos diferentes, na mesma linguagem do prazer, na mesma e monótona</p><p>maneira de colocar problemas em todas as esferas da vida. O empobrecimento do horizonte</p><p>dos possíveis explicaria assim a apatia, a anestesia da sociedade portuguesa.</p><p>Por exemplo, não é concebível, hoje, a abertura a outras dimensões existenciais como o</p><p>quiseram e fizeram os movimentos literários e artísticos do séc. xx. Dir-me-ão que se</p><p>47</p><p>faz actualmente outra coisa. Sim, mas no quadro da normalização da sociedade. Não</p><p>se tenta sequer ultrapassar limites, porque apesar de cercados por todo o lado, por</p><p>dentro e por fora, os limites são imperceptíveis. A própria normalização, resultado</p><p>dessas limitações, impõe-se como o falso ilimitado dos limites, quer dizer, a norma</p><p>omnipresente e invisível. Assim vão as subjectividades portuguesas. Não é este o</p><p>maior obstáculo à democracia, à descoberta da vida livre e aberta?</p><p>O pequeno infinito</p><p>O que é uma inscrição? Como é que os acontecimentos de uma vida ganham o</p><p>sentido de experiências decisivas, formadoras, quer dizer, como é que elas se</p><p>inscrevem de maneira a construir uma vida?</p><p>Quando é que um acto, uma palavra, um pensamento, um gesto não se inscrevem no</p><p>outro, ou em qualquer plano de inscrição do campo social? Quando a violência</p><p>ultrapassou um certo limite de intensidade (como em certos traumas), mas também,</p><p>quando a força não chega a um limite inferior.</p><p>Significa isto que não há manifestação possível do desejo. Quando o desejo se</p><p>inscreve num outro desejo surge então o Acontecimento. A inscrição acontece</p><p>quando o desejo se modificou sob a pressão, a força, de um outro desejo, ou da</p><p>violência de um outro acontecimento. O encontro com o desejo produz um novo</p><p>Acontecimento, é ele que se inscreve.</p><p>Inscrever-se significa, pois, produzir real. É no real que um acto se inscreve porque</p><p>abre o real a outro real. Não há inscrição imaginária e a inscrição simbólica (apesar</p><p>do que pretende a psicanálise) não faz mais do que continuar a</p><p>49</p><p>realidade já construída. Quando o desejo não se transforma, o Acontecimento não</p><p>nasce, e nada se inscreve.</p><p>Assim, um amor inscreve-se porque aumenta o desejo. É um encontro de potências</p><p>que amplifica a potência dos desejos. A transformação do desejo vai ao encontro do</p><p>diagrama do desejo, do trajecto das suas potências virtuais em direcção à sua</p><p>actualização presente. Por isso a inscrição faz o presente, um presente de sentido,</p><p>não situado no tempo cronológico, que dá sentido à existência individual ou à vida</p><p>colectiva de um povo.</p><p>Assim, há «boas inscrições» que correspondem a uma ética do desejo. E há «más</p><p>inscrições». Há as que formam e aumentam o poder de vida e há as que o destroem.</p><p>O trauma neurótico rói e desgasta, o paranóico delira inscrições mundiais ou</p><p>cósmicas destruidoras.</p><p>A inscrição abre os corpos. Se a potência de vida aumenta, a inscrição incorpora-se</p><p>no desejo de tal maneira que a sua «marca» ou «selo» desaparece. Se se mutila ou</p><p>esmaga o desejo, fica apenas um corpo-objecto marcado a ferros corpo aprisionado.</p><p>Quando o corpo se fecha, há não-inscrição.</p><p>A inscrição é pois a condição da produção do desejo e do real (ou da sua destruição).</p><p>A não-inscrição suspende o desejo, e vai provocar, mais cedo ou mais tarde,</p><p>violência física. Equivale a uma «má inscrição».</p><p>Entre uma boa e uma má (não-)inscrição, outras situações se desenham. Portugal</p><p>forjou uma bem específica, para seu uso próprio.</p><p>Retomemos o exemplo que já evocámos: o luto. Faz-se o luto de uma morte, de um</p><p>amor, de um acontecimento irremediável, ou recusa-se a fazê-lo, deixando, por</p><p>exemplo, o quarto do morto intocado e intocável, procurando esquecer</p><p>é^</p><p>O pequeno infinito</p><p>O que é uma inscrição? Como é que os acontecimentos de uma vida ganham o</p><p>sentido de experiências decisivas, formadoras, quer dizer, como é que elas se</p><p>inscrevem de maneira a construir uma vida?</p><p>Quando é que um acto, uma palavra, um pensamento, um gesto não se inscrevem no</p><p>outro, ou em qualquer plano de inscrição do campo social? Quando a violência</p><p>ultrapassou um certo limite de intensidade (como em certos traumas), mas também,</p><p>quando a força não chega a um limite inferior.</p><p>Significa isto que não há manifestação possível do desejo. Quando o desejo se</p><p>inscreve num outro desejo surge então o Acontecimento. A inscrição acontece</p><p>quando o desejo se modificou sob a pressão, a força, de um outro desejo, ou da</p><p>violência de um outro acontecimento. O encontro com o desejo produz um novo</p><p>Acontecimento, é ele que se inscreve.</p><p>Inscrever-se significa, pois, produzir real. É no real que um acto se inscreve porque</p><p>abre o real a outro real. Não há inscrição imaginária e a inscrição simbólica (apesar</p><p>do que pretende a psicanálise) não faz mais do que continuar a</p><p>49</p><p>realidade já construída. Quando o desejo não se transforma, o Acontecimento não</p><p>nasce, e nada se inscreve.</p><p>Assim, um amor inscreve-se porque aumenta o desejo. É um encontro de potências</p><p>que amplifica a potência dos desejos. A transformação do desejo vai ao encontro do</p><p>diagrama do desejo, do trajecto das suas</p>